Ofélia, 1851–1852, John Everett Millais
VÉNUS
I
À flor da vaga, o seu
cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda...
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razão se perde!
Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, n'um balanço alaga,
E reflui (um olfato que se embriaga)
Como em um sorvo, murmura de gozo.
O seu esboço, na marinha turva...
De pé, flutua, levemente curva,
Ficam-lhe os pés atrás, como voando...
E as ondas lutam como feras mugem,
A lia em que a desfazem disputando,
E arrastando-a na areia, coa salsugem.
II
Singra o navio. Sob a água
clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina ...
— Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!
Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor-de-rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.
E a vista sonda, reconstrui, compara.
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
— Ó fúlgida visão, linda mentira!
Róseas unhinhas que a maré partira ...
Dentinhos que o vaivém desengastara.
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos.
Camilo
Pessanha
Sunny Von Bulow (2003), by Dexter
Dalwood |
LINHAS DE LEITURA
VÉNUS I
1. Repare na dimensão irónica do título,
muito na linha do pensamento poético de Pessanha: Vénus, símbolo da mulher esplêndida e eterna, porque deusa, designa
aqui um cadáver. No entanto, este esforço em putrefação produz, através do cheiro a carne que embebeda, um efeito
semelhante à atração sexual exercida por Vénus: «Em que desvios a razão se perde!».
2. Veja de que modo o nível fonético
(aliterações em ver; predominância
sucessiva dos sons vocálicos (e, u, a, o)
se articula com o semântico e o reforça (ex.: a sequência vaga - verde - torvelinho - enreda - desenreda - embebeda).
3. Deve ter notado a forte densidade
adjetiva das quadras, em que a maioria dos vocábulos pertence ao mesmo campo
semântico. Veja de que modo a violência visual assim criada prepara o leitor
para os tercetos, que explicitamente apontam para uma representação plástica: esboço, marinha e a posição da figura
feminina, que surge como um ícone volante. Note ainda que o 1.º terceto é como
que uma pausa nessa violência, insinuando a estaticidade própria da figuração
pictórica (a qual não é invalidada pelos signos flutua e voando), e que o
2.° terceto retoma e completa as quadras, introduzindo uma comparação e uma
dimensão sonora que mais acentuam a destruição total do corpo.
Tereza Coelho Lopes, Clepsidra de Camilo Pessanha, Lisboa,
Seara Nova-Editorial Comunicação, 1979.
*
VÉNUS I e II
O primeiro destes
sonetos é, de longe, o mais comentado de todos os textos de Pessanha. Há um
mistério persistente que o envolve, e que constitui um desafio interminável à
sua decifração.
Para se poder fazer a
sua análise, torna-se indispensável integrá-lo no díptico de sonetos de que faz
parte.
Assim, por exemplo:
1 ‑ Os dois sonetos
referem dois diferentes regimes do imaginário da água: revolta / calma;
superficial / profunda; turva / transparente; etc.
2 ‑ Os modos de
aparecimento do "eu", ou do sujeito lírico, têm uma importância
diferente nos dois casos: descreva-os.
3 ‑ No primeiro
soneto, nota-se a predominância fonológica do "e" aberto, primeiro, e
do "u" depois. Pode dizer-se que esta mudança fluida do "e"
para o "u" está já no título Vénus,
que, assim, funciona como um tema musical de que os versos do soneto seriam as
variações?
4 ‑ O primeiro soneto
tem duas linhas semânticas, positiva (ou eufórica) e negativa (ou disfórica),
sem que nenhuma delas pareça levar a melhor sobre a outra. O nascimento
glorioso de Vénus, que parece ser representado ou, pelo menos, aludido, é a
primeira linha. A segunda é a sugestão de um cadáver que fosse arrastado pelas
vagas. Como fazer jogar uma com a outra? E qual é o sentido, afinal, da
referência mitológica?
5 ‑ O segundo soneto
refere uma linha temporal de memória, mas aplica-se sobretudo a descrever uma
visão. Compare-se com esta passagem de uma crítica que Pessanha faz ao livro Flores de Coral, do seu amigo Alberto
Osório de Castro: "[...] o consciencioso observador científico, de que o
esteta se duplica, interpreta o fenómeno e perscruta o fundo de que o mesmo
aspeto é a superfície: a natureza íntima das coisas, as relações e a fatalidade
dos seus destinos".
Cristina Duarte, Fátima
de Campos Rodrigues, Mª de Sousa Tavares, Cadernos
de Literatura. Português 12º Ano. Caderno do Aluno. Amadora, Raiz Editora,
1995. (Linhas de leitura adaptadas de Poesia
simbolista portuguesa. Apresentação crítica, seleção, notas e linhas de
leitura de Fernando Cabral Martins. Lisboa, Editorial Comunicação, 1990, p. 80)
ELLIE VICTORIA GALE, Leaks of Light |
QUESTIONÁRIOS
VÉNUS I
1. Vénus é neste poema um cadáver. Mesmo assim ainda mantém
a carga da atração sexual da Vénus viva.
1.1. Que verso traduz essa carga?
2. Vénus é um corpo flutuante nas águas do mar: “À flor da
vaga".
2.1. O que poderá sugerir a agitação das águas do mar?
3. A imagem feminina traz, em primeiro lugar, a sua nota de
cor verde.
3.1. Qual será o simbolismo desta cor, neste contexto?
4. Esta imagem é colocada no mar. Vénus e mar.
4.1. De que será símbolo esta Vénus?
5. Os simbolistas trabalham as palavras como um músico as
notas. E este poema é exemplar no campo da exploração dos sons. Para o
demonstrar, apresentamos, com a devida vénia, o trabalho de Esther de Lemos em “A Clepsidra" de Camilo Pessanha,
Editorial Verbo, 2.ª ed., pp.69-71:
«Esta primeira quadra ainda se passa à
superfície, "à flor da vaga"; a imagem a sugerir traz a sua nota de
cor "verde". Os sons são claros, embora já moderados, e os timbres
vocálicos de grande variedade,
ô, á, ê, ê, / i, é,
é / ei, á, é / e, i, ão, é,
sob a influência da notação de cor que foi dado ao
princípio, mais facilmente acordam, como joias sob a luz, cada um com o seu tom
diferente, estranhamente irisados, mas pálidos ‑ verdadeira vegetação marinha.
Ainda predomina o tom aberto de é: as
algas ainda brilham sob a luz, na água verde.
Mas na segunda quadra já se desceu mais.
Considera-se agora, pairando junto ao fundo, o ventre que se desfaz, gelatinoso
e azul como um grande molusco marinho. E os timbres ensombram-se, carregam-se,
adensam, ora mais agudos como a profundidade e a fosforescência azul da
podridão, ora lentos, nasais, pastosos como a massa que se desfaz:
u, e, u, ô / õ, á,
ã, á / ui, á, e, á / ô, e, u, ô, u, u, ô.
Dos quatro versos só um dispensa o
elemento escuro, o u. É aquele que
pretende dar uma impressão onomatopaica de chape-chape
(a água alagando a carne morta) :
Que a onda, crassa,
num balanço alaga...
Quanto aos outros, reproduzem até certo
ponto o murmúrio, o marulho das vagas em redor do corpo. Mas nos tercetos,
descemos ainda mais. Vemos agora o vulto em perspetiva, alongando nas águas, e
os sons acompanham não a cor declarada, mas a tonalidade, a meia-luz submarina,
o azulado, o sombrio e confuso. Predominam os sons u com uma insistência notável ‑ quatro dos uu são colocados na rima, posição que mais os valoriza. As
impressões visuais "esboço", "turva", que lembram a
semiobscuridade do fundo, são ilustrados pelos timbres vocálicos velados,
moderados ou nasais:
I terceto: eu, ô, i,
u, / é, u, u, e, ẽ, u / i, é, á, ô, ã
I terceto: õ, u, é, u
/ i, a, ẽ,
ã
/ ã,
ei, u
As consoantes, cujo efeito é menos
aparente, não deixam também de desempenhar o seu papel na criação do ambiente.
Todo o soneto se passa não a ver a água, mas dentro de água. Os movimentos, os
atritos, as lutas, resultam por isso silenciosos e moderados, escorregadios. As
ondas lutam, mas oferecendo-se mutuamente uma resistência mole; o corpo, de
consciência "aglutinosa", desfaz-se sem esforço nas águas; e sente-se
por toda a parte o som macio do L, a
lateral de tão grande poder expressivo, que evoca a elasticidade e resistência
passiva do elemento líquido.»
(Aula Viva. Português A. 12º
Ano, J.
Guerra e J. Vieira. Porto Editora, 1999, pp.
312-313)
*
6. Leia o poema “Vénus
I” e responda às questões 6.1, 6.2 e 6.3:
6.1... No poema o autor fala sobre uma inesperada imagem de
mulher. Marque a alternativa que melhor representa a imagem da mulher
apresentada pelo autor.
a) Uma mulher idealiza
b) Uma mulher formosa
c) A imagem de uma mulher inteligente
d) A imagem de uma mulher como um cadáver em estado de
putrefação
e) A imagem de uma mulher moderna
6.2... Marque a alternativa em que contenha uma passagem do
poema que melhor representa o estado em que se encontra a mulher descrita pelo
autor.
a) Flor da vaga (linha 1)
b) Pútrido o ventre, azul e aglutinoso (linha 5)
c) Cabelo verde (linha 1)
d) O seu esboço (linha 9)
e) E as ondas lutam (linha 12)
6.3... No trecho: “O cheiro a carne que nos embebeda!”
(linha 3). A figura de linguagem predominante é:
a) Metáfora
b) Paradoxo
c) Metonímia
d) Polissíndeto
e) Sinestesia
丁文杰. (Wenjie Ding), 2022 |
VÉNUS II
1. No primeiro soneto, a imagem vogava; agora
está no fundo do mar.
1.1. O Poeta vê o fundo do mar. Poderá também ver a figura feminina?
1.2. Qual o valor da pontuação?
2. Que diferença encontras entre a 1.ª quadra e a 2.ª quadra?
3. Que elementos apontam para a perfeição da imagem?
4. O sujeito poético parece atraído por essa perfeição.
4.1. Que elementos induzem nesse sentido?
5. Como se pode interpretar o verso: "Ó fúlgida visão, linda mentira!"?
6. Qual será o tema desse soneto?
1.1. O Poeta vê o fundo do mar. Poderá também ver a figura feminina?
1.2. Qual o valor da pontuação?
2. Que diferença encontras entre a 1.ª quadra e a 2.ª quadra?
3. Que elementos apontam para a perfeição da imagem?
4. O sujeito poético parece atraído por essa perfeição.
4.1. Que elementos induzem nesse sentido?
5. Como se pode interpretar o verso: "Ó fúlgida visão, linda mentira!"?
6. Qual será o tema desse soneto?
(Aula Viva.
Português A. 12º Ano, J. Guerra e J. Vieira. Porto Editora, 1999, p.
