sábado, 4 de janeiro de 2014

NA CADEIA (Camilo Pessanha)


        
NA CADEIA

Na cadeia os bandidos presos! 
O seu ar de contemplativos!
Que é das feras de olhos acesos?...
Pobres dos seus olhos captivos...

Passeiam mudos entre as grades,
Parecem peixes num aquario.
Campo florido das saudades,
Porque rebentas tumultuario?

Serenos. Serenos. Serenos.
Trouxe-os algemados a escolta.
Estranha taça de venenos,
Meu coração sempre em revolta.

Coração, quietinho, quietinho!.
Porque te insurges e blasphemas?

Pss... Não batas... Devagarinho...
Olha os soldados, as algemas!
Camilo Pessanha
    
    
TEXTOS DE APOIO
   
A vulnerabilidade do “eu“ e do “outro” na poesia de Pessanha, José Eduardo Ferreira (2011)
Recortes grotescos na história da literatura portuguesa: imagens estranhas ou o imaginativo e quimérico, José Horácio de Almeida Nascimento Costa (2012)
  
   
  
A VULNERABILIDADE DO “EU“ E DO “OUTRO” NA POESIA DE PESSANHA
Outro poema, citado de passagem no começo desse capítulo, em que o sujeito se estende até o outro pela noção de vulnerabilidade é “Na cadeia os bandidos presos”.
Antes de nossas reflexões em torno do poema, vale citar o breve comentário de Urbano Tavares Rodrigues sobre um aspeto da poesia de Pessanha que ele encontra nesse texto:
Quero, por último, recordar uma nota que por ser rara na poesia de Pessanha não deixa de nela revestir importância relevante: a da solidariedade humana, a da compreensão profunda dos seus semelhantes, da aversão à força, que se recolhe, comovida, entre o grito de rebeldia e o quieto sorriso invencivelmente irónico (RODRIGUES, 1970. p. 96).
Essa “compreensão profunda dos seus semelhantes”, de que nos fala Urbano Rodrigues, é a mesma do tríptico anterior. A diferença é que, no outro poema, o “eu” é levado ao não-eu por suas alucinações poéticas. Nesse, é a visão que parece ser o estopim, tanto para o compadecimento do sujeito em frente ao outro, quanto da identificação de seu coração com a condição dos “presos”.
Tematicamente, não é o poema mais original de Pessanha. Podemos até sintetizar algumas ideias centrais do texto da seguinte forma: o sujeito contempla a chegada dos bandidos na cadeia. Exposto à visão violenta de soldados os trazerem algemados (aparentemente sem necessidade), seu coração se revolta e, ironicamente, pede para ele se aquietar, pois os soldados podem vir prendê-lo. Outro aspeto é que, ao longo do poema, o encarceramento dos presos na cadeia torna-os mansamente domesticados.
Não podemos nos furtar, contudo, da construção um tanto quanto estilhaçada — e, por isso, bastante original — que Pessanha utiliza. A primeira estrofe, por exemplo, é quase toda feita sem verbos. Só aparecerá verbo no terceiro verso da estrofe: “Que é das feras de olhos acesos?...”. Além disso, aparentemente não há nenhuma ligação sintática entre um verso e outro, ou entre uma oração e a conseguinte. Exceto, talvez, pelo quarto verso que parece responder à pergunta do verso anterior. Essa particularidade da obra poética de Pessanha já havia sido observada por Esther de Lemos: “A apresentação desligada das ideias ou imagens permite, entre outras coisas, o rápido trânsito do presente ao passado, a quase coexistência dos dois, a confusão de perspetivas temporais que é própria do olhar móbil de Pessanha “ (Esther de Lemos, A Clepsidra de Camilo Pessanha, Lisboa, Verbo, 1981. p. 95).
Nesse poema, as imagens desconexas causam a impressão de que ou o eu lírico tem uma perceção estilhaçada da realidade, ou de que esses flashes são ocasionados pela rememoração de uma visão anterior. De qualquer forma, presente e passado parecem interligados na construção da estrofe: tanto “as feras de olhos acesos”, quanto o estado atual desses sujeitos (“Pobres de seus olhos cativos...”) estão em urna espécie de presente absoluto.
A segunda estrofe, diferentemente da primeira, é toda constituída por frases verbais: “Passeiam mudos (...) / Parecem peixes (...) // Por que rebentas (...)”. O primeiro verso, no entanto, tem predicado verbo-nominal e a palavra “mudo” — núcleo do predicado nominal — ocupa posição central no verso. O segundo verso tem predicação nominal e os presos são caracterizados como “peixes num aquário”. Apesar dos verbos, vemos que a ênfase dos dois versos recai no estado de resignação dos presos, ao contrário do coração do eu lírico — caracterizado como “campo florido das saudades” — que parece querer transgredir, de alguma forma, a norma do mundo que observa: “Por que rebentas tumultuário?” e, nesse verso, a “força” parece estar mesmo no “rebentas”, no verbo de ação posto no meio do verso.
Fazendo um breve comentário dos dois versos que abrem a terceira estrofe. Esther de Lemos afirma que:
Os bandidos que ele vê tranquilos, abismados nos seus pensamentos, trazem-lhe à memória a cena violenta da prisão, os homens que esbracejavam, a escolta que os aquietou à força. Agora, a quem os vê tão calmos, parece impossível que tivessem de vir pela violência, algemados. Nenhum elemento de ligação entre os dois versos conservaria, por mais subtil que fosse, a distância temporal e a proximidade de sentido (por contraste) que existe ligando e separando simultaneamente as duas imagens (LEMOS, 1981, p. 95).
O comentário da estudiosa de Pessanha abre margem para que associemos esse poema do autor a outro mais célebre e mais bem acabado do ponto de vista da realização poética. Em “Branco e Vermelho”, o eu lírico também trabalha com essa “simultaneidade” de imagens díspares. À visão dos castigos físicos pelos quais uma caravana humana é submetida, o sujeito poético goza, em êxtase, o deslumbramento da dor”. No poema em análise, testando em um tempo individualmente absolutizado a experimentação da violência e da mansidão, o eu lírico não sentirá — como em “Branco e Vermelho — o gozo da dor, mas tornará dele uma dor que é do outro. Por isso o contraste entre o verso “Serenos. Serenos. Serenos”, que trata dos bandidos, e o “Coração, quietinho, quietinho!”, no qual coração é metonímia do sujeito.
A observação de Urbano Rodrigues de que, nesse poema, “a solidariedade humana” aparece de forma acentuada (facto não muito corriqueiro na poesia de Pessanha segundo o autor do texto) e a leitura que do poema fizemos permitem-nos, mais uma vez, ler o poema relacionando-o a algumas noções de Lévinas:
Ora, ser dominado pelo Bem é precisamente excluir-se da própria possibilidade de escolha, da coexistência no presente. A impossibilidade da escolha não é aqui o efeito da violência — fatalidade ou determinismo —, mas da eleição irrecusável pelo Bem que é, para o eleito, desde sempre já realizada. Eleição pelo Bem que não é precisamente ação, mas a não-violência mesma. Eleição, quer dizer, investidura do não intercambiável. Donde passividade mais passiva que toda passividade: filial; mas sujeição prévia, pré-lógica, sujeita em sentido único, que seria errado compreendê-la a partir de um diálogo (LÉVINAS. 1993, pp. 83-4).
É justamente o olhar atónito contra a violência que encerra o poema “Na cadeia os bandidos presos”: “Pss... Não batas... Devagarinho... / Olha os soldados, as algemas”.
José Eduardo Ferreira, O processo de representação do eu na Clepsidra de Camilo Pessanha.  São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011.  Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa, pp. 45-48.
       
