segunda-feira, 28 de novembro de 2011

BLIMUNDA

      
“BLIMUNDA – um nome habitado pelo som desgarrador do violoncelo.”
         

José Saramago, JL, nº 410 de 1990-15-15.
         
         
                               
         
          
         
Blimunda Sete Luas e Baltasar Sete Sóis apaixonam-se e amam-se.

Conheceram-se no auto-de-fé em que a mãe de Blimunda foi condenada ao degredo.
         

O excerto que se segue é da ópera Blimunda, com libreto do músico italiano Azio Corghi baseado no romance Memorial do Convento.
         
A estreia aconteceu em 1990 no Teatro Alla Scalla de Milão.
         
         
Cena IV (Scarlatti, Sebastiana Maria de Jesus, Baltasar, Blimunda)

Espaço acústico
Espaço imaginário
Espaço real
SCARLATTI
— Veio a esta casa não porque lhe dissessem que viesse, mas Blimunda perguntara-lhe que nome tinha e ele respondera, não era necessária melhor razão. De cada vez que ela olha aele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra.
CASA DE BLIMUNDA
(A janela filtra a vermelha luz do poente, que incide sobre os poucos haveres, entre estes uma esteira para dormir. Ao fundo a porta que Blimunda entrando, deixa aberta, depois acende o lume e põe sobre a trempe uma panela de sopas. Entretanto, na porta, aparece Baltasar que, em silêncio, fixa a mulher.)
         
         
         
         
         
PROJECÇÃO DO ROSTO DE SEBASTIANA MARIA DE JESUS
(Baltasar entra e senta-se. Blimunda oferece-lhe uma tigela de sopas e espera que Baltasar termine para se servir da colher dele, que utiliza para acabar de comer as sopas que sobejavam na panela.)
SEBASTIANA MARIA DE JESUS
— Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu.
         
(desaparece)
(Ficaram os dois sentados, sem falar, depois Blimunda espevita o morrão da candeia e aproxima-se de Baltasar, ainda subjugado pelo olhar dela.)
         
BALTASAR
— Por que foi que perguntasteo meu nome?
         
BLIMUNDA
— Porque minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse.
         
BALTASAR
— Como sabes, se com ela não pudeste falar?
         
BLIMUNDA
— Sei que sei, não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizeste, vieste e não perguntaste porquê.
         
BALTASAR
— E agora...
         
BLIMUNDA
— Se não tens onde viver melhor, fica aqui.
         
BALTASAR
— Hei-de ir para Mafra, tenho lá família.
         
BLIMUNDA
— Fica, enquanto não fores.
         
BALTASAR
— Por que queres tu que eu fique?
         
BLIMUNDA
— Porque é preciso.
         
BALTASAR
— Não é razão que me convença.
         
BLIMUNDA
— Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar.
         
BALTASAR
— Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto.
         
BLIMUNDA
— Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei.
         
BALTASAR
— Olhaste-me por dentro.
         
BLIMUNDA
— Juro que nunca te olharei por dentro.
         
BALTASAR
— Juras que não o farás e já o fizeste.
         
PROJECÇÃO DO ROSTO DE SEBASTIANA MARIA DE JESUS
         
         
         
         
         
BLIMUNDA
— Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro; o meu dom não é heresia, nem é feitiçaria, os meus olhos são naturais.
         
SEBASTIANA MARIA DE JESUS
— Não há mulher nenhuma que não tenha visões e revelações, e que não ouça vozes, ouvimo-las o dia todo, para isso não é preciso ser feiticeira.
         
(desaparece)
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
         
BALTASAR
— Mas a tua mãe foi açoitada e degredada por ter visões e revelações, aprendeste com ela.
         
BLIMUNDA
— Não é a mesma coisa, eu só vejo o que está no mundo, não vejo o que é de fora dele, céu ou inferno, não digo rezas, só vejo.
         
BALTASAR
— Os meus olhos não vêem, os meus olhos não conseguem decidir qual seja a cor dos teus olhos, que poder é esse teu de ver os corpos por dentro?
         