313)
TEXTOS DE APOIO
Fenomenismo e ceticismo categorial na poesia de Camilo
Pessanha, Óscar Lopes (1970)
A (de)composição de Vénus : reflexões sobre dois sonetos de
Camilo Pessanha, Anna Klobucka (1988)
O pensamento da morte na poesia de Camilo
Pessanha,
Maria Alzira Seixo (1989)
A deusa decadente, Fernando Cabral Martins
A Vénus simbolista de Camilo Pessanha, Jairo Nogueira Luna (2006)
O naufrágio em Camilo Pessanha, Ângela Carvalho (2006-2008)
Vénus e o tema da Mãe, J.G. Elzenga (2009)
«A distância sem fim que nos separa»:
a unidade cognoscitiva impossível,
João Paulo Barros de Almeida (2009)
Recortes
grotescos na história da literatura portuguesa: corpo exagerado, lascivo,
quimérico e o não-corpo, José Horácio de Almeida Nascimento Costa (2012)
FENOMENISMO E CETICISMO CATEGORIAL
NA POESIA DE CAMILO PESSANHA
E este tema que designaremos como sendo o
da inessencialidade do real (aliás veremos que se refere apenas a um dado senso
do real) não se exprime apenas pela entrega a puras imagens transientes e
incertas. A poética de Pessanha supõe toda uma desarticulação nas categorias da
perceção e do juízo.
Assim, ao nível da perceção, baralham-se
as dimensões do espaço e do tempo. No soneto Singra o navio, a
distância-tempo (ou distância-lonjura) que se abre entre o poeta e a figura
peregrina da sua saudade identifica-se à distância-profundidade a que os
destroços de um naufrágio se acumulam, no fundo do mar, através da fria
transparência luminosa. Há aqui correspondência baudelairiana de imagens, quer
dizer, há uma daquelas maravilhas de vivência recorrente, absolutamente
inexplicáveis, que as retóricas banalizam sob a designação de metáfora: a transparência da água
identifica-se à do tempo, quinta-essência incolor deste facto que é o de o
conjunto das coisas concretas se transformar,
num emaranhado de reversibilidades e irreversibilidades. Mas essa metáfora
água-tempo (ou água-memória, também) torna-se ainda mais perturbante se
repararmos que o espaço e o tempo nos aparecem, assim, inextricáveis, e que a
abstração destas categorias se confunde afinal, na poesia, com a vibração de
imagens concretas, sensoriais. Noutros termos: o leitor sensível ou
poeticamente intuitivo está, sem dar por isso, lendo o soneto, a viver um
problema fundamental (aqui de gnoseologia), que é o que aliás, segundo minha
tese realista, sempre acontece em boa poesia.
Óscar Lopes, “Pessanha,
o quebrar dos espelhos”, in Ler e Depois,
3.ª ed., Porto, Ed. Inova, 1970, pp. 204-208. Apud História Crítica da Literatura Portuguesa. Volume VII ‑ Do
Fim-de-século ao Modernismo, coord. José Carlos Seabra Pereira. Lisboa/São
Paulo, Editorial Verbo, 1995.
A (DE)COMPOSIÇÃO DE VÉNUS: REFLEXÕES SOBRE DOIS SONETOS DE CAMILO PESSANHA
O Beauté! monstre énorme, effrayant, ingénu!
BAUDELAIRE
BAUDELAIRE
Em «Vénus», um
díptico de sonetos integrado na Clepsidra,
compõe Camilo Pessanha uma variação finissecularmente perversa e perturbadora
sobre o tema da afiguração mi(mé)tica do corpo feminino, cuja riquíssima
orquestração imagética assenta na utilização, em contraponto, de tons
equivalentes a diversas interpretações poéticas e iconográficas do tópico
venusino. A dualidade do corpus
textual corresponde à ambivalência oximorónica da expressão: a violação do
interdito que se opera nos dois sonetos assume a forma de, respetivamente,
reescrita da decomposição física em termos do ato sexual e compilação dum
catálogo cadavérico em diminutivos — ambas as subversões executadas no ambiente
apropriadamente ambíguo da matéria aquática, simbolicamente traduzível como Princípio
e como Fim. A afogada Anadiómene de Pessanha — cujo surgimento triunfante ele
exalta em outro soneto, nestas linhas evocadoras do famoso quadro de
Botticelli: «Esvelta surge, vem das águas, nua, / Timonando uma concha
alvinitente!» — integra-se assim, além do mais, no vastíssimo intertexto,
lusitano e universal, de representações trágico-marítimas, constituindo o
núcleo duma meditação melancólica sobre a inevitabilidade do Naufrágio.
Subvertendo a
imagem arquetípica de Vénus, Pessanha coloca-se dentro de uma remota tradição
artística da «monstrificação» da beleza ou da redenção estético-erótica do
horrível, cujo primeiro grande triunfo celebrou o Barroco, cantando, nos versos
de um Alessandro Adimari, «la beltà delle donne fra difetti ancora
ammirabili...»1 A este jogo conceitista sobrepôs o Romantismo o seu mórbido
fascínio pelo semblante medonho da Medusa e a «tempestuous loveliness of
terror» que Shelley celebraria em «On the Medusa of Leonardo da Vinci»2.
Mas só em Baudelaire encontrou o «belo monstruoso» o verdadeiro mestre da
expressão que, «pétrarquisant sur l’horrible» (no dizer de Sainte-Beuve), assim
exaltava os encantos das suas «ninfas macabras»:
Ta carcasse a des
agréments
Et des grâces particulières;
Je trouve d’étranges piments
Dans les ceux de tes deux salières;
Ta carcasse a des agréments!3
Et des grâces particulières;
Je trouve d’étranges piments
Dans les ceux de tes deux salières;
Ta carcasse a des agréments!3
Será esta linha baudelairiana, de
transposição para o nível dos sentidos do antiquíssimo e respeitável cliché da
poesia amorosa — «Odi et amo» — que Pessanha vai seguir em «Vénus I», instaurando a relação de
equivalência entre os termos antitéticos «repugnância» e «desejo». A penetração
do ventre pútrido, «azul e aglutinoso», da afogada, pela onda (logo desdobrada
em ondas: a cópula transforma-se assim em rapto múltiplo), produz intenso
prazer tanto nos agentes do combate sexual quanto no sujeito falante do poema
que, testemunhando a cena, se situa no papel de um voyeur ou, antes, de um senteur
delirante de gozo («O cheiro a carne que nos embebeda!», «(um olfato que se
embriaga)»4. O sujeito, consciente da própria perversão («Em que
desvios a razão se perde!»), desfruta, todavia, plenamente o espetáculo
necrófilo até à sua resolução final: o desmembramento e a decomposição do
corpo, em que se consuma o coito. O quadro poético, ao monstrificar a imagem
arquetípica da deusa cipriota, preserva-lhe, ao mesmo tempo, não só o atributo
essencial — o poder ilimitado de arrastar os sentidos, despertando o desejo da
carne, mas também algo do seu encanto visual, ressuscitando a beleza sublime da
Vénus-ícone volante, cujo principal referente pictórico seria a Anadiómene botticelliana:
O seu esboço, na
marinha turva...
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pés atrás, como voando...
De pé flutua, levemente curva;
Ficam-lhe os pés atrás, como voando...
E bela e horrível é esta Vénus de
Pessanha; «belle hideusement», em suma, como a sua predecessora poética, a banheuse monstruosa de Rimbaud, a
emergir da banheira-concha do nascimento mítico da deusa, tornada objeto da
transgressão iconoclasta que, intensificando-se ao longo da descrição, culmina
na explosão chocante da imagem e da rima finais:
Les reins portent
deux mots gravés: Clara Venus;
— Et tout ce corps remue et tend sa large croupe
Belle hideusement d’un ulcère à l’anus.6
— Et tout ce corps remue et tend sa large croupe
Belle hideusement d’un ulcère à l’anus.6
Em última análise, «it is less the horror
than the grace / Which turns the gazer’s spirit into stone», para aproveitar
ainda o manifesto romântico do belo-horrível, o dito poema de Shelley. O
assombro do observador/leitor de «Vénus
I» induz-se a partir do título, signo inicial do soneto e o indício
privilegiado para a sua interpretação, sem referente na realidade empírica, mas
evocador de um vasto sistema de representações, unidas — todas elas — pelos
semas «beleza» e «imortalidade». O choque que suscita a imagem da Vénus afogada
(a morte do imortal) supera-se pelo efeito mais complexo produzido mediante a
monstrificação do ventre divino, ao qual, todavia, o discurso poético devolve a
seguir o indomável poder de sedução, num constante vaivém oximorónico das ondas
deste «Hymne à Ia Beauté» de Camilo Pessanha.
No segundo soneto do díptico, o
funcionamento do denominador comum venusino parece ser dificilmente
desvendável, a menos que se pressuponha a instauração, no processo de leitura,
de uma cronologia narrativa dentro da qual o poema/capítulo II continuaria,
necessariamente, o fio estabelecido no poema/capítulo I. Tal cronologia (os
restos mortais mineralizados no fundo do mar como a última, lógica consequência
da decomposição do corpo afogado) constitui, no entanto, apenas uma entre
diferentes maneiras possíveis de relacionar os dois sonetos, não sendo menos
certo que a leitura do díptico como um todo integral pode e deve ser precedida
pelo reconhecimento do caráter autónomo dos seus elementos, suscetíveis de
análise independente.
No soneto «Singra o navio...», a conotação feminina (e já agora venusina)
insinua-se engenhosamente nestes dois versos do segundo quarteto:
Seixinhos da mais
alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor-de-rosa,
Conchinhas tenuemente cor-de-rosa,
O que, por magia poética, se vislumbra
através da aparente ingenuidade mimética destas linhas é uma descriptio puellae, descendente
metaforicamente dissimulada dos blasons
quinhentistas, catálogos encomiásticos do corpo feminino, que, radicados na
tradição lírica remontante ao Cântico dos
Cânticos, começaram a proliferar na Renascença a partir do aclamado «Blason du Beau
Tetin» de Clément Marot. O
micro-blason integrado no soneto de
Pessanha compõe-se de todos os ingredientes obrigatórios do género: o
superlativo da exaltação hiperbólica («a mais alva»), o envolvimento emocional
do observador/poeta conotado pelos diminutivos carinhosos, as cores
paradigmáricas da feminidade sublimada (branco e cor-de-rosa) e, por fim, os
próprios objetos contemplados, as partes do corpo eufemicamente postas em
destaque. Haja ou não um «beau tetin» nos «seixinhos da mais alva porcelana»,
como a vizinhança léxica (seixos/seios) parece sugerir, não se pode negar a
presença, neste dístico, do núcleo corporal da feminidade, cuja metaforização
via concha constitui quase um lugar-comum da poesia erótica. A motivação para o
aparecimento, em «Vénus II», de
«conchinhas tenuemente corde-rosa» é ainda reforçada, evidentemente, pela sua
função de atributos, mítica e artisticamente sancionados, da deusa cipriota7.
A atenção dedicada a uni só dístico do
soneto Em causa deixará de parecer excessiva, se admitirmos — o que se nos
afigura inevitável — que o impacto do poema inteiro tem o seu epicentro na
justaposição destas linhas e as do último terceto que formulam a seguinte
conclusão macabra do quadro:
Róseas unhinhas que
a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
O blason
continua na mesma convenção formal, segundo indica o emprego consistente dos
diminutivos, embora os objetos contemplados assumam agora a aparência de restos
mortais, cujo (eterno) repouso na tumba marinha é já sugerido, aliás, no
segundo quarteto:
Repousam, fundos,
sob a água plana.