    
      
       
RECORTES GROTESCOS NA HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA: IMAGENS ESTRANHAS OU O IMAGINATIVO E QUIMÉRICO
O poema todo adota o verso octassílabo, geralmente considerado o mais fácil de harmonizar por podermos dividi-lo em dois hemistíquios de quatro sílabas métricas. No entanto, a harmonia aludida pelo tipo de verso se esvai já na primeira estrofe do poema. Os dois primeiros versos usam dois anapestos e um jâmbico, ritmo este que é completamente diferente nos versos seguintes, portanto heterorrítmicos. A irregularidade sonora marca todo o poema e apesar dos diversos ritmos adotados, o poema mantém uma harmonia na sonoridade escolhida pelo poeta. A seleção vocabular que veste o texto sugere uma calmaria, uma nostalgia reflexiva por parte dos presos a princípio observados pela voz poemática.
Os dois primeiros versos são absolutamente descritivos e estão marcados ausência de verbo. De maneira geral, a ação não ocorre em nenhum verso da primeira estrofe. Há apenas um verbo, que é de ligação e está em uma oração interrogativa. Os dois versos que concluem a estrofe retomam um elemento central na poética de Pessanha: a questão do olhar. Se geralmente o eu lírico dos poemas de Pessanha refletesobre a questão do olhar, neste caso ocorre uma impossibilidade de tal fenômeno, que se justifica pelo tato de os seres descritos estarem presos. A construção do outro no poema se inicia com o uso do substantivo “bandidos”, depois eles são descritos como contemplativos e no terceiro verso são comparados a “feras”. No entanto, o verso que mais se destaca na primeira estrofe é o último, “Pobre dos seus olhos captivos...”
Ao eu lírico, o sujeito do poema parece ser deslocado metonimicamente para o olhar a partir daí, pois o problema não é estar preso, mas estar com o olhar preso. Como “bandidos” e “olhos” estão no plural e o segundo também pode ser metonímia do primeiro, todos os versos seguintes dão essa interpretação dupla. A segunda estrofe perpetua a inércia dos presos e do espaço da mesma maneira, como se tudo estivesse absolutamente suspenso em uma realidade outra. Juridicamente, a prisão é cercear a liberdade, seja para “pagar a dívida com a sociedade”, seja para não representar um “perigo à sociedade”. Definitivamente, no caso deste poema, estar preso é uma realidade outra, inerte, afastada do cotidiano.
Os olhos-presos, ou presos-olhos. “Passeiam mudos entre as grades”. A inércia, a descrição silente dos versos, a própria aliteração do /p/ no inicio de três versos da primeira estrofe, indicam uma repetição oclusiva de que nada vai acontecer. Assim, ocorre uma sinestesia entre a impossibilidade de ver e falar. Há uma comparação que se faz entre silêncio e mutismo simbolicamente muito interessante:
O silêncio e o mutismo têm uma significação muito diferente. O silêncio é um prelúdio de abertura à revelação, o mutismo, o impedimento à revelação, seja pela recusa de recebê-la ou de transmiti-la, seja por castigo de tê-la misturado à confusão dos gestos e das paixões. O silêncio abre uma passagem, o mutismo a obstrui. Segundo as tradições, houve um silêncio antes da criação: haverá um silêncio no final dos tempos. O silêncio envolve os grandes acontecimentos, o mutismo os oculta. Um dá às coisas grandeza e majestade; o outro as deprecia e degrada Um marca um progresso; o outro, uma regressão. O silêncio, dizem as regras monásticas, é uma grande cerimônia. Deus chega à alma que faz reinar em si o silêncio, torna mudo aquele que se dissipa em tagarelice e não penetra naquele que se fecha e se bloqueia no mutismo. (CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain, Dicionário de símbolos. 18ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003, pp. 833-834)
Na segunda estrofe, a inércia dos presos paira no ar da mesma maneira, ou seja, através do silêncio mudo É a melancolia que permeia o sujeito poético e todas as outras coisas em uma reflexividade indicada por Franchetti, que serve exatamente para “exteriorizar a melancolia”:
O movimento possível [...] na poesia de maturidade de Camilo Pessanha, é apenas este: fixar a própria percepção, ou a impossibilidade de percepção. Em ambos os casos, o que determina o olhar melancólico é a reflexividade, e o que o caracteriza é uma operação bruta, de esvaziamento e fragmentação dos objectos da contemplação: tudo o que o sujeito consegue perceber é a si mesmo, tudo o que consegue fazer é duplicar, exteriorizar a melancolia; reencontrar, nos vários fragmentos que ludicamente reordena, o seu próprio olhar. (Nostalgia, exílio e melancolia: leituras de Camilo Pessanha, Paulo Elias Allane Franchetti, São Paulo, Edusp, 2001, p. 73)
O eu poemático, então, se utiliza dos presos para se desdobrar, como veremos a seguir, através da melancolia: “Desdobramento, exercício prazeroso dos sentidos, capacidade imaginativa — esses parecem ser os atributos do momento melancólico.”(FRANCHETTI: 2001, p. 87) A imagem do peixe no aquário corrobora a imutabilidade, a inércia e a melancolia do eu poemático e, quase que numa extensão metonímica, dos presos. Eduardo Lourenço diz em Mitologia da saudade que os antigos tinham uma percepção aguda da melancolia através da passagem do tempo. No caso do eu lírico deste poema, a melancolia é decorrência da não passagem do tempo-espaço. Algo é alterado no final da segunda estrofe. Até então, há referências apenas aos presos, em terceira pessoa.
O “campo florido das saudades” marca a presença de uma segunda pessoa, que será retomada apenas na quarta estrofe, quando se refere ao coração. Assim sendo, o coração do eu poemático, também representação metonímica do ser, é o avesso dos presos inertes, estes “Serenos. Serenos. Serenos.”, como indica o verso inicial da terceira estrofe. A partir desta percepção, o eu poemático se torna, ou melhor, se mostra absolutamente diferente de tudo o que está em seu entorno. A linguagem poética, ao descrever outros seres e perceber-se enquanto eu poemático, torna-se absolutamente inexprimível.
