[…] a consciência não é monolítica, pelo menos nos seres humanos: pode ser dividida em espécies simples e complexas e a evidência neurológica torna esta divisão transparente. A espécie mais simples, a que chamo consciência nuclear, fornece ao organismo um sentido do si num momento — agora — e num lugar — aqui. O âmbito da consciência nuclear é o aqui e agora. A consciência nuclear não ilumina o futuro, e o único passado que nos permite vagamente vislumbrar é o que ocorreu no instante exactamente anterior. Não corresponde a nenhum algures, não corresponde a nenhum antes, nem corresponde a nenhum depois. Por outro lado, a espécie mais complexa de consciência, a que chamo consciência alargada e da qual existem vários níveis e graus, fornece ao organismo um elaborado sentido de si — uma identidade e uma pessoa, o leitor ou eu — e coloca essa pessoa num determinado ponto da sua história individual, amplamente informada acerca do passado que já viveu e do futuro que antecipa, e agudamente alerta para o mundo que a rodeia.
Em resumo, a consciência nuclear é um fenómeno biológico simples; possui um único nível de organização; é estável ao longo da vida do organismo; não é exclusivamente humana; e não está dependente da memória convencional, da memória de trabalho, do raciocínio ou da linguagem. Por outro lado, a consciência alargada é um fenómeno biológico complexo, possui vários níveis de organização, e evolui ao longo de toda a vida do organismo. Embora acredite que a consciência alargada também se encontra presente de forma elementar em alguns seres não humanos, ela só atinge o seu auge nos seres humanos. A consciência alargada depende da memória convencional e da memória de trabalho. Quando atinge o seu apogeu humano, é largamente reforçada pela linguagem.
O super-sentido da consciência nuclear é o primeiro passo para a luz do conhecimento e não ilumina um ser na sua totalidade. Por outro lado, o super-sentido da consciência alargada traz finalmente para a luz o edifício inteiro do ser. Na consciência alargada, tanto o passado como o futuro antecipado são sentidos em simultâneo com o aqui e agora, numa visão abrangente cujo alcance é tão vasto como o de uma história épica.
Se é verdade que a consciência nuclear constitui o rito de passagem para o conhecimento, é igualmente verdade que os níveis de conhecimento que abrem caminho à criatividade humana são permitidos pela consciência alargada. Quando pensamos no esplendor da consciência e quando pensamos que a consciência é especificamente humana, estamos a pensar na consciência alargada no seu momento de zénite. No entanto, como veremos, a consciência alargada não é uma variedade independente da consciência: pelo contrário, é edificada sobre os alicerces da consciência nuclear. O bisturi da doença neurológica revela que as alterações da consciência alargada deixam incólume a consciência nuclear. Pelo contrário, as alterações que se iniciam ao nível da consciência nuclear arrasam todo o edifício da consciência, e a consciência alargada colapsa também. O esplendor da consciência requer ambas as formas de consciência. Porém, se queremos esclarecer essa gloriosa combinação, devemos começar por compreender a sua forma mais simples e básica: a consciência nuclear.
A propósito, os dois tipos de consciência correspondem a dois tipos de si. O sentido do si que surge na consciência nuclear é o si nuclear, uma entidade transitória, recriada incessantemente para todos os objectos com os quais o cérebro interage. Todavia, a nossa noção tradicional do si está ligada à ideia de identidade e corresponde a um conjunto não transitório de factos e modos de ser singulares que caracterizam uma pessoa. A minha designação para essa entidade é a de si autobiográfico. O si autobiográfico depende de memórias sistematizadas de situações em que a consciência nuclear permitiu o conhecimento das características mais invariantes da vida de um organismo: quem foram os pais, onde se nasceu, quando, de que coisas se gosta e que coisas se detestam, a reacção habitual face a um problema ou conflito, o nome, etc. Utilizo o termo memória autobiográfica para designar o arquivo organizado dos principais aspectos da biografia de um organismo. […]
O TRANSITÓRIO E O PERMANENTE
A organização da consciência que proponho resolve o aparente paradoxo que William James identificou — segundo o qual, na corrente da nossa consciência, o si muda continuamente à medida que se desloca no tempo, embora, de certo modo, esse si permaneça o mesmo à medida que a existência prossegue. A solução deste aparente paradoxo vem com o facto de o si aparentemente mutável e de o si aparentemente permanente, embora intimamente relacionados, não serem uma só entidade, mas duas. O si em constante mudança identificado por James é o si da consciência nuclear, transitório, efémero, constantemente refeito e renascido. O si que parece permanecer o mesmo é o si autobiográfico, o que se baseia num repositório de memórias biográficas individuais parcialmente reactivadas, que dão assim continuidade e aparente permanência às nossas vidas.