Ter-se-á operado assim o processo de
desengano, na linha do cliché «a Verdade revelada pelo Tempo», resultando na
ruína da bela ilusão, imbuída de conotações positivas da feminidade ideal, da
infância/inocência, do precioso e do frágil? Terá ocorrido a morte da metáfora
e surgido, debaixo da máscara requintada do veículo, o semblante cadavérico do tenor, numa vindicação da realidade crua
que exige o naufrágio da «impecável figura peregrina»? Ou então continuará a
metaforização como princípio organizador do ato epistemológico, realizando-se
apenas a deslocação do discurso poético para um diferente código descritivo —
aquele que governa as literárias representaçõs trágico-marítimas — provocada
pela disposição modificada de quem já possui a consciência (apriorística, ou
seja, anterior — dentro do sintagma do soneto — ao momento da revelação) de
«naufrágios, perdições, destroços» e, em vez de cantar a beleza ideal duma
Vénus nascente, inclina-se a exaltar melancolicamente os encantos algo macabros
de restos cadavéricos. Digo «encantos», pois a convenção encomiástica é
preservada até o último verso («Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...»)
que parece seguir o procedimento comum nos catálogos renascentistas e barrocos
do corpo feminino, ou seja, a recapitulação final das sublimidades da dama8.
Aliás, tal como costuma ocorrer nos ditos catálogos, o veículo da metáfora pela
qual a mulher/Vénus vem evocada no encómio de Pessanha traz certa sugestão de
artifício requintado, bibelôs de porcelana, pedras preciosas insinuadas pela
quase-presença elíptica da pérola, inevitável metonímia da concha, e pelas
joias desengastadas em que se
transformam os dentinhos; enfim, todo este bric-à-brac
exposto à vista do observador no «fundo do mar, de areia fina», como num pano
elegante, ou então na tela de um quadro em que se pinta esta singular natureza morta... E, curiosamente, a
conotação, por assim dizer museográfica, integra-se também no já indicado
contexto trágico-marítimo, seja por via de alusão à epopeia ultramarina e aos
naufrágios que sepultaram no fundo do mar tantas cargas de riquezas do Oriente9,
seja mediante a referência à capacidade, atribuída ao ambiente marinho, de
purificar e enobrecer os restos mortais a ele confiados, o qual acontece, por
exemplo, com o afogado deste trecho de Shakespeare, transformado num esquisito objet d’art:
Full fathom five thy father lies;
Of his bones are coral made;
Those are pearls that were his eyes:
Nothing of him that doth fade,
But doth suffer a sea-change
Into something rich and strange.10
Of his bones are coral made;
Those are pearls that were his eyes:
Nothing of him that doth fade,
But doth suffer a sea-change
Into something rich and strange.10
O mesmo motivo da
purificação/transformação do corpo no ambiente marítimo, encontramo-lo no poema
III da secção «Roteiro da Vida» de Clepsidra,
no qual de maneira extraordinária reverbera o díptico venusino:
Cristalizações
salinas,
Mirrei na areia o plasma vivaz.
Não se desenvolvam as ptomaínas...
Que adocicado! Que obsessão de cheiro!
Putrescina: — Flor de lilás.
Cadaverina — Branca flor do espinheiro!
Só o meu crânio fique,
Rolando, insepulto, no areal,
Ao abandono e ao acaso do simoum...
Que o sol e o sal o purifique.
Mirrei na areia o plasma vivaz.
Não se desenvolvam as ptomaínas...
Que adocicado! Que obsessão de cheiro!
Putrescina: — Flor de lilás.
Cadaverina — Branca flor do espinheiro!
Só o meu crânio fique,
Rolando, insepulto, no areal,
Ao abandono e ao acaso do simoum...
Que o sol e o sal o purifique.
Mereceriam atenciosa leitura crítica
estes versos como que testamentais, de espantosa intensidade expressiva; para a
análise do nosso díptico, porém, interessa sobretudo a maneira de se acumularem
nele, como num espelho algo torto, motivos dispersos tanto em «Vénus I» quanto em «Vénus II», vindo a constituir o poema
um comentário-argumento a favor do caráter integral deste conjunto binário, em
que o principal elemento unificador seria então a já mencionada cronologia da
decomposição.
As correspondências que unem os dois
sonetos não se limitam, contudo, à simples contiguidade cronológica, nem à
atualização, determinada pelo título, do sema comum «beleza feminina». Os
textos do díptico entram» além disso, num curioso relacionamento antitético,
cujas origens podem ser procuradas, por um lado, no mesmo impulso artístico que
levou o autor do «Blason du Beau Tetin» a compor, em seguida, um «Blason du
Laid Tetin», paródia perversa do próprio panegírico; «Vénus II» constituiria assim o blason
do seu contreblason preexistente — «Vénus I» — na característica subversão
da sequência encomiástica estabelecida por Marot. Por outro lado, a duplicaçõo
ou o desdobramento textual da figura da deusa evoca a associação irreprimível
com o motivo neoplatónico de Geminae
Veneres, oriundo da discussão, no Simpósio,
de dois tipos de beleza — simbolizados por Venus Coelestis e Venus Vulgaris — e
representado, na Renascença, em numerosas composições plásticas, entre as quais
o conhecido Amore Celeste e Mondano de Ticiano11. A
violentamente corporal e erótica Anadiómene do primeiro soneto, embora
assassinada pela imaginação poética de Pessanha, lembra a vis generandi dos neoplatónicos, personificada na figura sensual da
Venus Vulgaris, enquanto a beleza sublime, metaforicamente traçada no outro
poema, corresponde à Vénus Celeste, atingível apenas mediante o esforço da
razão que, a partir da contemplação do que é visível na «fria transparência luminosa»,
alcança o inteligível e universal («e a vista sonda, reconstrui, compara...»).
E deve-se apontar ainda o paralelo sinistramente irónico entre o quadro poético
de Pessanha e as representações pictóricas do dito tópico: a justaposição
convencional de «doi Veneri, una vestira, l’altra nuda» encontra um eco macabro
no contraste que se estabelece, no díptico, entre o esqueleto meio coberto de
carne podre e este mesmo esqueleto já despido e purificado pelas águas do mar.
Não obstante a indicada oposição antitética,
as duas Vénus de Camilo Pessanha aparentam-se — como verdadeiras gémeas — mais
do que diferem, devido ao processo comum ao qual as sujeita o discurso poético,
marcando negativamente ambas as figurações da deusa e rescrevendo-as, de modo
igual, dentro de uma retórica de decomposição/dispersão, seja através do
aniquilamento sádico e da dissolução dos restos mortais em que se consuma o ato
sexual («Vénus I»), seja pelo
desmembramento metafórico que corresponde à fragmentação do corpo feminino nas
enumerações encomiásticas, processo ironicamente utilizado, em «Vénus II», na composição dum catálogo
cadavérico. Contudo, por apocalíptica que fosse esta interpretação do tópico
venusino, falta nela a atitude moralista dum Memento mori barroco, assemelhando-se antes o díptico a uma paródia finissecularmente sofisticada,
um prenúncio do manejo lúdico de poéticos lugares-comuns em que se deleitará a
modernidade... E se quisermos procurar no desmembramento da Vénus alguma
motivação para além da iconoclastia mais ou menos gratuita, não será, talvez,
despropositado recorrer àquela Afrodite de Hesíodo, dispensadora «[du] désir
angoissant et [des] soucis qui rongent les membres»: referência que deixa
entrever, nos sonetos de Pessanha, um possível ato da irónica justiça
mitopoética, a cuja execução devemos duas das mais esplêndidas páginas da
Clepsidra12.
"A (de)composição de Vénus : reflexões sobre dois sonetos de Camilo Pessanha" / Anna Klobucka. In: Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 104/105, julho de 1988, p. 38-45.
____________________
NOTAS:
(1) Citado em Mario Praz, The Romantic Agony, Oxford, New York, Oxford UP, 1983, p. 36.
(2) Ibidem, p. 25.
(3) Ibidem, p. 43.
(4) As citações de Clepsidra seguem a edição organizada por João de Castro Osório (Lisboa, Ática, 1973).
(5) Rimbaud, Oeuvres, Paris, Garnier, 1960, p. 61.
(6) Veja-se, a propósito, no ensaio O Preto no Branco de Lêdo Ivo (Rio, São José, 1955), a admirável exegese do poema «Agua-Forte» de Manuel Bandeira; como exemplo mais próximo do contexto histórico-literário em que se enquadra a obra dc Camilo Pessanha cite-se «Les Coquillage» de Verlaine, poema que cataloga conchinhas/reflexos do ato amoroso e do corpo da amante:
Chaque coquillage incrusté
Dans Ia grotte où nous nous aimâmes
A sa particularité.
............................
Celui-ci contrefait la grâceDe ton oreille, et celui-làTa nuque rose, courte et grasse;
Mais un, entre autres, me troubla.
Dans Ia grotte où nous nous aimâmes
A sa particularité.
............................
Celui-ci contrefait la grâceDe ton oreille, et celui-làTa nuque rose, courte et grasse;
Mais un, entre autres, me troubla.
(Oeuvres poétiques complètes, Paris, Gallimard, 1962, p. 111).
(7) De que modo é indissociável esta união prova a existéncia, no Japão, de um sereíssimo, sem dúvida, jornal de malacologia (estudo dos moluscos) que aparece sob o título Vénus... (Venus: the Japanese journal of malacology, Fukuyama, Malacological Society of Japan, 1928).
(8) Sirvam como exemplos: um soneto camoniano («De quantas graças tinha, a Natureza») que termina do modo seguinte: «Enfim, Senhora, em vossa compostura / Ela a apurar chegou, quanto sabia / De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.» (Obras Comptetas, vol. I, Lisboa, Sá da Gosta, s/d, p. 261), ou este, já barroco, de Francisco Manuel de Melo: «Sois na fortuna, mas dessemelhante / No valor, se ante vós não valem nada / Záfir, pérola, aver, rubi, diamante.» (As Segundas Três Musas, Lisboa, Livraria Clássica Ed., 1966, p. 91).
(9) E, entre elas, caixas cheias de porcelanas da China, oriundas daquele mesmo Macau onde Camilo Pessanha passou boa parte da sua vida...
(10) «The Tempest», in Selected Plays of Shakespeare, New York, American Book Comp., 1937, vol. II, p. 681.
(11) Erwin Panofsky, Studies in Iconology, New York. Oxford University Press, 1939, pp. 142-153.
(12) Hésiode, Les travaux et les jours. In Hésiode et les poètes élégiaques et moraralistes de Ia Grèce, Paris, Garnier. s/d, p. 60.