BLIMUNDA
— Vejo o que está dentro dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o que está por baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo das roupas, mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a seguir, quem me dera que não o tivesse!
         
BALTASAR
— Porquê?
         
BLIMUNDA
— Porque o que a pele esconde nunca é bom de ver-se.
         
BALTASAR
— Mesmo a alma, já viste a alma?
         
BLIMUNDA
— Nunca a vi.
         
BALTASAR
— Talvez a alma não esteja afinal dentro do corpo.
         
BLIMUNDA
— Não sei, nunca a vi.
         
BALTASAR
— Será porque não se possa ver.
         
BLIMUNDA
— Será.
(Ainda um olhar profundo entre os dois, em silêncio)
         
SCARLATTI
— Que nome é o seu, não foi inspiração divina, não perguntou por sua vontade própria, foi ordem mental que lhe veio da própria mãe, a que tinha visões e revelações, e se, como diz o Santo Ofício, as fingia, não fingiu estas, não, que bem viu e se lhe revelou ser este soldado maneta o homem que haveria de ser de sua filha, e desta maneira os juntou.
         
(Baltasar fecha a porta)
         
BALTASAR
— Se eu ficar, onde durmo?
         
BLIMUNDA
— Comigo.
         
       
Ler o libreto completo aqui:
Música: Azio Corghi
Libreto: Azio Corghi, José Saramago
Teatro Nacional de São Carlos em co-produção com o Teatro Alla Scala de Milão e o Teatro Regio de Turim.
Lisboa, 15, 16, 17 e 19 de Maio de 1991.
         
         
         
           
         
         
         
Antevisão de "Blimunda"
Por Maria João Avillez

Um dia longínquo de 1984, José Saramago recebe em casa uma carta que o deixa perplexo: a editora italiana Suvini Zerboni escreve-lhe para o informar que o compositor Azio Corghi está interessado em fazer uma ópera a partir do "Memorial do Convento". O escritor relê a carta, continua a achá-la "insólita", não responde. E passa o caso à Sociedade Portuguesa de Autores, para que aprofundasse aquela sugestão singular. 

"A verdade é que eu fiquei um pouco céptico... Transformar um romance português numa ópera italiana?", recorda ele, sorrindo. 

A editora reincide, o compositor não desarma. Quase um ano depois, José Saramago tem em Roma o seu primeiro encontro com Azio Corghi, de quem entretanto ouvira já alguns discos e "muito boas referências" artísticas e profissionais.

"O 'Gargantua' de Rabelais fora, por exemplo, um excelente trabalho do Azio... Mas porventura o que contou mais foi o facto de eu ter gostado dele", diz José Saramago. "É um homem de grande lhaneza, muito simples e dono de uma grande competência técnica. Mas é alguém de tal forma simples e discreto que enquanto não se ouve a sua música temos que adivinhá-la... Descobri um compositor apaixonado pelo 'Memorial do Convento', pela história, pelos valores do livro. Meses depois, voltámos a encontrar-nos em Milão, e estas duas conversas deixaram as coisas claras... Foi um encontro feliz."

E assim nasceu "Blimunda"... Numa noite de Maio de 1990 e num berço de ouro, o Scala de Milão. Um ano depois, "Blimunda" tem para si outro palco de ouro, o do São Carlos, enquanto aguarda o de Turim e ainda outras chamadas de prestígio, que a irão levar, se tudo se concretizar, a Toronto, Los Angeles, São Francisco, ao Met de Nova Iorque. E palcos primeiros da Europa manifestaram já a intenção de produzir novas encenações deste libreto. 

Hoje, José Saramago ainda se confessa um autor quase involuntário desta ópera. Encontro-o, camisola verde-escuro, camisa às riscas verde e branco, na casa onde mora, um pequeno andar debruçado sobre uma rua "de silêncio e de paz", que mais parece uma aldeia em plena Lapa. Bebemos um café que vem "ali de baixo", conversamos, o telefone nunca parará de tocar. 

