A noite é cheia de vales e baías.
E do meu peito aberto um rio largo de sangue...
Águas densas, de correntes lentas,
serpentes mortas a arrastarem-se.
Águas?
Águas negras, pastosas, alcatrão rolante.
Mas águas puras, verde-claras, atraindo
a margem donde os crocodilos fogem mastigando.
Águas em transparências lucilantes, para cima,
e as estrelas do mar, um polvo e um mefistófeles
ficam no ar sobre ilhéus e lodosos calhaus
que se descobrem.
Plantas brancas e extáticas.. .
Lágrimas... nuvens... e a cabeça, o perfil,
os olhos, todo o corpo da mulher amada, a prostituta
antes de virgem, que é bela e feia, velha e nova,
e não conhece os filhos!
O fogo envolve essa mulher amada
e é um guindaste erguendo-a e atirando-a,
enquanto dispersas pelo chão brilham mandíbulas
naturalmente à espera...
De Poemas de Edmundo de Bettencourt, 1963.
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O texto organiza-se em torno de quatro tópicos de marca literária e erótica reconhecida: a noite, a terra, as águas e a animalidade que as governa ou a partir delas se destrói, «eros» e «thanatos» em confluência trabalhada. | Maria Alzira Seixo
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Se aceitássemos a ideia de que o amor é uma criação da ideologia romântica, como pensam muitos historiadores e teóricos (v. g. Christian David, L’État Amoureux, na senda da psicanálise, ou Jonathan Culler, Literary Theory. A Very Short Introduction, na senda da semiótica e da desconstrução), e entendêssemos a aproximação física e espiritual das pessoas como uma articulação privilegiada entre reacções somáticas de natureza química e interesses sócio-culturais de conjuntura, uma grande parte dos escritos da literatura prescindiria das interpretações críticas mais ou menos protocolares que lhes têm sido dedicadas. O espírito do tempo consagrou diversas formas da manifestação erótica na arte, desde os amores intrafamiliares ou da pederastia nos seus primórdios, passando pela fin'amors medieva e pelo seu avatar humanista que encontra em Petrarca um génio da expressão, diversificando-se na riqueza dos tempos clássicos pela sócio-afectiva rejeição do desejo da Princesse de Clèves ou pela abertura folgazã de Moll Flanders, pelo sentimento dramático-social do corpo experimentado por Manon e pelo puritanismo cristalino de Julie, para forjar o seu modelo de pureza e sensualidade no Werther ou na Dama das Camélias, a oscilar de tremuras de êxtase entre o autodomínio sábio de Ellénor (Adolphe) e a entrega incauta de Teresa (Amor de Perdição). Falo sobretudo de mulheres, reconheço (é natural!), e reconheceremos também que tudo isto acaba (ou começa) na comovente Ema, que Flaubert, por alguma razão quiçá mais do que literária, ligou para sempre a si próprio. Pelo que convém lembrar que Barthes, nosso contemporâneo e lúcido analista do comum enredamento na ideologia, propõe a título individual (como já o fizera Proust, e por isso mesmo alcançando a universalidade maior) uma concepção fragmentária e dispersa do amor que soma isso tudo, feita de estados desligados, de situações extemporâneas, de mitos, de fábulas c de vivenciados estados poéticos, mas sempre vincando esse excesso que dá afinal o afecto (Fragments d'un discours amoureux).
Falo nisto porque o «Poema de Amor», de Edmundo de Bettencourt, aparece carregado de uma sensibilidade patrimonial do erotismo literário que simultaneamente assume, critica e lateraliza, numa vertente verbal que parece conter Iodos estes dados. O texto organiza-se em torno de quatro tópicos de marca literária e erótica reconhecida: a noite, a terra, as águas e a animalidade que as governa ou a partir delas se destrói, «eros» e «thanatos» em confluência trabalhada. Mas nada nele comunica directa ou explicitamente a temática amorosa, a não ser o título e a expressão convencional repetida, no texto, da mulher amada, em terceira pessoa e não de acordo com uma invocação comum na interlocução do circuito afectivo, realizado ou malogrado. O malogro é aqui transmitido pela irrupção do fogo final, já que as águas, que dominam em número de ocorrências (é um poema por onde o amor escorre), se transmudam a dada altura em lágrimas, e o fogo como ardor amoroso vai praticar a anulação destrutiva pela agressão e pela antropofagia imaginária e simulada, do outro e naturalmente (leia-se: de acordo com uma certa forma de natureza) de si.