Venus, de Sandro Botticelli. Berlin, Staatliche Museen, Gemäldegalerie. |
O PENSAMENTO DA MORTE NA
POESIA DE CAMILO PESSANHA
Em "Vénus
I”, é o corpo da mulher que o mar destrói, em casuais arremessos sobre a praia (numa figura textual em que
mulher, amor e água se indissociam, e mutuamente se amparam ou se excluem, sob
o olhar - ainda aquoso, especular ‑ do homem cujo impulso amoroso o leva a
participar da destruição comum ("À flor da vaga, o seu cabelo verde! Que o
torvelinho enreda e desenreda.../ O cheiro a carne que nos embebeda!/ Em que
desvios a razão se perde!// Pútrido o ventre, azul e aglutinoso,/ Que a onda,
crassa, num balanço alaga"): caso, em parte, do soneto considerado
anteriormente e, numa das suas formulações poéticas mais conseguidas, de
"Passou o outono já", já torna o frio...", em que a mulher
amada, assimilada a Ofélia, se identifica com o próprio coração do poeta
("coração vazio"), com a evanescência do ser, do amor e do
tempo-água; em "Vénus" II,
a destruição já está consumada, mesmo "naturalizada", e é a
contemplação das águas, processada a partir do navio (símbolo humano de intenso
significado de evasão e errância na arte finissecular), que restitui a
complexidade e mistério do abismo, ilusoriamente límpido na visão que permite
dos seus fundos sortílegos, da banal magia da beleza submarina, mas onde,
sub-reptícia e ameaçadoramente, os "seixinhos da mais alva porcelana"
vão aparecendo como "dentinhos que a maré desengastara", e as
"conchinhas tenuemente cor-de-rosa" se revelam "róseas unhinhas
que a maré partira", numa consideração insidiosa e arrepiante, sob uma
aparência de delicadeza terna, da ação rotineira, desgastante e inelutável da
natureza que o orgânico transforma em parada e morta estesia. Célebres, e
justamente, os diminutivos utilizados por Camilo Pessanha neste soneto, de
"chave" quase clássica, ou até de sugestão barroca, não fora o
indefinido amoralismo e a incerteza subjetiva que a enforma: "Conchas,
pedrinhas, pedacinhos de ossos...”; neles reside um dos aspetos mais
importantes da visão da morte em Pessanha, a de uma irónica valorização do
humano através da constatação do seu frágil irrisório, aliada a um sentido de
inanidade que lhe apaga a relevância no mais vasto evoluir cósmico.
“O pensamento da morte na poesia de Camilo Pessanha”, Maria Alzira Seixo. Análise n.º 13, 1989.
Apud Outros erros, Porto, Edições Asa, 2001, pp. 109-110
Apud Outros erros, Porto, Edições Asa, 2001, pp. 109-110
Joel-Peter Witkin, Gods of Earth and Heaven, Los Angeles, 1988 |
A
DEUSA DECADENTE
2. Há vários dípticos e trípticos na poesia
de Camilo Pessanha. O princípio musical da sua organização geral dá-se muito
bem com esses agrupamentos rítmicos e temáticos de poemas. O díptico Vénus,
por exemplo, tem a unir os dois sonetos o motivo marinho, e a distingui-los o
modo do seu tratamento, que obedece a regimes muito diferentes do imaginário.
Sobretudo, à calma e transparência do movimento das águas do segundo soneto
opõem-se a fúria e a turbulência deste primeiro.
Há,
também, aquilo a que se pode chamar a autonomia de cada um dos sonetos. Quer em
Centauro quer depois na Clepsidra de 1920, o único a ser
publicado é o segundo. Este primeiro soneto só vem a aparecer na reedição da Clepsidra
de 1945, sendo o díptico então reconstituído tal como fora publicado no
diário O Portugal de 29 de abril de 1900. E só o primeiro soneto tem,
por outro lado, a ver com o motivo mitológico do título: o segundo só se liga a
ele por longínqua associação metonímica. É possível, portanto, separar o
comentário do primeiro soneto do comentário do segundo.
O
primeiro soneto do díptico Vénus é, por outro lado, um dos poemas mais
enigmáticos da Clepsidra,e, sem dúvida por isso, também um dos seus mais
comentados. Enquanto poema singular, é talvez mesmo o mais comentado de todo o
Simbolismo-Decadentismo português. Por exemplo, Urbano Tavares Rodrigues
considera que o soneto «tem como referente uma afogada»5, dando a
seguir conta dos seus dois pólos semânticos, e identificando um como o da
«morte e do vazio» e o outro como o da «plétora sexual»6. De facto,
o contraponto de duas linhas tonais e semânticas é típico da poesia de Camilo
Pessanha, e, desde logo, a oposição entre os dois sonetos do díptico Vénus
exemplifica isso mesmo, numa construção em abismo que mantém, a todos os níveis
de organização textual da Clepsidra, essa oposição central de
tonalidades, a disfórica e a eufórica. Encontramos João Camilo, ainda, a
abundar, na defesa de uma leitura de Camilo Pessanha como frustrado e
desiludido, nessa versão de uma «Vénus pútrida» contraposta a uma «imagem
mental de beleza»7, ou seja, essa descrição «mórbida» da «destruição
da beleza de um corpo»8. Mais uma vez, Anna Klobucka elabora a sua
interpretação, num artigo sobre este díptico, em torno do mesmo tipo de duplo
semantismo erótico e cruel: trata-se de uma reescrita da figuração da deusa, em
Vénus I, «através do aniquilamento sádico e da dissolução dos restos
mortais em que se consuma o ato sexual»9. Ainda uma interpretação
semelhante é produzida na mesma altura por Alfredo Margarido no seu artigo
«Necrophilia in portuguese poetry: from the eighteenth century to the present»10,
cujo título é por si só suficiente como programa de leitura, e por Yara
Frateschi Vieira, no seu livro Sob o Ramo da Bétula11, que desenvolve o mesmo
tema: «[o primeiro soneto de Vénus] conserva a ambiguidade da simultânea
associação com a atração erótica e com a repulsa da morte». E lê-se num artigo
de Maria Alzira Seixo do mesmo ano12:
Em «Vénus» I, é o corpo da mulher que o mar
destrói, em casuais arremessos sobre a praia, numa figura textual em que
mulher, amor e água se indissociam, e mutuamente se amparam ou se excluem, sob
o olhar – ainda aquoso, especular – do homem cujo impulso amoroso leva a
participar na destruição comum [...].
Num
outro artigo partindo deste soneto em particular, Barbara Spaggiari vai numa
direção interpretativa que não deixa de ser semelhante: «Alla violenza sorda
del mare si offre, senza opporre resistenza, un corpo in cui è difficile
riconoscere una parvenza umana»13. Finalmente, nos comentários a
este soneto que Paulo Franchetti acrescenta na sua edição crítica do livro de
Camilo Pessanha14, está ainda implícita esta leitura
consuetudinária, embora apenas construída pelo método da colação de um excerto
do artigo de Camilo Pessanha, «Crónica dos bons mortos», que tem um objeto
inequivocamente macabro, e cuja aproximação em termos semânticos está de facto
próxima do soneto, mas que se revela menos conclusiva do que ilustrativa de uma
opinião crítica prévia e geral:
Senão é ir ao teatro anatómico. Eu fui lá uma vez.
[...] Um grande cadáver de mulher, deitado de bruços, tinha como que um ondular
[...]. Paralelamente dissolviam-se as feições dum homem, pouco a pouco
absorvidas em uma irreconhecível massa viscosa: já o ventre se lhe azulara todo
[...].
Em
resumo, estas leituras do soneto possuem a comum característica de tomarem a
representação do nascimento de Vénus como um tópico que o poema com violência
subverte, ou mesmo inverte: à exposição do corpo na sua nudez e opulência viva
se opondo um fantasmar biológico, necrófilo, destrutivo. Não tomam a sério,
portanto, a «objetividade» da representação tal como o poema a formula: um
nascimento de Vénus. Podemos crer, no entanto, que qualquer interpretação deste
poema enquanto representação «objetiva» só o poderá ser «fantasticamente»
(para retomar os termos não menos enigmáticos de Mário Cesariny). Por outras
palavras, no caso de uma escrita simbolista com esta radicalidade há que estar
aberto a que a sua leitura literal seja modulada, ou mesmo alterada, pela sua
interpretação, isto é, que o plano hermenêutico interfira no plano semântico,
ou ainda, que o modo da «objetividade» precise de ser inventado, tornado
novo.
3. Mas comecemos pelo termo genológico: este poema é uma
marinha. A designação mais precisa talvez devesse ser, não fora o seu
anacronismo, uma barcarola, pois se trata de uma marinha que se situa, não no
alto mar como o segundo soneto do mesmo díptico Vénus, mas na praia.
Quanto
às questões de ritmo, aqui de particular relevo, é indispensável lembrar desde
já um texto de Fernando Pessoa15 que estabelece a correspondência
entre o ritmo literário e o movimento da onda (atualizo a ortografia):
O movimento de qualquer composição literária é o da
onda. [...] O movimento da ode consiste essencialmente em três tempos, e, como
o da ode, o de toda a poesia lírica. O movimento está tradicionalmente gravado
na estrofe, antístrofe e epodo da ode grega. O primeiro tempo corresponde à
lenta subida da onda, ao chegar à praia; o segundo movimento corresponde àquele
tempo em que a onda reflui sobre si própria, curvando-se; o terceiro tempo
corresponde àquele gesto da vaga quando, findo o movimento anterior, se espraia
e alonga pela areia.
Em
conexão com esta alegoria crítica de Fernando Pessoa, a conclusão de Esther de
Lemos, numa sua análise a que a seguir voltaremos, é de grande clareza
intuitiva: «Todo o soneto se passa não a ver a água, mas dentro de água»16.
A associação é direta, e ilustra uma outra zona de significação na qual o poema
é a representação do seu próprio tempo musical.É, portanto, evidente que
o processo de construção deste poema é, simultaneamente, a definição de um
referente num espaço-tempo preciso – a onda desde que se forma no mar até se
desfazer na praia – e também uma clara autorreferência da linguagem poética
enquanto forma rítmica e melódica. Esta onda é uma silepse, está tomada em dois
sentidos distintos e verdadeiros. O soneto não pode ser lido enquanto
composição surrealista avant la lettre (como, num certo sentido, o é um
poema de 1891 do simbolista canónico Eugénio de Castro, Um Cato no Pólo,
do livro Horas) nem tão-pouco enquanto jogo barroco de meras cifras
fonéticas (exemplo, aliás oportuno: os Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena,
de Jorge de Sena, em 1963). Em suma, este poema oferece-se à leitura,
simultaneamente, como mimesis e semiosis.
Quanto
à sua natureza composicional, o soneto oferece todas as regularidades que o
Simbolismo-Decadentismo apesar de tudo mantém da tradição, mas também introduz
todas as variações e infrações que são típicas do trabalho simbolista. Assim,
trata-se de um decassílabo livre de esquemas rítmicos rígidos, que parece vogar
ao sabor de uma vontade de expressão. Assim, por exemplo, o verso 7 repete
semanticamente o verso 3, têm ambos a mesma posição nas duas quadras e, no
entanto, distinguem-se bem pelo choque do ritmo, que no verso 7 (acentos na
3.ª, 6.ª e 10.ª sílabas) é singular e muito marcado pelo parêntesis. O sentido
nos versos reitera-se segundo um modelo musical de variação.
Um
dos seus segredos está no teor propriamente fonológico das palavras utilizadas.
Poderemos voltar a Esther de Lemos e à análise (1981: 69-71) daquilo a que
chama, em termos também musicais, a harmonia deste poema, e concluir que: na
primeira quadra «predomina o som aberto de é», na segunda quadra há uma
profusão de sons, marcada pelas rimas em a e em ô, mas em que
estão presentes o e nasal e o u,e nos tercetos «predominam os
sons u com uma insistência notável». Então, aquilo que acontece é que a
rede fonológica do poema evolui de uma dominante em e para uma dominante
em u – com passagem por uma turbulência na segunda quadra em que
há várias (u, ô, a) e não uma única tónica dominante.
