“Todalas cousas eu vejo partir” é uma cantiga d’amigo que reúne motivos excepcionais na poesia amorosa dos Cancioneiros, como é o da confiançada protagonista na fidelidade do amigo e o da exaltação da firmeza do seu amor em contraste com a mutabilidade de um mundo em que tudo muda irremediavelmente. | Elsa Gonçalves, A Lírica Galego-Portuguesa, Lisboa, Editorial Comunicação, 1983.
Todalas cousas eu vejo partir
do mund' em como soíam seer,
e vej'as gentes partir de fazer
ben que soíam, tal tempo vos vem!,
mais non se pod'o coraçom partir
do meu amigo de mi querer bem.
Pero que ome part' o coraçom
das cousas que ama, per bõa fe,
e parte-s'ome da terra ond'é,
e parte-s'ome d' u gran[de] prol tem,
non se pode parti-lo coraçom
do meu amigo de mi querer bem.
Todalas cousas eu vejo mudar,
mudam-s'os tempos e muda-s'o al,
muda-s'a gente em fazer bem ou mal,
mudam-s' os ventos e tod'outra rem
mais non se pod'o coraçom mudar
do meu amigo de mi querer bem.
Joan Airas de Santiago, B 963/V 550
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vv. 1-2: vejo todas as coisas do mundo deixar (“partir”) de ser como costumavam.
v. 4 “tal tempo vos vem!”: assim vão os tempos!
vv. 5-6: mas não pode o coração do meu amigo deixar de me querer bem.
v. 7 “pero que”: ainda que. “parte”: afasta.
v. 14 “o al”: o resto.
Na cantiga de amigo “Todalas cousas eu vejo partir” o sujeito poético conta que tudo passa e só o amor permanece.
A palavra tema é “mudar”, utilizada cinco vezes como verbo (e na variação sinonímica “partir” utilizada sete vezes). Sendo assim, a cantiga estrutura-se na seguinte antítese: nos primeiros quatro versos de cada estrofe afirma-se que tudo mudou; no restante verso e respectivo refrão monóstico, exprime-se uma afirmativa (refrão) pela negação do seu contrário (último verso de cada estrofe) – figura retórica denominadalitotes.
São capdenals as estrofres I-III, coincidindo com o paralelismo sintáctico aí existente, em que se repete a primeira parte dos versos 1 e 5 e varia-se mediante o processo de substituição da palavra rimante por outra que, no contexto, contém a mesma ideia (partir/mudar). Os versos em questão ainda estão envolvidos num outro processo versificatório que é o dobre (I - “partir”, II – “coraçom”, III – “mudar”). É colocado em contraste, mediante estes processos, a mudança que sobre o mundo “todalas cousas”, “as gentes” e, até, o “ome part’o coraçom / das cousas que ama” -, por um lado, e, por outro, a adversativa “mais” a marcar a negação (“nom”) da possibilidade em o “coraçom” do amigo ceder àquela mutabilidade que predomina.
Convém notar que as estrofes capfinidas I-II põem em relevo a palavra “coraçom” que, metonimicamente, é a sede do amor.
Põe-se, deste modo, em contraste a razão pela qual se move o coração: num caso o “ome” – não se sabe qual, é indefinido – afasta-se das “cousas que ama”. E, iniciando os versos por um processo de intensificação que é a anáfora (“e parte-s’ome”), o sujeito poético diz que essas “cousas” são a “terra ond’é” e a “prol” que possui. No outro caso, o amigo não se afasta de “querer bem” a protagonista. Desta maneira, exalta-se não só a figura da amada, mas, também, a do amigo, porque continua a manter-se fiel a esse amor que nutre por ela.
Na última estrofe, o uso da anadiplose “mudar” / “mudam-s” chama-nos a atenção para o factor mudança reforçado pelo uso anafórico e pela acumulação polissindética.
Muda-se, pois, “tod’outra rem” (variação: “o al”).
A rima interna “tempos”, “ventos” aponta exactamente para a ideia de transitoriedade.
Até se muda “a gente em fazer bem ou mal”, ideia que também está expressa na primeira estrofe, quando se diz que “as gentes” afastam-se “de fazer / bem que soíam”. Aqui, salienta-se que a mudança faz-se para pior, num processo de desconcerto.
Resta notar que se, por um lado, a cantiga é muito melódica por causa do paralelismo, como vimos, por outro lado, a fuga a essa tendência para a monotonia é descoberta mediante o uso dos vários formalismos já referidos e também das estrofes ditas singulares.
José Carreiro, 28/02/1992.
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► Programa televisivo "Neste lugar onde... a poesia dos trovadores" da série Um mais um igual a um. Natália Correia, Carlos Alberto Vida, RTP, 1981.
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/10/15/B963V550.aspx]