"O libreto da 'Blimunda' vem com dois nomes, o meu e o do Azio Corghi, mas o trabalho essencial é dele... A minha contribuição foi mais uma troca de impressões, uma discussão de proposta de soluções, um trabalho de acompanhamento, muito mais do que um fazer real. Mas ele insistiu com grande delicadeza em que o libreto contivesse os nossos dois nomes..."

Daqui a quatro dias, sentado na plateia do Teatro de São Carlos, José Saramago terá provavelmente dificuldade em dizer o sentimento com que viveu essa noite. E lembrar-se-á, com certeza, dessa outra noite de Maio, quando, há um ano, sentado no Scala, viu pela primeira vez surgir a "sua" Blimunda. Já uma Blimunda outra, que não lhe pertencendo continuava a ser sua. 

Por dentro do escritor vive um homem pudico que não se molda a explicitar sentimentos ou a publicitar emoções. As suas mãos desenham incessantemente gestos e círculos no ar e, de vez em quando, a sua ligeira gaguez tornar-se-á mais lenta. E será sempre num registo contido que hoje olhará para trás e se recordará dessa outra noite fria de Primavera, em Itália. 

"É difícil... Foi sobretudo emocionante. É que nunca posso separar-me daquela ideia de que sou um português de Portugal. Há uma ligação profundíssima, uma raiz e tudo o que tem a ver com ela. Lembro-me de mim e da minha emoção ali sentado, diante daqueles actores, dos cenários, a ouvir uma história que eu escrevera... Tive por vezes a garganta apertada. Era como se eu, sabendo que parte daquilo era meu, não tivesse ao mesmo tempo a certeza de o merecer. Senti-me orgulhoso mas também muito humilde. E houve um sentimento de responsabilidade. Sabe... (sorri), não é um sentimento fácil... ou simples. Será talvez ingénua esta ideia de se ser responsável pelo país a que se pertence... Enfim, não tenho que dizer senão isto."

No S. Carlos, entretanto, vive-se também a azáfama - e que azáfama! - dos grandes momentos, e a contagem do tempo, tal como ali perto, no Teatro Nacional, inverteu já o seu ritmo: a partir de agora a contagem do tempo é descrescente. Há rostos ansiosos, uma atmosfera de tensão, no ar cruzam-se várias línguas numa algaraviada indescritível, o chão está juncado de mil fios, uma sofisticadíssima aparelhagem de mistura de som ocupa uma parte da plateia, fazem-se ensaios de luzes. A confusão tem aquela marca inconfundível da véspera das estreias. 

"Houve aqui dois cavaleiros que muito se bateram pela 'Blimunda'. O José Ribeiro da Fonte e o Manuel José Vaz, directores deste teatro. Gosto de dizer e de reconhecer isso", afirma José Saramago, na penumbra da plateia. 

No palco, vão lentamente nascendo os cenários de Michel Le Bois, a sala é envolvida pelas vozes de Blimunda e Baltasar - Kathia Lytting e William Lewis -, os figurinos de Jacques Schmidt cruzam a cena. A orquestra vai tomando o seu lugar e os cantores Fernando Serafim, Marina Ferreira e Jorge Brás de Carvalho também já se encontram prontos para um dos últimos ensaios. Pelos bastidores, na plateia, em cena, agitam-se centenas de pessoas - assistentes, técnicos, cantores, actores, elementos do coro, uma leva de figurantes. Daqui a algumas horas chegará ainda o octeto vocal madrigalista Swingle Singers. 

Todo este espectáculo - à sua maneira também ele uma superprodução -, assente numa carpintaria forte e em efeitos cénicos que prendem o olhar, foi produzido - e cronometrado - pela imaginação de Jerôme Savary, o encenador que Lisboa descobriu com a "Zazou", em recente noite de pompa, circunstância e espectáculo. 

Saramago: "O livro é o livro, a música é a música, mas há o... encenador. E eu achei a encenação magnífica! Se o livro abre caminhos para soluções cénicas, o Savary explorou esses caminhos com efeitos cénicos deslumbrantes. Um dos factores do êxito da ópera em Milão foi certamente esta encenação... "

O escritor olha Kathia Lytting no palco e emociona-se: "Ela tem o temperamento e a voz duma diva... É uma wagneriana..."