O que há, de maneira geral em sua poesia, é o irreconhecimento do eu como possibilidade de se tornar um Ser, seja quando comparado consigo mesmo ou com o outro. O ser que existe de maneira inexistente é uma contradição irreconciliável, grotesca. Apesar de ser uma oposição ao outro, no caso deste poema, ambos carregam a mesma característica, afinal, o outro, inerte diante da realidade, também parece carregar o paradoxo referido acima, ainda que seja a antinomia da contradição acima, uma espécie de Ser que inexiste na existência. Até aqui, a construção filosófica do poema rememora, tal qual outros textos vistos anteriormente, ao Schopenhauer de O mundo como Vontade e Representação, filósofo reconhecidamente presente noconstructo de Pessanha.
Voltando ao texto, a diferença entre o eu lírico metonimicamente representado pelo coração e pelos presos fica mais evidente na terceira estrofe. Os presos serenos, o coração em revolta. A antítese não desnuda uma inconsciente referência ao grotesco satírico, como sugere Bakhtin, mas constrói o paradoxo entre os seres. Além disso, aparece uma estranha imagem, absolutamente fragmentária no todo textual, “Estranha taça de venenos”, que ressignifica a simbologia de taça. De maneira geral, o simbolismo de “taça”, segundo Jean Chevalier, está dividido entre abundância e recipiente que contém a poção da imortalidade. O adjetivo anteposto e a locução adjetiva posposta ao substantivo demonstram que a taça, e por extensão de sentido, o coração, parte do eu poemático, é estranho e venenoso.
A estranheza do ser poemático é perfeitamente compreensível dada sua inexistência, mas e a locução “de venenos”? Seria o complemento perfeito para reafirmar a melancolia que Franchetti vê em sua obra? Também. Aliás, é com essa consideração que chegamos novamente a uma poesia de teor filosófico. A taça, o coração e o eu poemático talvez estejam envenenados pela serenidade revoltosa e revoltada, e neste paradoxo temos uma característica do realismo grotesco. Com uma inversão de efeito surpreendente, o termo que se toma o simulacro de toda a estrofe passa a ser o “coração” do último verso.
Com sua poética fragmentária, o(s) ser(es) que inexiste(m), enquanto ação, no início do poema, agora é (são) um “coração sempre em revolta”. Se o coração é o símbolo da vida e dos sentimentos, sua revolta é contra o que o eu lírico de toda a obra de Pessanha faz? Se sim, é uma revolta vã com a impossibilidade de existir e, consequentemente, agir. Mas seria uma revolta do eu lírico? Parece-nos que não. Tem a ver com a questão do riso irônico que será visto a seguir. A última estrofe parece clarificar ainda mais o desejo do eu poemático de ver em si apenas uma representação, ou não ver. Tanto é que pede à única parte de seu corpo que se rebela contra algo, o coração, a parar de bater. A insurgência do coração é uma blasfêmia, um desconcerto na inoperância grotesca do ser.
A conclusão, em um quarteto desmembrado em duas estrofes de dois versos, indica o eu lírico conversando com seu coração. Este, contra a ordem do cérebro, bate. A insurgência traz vida, o coração é vida; no entanto, a vida de um preso, seja lá por quais grilhões existenciais, é uma vida morta; o ser é inexistente, semelhante aos presos. Assim, não dá para saber qual é a prisão do eu poemático de Pessanha, que tem como motivo sua nulidade existencial. As reticências do penúltimo verso indicam a preferência do eu poemático, que é o limiar do não-existir. Grotesca escolha existencial dado seu estranhamento. Aqui, ternos um grotesco mais parecido com o de W. Kayser, ligado ao estranho.
O último verso do poema marca uma ironia do eu poemático A ideia geral é fazer com que o coração sinta algum prazer ou benesse em ser preso para que tenha a mesma forma dos “campos floridos das saudades”, ou seja, que seja sereno, sereno, sereno. Apesar de a teoria do grotesco ligado ao fantástico parecer a mais apropriada para se vincular os poemas de Pessanha, ocorre-nos, também, de pensá-lo como algo próximo do cômico absoluto de Baudelaire. Nele, o riso ocasionado pelo grotesco é motivado pelo estilhaçamento, resultado este de uma risível loucura intangível.
Em outros termos, Georges Minois identifica esse riso com o nonsense e com a insensatez, afastando-o do grotesco. É exatamente essa a intersecção que Pessanha faz para formar um grotesco que é a mescla entre o risível, mais popular, e o estranho: a insensatez da crença numa existência de um mundo feito de representações é estranha, niilista e risível. Sem que este riso seja apenas irônico, como o diz Bakhtin, afinal ele é um riso alegre e primitivo de quem se afirma a condição de humanidade decaída em não-ser. Destarte, a alegre matéria do riso, vista por Bakhtin apenas na cultura popular, está também imbuída de um primitivismo na arte moderna, ainda que esta última seja mais intelectualizada que a desenvolvida no período medievo. Temos aqui uma síntese dialética do grande motivo do estudo de Bakhtin, o riso, vinculado ao aspecto mais destacado por Kayser em seu estudo, o estranhamento.
Então, há um riso sobre a impossibilidade de especulação sobre o ser, dado o facto de que o ser inexiste e sobre ele recai uma impossibilidade de olhar e ser olhado. Ao fim, tudo inexiste: olhar, coração, presos, eu poemático, campos das saudades, tudo é um não-olhar, um estranhamento aliado ao mal-estar do período finissecular.
                         
