“Soubesse de outro ofício e bem
lhe dava de abalar terra dentro à cata de trabalho. Porém, deixar o rio era
coisa reparada. Quebrar tradições era traição ao seu povo.” (Alves Redol)
Pescador da Borda d' Água,
ao cimo d'água salgada;
passa fome, passa frio,
junto do seu camarada.
Vila
Franca de Xira
Quem tem um homem do mar,
julga que tem algum duque:
tem um pastel de dez reis
c’uma pitada d’açucre.
Alcochete
Está nevoeiro no sol,
debaixo da proa deita fumo;
vai o ferro para o mar
e a caldeira para o lume.
Alcochete
O meu amor é do mar,
é do mar, é marinheiro;
se ele não fosse do mar,
não me ganhava dinheiro.
Alcochete
Vale mais um homem no mar,
sem botão no colarinho,
que valem trinta manatas
de bengala e chapéu fino.
Alcochete
Que linda maré que leva
o barco do meu irmão;
debaixo da proa tem
Senhora da Conceição.
Alcochete
O barqueiro leva a barca,
leva também a barquinha;
meu amor namora duas,
mas a fama é sempre minha.
Alcochete
Ó Senhora d'Atalaia,
atalaia dos pinheiros;
és mãe dos homens do mar,
madrinha dos carreteiros.
Alcochete
Adeus ó rua do Rato
e rua das Calçadinhas,
onde passa o meu amor
quando vai para as marinhas.
Alcochete
Ó loureiro, ó loureiro,
ó loureiro ramalhudo;
quem tem um amor barqueiro
tem passagem, passa tudo.
Chamusca
Ó senhor arrais do barco
pelo amor de Deus me leve;
as tranças do meu cabelo
servem de cordas de leme.
Chamusca
Quem tem um amor marujo,
pensa que tem algum duque;
é um pastel de tostão
c’uma pitada d’açucre.
Ereira
O meu amor é do mar,
anda a aprender a marujo;
s’inda me der na cabeça,
abalo com ele e fujo.
Palhota
O meu amor é do mar
e vai a Lisboa e vem;
Nossa Senhora mo guarde
das ondas que o lar lá tem.
Samora Correia
A sorte do marinheiro,
é uma verdade pura;
anda sempre a trabalhar
em cima da sepultura.
Samora Correia
Ó barqueiro arreia a vela,
ó barqueiro arreia o pano;
quem casa com mulher magra,
tem bacalhau todo o ano.
Vila Franca de Xira
Rapaz vê lá se descobres
num cantinho do mercado,
uma peixeira magrinha,
com o peixe perfumado.
Vila Franca de Xira
Uma gaivota voando,
no bico leva um letreiro,
com letras d’oiro que dizem:
meu amor é marinheiro.
Vila Franca de Xira
Lá vem o barquinho à vela,
lá vem a sardinha boa,
lá vem o meu amorzinho
assentadinho na proa.
Vila Franca de Xira
O meu amor é barqueiro,
tem a lancha presa no cais;
este ano é camarada,
para o ano é arrais.
Vila Franca de Xira
Já lá vai a embarcação,
toca não toca no cais;
é da minha obrigação
ajudar o meu arrais.
Vila Franca de Xira
No verão, cheio de calor,
muito pescador se passa:
lá vão uns para o melão,
outros ficam à fataça.
Palhota
PESCADORES VS CAMPINOS
Andas tola, andas vaidosa
por namorar um varino;
também eu ando vaidosa
por namorar um campino.
Vila Franca de Xira
PESCADORES
Vale mais um homem do mar
co'as mãos sujas d’alcatrão;
que valem trinta da terra
com as enxadas na mão.
Alcochete
Anda lá rapaz do mar,
ao leme dessa fragata;
manda lá o terreano
p’ra vinha sachar batata.
Alcochete
O meu amor é do mar,
é do mar e é varino,
e se não fosse do mar,
era do campo e campino.
Alhandra
Eu não quero ir ao campo
que lá faz muito calor;
eu não quero ser campina
que o meu bem é pescador.
Palhota
Eu hei de ir ao Alegrete
namorar uma varinha,
por que são flores viçosas,
não se encontram na campina.
Vila Franca de Xira
CAMPINOS
Homens do mar não são homens,
varinos homens não são;
onde chegam valadores,
abre a terra, treme o chão.
Vila Franca de Xira
Cancioneiro do Ribatejo, org. e prefácio de Alves Redol.
Vila Franca de Xira, Centro Bibliográfico, 1950
Obra integral disponível para leitura. |
Há mais de cem anos,
os avieiros, eternizados por Alves Redol, começaram a trocar o quezilento mar
invernal de Vieira de Leiria pelo amável estuário do Tejo. Depois, trouxeram as
famílias, e pelo rio ficaram.