Atentemos no discurso do texto. A noite é nele sobretudo um cenário, a marca simultânea da intimidade e da partilha, como da treva do sentimento negativizado, que as «águas negras» recebem. A noite é cheia de vales e baías é um verso que elide o sujeito na sua remissão a uma projecção cósmica, de natureza romântica (Leopardi, em contexto similar: «Dolce e chiara é Ia notte senza vento»), mas que constrói, à luz do que vai seguir-se, a paisagem do corpo feminino e da sua articulação ao outro («cheia»). O peito aberto, metonímia de um outro motivo literário, o do coração, faz alastrar por essas baías um rio largo de sangue, condensando a sugestão do sofrimento com a do funcionamento do corpo, interior e nocturno. Por isso as águas, na simbólica do tempo que transforma e se esvai, aparecem logo, senão ensanguentadas, pelo menos «densas», «negras, pastosas», «alcatrão rolante» de uma quotidianidade rotineira e banalizadora da visão natural edulcorada, como do amor doce e tranquilo. E aconstrução prosódica que as refere, em verso livre e compacto, de intensa concentração nominal e pouquíssimos verbos, insiste em nasais de assonância e aliteração que dizem esse obsessivo deslizar. O tempo assim movido «arrasta»serpentes mortas, conjugando então a sugestão seminal masculina com motivações femininas bíblicas da sensualidade e do pecado (pluralizadas, note-se). Daí que o sujeito reitere a menção líquida interrogando-se, em visão subjectiva especular de uma incerteza de conhecimento e de determinação: Águas?, lexema a constituir por si só, monossilabicamente e de modo impressivo, um verso. É a sugestão rotineira do «alcatrão rolante» que acarreta a adversativa, a contrapor à visão sangrenta uma forma protocolar de pureza e alegria, a das águas «verde-claras», «em transparência lucilantes», movimentadas paradoxalmente em ascensão, e apontando as estrelas (que o texto — que nada diz e apenas constrói, como que em verbais «passos em volta» — precisa, rebaixando e aprofundando em abismo: «do mar»); e a referência contígua ao polvo, passando da entidade seráfica estelar à hipótese do monstro, constitui-se em diabolismo ostensivo de uma sugestão de ameaça, de solidão ou mesmo de naufrágio, devolvendo o texto à área de negatividade semântica que o sangue inicial inaugurava, e que a mulher-Medusa e-Medeia (cabelos enredantes de algas e depois de fogo, devoradora de filhos) vai a seguir subtilmente prolongar.
Porque é então que a paisagem se esboça concretamente em vulto feminino, a partir da sugestão terrestre dos vales e baías iniciais, abertos à penetração do mar:Plantas brancas e extáticas... (ela surge em estatismo, ou em êxtase, dissolvida nas águas que a tomaram e anularam); mas, de forma magistral, o início do verso seguinte,Lágrimas... nuvens..., converte as águas e o «cimo» anteriores (essa água penetrante e encorpada) em dor e incerteza, que a figura da mulher, desencadeada subitamente e em massiva expressão de diferenciados aspectos, durante cinco concentrados versos compõe: com a inusual menção primeira da «cabeça» (indiciada em anáfora narrativa dessa dor e incerteza: «e»), as referências seguintes ao «perfil» e aos «olhos» integrar-se-iam numa figuração canónica, não fora a mudança abrupta do verso, que a corta (agride, esquarteja), antes justamente de lhe mencionar «todo o corpo», enquanto corpo amado, e de lhe chamar os nomes da dualidade tradicional romântica antitética (prostituta/virgem, bela/feia, velha/nova, mãe/madrasta), onde aliás algumas antíteses se convertem em oxímoros (ela é bela e feia, é velha e nova), de um barroco feito, no enquadramento presente, sensibilidade modernista. Dualizada, esquartejada, amada pela diferenciação que oferece (apelo do céu, fundura abissal, fragmento terreno — «ilhéus e lodosos calhaus / que se descobrem» —, entrega ao fogo da consumpção), ela é terra e motivo de suspensão da água e do fogo (torna lodosas as águas, envolve-se de chamas), atraindo, enquanto margem de uma mudança e de uma decisão (a mudança das águas, a decisão de anular), a atenção (faminta) do sujeito e a escrita (em desvios) do poema.
O envolvimento moral do sujeito implica-se então na designação judicativa e afectiva da mulher (essa mulher amada), que desemboca no fogo amoroso, electivo e destruidor, que a pretende imolar. E essa consumpção apela de modo conjuntivo para a visão da máquina (que, através do «guindaste», prolonga a linha semântica do «alcatrão rolante»), que é agora agente de uma forma, já não de deslize, mas de novo de ascensão, a da vergastada punitiva e demonstradora que, aliada à metáfora do fogo, esquarteja a mulher exibindo o seu pecado e força atractiva. De «serpente» mefistofélica, de paisagem repousante e enganadora feita Ofélia letal, a mulher passa a presa: presa dessa paisagem e terra que constituem o seu «lodo», e são a primeira força da sua anulação; presa do fogo-guindaste que a exibe consumindo-a; mas presa sobretudo de outro réptil que não ela, e que o sujeito objectualiza na comutação interrogativa de si próprio com as águas (Águas?), transmudada depois em comutação de si com outra forma de réptil, também pluralizada, como as serpentes: a margem donde os crocodilos fogem mastigando. São esses crocodilos famintos, desejantes, que pisam também a terra («o chão») para a tomada definitiva do corpo depois de todas as consumpções: brilham mandíbulas / naturalmente à espera... O animal aglutina o humano e o natural, despersonalizado pela pluralização, e tornando ainda mais incerto o destino da articulação homem-mulher. Da plenitude afirmada da noite o poema passa à indefinição de um final sem fim, de uma anulação cujo empenho e ardor não significam morte. «Thanatos» limita-se a um gesto antropofágico de satisfação agressiva e «Eros», em rigor, parece resistir.
Partindo da fecundante noite inicial, o poeta atravessa as vicissitudes e mutações do afecto incerto e magoado para desembocar numa expectativa de anulação que não é possível preencher. António Lobo Antunes, no seu último romance, Que farei Quando Tudo arde?, constrói um capítulo («Gosto desta casa porque era onde a minha mãe mexia a sopa») sobre a glosa deste poema, a ele anexando outros do mesmo autor através dos quais acentua dois veios simbólicos dos mais ricos que tratámos, o da água(v. g. «As Meninas Velhas») e o da antropofagia amorosa (v. g. «Asas»). Nele se ocupa da questão sócio-afectiva do travesti, pelo que pensamos que a palavra poética heterogénea de Edmundo de Bettencourt, talentosa e original, alarga a sua paisagem e prolonga a expectativa criada num alimento renovado de leituras.
Maria Alzira Seixo
Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX
Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra
Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002.
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/11/01/EdmundodeBettencourt.aspx]