            
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:
      
 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/04/na.cadeia.aspx]

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

ÁGUA MORRENTE (Camilo Pessanha)








ÁGUA MORRENTE
          
Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville.
        
Verlaine
      

Meus olhos apagados,
Vede a água cair.
Das beiras dos telhados,
Cair, sempre cair.

Das beiras dos telhados,
Cair, quase morrer...
Meus olhos apagados,
E cansados de ver.

Meus olhos, afogai-vos
Na vã tristeza ambiente.
Caí e derramai-vos
Como a água morrente
      
Camilo Pessanha
   

        
INTERPRETAÇÃO TEXTO
      
1. Identifique a visão fragmentária da realidade.

2. Explicite o tema sugerido, a partir das relações simbólicas presentes.

3. Faça o levantamento de elementos que exprimem ou intensificam o gosto pelo vago e indeterminado.

4. Comente as sugestões musicais que resultam dos elementos fónicos (aliterações, rimas, ritmo...).
http://testesdeportugues.blogspot.pt/2010/06/agua-morrente.html
      
5. No conhecido poema de Camilo Pessanha, o Sujeito reserva a si uma atitude passiva diante do mundo, fazendo sentir sobre si os efeitos da paisagem natural; desse modo, há um desequilíbrio existencial sugerido através de uma metáfora. A esse propósito marque a opção correta.
A imagem do Homem que emerge do caos sugere a resistência ao tempo, o desejo de sobreviver a ele.
A submersão sugere que, existencialmente, o Homem vê-se desgastado e empurrado para o Fim.
O navegar por entre águas insinua a busca humana por novos desafios que lhe dê sentido à vida.
O desejo de emergir em meio a águas agitadas sugere a vontade humana de acompanhar as mudanças socioeconômicas do início do século XX.
Todo o ambiente criado no poema impressiona pelo misticismo vaporoso que sugere o mistério para além da materialidade.

     
      
TEXTOS DE APOIO
       
Clepsidra, uma via de leitura. Gilda Santos e Izabela Leal (2007)
Semelhanças e diferenças entre os poemas “Il pleure dans mon coeur” de Verlaine e “Meus olhos apagados” de Pessanha. Jacinto do Prado Coelho (1976)

A construção do sujeito poético e a noção de tempo na poesia de Paul Verlaine e na de Camilo Pessanha. Melissa Andrea Marietti (2008)









         
Il pleut doucement sur la ville 
(Arthur Rimbaud)

Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville,
Quelle est cette langueur
Qui pénètre mon coeur?

O bruit doux de la pluie
Par terre et sur les toits!
Pour un coeur qui s'ennuie
O le chant de la pluie!

Il pleure sans raison
Dans ce coeur qui s'écoeure.
Quoi! nulle trahison?
Ce deuil est sans raison.