A soprano é bela e jovem e sedutora. Há um ano, quando pela primeira vez cantou "Blimunda", estava grávida. Viveu com tanta intensidade o seu personagem que disse a si própria que se lhe nascesse uma filha teria o mesmo nome. 

"Assim foi, assim é: nasceu uma menina, chama-se Blimunda...", recorda, sorrindo, José Saramago. 

Blimunda-mulher, heroína desse fresco memorável que é o "Memorial do Convento". Hoje, passados que são já alguns anos sobre o momento e o acto da escrita, ainda a ama, como então, o escritor?

Pausa.

"Essa senhora fez-se a si própria. Nunca a projectei para ser assim ou assim... Foi no processo da escrita que a personagem se foi formando. E ela surge, surgiu-me, com uma força que a partir de certa altura me limitei a... acompanhar. Aquele sentimento pleno da personagem que se faz a si mesma é a Blimunda. Mas, é curioso, só no fim me apercebi de que tinha escrito uma história de amor sem palavras de amor... Eles, o Baltasar e a Blimunda, não precisaram afinal de as dizer... E no entanto, o leitor percebe que aquele é um amor de entranhas... Julgo que isso resulta da personagem feminina. É ela que impõe as regras do jogo... Porquê? (sorriso) Porque é assim na vida... A mulher é o motor do homem. (Pausa) Se você vir, os meus personagens masculinos são mais débeis, são homens que têm duvidas, são personagens masculinos com complexos... As mulheres, não."

José Saramago tem hoje os seus seis romances traduzidos em vinte e seis línguas. O escritor ri: "Do finlandês ao hebreu, do grego ao búlgaro..." E depois: "Tenho uma reduzida capacidade de acompanhar tudo isso. Há certos tradutores que têm o escrúpulo de pedir esclarecimentos, de apresentar duvidas. Mas (suspiro), há outros que não perguntam nada. Há um ou outro caso em que faço uma revisão aqui, em Portugal. Mas claro que se trata, no geral, de uma verificação que me escapa. "

A fama, o sucesso, o dinheiro, a invulgar notoriedade que hoje rodeia a sua assinatura, parecem não impedir a sua aparente serenidade ou contenção. Está-lhe no carácter essa forma de respirar perante os outros. Mas nas entrelinhas resvalam muitas vezes palavras reveladoras da vaidade, e sobre elas, não raro, desliza a sombra do orgulho.

"Essa espuma é lisonjeira, todos gostam de ser estimados... E eu acredito na sinceridade disso... Às vezes, todas estas solicitações ou este barulho podem ser opressivos, porque me roubam tempo e disponibilidade. Sobre o dinheiro, gostaria apenas de dizer que vivo do meu trabalho. Desejaria que isso fosse para os outros um direito e uma possibilidade. Mas gostava de voltar a isso da responsabilidade, porque no fundo, o sentimento principal é esse... Não é por importância, mas por verificar - através das reacções e das atitudes em Portugal ou lá fora, no estrangeiro - que transporto comigo uma certa responsabilidade... Eu quase diria que sou representante da língua que falamos, da nossa cultura... E não evito esta impressão de levar o meu país comigo..."


In PÚBLICO de 9 de maio de 1991.







Baltasar e Blimunda: a utopia do amor e a fuga aos códigos da época
         
         
         


Blimunda e Baltasar constituem, pela naturalidade das suas relações amorosas, o par oposto ao formado pelo rei e pela rainha.
         
         
Da mesma maneira que o dia e a noite perfazem uma unidade, Sete Sóis e Sete Luas representam a totalidade da união amorosa.
         