Podemos então tentar uma explicitação última, e óbvia: as duas dominantes
fonológicas do soneto são as duas vogais sucessivas da palavra do seu título, Vénus,
que, assim, se torna, de motivo mitológico que é, numa matriz fonológica
geradora, ou num tema musical que se coloca para depois se desenvolver em
variação. A regra poética «De la musique avant toute chose» é tomada no mais
literal dos sentidos.
Ainda
do ponto de vista da análise composicional do soneto, podemos analisar a
extrema complexidade das relações que se estabelecem na concatenação rítmica,
semântica, sintática e lógica das estrofes. Em primeiro lugar, quer as quadras
quer os tercetos formam dois blocos separados. As duas quadras são reunidas por
um mesmo tipo estrófico e de rima – ao passo que os dois tercetos são
unificados pela mesma dominante sonora em u, e pelo próprio caos
rimático, paralelo à dinâmica muito rápida e muito intensa das imagens
(«voando», «arrastando»). As duas quadras também estão interligadas pelo facto
de possuirem uma rima semântica, que é a já citada semelhança entre os vv. 3 e
7 – ao passo que os dois tercetos são como que o espelho um do outro, o segundo
parecendo o negativo do primeiro em termos de tonalidade afetiva. Depois,
percebem-se as tensões no interior de cada um dos blocos estróficos. Cada uma
das quadras se opõe à outra, pois são dois momentos percebidos como sucessivos;
cada uma delas possui um cromatismo distinto, «verde» / «azul», e dois regimes
dinâmicos opostos, pois a primeira configura movimentos desencontrados e
confusos («o torvelinho enreda e desenreda», v. 2, «Em que desvios a razão se
perde!», v. 4) e a segunda une num só movimento o fluxo e o refluxo («num
balanço alaga», v. 6, «E reflui [...] / Como em um sorvo», vv. 7-8). Por sua
vez, cada um dos tercetos se opõe ao outro por duas tendências dinâmicas
contrárias, a primeira referida ao cimo, ao aéreo da espuma, a segunda ao
baixo, ao magma sólido e líquido da areia e da água; esta relação de oposição é
marcada de modo especial pelo contrassenso sintático do «E» copulativo entre os
tercetos (v. 12), que, de facto, tem um valor adversativo. Mas entre a primeira
estrofe e a última há uma rima de regime dinâmico, pois as imagens de confusão
e enredo da quadra são retomadas pelas imagens do lodo e da «salsugem», na luta
entre «as ondas» do terceto. Por outro lado, o primeiro e o último versos do
poema contêm as duas menções extremas em termos de espaço, «À flor da vaga» versus
«na areia», pelo que se desenha do princípio para o final do poema um
movimento de queda com um percurso regular, geometricamente descrito. Ou seja,
a arquitetura tonal e dinâmica é um intrincado jogo de contrastes e simetrias
que se organiza, finalmente, segundo uma forma unida e nítida.
Questão
importante, é na segunda e na quarta estrofes, repetindo desta vez a mesma
tonalidade disfórica, que se encontram elementos para a leitura habitualdeste
poema como tendo por motivo o cadáver de uma afogada: o adjetivo «Pútrido» e
«aglutinoso» no v. 5, o verbo «desfazem» e «arrastam», com o pronome feminino
de terceira pessoa associado, «a», nos vv. 13-14. Mas deve notar-se que a
correta atribuição de sentido a esse pronome feminino não é imediata, nem é
sequer figurável. Se pode implicar o antecedente sintático «esboço» (v.
9), que é a representação da deusa «como voando» (v. 11), ela não concorda em
género com ele. Aliás, até esse ponto, a deusa, ou o corpo orgânico que parece
ser referido sob a forma de fragmentos, usa apenas termos no masculino:
«cabelo» (v. 1), «cheiro a carne» (v. 3), «ventre» (v. 5), «esboço» (v. 9).
Isto é, o pronome «a» só pode referir diretamente a única menção feminina do
texto além da onda, ou seja, Vénus. Pelo que nessa referência mínima, no «a»
surpreendente e eloquente do v. 13, se contém a turbulência última da
catástrofe dos géneros gramaticais, a interseção do masculino e do feminino, a
junção semântica inaceitável entre uma deusa e um cadáver, a conceção de uma
Vénus nascida desfeita na glória putrefacta de uma alegoria violenta e
grotesca. Toda a desfiguraçãoda figura feminina se contém no uso errado desse
pronome, e não é senão um efeito desse erro. Mas aquilo a que se poderia
chamar aqui uma silepse de género serve apenas para desenhar a superfície
turbulenta das águas, não a forma simples da onda.
4. Do ponto de vista de uma lógica do ritmo,
e para retomar a citação de Fernando Pessoa atrás referida, o momento da
formação da «onda» ocupa os primeiros seis versos – a estrofe –, o
momento do refluir da «onda» ocupa os cinco versos seguintes – a antístrofe
–, e o último terceto, claramente destacado dos demais versos do ponto de vista
proxémico, é o momento do espraiar na areia – o epodo. E este ponto de
vista da materialidade da composição significante coincide, enfim, com o ponto
de vista da projeção mimética que refere de modo direto uma onda.
A
leitura literal deste poema lê nele o movimento de uma onda, desde o momento em
que se forma até àquele em que se espraia na areia. Esse motivo é parte do
espaço, pois é no mar e depois na praia que existe, mas contém um tempo, um
ritmo, uma respiração, isto é, ganha uma vida própria. Essa animização da onda
aparece nas múltiplas expressões que a formulam: «o cheiro a carne» (v. 3),
«múrmura de gozo» (v. 8), «como feras mugem» (v. 12). E, sobretudo, essa animização
comparece no facto de a onda (no singular e no plural, mais a sua sinédoque «o
torvelinho») ser o sujeito explícito dos dois primeiros versos, tal como,
depois, das segunda e quarta estrofes. O símbolo Vénus em título
oferece, para além de matriz musical do poema, um programa para a sua
interpretação. Segundo a leitura antes citada de Maria Alzira Seixo, uma
«figura textual em que mulher, amor e água se indissociam». Como vimos, esta
leitura está baseada nas referências de pessoa: há uma terceira pessoa feminina
– Vénus – que é sibilinamente indicada pelo pronome possessivo «seu» (vv. 1 e
9) e pelo pronome pessoal «a» (vv. 13-14). É ainda ela – Vénus – quem parece
ser o sujeito de todo o primeiro terceto.
Resta
o problema hermenêutico: esta mulher é simbólica, é uma deusa, e como pode uma
deusa ter a ver com uma expressão de necrofilia? Ou, de outro ângulo: como ler
na sintaxe dos versos a relação que estabelecem os dois sujeitos «onda» (v. 6)
e «esboço» (v. 9), até que ponto formulam eles a presença de duas entidades ou
tão-somente constituem a declinação da mesma?
Quanto
ao «eu» lírico, não parece estar lá. Funde-se num impreciso «nos» (v. 3) ou
esconde-se em metonímias impessoais, de pendor abstrato: «a razão» (v. 4) e «um
olfato» (v. 7). No entanto, não pode deixar de ser notável tanta discrição. Ela
torna-se mesmo a exposição mais aguda possível da presença do sujeito, que compreende
o objeto figurado e pela sua transparência mesma manifesta a pregnância da
sensação. O «eu» ausente abarca tudo o que sente como se não houvesse diferença
entre o interior subjetivo e o exterior objetivo. Quer dizer, não se trata aqui
de uma contemplação no estado puro, mas de uma transformação dessa contemplação
num símbolo. Perante este «eu» oculto e omnipresente, o movimento animizado da
onda e o nascimento de Vénus como topos mítico revelam-se um só, ao
mesmo tempo metáfora e metonímia um do outro. A composição representa uma onda,
que apenas morre para logo renascer, a mesma e sempre outra, outra e sempre a
mesma. Iteratividade e continuidade da energia.
O
símbolo neste soneto desempenha as mesmas funções que T. S. Eliot cometerá ao
«objetivo correlativo», e destina-se a sugerir um estado emocional. O
símbolo é aquele «nascimento de Vénus»renascentista muito citado e glosado em
toda a poesia parnasiana, decadente e simbolista, mas desta vez colocando a
figura da deusa em sobreimpressão com a onda que se forma, cresce, corre no ar
feita espuma e se desfaz na praia. Símbolo destinado, enfim, a conter em
concentração brilhante essa onda que é a imagem da vida igual a morte e a
imagem da morte igual a nascimento.
Tudo
isso, e a «infinita delícia» de que fala William Blake, na voz «múrmura de
gozo» cantando a fonte da vida.
“A deusa decadente”, Fernando Cabral Martins. In: Verdade, Amor, Razão, Merecimento. Uma Homenagem a Haquira Osakabe, Curitiba, Editora da UFPR, 2005.
______________________
NOTAS:
5. Ensaios de Após-Abril, Lisboa, Moraes, 1977, p. 21.
6. Ibid., p. 24.
7. «A Clepsidra de Camilo Pessanha», Persona 10, Porto, julho de 1984, p. 25.
8. «Realismo e Simbolismo em Clepsidra», Boletim de Filologia, tomo XXIX, Lisboa, 1984, p. 315.
9. «A (de)composição de Vénus: reflexões sobre dois sonetos de Camilo Pessanha», Colóquio/Letras 104-105, Julho-Outubro de 1988, p. 44.
10. Portuguese Studies, vol. 4, 1988, pp. 100-116.
11. Campinas, Editora da Unicamp, 1989, p. 77.
12. «O pensamento da morte na poesia de Camilo Pessanha», Análise 13, 1989, p. 196.
13. «I capelli di Venere: alle origini del simbolismo di Camilo Pessanha», Nova Renascença 35-38, 1990, p. 239.
14. Clepsydra. Poemas de Camilo Pessanha, Campinas, Editora da Unicamp, 1994: 204-205.
15. Pessoa Inédito, org. Teresa Rita Lopes, Lisboa, Livros Horizonte, 1993: 387.
16. ESTHER DE LEMOS, A «Clepsidra» de Camilo Pessanha, 2.ª ed., Lisboa, Verbo, 1981: 71.
A
VÉNUS SIMBOLISTA DE CAMILO PESSANHA
Camilo Pessanha
compôs um poema formado também, como o de Alberto de Oliveira, pelo conjunto de
dois sonetos. O poema surpreende de imediato pelas imagens que se contrapõem ao
padrão usual do tema que é de louvação ao amor e à beleza, de êxtase ou, ainda,
de lamúria sentimental e amorosa. Em Camilo Pessanha o tema parece ser o da
negação disto em favor de uma visão da transitoriedade da beleza e da
desfiguração conceitual desta, como que sugerindo a existência duma outra
beleza, menos acessível por ser de caráter oculto, esotérico. Por outro lado,
parece existir nessa Vênus camiliana uma reminiscência da deusa protetora das
navegações portuguesas, em especial, a da épica camoniana.