C'est bien la pire peine
De ne savoir pourquoi,
Sans amour et sans haine,
Mon coeur a tant de peine!
   
Verlaine, Romances sans paroles, 1874
       
         

      


         
CLEPSIDRA, UMA VIA DE LEITURA

Novamente o fluir da água conduzindo à morte – como o tempo, como a clepsidra – surge num poema de musicalidade declaradamente verlainiana.
A epígrafe de Verlaine revela de imediato a homologia pranto/chuva a ser ampliada sobretudo nos versos finais. Primeiramente, a voz lírica, desdobrada no vocativo de “meus olhos apagados”, impõe a esses a insistente contemplação da chuva que cai, que morre, como que prenunciando e preparando o irremediável futuro; por fim, igualando olhos e águas na mesma aniquilação (“afogai-vos”), faz emergir a tristeza já antes pressentida.

Camilo Pessanha em dois tempos, Gilda Santos e Izabela Leal, Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, pp. 42.
       
         
*
       
         
[SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE OS POEMAS “IL PLEURE DANS MON COEUR” DE VERLAINE E “MEUS OLHOS APAGADOS” DE PESSANHA]

O que há de comum entre os dois poemas é sobretudo o motivo da chuva posta em relação com um estado de alma, e também o carácter musical da expressão, reforçado em Verlaine pela repetição de palavras (croeur) e de sons em parónimos (pleure/pleat; coeur/écoeure) e em Pessanha pela reiteração não só de palavras como de versos inteiros, num deixar e retomar que pode ser sucessivo ("Das beiras dos telhados, / Cair, sempre cair. / Das beiras dos telhados, / Cair, quase morrer...) ou distanciado (há cinco versos de intervalo entre o primeiro verso “Meus olhos apagados” e o seu aposto, em eco obsessivo, "Meus olhos apagados, / E cansados de ver.”) Música dolente, branda.
As diferenças são todavia evidentes ‑ e cheias de significado. Tirando partido da semelhança entre as formas pleure e pleut, Verlaine explora a afinidade que existe entre os sentidos respectivos: a imagem implícita da água que cai. Mais abstracto e sentimental que o de Camilo Pessanha, o seu poema desenvolve-se em torno dum termo-pivot, pleurer, de que decorre a ideia de peine. O poeta sofre tanto mais quanto ignora a causa da sua pena; o ruído da chuva, porém, é doce, é um "canto" que o consola. No poema de Camilo Pessanha, mais visual e também mais patético na sua concentração, vê-se a chuva que cai. Os dois primeiros versos (Pessanha utiliza, como Verlaine, versos de seis sílabas, organizados em quadras) encerram três palavras-chave: olhos, apagados e cair; e é do termo cair, repetido, note-se, quatro vezes, que derivam semanticamente morrer e morrente ("Cair, quase morrer»): A Imagem da queda sugere a da morte. Em Verlaine, o estado de alma define-se por languidez, tédio, melancolia; em Pessanha, à fadiga extrema associa-se a consumpção: o poeta desdobra-se, dirigindo-se aos próprios olhos personificados, “olhos apagados, / E cansados de ver”, olhos que não querem ver mais; convida-os (convida-se) à morte, por uma série de imperativos: afogai-vos, caí, derramai-vos. O adjetivo vão, em “vã tristeza ambiente”, deixa transparecer a conceção da vida como desfile de imagens vazias. E tudo isto me parece bem típico do universo poético de Camilo Pessanha, da "maneira” e do estilo que lhe são habituais. Ousaria dizer que o poema influenciado, embora mais breve (apenas três quadras), é mais complexo, mais perturbante, que o de Verlaine, nada lhe ficando a dever na melodia verbal.

Jacinto do Prado Coelho, Ao Contrário de Penelope, 1976, pp. 210-211.
       
         
*
       
         
A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO POÉTICO E A NOÇÃO DE TEMPO NA POESIA DE PAUL VERLAINE E NA DE CAMILO PESSANHA