         
         
Há muitos modos de juntar um homem e uma mulher, […] fiquem registados apenas dois deles, e o primeiro é estarem ele e ela perto um do outro, nem te sei nem te conheço, num auto-de-fé, da banda de fora, claro está, a ver passar os penitentes, e de repente volta-se a mulher para o homem e pergunta, Que nome é o seu, não foi inspiração divina, não perguntou por sua vontade própria, foi ordem mental que lhe veio da própria mãe […] e desta maneira os juntou.
[…] vou ver Blimunda, vou vê-la, ai, ali está, Blimunda, Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu, e não pode falar, tem de fingir que me não conhece ou me despreza, mãe feiticeira e marrana ainda que apenas um quarto, já me viu, e ao lado dela está o padre Bartolomeu Lourenço, não fales, Blimunda, olha só, olha com esses teus olhos que tudo são capazes de ver, e aquele homem quem será, tão alto, que está perto de Blimunda e não sabe, ai não sabe não, quem é ele, donde vem, que vai ser deles poder meu, pelas roupas soldado, pelo rosto castigado, pelo pulso cortado, adeus Blimunda que não te verei mais, e Blimunda disse ao padre, Ali vai minha mãe, e depois, voltando-se para o homem alto que lhe estava perto, perguntou, Que nome é o seu, e o homem disse, naturalmente, assim reconhecendo o direito de esta mulher lhe fazer perguntas, Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis.
[…]
Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado carvão de pedra. Veio a esta casa não porque lhe dissessem que viesse, mas Blimunda perguntara-lhe que nome tinha e ele respondera, não era necessária melhor razão. Terminado o auto-de-fé, varridos os restos, Blimunda retirou-se, o padre foi com ela, e quando Blimunda chegou a casa deixou a porta aberta para que Baltasar entrasse. Ele entrou e sentou-se, o padre fechou a porta e acendeu uma candeia à última luz duma frincha, vermelha luz do poente que chega a este alto quando já a parte baixa da cidade escurece, ouvem-se gritar soldados nas muralhas do castelo, fosse a ocasião outra, havia Sete-Sóis de lembrar-se da guerra, mas agora só tem olhos para os olhos de Blimunda, ou para o corpo dela, que é alto e delgado como a inglesa que acordado sonhou no preciso dia em que desembarcou em Lisboa.
         
Blimunda levantou-se do mocho, acendeu o lume na lareira, pôs sobre a trempe uma panela de sopas, e quando ela ferveu deitou uma parte para duas tigelas largas que serviu aos dois homens, fez tudo isto sem falar, não tornara a abrir a boca depois que perguntou, há quantas horas, Que nome é o seu, e apesar de o padre ter acabado primeiro de comer, esperou que Baltasar terminasse para se servir da colher dele, era como se calada estivesse respondendo a outra pergunta, Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu, e como Blimunda já tinha dito que sim antes de perguntada, Então declaro-vos casados. O padre Bartolomeu Lourenço esperou que Blimunda acabasse de comer da panela as sopas que sobejavam, deitou-lhe a bênção, com ela cobrindo a pessoa, a comida e a colher, o regaço, o lume na lareira, a candeia, a esteira no chão, o punho cortado de Baltasar. Depois saiu.
         
Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar. Apenas uma vez Baltasar se levantou para pôr alguma lenha na fogueira que esmorecia, e uma vez Blimunda espevitou o morrão da candeia que estava comendo a luz, e então, sendo tanta a claridade, pôde Sete-Sóis dizer, Por que foi que perguntaste o meu nome, e Blimunda respondeu, Porque minha mãe o quis saber E queria que eu o soubesse, Como sabes, se com ela não pudeste falar, Sei que sei, não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizeste, vieste e não perguntaste porquê, E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo.
         
Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue.
         
Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, E disse, Nunca te olharei por dentro.
         
José Saramago, Memorial do Convento (romance)
Lisboa, Editorial Caminho, 1982
         
         
         


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/11/28/Blimunda.aspx]
     

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

ZECA AFONSO, CANTOR DE INTERVENÇÃO

Ofício da PIDE determinando a prisão de José Afonso
Ofício da PIDE determinando a prisão de José Afonso
          
          
Os músicos e cantores de intervenção sofreram a perseguição do regime do Estado Novo.
Nomes como os de Vitorino, Fausto, Adriano de Oliveira e Zeca Afonso, entre outros, foram sinónimo de contestação, oposição, luta pela liberdade.
As suas músicas e atuações eram proibidas, de modo que a sua voz fazia-se ouvir sorrateiramente.
Muitos deles sofreram a prisão e exílio.
             