Esta organização dupla requer os mecanismos da consciência nuclear e a disponibilidade da memória. A consciência nuclear fornece-nos um si nuclear, mas a memória convencional é necessária para a construção do si autobiográfico, tal como a consciência nuclear e a memória de trabalho são necessárias para tornar o si autobiográfico explícito, isto é, para manifestar os conteúdos do si autobiográfico na consciência alargada. As espécies cuja memória é limitada não enfrentam o paradoxo de James. Habitam um mundo situado num degrau acima da inocência. Têm, com toda a probabilidade, a experiência aparentemente contínua de momentos de individualidade consciente, mas não estão nem sobrecarregadas nem enriquecidas pelas memórias de um passado pessoal e muito menos pelas memórias de um futuro antecipado.
Na minha proposta, a consciência nuclear constitui uma faculdade central, produzida por um sistema mental e neural circunscrito. O facto de a consciência nuclear ser central não significa que dependa de uma estrutura única. Já vimos que é necessário um grande número de estruturas neurais para a ocorrência da consciência nuclear. Porém, a complexidade do sistema, a multiplicidade dos seus componentes e a cooperatividade necessária para a sua operação normal, não devem fazer esquecer o seguinte facto: à escala anatómica do cérebro inteiro, o sistema que permite à consciência nuclear (a combinação das regiões que apoiam o proto-si e das regiões que apoiam o relato de segunda ordem) está confinado a um conjunto de regiões anatómicas. Não está uniformemente distribuído por todo o cérebro. Existem muitas regiões cerebrais que não estão de todo relacionadas com a produção da consciência nuclear.
A robustez da consciência nuclear provém da sua centralidade anatómica e funcional e do facto de qualquer conteúdo mental, quer seja processado activamente numa interacção directa, quer seja recordado da memória, poder levar o sistema da consciência nuclear a actuar, provocá-lo, por assim dizer, e, ao fazê-lo, gerar uma pulsação de consciência nuclear. A consciência nuclear não está dividida por modalidades sensoriais, por exemplo, consciência nuclear «visual» ou consciência nuclear «auditiva». Pelo contrário, a faculdade central da consciência nuclear pode ser usada por qualquer modalidade sensorial e pelo sistema motor, de modo a gerar conhecimento acerca de qualquer objecto ou movimento.
Os conteúdos do si autobiográfico — as memórias organizadas e reactivadas dos factos fundamentais da biografia individual — são os principais beneficiários da consciência nuclear. Sempre que um objecto X provoca uma pulsação de consciência nuclear e o si nuclear emerge em relação ao objecto X, são também consistentemente activados, sob a forma de memórias explícitas, certos conjuntos de factos autobiográficos implícitos que provocam as suas próprias pulsações de consciência nuclear.
A qualquer momento da nossa vida, geramos pulsações de consciência nuclear para um ou mais objectos e para um conjunto de memórias autobiográficas reactivadas que os acompanham. Sem estas memórias autobiográficas não teríamos qualquer sentido de passado ou de futuro, não existiria uma continuidade histórica para as nossas pessoas. Mas sem a narrativa da consciência nuclear e sem o si nuclear transitório, que nasce no seu interior, não teríamos qualquer conhecimento do momento presente, do passado memorizado e do futuro antecipado. A consciência nuclear é uma necessidade fundamental. Tem precedência, evolutiva e individualmente, sobre a consciência alargada que agora possuímos. No entanto, sem a consciência alargada, a consciência nuclear nunca teria a ressonância do passado e do futuro. A interdependência da consciência nuclear e alargada é completa.
Espécies de si
A seta entre o proto-si não consciente e o si nuclear consciente representa a transformação que ocorre como resultado do mecanismo da consciência nuclear. A seta em direcção à memória autobiográfica indica a memorização de experiências repetidas do si nuclear. As duas setas em direcção ao si autobiográfico significam a sua dependência dupla, em relação quer às pulsações contínuas da consciência nuclear, quer às reactivações contínuas das memórias autobiográficas.
In O Sentimento de Si. O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência, António Damásio, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2000 (1ª ed.). Título Original: The Feeling of What Happens.Versão portuguesa do original americano revista pelo autor e baseada, em parte, numa tradução de M.F.M.
Leia ainda “Uma Recensão Direccionada de O Sentimento de Si: Da Consciência Nuclear à Consciência Alargada. Da Memória Autobiográfica à Identidade Pessoal” in http://metafisica.no.sapo.pt/cardim.html
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2009/08/27/consciencia.alargada.aspx]