Não há algo preciso que provoque o sentimento de crise no sujeito poético, na verdade, é toda sua existência: a sociedade da reificação, a transitoriedade e ao mesmo tempo o cansaço da espera, enfim, os novos valores do mundo moderno. Esse sentimento indefinido do interior do sujeito contamina o exterior, como expressam esses versos de Pessanha [in “Crepuscular]:
É este enlanguecer da natureza,
Este vago soffrer do fim do dia.
Tristeza indefinida assim como o poente, tristeza que o sujeito poético sente e não sabe exatamente de onde vêm parece-nos justamente expressa na epígrafe apensa ao poema “Meus olhos apagados”, de Camilo Pessanha. […]
Na epígrafe de Verlaine, além da relação semântica através da qual o poeta associa a chuva que cai na cidade ao choro, ou seja, às lágrimas “do seu coração”, percebemos que há também jogo sonoro com os verbos “pleurer” et “plevoir”. Esses recursos contribuem para a noção de que o sujeito poético está imerso numa sensação de melancolia e tristeza e não sabe exatamente porque sofre, pois na verdade, toda a sua existência é sofrimento, por isso, o choro é algo tão natural como a chuva que cai.
Em linhas gerais, poema de Pessanha tematiza um sujeito que fica contemplando a chuva que cai dos telhados. Embora formalmente muito diferente do poema “Langueur” de Verlaine, causa no leitor a mesma sensação de angústia e tédio. Os dois poetas utilizam-se de elementos formais diferentes para construir o sujeito poético desencantado e entediado que se recolhe em si mesmo enquanto o tempo passa; por isso, ambos conseguem produzir o mesmo efeito de angústia no leitor.
A forma utilizada por Verlaine é mais clássica, visto que é um soneto com versos alexandrinos. Em “Meus olhos apagados”, temos três quartetos com seis sílabas poéticas em cada verso; o ritmo no poema é bem marcado, as sílabas poéticas acentuadas são as 2 a e 6 a nos versos ímpares e as 3 a e 6 a nos versos pares. Essa acentuação contínua, em versos curtos, imita a cadência do pingo de água que escorre do telhado e cai no chão. Os enjambements contribuem para o “escorregar” dos versos: a forma do poema, contínua e fluida, assemelha-se a água que se derrama, como mostram os versos da primeira estrofe:
Meus olhos apagados,
Vede a água cahir.
Das beiras dos telhados,
Cahir, sempre cahir.
As aliterações presentes no poema contribuem para a questão semântica. A aliteração da sibilante /s/ imita o barulho da chuva e aliteração da líquida /l/ dá a sensação de molhado, de água que escorre. Esses recursos reproduzem a liquidez e fluidez da água da chuva e também do tempo.
De facto, o poema de Pessanha é extremamente musical. Os efeitos musicais, segundo Álvaro Cardoso Gomes, visam a criar sucedâneos da duração”, ou seja, a música cria imagens de permanência. Nesse poema, podemos ver dois métodos diferentes para relacionar poesia e música, um deles característico de Verlaine e outro de Mallarmé.
As repetições de versos e palavras causam efeito visual e tonal no poema. Para Mallarmé, a poesia deve simular uma sinfonia e, assim, diminuir o grau de descontinuidade entre uma mudança e outra. Portanto, as repetições de palavras e versos do poema dão certa continuidade às estrofes que se organizam e fluem como uma sinfonia. Já o apelo ao ouvido, isto é, as repetições de sons idênticos ou semelhantes, é recurso muito utilizado por Verlaine. Nesse caso, a continuidade é sugerida pela alternância de sons idênticos e semelhantes, tal método pode ser percebido no poema em estudo pelas aliterações.
A água na poética de Pessanha é elemento constante e aparece das mais variadas formas: chuva, mar, rio, fonte etc. Embora ela tenha várias simbologias, a mais marcante, a nosso ver, é a água como metáfora de tempo, pois é a projeção no plano fônico e visual do fluir inexorável do tempo. Essa relação tempo/ água aparece já no título da obra de Pessanha, visto que Clepsidra é, como já foi mencionado, ampulheta movida à água. Como podemos perceber nos versos, a água pode marcar o passar do tempo exterior em oposição ao tempo interior do sujeito: as águas passam, ou seja, a chuva escorre pelos telhados e o Eu apenas observa, cansado e estático.
No primeiro verso de “Meus olhos apagados”, o poeta refere-se aos olhos apagados que vêem a chuva; essa mesma expressão é repetida na segunda estrofe. Já na terceira estrofe, temos a presença dos olhos, porém não é a mesma expressão. Os olhos e o olhar aparecem constantemente na obra de Pessanha e ajudam na composição do íntimo do sujeito poético na medida em que são, quase sempre, qualificados com adjetivos que expressam sentimentos humanos como tristeza e cansaço. Visto que os olhos podem ser entendidos como comunicação entre o interior do Eu e o exterior, o olhar em Pessanha é forma de comunicação, ponte entre a objetividade, o que o poeta vê, e a subjetividade, o que ele sente, ou seja, o que as imagens provocam nele.
O olhar, lembremos, também está presente no soneto analisado de Verlaine: tem-se um indivíduo que contempla um mundo com o qual e no qual não consegue se ajustar, por isso fica alheio à realidade. De modo diferente dos poemas de Pessanha, em Verlaine, muitas vezes, a questão do olhar aparece implícita, é o leitor que precisa concluir que por trás da descrição das paisagens existe um sujeito poético que observa e analisa constantemente o mundo ao seu redor.
No poema “Meus olhos apagados”, apesar da alusão freqüente aos olhos apontar para um sujeito que contempla o mundo ao seu redor, as referências espaciais são mínimas. Constantemente, nos poemas de Pessanha, as questões do intimismo são tão fortes que o espaço externo apenas reitera o que é da ordem do interior do eu. Ao contemplar a realidade exterior, a importância dos objetos desaparece e o foco volta para o interior do eu – sobretudo porque o que se sabe do exterior é pela via do olhar do eu e pela projeção do seu íntimo na conjuntura observada.
Nos versos “Meus olhos apagados/Vede a água cahir”, o poeta vale-se do recurso da sinédoque quando se serve do elemento olho para se designar todo o eu do sujeito poético. Essa técnica de qualificar uma parte significativa como os olhos, o coração, a alma para designar todo o indivíduo e auxiliar na construção da imagem do sujeito poético é recorrente nos poemas de Clepsidra. Ora, os olhos apagados são parte de um sujeito que está inteiramente apagado e a falta de luz sugere a ausência de vida. Na segunda estrofe, os últimos versos (“Meus olhos apagados,/E cançados de ver”) também qualificam os olhos como cansados; na verdade, é todo o sujeito poético que está cansado, pois tem de esperar o transcorrer do tempo para morrer e, assim, deixar de sofrer.
A segunda estrofe retoma e desenvolve a primeira. O poeta utiliza-se de um recurso estilístico muito comum em sua obra que é a iteração, ou seja, repete as palavras ou até os mesmos versos em posições diferentes. Os únicos elementos novos inseridos são apenas “quasi morrer” e “cançados de ver” – que, entretanto, dizem muito – como podemos observar abaixo:
Meus olhos apagados,
Vede a água cahir.
Das beiras dos telhados,
Cahir, sempre cahir.