Venham mais cinco, Zeca Afonso
José Afonso, Álbum: Venham Mais Cinco Gravado em Paris de 10 a 20 de Outubro de 1973

                          
A canção «A formiga no carreiro» de Zeca Afonso foi editada porque a fábula expressa nessa composição parece não ter sido interpretada pelos serviços de censura.
Proceda à sua decifração, tendo em conta que é uma obra artística em que se verifica um empenhamento sociopolítico.
           
A FORMIGA NO CARREIRO

A formiga no carreiro
Vinha em sentido contrário
Caiu ao Tejo
Ao pé dum septuagenário
Larpou trepou às tábuas
Que flutuavam nas águas
E de cima duma delas
Virou-se pró formigueiro
Mudem de rumo
Já lá vem outro carreiro
          
A formiga no carreiro
Vinha em sentido diferente
Caiu à rua
No meio de toda a gente
Buliu abriu as gâmbias
Para trepar às varandas
E de cima duma delas
Virou-se pró formigueiro
Mudem de rumo
Já lá vem outro carreiro
          
A formiga no carreiro
Andava à roda da vida
Caiu em cima
Duma espinhela caída
Furou furou à brava
Numa cova que ali estava
E de cima duma delas
Virou-se pró formigueiro
Mudem de rumo
Já lá vem outro carreiro
          
José Afonso, Venham mais cinco, 1973.

             


   




LEITURA ORIENTADA DA LETRA DA CANÇÃO “A FORMIGA NO CARREIRO”
      
  Por que se diz que esta cantiga é uma fábula?
  Tendo em conta o regime político fascista que se vivia na época em que foi escrita a letra da canção, em que não se podia dizer abertamente o que se pensava, o que representa o “formigueiro” e o facto de as formigas andarem em “carreiro”?
  Simbolicamente a “formiga” e o “septuagenário” quem representam?
  Por que razão a formiga subiu às “tábuas” e trepou às “varandas”?
  Que apelo faz a formiga ao carreiro de formigas?
  O que pretendia com esse apelo?
  Simbolicamente, a que novo “rumo” se refere a formiga?
  Comente as atitudes da formiga e do formigueiro.

     
                     
Cartaz "AS FORMIGAS NO CARREIRO ACORDARAM!"
Manifestação de professores no Rossio, Lisboa, 2013-01-26

                         
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Grândola, vila morena, ZECA AFONSO
       Em 17 de maio de 1964, José Afonso atuou na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, à qual dedicou “Grândola, Vila Morena”.  (A confirmar isto, o próprio cantautor dizia num apêndice da primeira edição do livro  Cantares: "Pequena homenagem à Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, onde atuei juntamente com Carlos Paredes".)
 
De facto, esta canção descreve a Grândola, uma vila no Alentejo, a região que, ao albergar uma concentração política de esquerda, foi durante muito tempo o símbolo da oposição contra o regime.

"Grândola, Vila Morena" é a canção emblemática da Revolução dos Cravos e de todos os que participaram no Movimento das Forças Armadas (M.F.A.), é o símbolo da vitória da democracia.

Sobre a escolha desta canção como sinal para avançar com as tropas para derrubar o regime vigente de Marcelo Caetano, transcreve-se aqui o depoimento de Otelo Saraiva de Carvalho para a Revista do jornal Expresso nº 2165, de 2014-04-25:

“No dia 22 à noite, obtive a garantia da colaboração do João Paulo Diniz no Rádio Clube Português, a Rádio Renascença estava garantida pelo Carlos Albino, que tinha proposto a 'Grândola, Vila Morena'. A canção tinha sido cantada no dia 29 de março no Coliseu de Lisboa pelo Zeca Afonso na presença dos cantores de intervenção, e não tinha havido ação nenhuma da PIDE ou do capitão Maltez Soares, que estavam presentes. Tinha havido um acordo com a Casa da Imprensa para aquela gala. A canção não estava no índex da Censura. A canção, que passou às 0h20, foi uma senha de confirmação do que já estava em marcha em Lisboa.”