Bárbara Spaggiari
estudando a obra de Camilo Pessanha comenta acerca desse conjunto de dois
sonetos:
“O
díptico ‘Vênus’ permite-nos individualizar uma outra constante do léxico de
Pessanha no uso de vocábulos que se relacionam com partes do corpo. A figura
humana (imaginária ou real) é na maior parte das vezes uma figura feminina, de
deusa, de estátua, de ninfa. O poeta evoca-a mediante referências que descrevem
só pequenos detalhes: em primeiro lugar os cabelos, depois lábios (sempre
distantes, inatingíveis), por fim os dedos (que afloram a realidade). Raramente
o léxico se concretiza em imagens mais sensuais (os rins flexíveis e o seio
fremente de ‘Esvelta surge’, v.3); e o próprio ventre da Vênus, longe de
suscitar fantasias eróticas, impõe-se como prefiguração da morte” (SPAGGIARI:
1982, p. 115)
A leitura de Bárbara
Spaggiari é coesa, porém, nos parece que ligeiramente desfocalizada da Vênus de
Camilo, de certo modo, o que Bárbara lê é a Vênus enquanto mito grego como
sugestão em Camilo e não propriamente como o poeta a compõe. Concordamos que a
referência às partes do corpo feminino seja uma tônica do vocabulário
camiliano, porém, no caso desse poema, os lábios sequer são citados (quando
lemos nos versos 7 e 8: “E reflui (um olfato que se embriaga) / Como em um
sorvo, múrmura de gozo” - só muito tenuamente podemos supor que se fale de
lábios, e ainda, nos parece que pela concordância do termo, não se refere aos
lábios da deusa). Por outro lado, o vente aqui é citado (v.5), sim, como
prefiguração da morte, mas é uma metáfora para se referir mais ao mar do que à
deusa (como se percebe no v.24: “Tantos naufrágios, perdições, destroços!”).
A seguir Bárbara
comenta acerca desse efeito de degradação da beleza da deusa:
“Azul e
aglutinoso, ele alude no seu esfacelamento à desagregação da realidade,
esperando que a água do mar e o sal reduzam a matéria impura aos seus elementos
essenciais: as róseas unhinhas, os dentinhos, os pedacinhos de ossos que jazem
no fundo de areia fina, juntamente com conchas e pequenas pedras, como restos
de um naufrágio. A ânsia de mineralidade, como a definiu Oscar Lopes,
justifica-se em seu estado primitivo - quer através da imagem macabra de um
cadáver desfeito em águas, quer na oração desesperada de ‘Roteiro de Vida’: que
o corpo, abandonado no deserto arenoso, possa decompor-se sem libertar venenos,
sob a ação combinada do sol e do sal, que enxugam e purificam (cristalizações
salinas).” (SPAGGIARI: 1982, p. 115)
Bárbara está correta
ao falar no esfacelamento, na desagregação, porém, não nos parece que seja a
desagregação da realidade, mas sim da deusa diante da realidade. O mito da
deusa protetora das navegações portuguesas (desde Camões) cai diante dos
destroços dos naufrágios, visíveis por sob a água clara e entre conchas e a
areia fina. Por fim, Bárbara comenta acerca desse olhar que desvenda a
realidade, que compreende até onde nossas ilusões, sonhos, desejos podem turvar
a visão dessa realidade:
“o que
resta do invólucro material, depois da morte identifica-se com os restos de
tantos naufrágios, perdições, destroços (‘Vênus II’, v. 10), que repousam,
fundos, sob a água plana. E a vista sonda, reconstruí, compara. À vista, ao
olhar, numa palavra, aos olhos, se confia a presença física de Pessanha, no
interior de seu mundo poético. Já referimos, falando da sua temática, a
importância do olhar como trâmite para a perceção da realidade, como traço de
união entre a esfera subjetiva e a objetiva: a um tempo, espelho pronto a
quebrar-se, e sonda destinada a indagar o real.” (SPAGGIARI: 1982, p. 115-116)
A realidade
apresenta-se em Vênus quando o poema cita a visão dos destroços dos naufrágios
por sob a água, e o que era mito, símbolo, a figura da deusa protetora dos
navegantes se decompõe como aqueles destroços.
Para Paulo
Franchetti vê os dois sonetos de “Vênus” em comparação com o soneto “Esvelta
surge” como dois momentos distintos da evocação poética da deusa do amor e da
beleza. Em “Esvelta surge”, mais lírico, uma figura feminina é evocada pela sua
beleza, surgida duma cena marinha : “Esvelta surge! Vem das águas nua, /
Timonando uma concha alvinitente!”, perfeitamente relacionável com Vênus. Mas
no díptico “Vênus” o que temos é um conjunto composto por dois momentos, num
primeiro a decomposição do ideal de beleza, num segundo o desejo de
recomposição nostálgica desse ideal:
“Neste
díptico, no contexto integrativo, é ela imagem do desejo de comunhão com a
paisagem natal, de recuperação da origem. (...) De facto, o primeiro soneto da
série ‘Vênus’, que também parece aludir ao conhecido quadro de Botticelli (‘De
pé flutua, levemente curva, / Ficam-lhe os pés atrás, como voando...’), celebra
não o nascimento ou conquista, mas a morte da beleza. Ela não é ali, uma figura
inteira, oferecida à contemplação, como no quadro ou no sento ‘Esvelta
surge!...’, mas um ‘esboço na marinha turva’. Não há belas formas, nem anseio de
posse. A forma perfeita está ali reduzida a carne apenas, que se desfaz e exala
um odor que embebeda e atrai.
E a
dissolução final do orgânico na mineralidade das ‘conchas, pedrinhas,
pedacinhos de ossos’ não permitirá, pela eliminação do desejo carnal, a
contemplação da ‘impecável figura peregrina’ – da beleza ideal invocada na
primeira quadra do soneto de ‘Vênus’ -mas apenas a sua perceção como um a
‘fúlgida visão’, uma ‘linda mentira’.” (FRANCHETTI: 2001, p. 81-82)
A referência ao
quadro de Botticelli será retomada no nosso trabalho daqui há pouco, uma vez
que tomaremos um detalhe do quadro como signo de ressignificação. Concordamos
que existe no díptico “Vênus” dois momentos, um primeiro marcado pela
dissolução do mito e o segundo não apenas pela nostalgia, mas também pelo
confronto com a realidade que se pode ver com dificuldade, turvada por sob a
água, do processo histórico que envolveu as navegações portuguesas.
No primeiro soneto
do díptico percebe-se um trabalho com os sentidos que caracteriza o efeito de
sinestesia, tão caro à poética simbolista. A cor verde dos cabelos (v.1)
sensibiliza a visão, o cheiro de carne (v.3) o olfato (este citado textualmente
no v.7: “um olfato que se embriaga”). Por sua vez essa embriaguez é associada
ao ato de sorver que implica numa relação gustativa, ou seja, o paladar (“Como
um sorvo” - v.8). O “Pútrido ventre” que é “azul e aglutinoso” tem uma
sinestesia entre a visão (cor azul) e o táctil (“aglutinoso”). A audição vai se
ligando à tatilidade em “murmura de gozo”.
No verso 9, a idéia
de que o visto é um esboço, nos traz a idéia de um ícone (no sentido
semiótico). E os dois versos seguintes parecem sugerir o quadro de Botticelli.
O último verso do soneto (“E arrastandoa na areia co’a salsugem”) cria um
sentido de fricção, de atrito entre as ondas e a areia, terminando assim sob o
domínio do tátil o poema que começara com a visão, isto é, houve uma
aproximação da figura evocada, agora se está tão próximo que os sentidos
percebem o atrito.
No segundo soneto a
visão tenta perceber o que há no fundo do mar (“Vê-se o fundo do mar, de areia
fina...”), porém existe uma distância entre o fundo e a superfície (“A
distância sem fim”) que conota mais do que a distância física, uma distância
entre o símbolo (Vênus) e a realidade visível de forma turvada no fundo do mar:
“Seixinhos da mais alva porcelana / Conchinhas tenuemente cor de rosa”.
Apurando-se o
sentido da visão, começa-se a separar o que é turvo e confuso, começa-se a
perceber detalhes sobre a aparente simetria dos elementos vistos ao fundo do
mar. Entre seixinhos e conchinhas surgem “unhinhas”, “dentinhos”, “pedacinhos
de ossos”. Tudo se confundia, pois todos os elementos estão ligados pela
mineralidade harmoniosa do cálcio. Mas seixinhos e conchinhas são naturais do fundo
do mar, já os outros elementos agora percebidos não o são e atestam
“naufrágios, perdições, destroços”, comprovam o trágico marítimo, as muitas
vidas perdidas ao mar em oposição ao épico camoniano que nos apresenta uma
deusa Vênus sempre atenta e disposta a salvar e presentear os navegantes com
seus poderes e suas dádivas.
A superfície plana,
mas turva das águas do mar funciona como o elemento que separa os índices de um
acontecimento real (“naufrágios”) do símbolo mitológico Vênus, a deusa do amor
e da beleza.
Vênus se dissipa à
medida que se consegue ver para além daquilo que turva a vista. Não é, por
acaso, que o aparecimento dos deuses nos épicos, inclusive em Camões, é sempre
acompanhado de algo que dificulta a visão: nevoeiro, muita luz, sombra, etc. O
esforço humano e heroico dos navegantes exigia uma mitificação histórica e esta
se concretizou no aparecimento da deusa por sob as ondas, porém, a observação
mais acurada dos sentidos (em especial da visão) acaba por dissipar o espectro
e mostrar esse esforço como a causa da ilusão.
Observa George Hill
em A History of Cyprus que existe uma
extraordinária produção de espuma marítima nas costas da ilha decorrente da
desintegração de organismos marinhos e vegetais o que parece ter um certo peso
na origem do mito da deusa. Assim, no poema de Camilo Pessanha, o primeiro
soneto destaca essa espuma como o esboço da deusa, no segundo soneto, a
observação do fundo nos mostra a origem menos mítica e mais real daquela
espuma.
Teoria do neo-estruturalismo semiótico, Jairo Nogueira Luna.
São Paulo, Editora [Eletrónica] Vila Rica, 2006, pp. 85-91.
São Paulo, Editora [Eletrónica] Vila Rica, 2006, pp. 85-91.
O
NAUFRÁGIO EM CAMILO PESSANHA
No poema “Singra o
navio. Sob a água clara” (1899: 32-3), o naufrágio surge
como a constatação
de um facto,
analisado consciente e
metodicamente, revelando-se como uma inevitabilidade. O sujeito poético
distancia-se desde o início da imagem que observa: “– Impecável figura
peregrina,/ A distância sem fim que nos separa!” (vv. 3-4). Essa “impecável
figura peregrina” está “[funda], sob água plana” (v. 8), a uma “distância sem
fim que [os] separa”, o que está de acordo com a observação de Ester Lemos,
segundo a qual “O olhar de Pessanha não parece abranger a realidade em
superfície, considerá-la de cima. O
mar, de que
tanto se fala
na «Clepsidra», raramente
é olhado na extensão: mais fácil é perscrutar-se-lhe o
fundo.” (1956: 25).
“O naufrágio em Camilo Pessanha”, Ângela Carvalho. Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], p. 225.
VÉNUS E O TEMA DA MÃE
Outro tema na obra de Pessanha è o tempo e o símbolo recorrente da água que escorre sem paragens: nos rios, nos mares, e, naturalmente, na Clepsidracomo no «poema final» cap. 11.4.1.