Das beiras dos telhados,
Cahir, quasi morrer...
Meus olhos apagados,
E cançados de ver.
A repetição causa monotonia e ilustra o tédio do sujeito poético que enxerga tudo sempre igual. O advérbio de tempo “sempre”, que aparece no quarto verso, aponta para esse pesar: o sujeito que tem a noção temporal deturpada, enxerga nas coisas o presente contínuo, um período temporal longo que nunca acaba. Sem dúvida, a percepção temporal é subjetiva e tal subjetivação agudiza-se mais pelo fato de o sujeito poético estar sofrendo e também estar cansado da realidade circundante.
As reticências, que aparecem no segundo verso da segunda estrofe, “Cahir, quasi morrer...”, são significativas; elas prolongam a languidez dos versos, pois dão a impressão de que não há forças para completar uma frase ou um pensamento. Além disso, depois de morrer não há muito o que dizer ou esperar pois o eu alcançou o que desejava. Portanto, nos dois primeiros quartetos, estamos diante de um indivíduo com olhar enclausurado, entediado e cansado da realidade. O sujeito poético é formado, quer pelos elementos formais que sugerem languidez, quer pela repetição do léxico, como alguém que não participa da realidade; ao contrário, mantém-se alheio a ela e recolhe-se em si mesmo. Essa apatia do sujeito poético aparece constantemente na obra de Pessanha, como já evidenciado no capítulo dedicado à sua obra.
Tendo em vista a falta de forças, o cansaço e o tédio do sujeito poético de “Meus olhos apagados”, podemos dizer que este ele está imerso no langor, o mesmo sentimento do sujeito poético ilustrado no poema de Verlaine. Em ambos, o eu permanece à distância, à margem, apenas contemplando o tempo passar. Portanto, embora os poetas utilizem procedimentos estético-formais diferentes, o tema da transitoriedade, do cansaço da espera e do distanciamento do homem em relação ao mundo está presente tanto no poema de Verlaine como no de Pessanha.
A última estrofe de “Meus olhos apagados” ilustra o auge da apatia do sujeito poético que não tem forças sequer para chorar:
Meus olhos, afogae-vos
Na vã tristeza ambiente.
Caí e derramae-vos
Como a água morrente.
Os verbos estão no imperativo, portanto, é o sujeito poético que ordena aos seus olhos que chorem, que se derramem como a água da chuva derrama-se no e do telhado. O campo lexical dessa ultima estrofe é todo aquoso, até mesmo os verbos “afogar” e “derramar” trazem em si a idéia de água.
A caracterização da água como “morrente” é singular no poema e fundamental para construção da imagem do sujeito poético desencantado, pois o desencanto com a realidade e a abulia são tão intensos que ele mesmo encontra-se num estado de quase morto, ou seja, morrente. A água é qualificada como morrente, pois está a caminho da morte, mas ela ainda não vai morrer, pois não completou o seu ciclo. A chuva cai, escorre dos telhados, alcança os rios e chega ao mar, este é o símbolo da reintegração, a união da gota com o mar. Assim como a água, o indivíduo precisa esperar o transcorrer do seu ciclo, ou seja, da sua vida, para poder se reintegrar, ir ao encontro do cosmos através da morte, assim como a gota de chuva vai ao encontro do mar. Por isso, a qualificação “morrente” – que indica aquele que está a caminho da morte, “indo morrer”.
Em relação à contemplação da água, Gaston Bachelard afirma que “contempler l’eau c’est s’écouler, c’est dissoudre, c’est mourrir” (BACHELARD, Gaston, L’eau et les rêves, citado por Álvaro GOMES, in A metáfora Cósmica em Camilo Pessanha, p. 80) podemos dizer que a própria ação do sujeito poético em contemplar aquilo que esvai, em contemplar a água é, ao fim e ao cabo, desejar ser como ela, é deixar-se ir, esvair-se, o que significa morrer.
Na última estrofe, a epígrafe é retomada, uma vez que, assim como Verlaine, o poeta relaciona o choro à chuva. As lágrimas devem derramar-se dos olhos do sujeito poético assim como a água da chuva cai do telhado. A tristeza ambiente desse poema de Pessanha nos remete ao “sol lânguido” do soneto de Verlaine e, desse modo, temos, além de mais uma aproximação entre o vate português e o francês, outro exemplo de impressionismo, ou seja, das sensações íntimas do Eu transpostas e impressas no ambiente descrito. O tédio e o desencanto do sujeito que imperativamente diz aos seus olhos “Cahi e derramae-vos / Como água morrente” remetem-nos ao sujeito poético de “Langueur”, que afirma: “Seul, un ennui d’on ne sait quoi qui vous afflige!”
A possibilidade de aproximação das obras de Paul Verlaine e de Camilo Pessanha aponta, a nosso ver, para convergências de pensamentos de uma época, como afirma a crítica Anna Balakian:
com o Simbolismo a arte deixou realmente de ser nacional e assumiu as premissas da cultura ocidental. Sua preocupação maior era o problema não temporal, não sectário, não geográfico e não racional da condição humana: o confronto entre a mortalidade humana com o poder de sobrevivência, através da preservação das sensibilidades humanas nas formas artísticas. (BALAKIAN, Anna, O Simbolismo. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1995, p. 15)
Assim o que mais importa para nós não é a questão da recepção da obra de Verlaine, ou seja, se Pessanha foi leitor de Verlaine, porém como eles lidaram com os preceitos simbolistas, cada um a sua maneira, já que as particularidades, especialmente nas poéticas de modernidade, são naturais, pois, como afirma Edmund Wilson,
Cada poeta tem uma personalidade única; cada um de seus momentos possui seu tom especial, sua combinação especial de elementos. É tarefa do poeta descobrir, inventar, a linguagem especial que seja a única capaz de exprimir-lhe a personalidade e percepções. Essa linguagem deve lançar mão de símbolos: o que é tão especial, tão fugidio e tão vago, não pode ser expresso por exposição ou descrição direta, mas somente através de uma sucessão de palavras, de imagens que servirão para sugeri-lo ao leitor (...) E o Simbolismo pode ser definido como uma tentativa, através de meios cuidadosamente estudados – uma complicada associação de idéias, representa por uma miscelânea de metáforas – de comunicar percepções únicas e pessoais. (WILSON, Edmund, “O Simbolismo”, O Castelo de Axel. São Paulo: Ed. Cultrix, [s.d.], p. 22)
Desse modo, a nosso ver, a denominação de “Verlaine Português” a Camilo Pessanha, que se deve justamente ao uso que Pessanha faz das estruturas formais e da musicalidade, soa como simplista e reducionista, pois é diminuir o valor da obra do poeta português em relação ao francês. Além disso, tal denominação não leva em conta as características da obra de Verlaine e de Pessanha, resumindo-se a classificá-los apenas pelo uso dos elementos formais.
A aproximação entre esses dois poetas é pertinente, mas não deve ser simplista e nem reducionista. O exame atento da obra dos dois autores, através da análise de poemas, permite estabelecer que o diálogo entre a obra dos dois poetas é possível, mas constrói-se de semelhanças e diferenças. A relação de diálogo, como apontamos, ultrapassa as camadas superficiais do poema, mais do que a possibilidade de aproximação pelo emprego dos recursos que imprimem sonoridade à poesia, parece-nos permitido aproximá-los também quer pelos temas quer pela maneira de apresentá-los, pois como vimos na análise dos poemas, muitas vezes os recursos formais utilizados pelos poetas são divergentes, nesse caso, como quisemos mostrar, a convergência revela-se na construção do sujeito poético desajustado e desencantado e na noção de tempo.