Note-se que para esse espetáculo os Serviços de Censura portugueses tinham proibido a interpretação de várias canções de José Afonso, entre as quais “Venham mais cinco”, “Menina dos olhos tristes”, “A morte saiu à rua” e “Gastão era perfeito”.

Ao escutarmos a canção “Grândola, Vila Morena” sentimos que o seu ritmo ordenado é apropriado ao ritmo cadenciado e marchante do pregão popular: “O povo unido jamais será vencido”.

Quanto à letra da canção, observamos que se faz o elogio de determinados valores e, de forma subentendida, a denúncia dos desvios e aberrações das instituições político-sociais salazaristas.


GRÂNDOLA, VILA MORENA   
     
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade
       
José AfonsoCantigas do maio, 1971
             


LEITURA ORIENTADA DA LETRA DA CANÇÃO “GRÂNDOLA, VILA MORENA

 A partir da leitura das quatro primeiras quadras da letra da canção “Grândola, vila morena”, caracterize a cidade de Grândola e os seus habitantes (no mínimo 4 características diferentes).
 Por que razão na última quadra o poeta jura ter por companheira a vontade da vila de Grândola?
 Indiretamente que tipo de situações pretendia o autor criticar?
           
             
           
TEXTOS DE APOIO

   
                                        
TEXTO 1

Zeca Afonso serviu-se de dois instrumentos estratégicos para transmitir mensagens políticas e enganar a censura do Estado Novo: através da temática escolhida, sugeria e não revelava; através do estilo adotado, possibilitava a crítica velada, recorrendo ao hábil estratagema da plurissignificação dos signos utilizados e dos recursos expressivos escolhidos:

‑ as metáforas e as imagens enriqueceram a linguagem simbólica;

‑ a ironia e a sátira foram utilizadas como método para criticar o regime;  

‑ o estilo simples, a rima, o ritmo e as repetições contribuíram para que as mensagens fossem mais facilmente transmitidas e memorizadas e servissem de impulso mobilizador, conduzindo à ação;

‑ a utilização da quadra tornou mais permeável a forma de cantar e de divulgar aspetos essenciais, fazendo com que estes ficassem mais acessíveis;

‑ os jogos de paralelismo, a técnica do leixa-pren (repetição do último verso ou de algumas palavras do último verso de uma estrofe no primeiro verso da estrofe seguinte), a imitação da forma de cantar dos coros alentejanos criaram unidade, melodia e a vontade de cantar.

Outros recursos utilizados: adjetivação, personificação, antítese, enumeração, interrogação retórica, sinédoque, aliteração, eufemismo, perífrase, exclamação, apóstrofe e anástrofe.

O público ouviu as canções de intervenção, cantou-as em reuniões e em convívios, o que acabou por contribuir para a rápida divulgação do seu conteúdo e da sua mensagem.

Os temas acabaram por ajudar a reconhecer o que era cantado, tornaram-se essenciais e proporcionaram a adesão do público. Apelaram à luta, contra os males da Situação – os Vampiros, a guerra colonial (Menina dos Olhos Tristes) e o Inverno duradouro do regime (Qualquer dia) –, à unidade necessária (Venham mais cinco), à procura de um libertador e da libertação (Canto Moço) e à celebração da vitória de um povo livre (Grândola, Vila Morena).  

Zeca Afonso, ao utilizar uma temática ligada à realidade social do seu tempo, teve em vista: apelar à unidade; criticar a questão colonial; divulgar flagelos sociais (as mortes provocadas pelo regime e pela guerra colonial, os desertores, a emigração clandestina, a pobreza), consciencializar as pessoas sobre a situação social, económica e política que se vivia no país; dar esperança e encorajar; agitar as pessoas, levando-as a refletir sobre a sua passividade e convidando-as a tomar a iniciativa; apelar à mudança.    
     