E escutando o correr da água na clepsidra,
Vagamente sorris, resignados e ateus,
Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.
Vagamente sorris, resignados e ateus,
Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.
Quereríamos parar o tempo, ficar para recuperar o passado, a memória: mas o presente não existe, é já passado ou já futuro, amargo concentrado de nostalgias e temores, de saudades e ilusões. Pessanha não sabe nem pode viver em harmonia com o tempo e o mundo.
No díptico Vénus, cap. 12.1.6 e 11.2.11, aparece o tema da água e o tema da mulher em que a calma e transparência do movimento das águas do segundo soneto opõem-se à fúria e à turbulência do primeiro.
O primeiro soneto só vem a aparecer na reedição da Clepsidra de 1945, e é uma descrição «mórbida» da «destruição da beleza de um corpo» e um exemplo das ideias mórbidas do Decadentismo na poesia de Pessanha.
O título tem uma dimensão irónica. Vénus, a deusa, símbolo da mulher esplêndida e eterna é pintada aqui no poema como um cadáver mas, o corpo em putrefação produz, através do cheiro a carne que embebeda, também um efeito semelhante à atração sexual exercida pela Vénus, e «através a destruição sádico e a dissolução dos restos mortais em que se consuma o ato sexual. O cabelo, o cheiro, o ventre, o esboço do vulto, são evocados um após outro, como num vago êxtase, sem que tenham outro papel gramatical, outra razão de ser no soneto, além da sua aparição espontânea.
Uma imagem não é geralmente em Pessanha uma representação direta, fantasia a substituir uma realidade. É o ponto de partida para um sem número de construções fantasiosas, é uma visão que deslumbra por si mesma, é, às vezes, uma realidade tão real como aquela que vai substituir. (Esther de Lemos, A “Clepsidra” de Camilo Pessanha, Notas e reflexões, Lisboa, Editorial Verbo, S. A. R. L. 1981. pag. 126)
Assim o soneto possui a característica da representação do nascimento de Vénus, mas subvertido com violência na exposição do corpo na sua nudez necrófila e destrutiva.
A poema situa-se, não no alto mar como o segundo soneto, mas na praia, pintando a onda desde que se forma no mar até se desfazer na praia.
Também nesta poema apresenta-se a musicalidade da poesia de Pessanha. como se passa também em “Violoncelo” cap. 11.3.9. Na primeira quadra «predomina o som aberto de é», e na segunda quadra há uma profusão de sons em u, as duas vogais sucessivas da palavra do seu título, Vénus.
O símbolo daquele «nascimento de Vénus» renascentista é muito citado em toda a poesia parnasiana, decadente e simbolista, mas desta vez o corpo da deusa é misturada com a onda que se forma, cresce, corre no ar feita espuma e se desfaz na praia. Símbolo enfim, da imagem da vida, igual à morte e a imagem da morte igual ao nascimento. (Ensaio de Fernando Cabral Martins titulado, A deusa Decadente, http://camilopessanha.com.sapo.pt/ensaio_pessanhacamilo/ensaio2.htm )
Também
na obra de Arthur Rimbaud existe um soneto com o título “Vénus” (Arthur Rimbaud, Gedichten,
Amsterdam, Polak & Van Gennep, 1998 pag. 50).
VENUS ANADYOMENE
Comme d'un cercueil vert en fer blanc, une tête
De femme à cheveux bruns fortement pommadés
D'une vieille baignoire émerge, lente et bête,
Avec des déficits assez mal ravaudés;
Puis le col gras et gris, les larges omoplates
Qui saillent; le dos court qui rentre et qui ressort;
Puis les rondeurs des reins semblent prendre l'essor;
La graisse sous la peau paraît en feuilles plates:
L'échiné est un peu rouge, et le tout sent un goût
Horrible étrangement; on remarque surtout
Des singularités qu'il faut voir à la loupe.....
Les reins portent deux mots gravés: Clara Venus;
—Et tout ce corps remue et tend sa large croupe
Belle hideusement d'un ulcère à l'anus.
De femme à cheveux bruns fortement pommadés
D'une vieille baignoire émerge, lente et bête,
Avec des déficits assez mal ravaudés;
Puis le col gras et gris, les larges omoplates
Qui saillent; le dos court qui rentre et qui ressort;
Puis les rondeurs des reins semblent prendre l'essor;
La graisse sous la peau paraît en feuilles plates:
L'échiné est un peu rouge, et le tout sent un goût
Horrible étrangement; on remarque surtout
Des singularités qu'il faut voir à la loupe.....
Les reins portent deux mots gravés: Clara Venus;
—Et tout ce corps remue et tend sa large croupe
Belle hideusement d'un ulcère à l'anus.
Também Arthur Rimbaud usa aqui o contraste beleza/fealdade na figura de Vénus mas aqui mais com ironia, sarcasmo e vulgaridade como no último verso da poesia.
Erwin Blumenfeld - Venus, Nude – 1946 |
«A DISTÂNCIA SEM FIM QUE NOS SEPARA»: A UNIDADE COGNOSCITIVA IMPOSSÍVEL.
Em «Singra
o navio. Sob a água clara» [Vénus II],
a visão é mais que recetiva, perscrutadora, indagadora. Ou melhor, podem‑se demarcar uma fase recetiva e
uma outra, que lhe sucede, a fase indagadora.
O navio (eu, percurso vital pessoal, vida
em geral) singra, mas move‑se lentamente, mansamente,
permitindo a constituição
de uma espécie de
visão de aquário.
O sujeito do
segundo verso é indeterminado («vê‑se»), o olhar objetivo. Contudo,
o travessão introduz a voz pessoal: essa «impecável figura peregrina» não está
ao alcance dos
olhos. Certamente, dado
o contexto, o
referente dessa figura será Vénus. Porém, não, dados os adjetivos, a Vénus
desfeita, estraçalhada do
soneto anterior, nem
provavelmente a «esvelta»
Andiómena, dada a perturbação sensual que esta provoca. Será antes um símbolo,
a Beleza que se persegue e não se alcança. Sem sair do tópico venustino, a
Vénus coelestis dos neo‑platónicos. Ou será antes a Vénus decomposta, os seus restos
mineralizados, purificados e polidos pelo fundo tranquilo do oceano?
O que permite a dúvida sobre este
referente, que a continuação do
texto legitima, é, não o
epíteto «impecável», que se ajusta perfeitamente ao
papel purificador das
águas salgadas, mas «peregrina», não parada ou sepulta, e o
próprio nome «figura», o contrário de uma dispersão de partes.
Toda a segunda quadra desenvolve uma
descrição objetiva, em que algo dos predicados convencionais da beleza da
mulher petrarquista subsiste («alva», «tenuemente cor‑de‑rosa»…). Mas o sujeito não se
detém nesta visão de aquário: «E a vista sonda, reconstrui, compara»,
chamando a si
operações judicativas, realizando
um trabalho analítico sobre os dados dos sentidos.
Segue‑se a conclusão: essa louçania,
essa beleza de coral são o resultado de toda a sorte de destruições. É então
uma beleza fictiva, enganadora: o seu fulgor, a sua beleza são epifenómenos,
encobrem uma «mentira», desmascarada pelo olhar diligente do sujeito. A
descrição final é assim já influenciada pela certeza da ilusão. O cinzel que
poliu, que conferiu a delicadeza de porcelana aos restos
mortais de Vénus
foi o vaivém
das marés, a
erosão marítima, o resultado do acaso destruidor.
«Ó fúlgida visão, linda mentira» poderia
ser o mote do último dos sonetos, mas onde as imagens perdem toda a
luminosidade, despojadas de toda a aparente beleza. A visão fúlgida de «Vénus II» é estática, fruto de uma
contemplação. No soneto final, essa possibilidade de contemplação demorada, de
fixação das imagens é descartada.
As imagens não são tidas na conta dos
objetos, o que significa que Pessanha não se coloca numa posição realista de
fundo que pressupõe a existência da rese a imagem como sua re‑presentação no ou pelo sujeito.
Por outro lado, as imagens passam na retina dos olhos, não são interiorizadas,
retidas pela atividade cognoscente (entendimento, intelecto, etc). O sujeito
parece ter como único órgão cognoscitivo o sentido externo da visão e, nos
olhos, apenas a sua superfície especular, a sua retina86.
Trata‑se, assim,
de um sensismo
puro, que dá
só lugar ao visível,
mas que não
confere qualquer espessura
ou valor à sensação. […]
Sentimento e Conhecimento na Poesia de Camilo Pessanha, João Paulo Barros de Almeida, Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2009, pp. 126-129.
_________________________
(86) Em «Branco e Vermelho» menciona‑se o «fundo da pupila», um «dentro» dos olhos, mas aqui a pupila não tem fundo, é uma fina película, exterioridade pura.
RECORTES GROTESCOS NA HISTÓRIA DA LITERATURA
PORTUGUESA: CORPO EXAGERADO, LASCIVO, QUIMÉRICO E O NÃO-CORPO
Em outras edições da obra de Pessanha, o poema [“À flor da vaga, o seu cabelo verde”] carrega o título de Vénus,
dado no qual nos ateremos posteriormente. A corporalidade grotesca está
presente em vários momentos do poema tanto no que diz respeito ao corpo humano,
quanto ao corpus linguístico do
texto. O corpo, a bem dizer, similar ao humano, manifesta-se na primeira
estrofe apenas de maneira sugestiva, pois é “o cheiro a came que nos embebeda”
e ainda não é compreensível ao leitor o que será dito. Na segunda estrofe do
poema, logo no início, a voz poemática identifica o ventre como matéria em
decomposição. Associando o corpo putrefato ao sugerido odor nauseabundo que o
mesmo exala, gera-se repugnância, um traço distintivo do grotesco.
A partir de uma sinestesia construída através da cor do corpo, o eu lírico
utiliza o “azul” para aumentar o asco do leitor-interlocutor ao imaginar um
corpo em tal estado de putrescência. A conclusão da primeira estrofe é perfeita
para caracterizar o grotesco ligado à consciência, pois “a razão se perde!”
caracteriza uma atmosfera em que ou a consciência se perdeu para dar lugar à
inconsciência, ou à loucura. Tanto um quanto outro são grotescos, dentro da
perspetiva abismal da existência. A pergunta que se faz é como a razão se
perde? Seria no sem sentido de contemplar carne em estado de putrefação, ou em
um estágio anterior?
Nessa sinestesia do asco, o azul é o matiz da decomposição. Não se pode
dizer que tal poema está vinculado ao grotesco ligado ao universo da cultura
popular. O que toma conta do poema é uma atmosfera nauseabunda e repulsiva,
cuja coloração remete ao universo popular das excrescências. Todavia, a ligação
dessa temática com a da morte e o vínculo desta última com o interdito, acabam
proporcionando uma aproximação com o grotesco assustador.
Juntando-se à cor o adjetivo “aglutinoso”, forma-se um torpor em que as
palavras se misturam e formam neologismos para exprimir o inexprimível, ainda
que no plano das ideias. A mescla de seres irreconciliáveis ocorre, pois a onda
se mescla sinestesicamente ao corpo morto; ela é parte do corpo. A linguagem
amalgama diferentes seres em um único corpo-universo. Além disso, na segunda
estrofe, as referências mais diretas ao corpo da Vénus estão nos versos interpolares, e os outros dois referem-se às
ondas do mar. Assim, nos versos, na sonoridade, nas cores selecionadas e no
próprio contato entre um e outro temos uma sinestesia remetente ao grotesco
repulsivo, intimamente ligado ao fantástico.