A construção do sujeito poético e a noção de tempo na poesia de Paul Verlaine e na de Camilo Pessanha, Melissa Andrea Marietti. São Paulo, USP - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2008, pp. 100-109.
       
         
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LANGUEUR
A Georges Courteline.

Je suis l’empire à la fin de la décadence,
Qui regarde passer les grands Barbares blancs
En composant des acrostiches indolents
D’un style d’or où la langueur du soleil danse.

L’âme suellete a mal au coeur d’un ennui dense.
Là-bas on dit qu’il est des longs combats sanglants.
O n’y pouvoir, étant si faible aux voeux si lents,
O n’y vouloir fleurir un peu cette existence!

O n’y vouloir, ô n’y pouvoir mourrir un peu!
Ah! tout est bu! Bathylle, as-tu fini de rire?
Ah! tout est bu, tout est mangé! Plus rien à dire.

Seul, un poème um peu niais, qu’on jette au feu,
Seul, un esclave um peu coureur qui vous néglige,
Seul, un ennui d’on ne sait quoi qui vous afflige!

VERLAINE, “Langueur”, Jadis et Naguère





LANGOR

Eu sou o Império no fim da decadência,
Que olha passar os grandes Bárbaros brancos
Compondo acrósticos indolentes
Num estilo de ouro onde o langor do sol dança.

A alma solitária sofre no coração de um denso tédio.
Além se diz que é por causa de grandes combates sangrentos
Oh não ser capaz disso, sendo tão frágil, de votos tão lentos,
Oh não querer florir um pouco esta existência!

Oh não querer, oh não poder morrer um pouco! Ah! tudo foi bebido!
Bathylle, terminaste de rir? Ah! tudo foi bebido,
tudo foi comido! Nada mais a dizer!

Somente um poema um pouco simplório que se lança ao fogo,
Somente um escravo um pouco libertino que vos negligencia,
Somente um tédio por não se saber o que vos aflige!

Tradução de Álvaro Cardoso Gomes
http://noigandres.net/textos/lpcontemp/GOMES-Alvaro-C_O-SIMBOLISMO.pdf




LANGOR

Agora sou o Império ao fim da decadência,
Que contempla passarem Bárbaros poentos
Enquanto vai compondo acrósticos cinzentos,
De estilo áureo em que o sol é langor e cadência.

A alma no coração é só tédio e dormência.
Diz-se uivarem além os combates sangrentos.
Oh, não poder, frágil que se é nos votos lentos,
Oh, não querer florir um pouco esta existência!

Oh, não querer, oh, não poder morrer um pouco!
Bátilo, já não ris! Não mais há o que beber!
Tudo é comido enfim! Não mais o que dizer!

Só, um poema infantil que se atira ao fogo,
Só, um criado que não mais se te dirige,
Só, um tédio ignorado e que tanto te aflige!

VERLAINE, Paul, “Arte Poética”, Verlaine - Passeio Sentimental – Poemas 
( tradução de Almansur Haddad), São Paulo, Círculo do Livro, [s/d], p. 150

      

            

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/03/agua.morrente.aspx]

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 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).


► Guillaume Apollinaire, Il pleut, Paris,1914:
Guillaume Apollinaire, Il pleut, Paris,1914