A simbologia das palavras: os sentidos implícitos nas canções de Zeca Afonso e a revolução silenciosa”, Albano Viseu. In: Revista 3 do CEPHIS (Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social de Trás-os-Montes e Alto Douro), setembro de 2013. Coimbra, Terra Ocre edições/Palimage.
          

TEXTO 2

Ressalta-se que a letra dessa canção não foi proibida pelo regime, talvez pela falta de compreensão da ideia real da mensagem, e, consequentemente, a divulgação da letra e o valor que ela traz tiveram uma dimensão ainda maior, por poder ser entoada entre a população, mesmo partindo de um cantor perseguido pela PIDE.

A canção pretende mostrar que os ideais imaginados para Portugal seriam os mesmos encontrados na cidade de Grândola, numa espécie de relação metonímica, da parte pelo todo. A canção serve como um apelo da população para que tais características possam ser estendidas ao país todo - especialmente por ver que naquela cidade havia pessoas engajadas na luta contra o regime. A canção é um apelo à igualdade para todos os portugueses e à união. A música é utilizada como uma crítica ao governo, daquilo que se gostaria de se ver em Portugal, mas que ainda não existia.

 

Ler aqui a análise de “Grândola, vila morena”, por Ludmila Arruda

(Fonte: Canto de intervenção em Portugal: "O povo é quem mais ordena", Ludmila Arruda. São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016)



                               
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR:
 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro


 Excerto de uma entrevista a José Afonso, em 1984: “Os jovens, e eu digo os jovens de todas as classes, estão um pouco à mercê de um sistema que não conta com eles - que hipocritamente fala deles. O 25 de Abril não foi feito para esta sociedade, para aquilo que agora estamos agora a viver. Aqueles que ajudaram a fazer o 25 de Abril, não só aqueles que o fizeram, imaginaram uma sociedade muito diferente da atual, que está a ser oferecida aos jovens. Os jovens deparam-se problemas tão graves, ou talvez mais graves do que aqueles que nós tivemos que enfrentar, o desemprego, por exemplo, e por vezes não têm recursos, o sistema ultrapassa-os, o sistema oprime-os, criando-lhes uma aparência de liberdade." >> CONTINUA
 «Relatório da Brigada de fiscais da Repartição de Fiscalização e Contencioso da Direcção de Serviços de Espectáculos sobre o I Encontro de Canção Portuguesa em 29 de Março de 1974»:

Alexandre Romeiras: descobriu agora que um dos elementos da referida Brigada, que assina o relatório (Malta Romeiras), era seu familiar próximo. Muitas histórias haverá ainda enterradas em arquivos espalhados por esse Portugal fora!

Contribuição para a história do concerto do Coliseu.

O meu pai tinha três primos direitos:
- Cel Romeiras, com intervenção (contrária) no 25 de Abril – contou-me o Sousa e Castro que teve uma pistola apontada à cabeça, mas a coisa resolveu-se.
- Morgado Romeiras, diretor de abastecimentos da CM Lisboa, saneado, por levar para casa, ao longo de muitos anos, víveres sem fim.
- Juiz Malta Romeiras, que assinava mandatos de captura para o Rapazote (Ministro do Interior), após a prisão dos ativistas pela PIDE, para «legalizar» o acto. Foi considerado agente da PIDE, constando da lista, publicada na imprensa, dos que não se apresentaram.

Este último tinha um filho, Filipe Malta Romeiras, da minha idade, nazi, suásticas como botões de punho, conhecido também pelas provocações e sovas ao Jorge Silva Melo, com o seu grupo. Um dia houve uma manifestação em frente ao Centro Cultural Americano, na Duque de Loulé, e ele estava em casa de um colega de curso aí residente, à janela. Pois foi ao telefone da casa denunciar todas as pessoas que conhecia, incluindo o dono da casa!!! (...)

Descobri ontem o relatório anexo relativo ao concerto do Coliseu de há 40 anos. Comprova que era agente da PIDE, ou a censura tinha outros agentes? (dúvida minha)

Considerando o relatório uma pequena maravilha, junto em anexo. Para a pequena história. 









         

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2011/11/21/censura.aspx]
[Última atualização do post: 2021-10-16]