O eu lírico mantém uma distância do que descreve em todo o poema, e o corpo
em decomposição está inserido no mar — seria o eu poemático um espectador da
ação do tempo ou do próprio corpo putrefaciente em se apodrecer? Seria ele,
além de personificação, o “assassino” do corpo? Encontramos uma referência de
que os egípcios deixavam os assassinos presos aos corpos de suas vítimas para
que vivessem e sentissem a putrefação do corpo que ele mesmo separou da alma.
Em outra perspetiva, o balanço do mar sugere um ir e vir que traz um novo
estranhamento.
Apesar de não sabermos ao certo se “refluir” se dirige às águas, ao corpo
putrefato ou a ambos, o que se sugere é uma espécie de relação sexual entre
ambos, a qual dá uma sensação de absoluto sado-masoquismo nos atores do poema e
um voyeurismo na voz poemática: “(...) (um olfato que se embriaga)/ Como em um
sorvo, murmura de gozo.” Além disso, o “refluir” tem o sentido de retroceder ou
de aparecer em grande quantidade? Em ambos os casos, o corpo e o mar gozam de
plenitude na estranha construção que encerra a estrofe. A cópula entre o corpus
linguístico proporciona a constituição imagética de um vínculo entre o mar e o
corpo em decomposição.
O primeiro terceto do poema começa com uma típica imagem simbolista de
indefinição, mas é o extasiado corpo putrefato que nos aparece como um ser
superior, que se eleva diante de tudo o que é mundano. Seria o sexo urna
epifania para o corpo putrefato? Essa perceção nos é dada por um eu poemático
perplexo, pois suas frases saem sincopadas, fragmentadas, apenas com
substantivos, adjetivos e reticências. Já vimos em outras análises como a
quebra do discurso é um dos recursos mais utilizados na poética de Pessanha. Se
a rutura ocorre na sintaxe, a associação das palavras estabelece vínculos
simbólicos que não são completamente desvendados justamente pela fragmentação.
Assim sendo, o ser grotesco se eleva, ou é o sublime que se rebaixa? A
materialidade do ato sexual pertence ao baixo, mas no poema ela é construída de
maneira sugestiva, então, como é característico na obra de Pessanha, fica uma
lacuna.
Entre o baixo e o elevado está o grotesco ligado ao intangível. A única
ação que ocorre na terceira estrofe é uma comparação que adota a alegoria do
anjo que bate asas para situar o corpo putrefato em sua elevação, pois os
verbos não indicam exatamente uma ação, apenas descrevem .A comparação ao final
da estrofe ressoa o dito e o não dito: “como voando...” é, ao mesmo tempo, a
indicação de que está voando e a sugestão de que parece um voo, mas não é. É
esse entrelugar e a fragmentar linguagem que causam certa perplexidade ao
leitor. Nada nessa estrofe aponta para um elemento grotesco, mas, contraditoriamente,
tudo o é.
O que antes era grotesco, agora se sublima. Apesar de o corpo não se
materializar, ser apenas um “(...) esboço, na marinha turva...”, a cultura
Ocidental tem em seu cânone o nascimento de Vénus no mar, referendada por
Botticelli. Todavia, este poema parece descrever a relação de um corpo morto
com o mar, e a amplitude da representação do mito faz com que uma subversão do
mesmo seja possível no texto. Diferindo da terceira estrofe, em que os verbos
que se referem ao corpo da Vénus são todos de processo, a última estrofe possui
verbos de ação que abundam em movimento, todos eles tendo como Sujeito a
Natureza, mais especificamente, o mar: lutar, mugir, desfazer e arrastar.
A Natureza personificada no mar representa um ser abissal e o campo
semântico das palavras nesta estrofe remetem ao romantismo e à forma como
concebiam a natureza, tal qual podemos ver cm alguns momentos da poesia de
Bocage. A novidade está no facto de a ferocidade da natureza ser um reflexo de
seu ato carnal com o corpo putrefato. É chegado o momento de inserir a deusa
Vénus na análise. É sabido que a deusa romana representava o amor carnal, a
Beleza e, por extensão, o erotismo. Obviamente que o texto não fala dessa deusa
mitológica e de sua busca hedonista pelo prazer. Se o poema sugere uma
intertextualidade com o Nascimento de Vénus, qual seria a relação que se
estabelece entre o nascimento da deusa e o poema? Paulo Franchetti indica:
De
facto, o primeiro soneto da série ‘Vênus’, que também parece aludir ao conhecido
quadro de Botticelli (‘De pé flutua, levemente curva, / Ficam-lhe os pés atrás,
como voando...’), celebra não o nascimento ou conquista, mas a morte da beleza.
Ela não é ali, uma figura inteira, oferecida à contemplação, como no quadro ou
no sento ‘Esvelta surge!...’, mas um ‘esboço na marinha turva’. Não há belas
formas, nem anseio de posse. (FRANCHETTI: 2001, pp. 81-82)
Essa figura lacunar, absolutamente comum à poética de Pessanha, carrega
consigo o grotesco:
A forma
perfeita está ali reduzida a carne apenas, que se desfaz e exala um odor que
embebeda e atrai. E a dissolução final do orgânico na mineralidade das
‘conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos’ não permitirá, pela eliminação do
desejo carnal, a contemplação da ‘impecável figura peregrina’ – da beleza ideal
invocada na primeira quadra do soneto de ‘Vênus’ -mas apenas a sua perceção como
um a ‘fúlgida visão’, uma ‘linda mentira’. (FRANCHETTI:
2001,
p. 82)
Pessanha é um poeta finissecular, leitor dos decadentistas e muitos aspetos
dessa estética foram utilizados pelo português não apenas como elementos de uma
tendência literária, mas como elementos centrais de sua poética. A fragmentação
do ser ocorre em dois planos, o físico e o metafísico. No caso deste poema, a
descrição de uma imagem pelo eu poemático deixa evidente que é o plano tisico
que é descrito como fragmentação. Entretanto, o texto se circunscreve a uma
atmosfera mítica, então a dissolução do ser se faz também em plano metafísico.
É como se o corpo constituísse o ser e a alma fosse um complemento.
Essa poética do desagregamento do ser utiliza elementos do Decadentismo,
tais como a sinestesia, a capacidade de sugestão, a musicalidade, a atmosfera
rara e até mesmo aspetos que não valorizamos tanto hoje como pontuação e
ortografia raras. As características impingidas a Schopenhauer por Fúlvia
Moretto como originárias do Decadentismo combinam muito bem com a obra de
Pessanha:
Schopenhauer torna como realidade suprema, como
Absoluto, a Vontade, impulso cego, força inconsciente, instinto de vida. Esta
vontade é o mal, é o desejo que nunca será saciado. A única saída será então o
não-desejo e sobretudo a libertação através da arte. [...] E impossível ignorar
a influência de Schopenhauer na estética fin-de-siècle.
Ela é o substrato de um pessimismo total e absoluto, baseado no mal que é a
vontade de viver, mas que traz também a resolução do impasse no estado
estético, na contemplação desinteressada da arte, prazer puro, liberto das
paixões, o único capaz de trazer felicidade.
(MORETTO, Fúlvia M. L. Caminhos do
Decadentismo Francês. São Paulo: Perspetiva e Edusp, 1989. p. 19)
Assim sendo, esse mal-estar é visto em Pessanha na melancolia que
Franchetti identifica em sua obra. Além de ser um traço de especificidade, essa
poética lacunar e desagregadora, permeada pelo grotesco, é a forma pela qual o
poeta expressa a sua mundividência, em parte compartilhada por seus
contemporâneos. A busca por algo novo e raro ocorre, entre outras coisas, no
uso do mito salomeico.
Fúlvia Moretto percebe que os decadentistas tinham verdadeiro fascínio por
recriar o mito de Salomé. No singular Pessanha, a Salomé decadentista é a
Vênus. Aliás, as referências históricas a Salomé são apenas as bíblicas,
enquanto a deusa possui um repertório cultural enorme dado o facto de ser uma
das divindades mais adoradas na Antiguidade. As duas foram muito exploradas
pelas artes ao longo dos séculos. Salomé, entre outros, foi tema para
Caravaggio. Oscar Wilde, R. Strauss e, na poesia de língua portuguesa foi tema
de Sá-Carneiro. Vênus foi motivo para a estátua de Milos, Sandro Botticelli,
Bouguereau, Camões, Almeida Garrett e Rimbaud.
A deusa, semelhante à Salomé decadentista, é decrépita, enoja e encanta.
Ela remete o leitor a uma sensação de asco e graça. A contraditoriedade que
desperta tem esse efeito por ser uma alegoria paródica sem perder sua
identidade. Se fica evidente no texto marcas grotescas do que foi teorizado por
Kayser, a contribuição de Bakhtin para esta análise também se faz presente.
Franchetti, em nota, indica a ambiguidade do odor neste poema de Pessanha:
[...] O cheiro a carne que nos embebeda! E já que
aludimos, em nota anterior ao poema de Baudelaire, talvez valha a pena notar
que o cheiro do corpo decomposto, que lá comparece apenas como elemento
negativo (como puanteur), tem no poema de Pessanha um sentido mais ambíguo,
pois parece trazer ao sujeito contemplativo alguma espécie de prazer, de transporte
dos sentidos. (FRANCHETTI: 2001, p. 82)
O cheiro putrefato do corpo ao eu lírico voyeur e ao próprio leitor traz
uma ambiguidade: enoja e seduz. Está no cerne da corporalidade grotesca tal
ambiguidade. Outro artifício grotesco, talvez o maior de todos os
estranhamentos é ver a própria Beleza personificada em algo que se putrefaz e,
passivamente, aceita o marejar da água disputando seu corpo. Se a Beleza é
antinomia do feio, este último é exaustivamente caracterizado como pertencente
ao campo do grotesco. O voyeurismo do
eu poemático proporciona ao leitor aquele característico estranhamento da arte
moderna, tão próximo ao universo do grotesco. Se ele no é assustador e
terrificante. proporciona o asco, a repulsa à forma como as coisas são
descritas.
Além disso, para o Ocidente de maneira geral, quando se fala em Vénus,
pensa-se na pintura de Botticelli, que nos permite identificar certo
sincretismo com Madalena e representa a pureza inocente e nua, além dos ideais
de beleza, equilíbrio e perfeição da estética clássica. Pessanha subverte o
monumento artístico, parodiando-o e sugerindo o inverso da pureza, pois ela
“murmura de gozo”, além do espetáculo da putrefação do corpo. A desintegração
do corpo proporciona um espetáculo grotesco: como em uma dionisíaca, esse corpo
desfruta do prazer sado-masoquista de se decompor.
Recortes do grotesco na história da literatura portuguesa: cantigas de maldizer; satíricos barrocos; Bocage; Camilo Pessanha; Mário de Sá-Carneiro e Alberto, José Horácio de Almeida Nascimento Costa, Universidade de São Paulo, 2012, pp. 228-233.
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e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de
leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas,
por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio
ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª
edição).
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/12/18/venus.aspx]