“Eu não quero ir para o campo / que lá faz muito calor / eu não quero ser campina / que o meu bem é pescador." No seu Cancioneiro do Ribatejo, António Alves Redol pincela uma das rugas
mais vincadas dos avieiros: o seu caráter
reservado, isolado no rio, de costas para o vizinho mundo das lezírias e fechado aos camponeses
que as habitam e trabalham. Esse lado recluso, que os leva a casar sempre
dentro da própria comunidade, é uma das razões para o escritor neorrealista os apelidar de “ciganos do rio”, no livro Avieiros, publicado em 1942. Outra justificação, porventura mais forte, é o
seu lado nómada ‑ os avieiros vieram de longe, de Vieira de Leiria, e durante
muito tempo andavam de trás
para a frente de barco às costas a fazer-lhes de casa.
O século XIX não foi um bom século
para Vieira de Leiria. Começou logo mal, com o exército
das invasões napoleónicas a saquear e arrasar a eito a vila piscatória, no seu
caminho para Lisboa. O
saldo só não foi pior porque a maioria da população fugiu antes para o pinhal
de Leiria, levando consigo tudo o que conseguia
carregar. Mesmo assim, nos anos seguintes, metade da população sucumbiu às epidemias, consequência da fome e de muitos terem
encontrado as suas casas destruídas pelos franceses.
A arrasadora passagem das tropas
inimigas tornou ainda mais difícil uma vida já de si duríssima. Os pescadores
enfrentavam todos os anos invernos cruéis, de mar frio e bravo, em barcos
demasiado pequenos e frágeis para encararem olhos nos olhos as descomunais ondas.
Porém, ver os filhos a passar fome dá coragem ao mais poltrão dos homens.
Muitas vezes, os pescadores da Vieira de Leiria arriscavam
sair para o Atlântico debaixo de tempestade. Bastas vezes não regressavam. A
alternativa era
empregarem-se nas serrações, à jorna, mas o bom pescador
enjoa longe do mar.
Até
que, no final do século XIX, um deles aventurou-se a descer a costa até Lisboa e a entrar no Tejo.
O pioneiro encontrou um mar dentro do rio - mas um mar de ondas suaves e peixe
gordo. Palavra puxa palavra e o estuário foi-se enchendo de homens de Vieira de
Leiria nos meses frios.
No verão, continuavam a lançar a rede à sardinha, na terra natal; no inverno,
faziam do Tejo casa, à cata de sável, enguia, robalo,
lampreia, fataça. O povo que há séculos habitava as margens do rio imediatamente os batizou: avieiros, à
conta da longínqua
vila que lhes serviu de berço.
Duas bateiras com toldo à proa. |
A bateira como abrigo. |
Ao princípio, os homens vinham
sozinhos, com o colorido barco a servir-lhes de casa e local
de trabalho. A ré era a oficina, de onde lançavam as redes e guardavam o peixe.
A barriga da embarcação fazia de cozinha, apetrechada com fogareiro a petróleo e um armário
para guardar alguidares, comida e o material de costura, para consertar as redes. A proa
empinada transmutava-se de quarto, separado da cozinha por uma taipa, chamada “emparedeira",
que também servia para apoiar os pés no momento de dar uso ao remo. Aí
dormiam, embalados
permanentemente pelo ondular das águas e mal protegidos da chuva por uma pobre
e precária cobertura de lona. Nestes seis ou sete metros de comprimento por metro e
meio de largura viviam
os avieiros uma boa parte do ano.
Cinco meses parecem cinco anos quando
se está sozinho. A temporada longe das mulheres e dos filhos alongava-se, cada vez
mais penosa, e a
saudade esmagava espíritos, mas o peixe deixava-se apanhar e no Tejo raramente
se morria. Já com o século XX mais do que inaugurado, alguns avieiros começaram a
trazer as famílias com eles e deixaram de regressar a Vieira de Leiria.
Lentamente, os nómadas sedentarizaram-se, e passaram a ter como viagem maior as
excursões até Lisboa para vender o pescado.
A
grande migração aconteceu entre 1919 e a eclosão da Segunda Guerra Mundial.
Assentar raízes no
concorrido rio, no entanto, não foi fácil. Incontáveis
centenas de pescadores abarrotavam
já as águas, e os avieiros nem sequer tinham sido os primeiros forasteiros a
chegar. Era constante o choque com os varinos, naturais de Ovar, os murtoseiros, da Murtosa, e os ílhavos,
de Ílhavo, que haviam descoberto o Tejo nos séculos XVIII e
XIX. Também os homens e as mulheres dos campos olhavam com desconfiança para
estas gentes de
estranhos hábitos, que acampavam nas praias, para ficarem mais perto do peixe,
às vezes erguendo casitas feitas de caniços, não ousavam dar dez passos terra
adentro e se tratavam uns aos outros pelas mais estrambólicas
alcunhas: o Diabo Coxo, o Boga, o Malho, o Tubarão, o Japão, o Picareta, o Cientista, o Póri, o Botas,
o Cosminha...
A
estabilidade e o generoso número de filhos com que os pescadores eram
agraciados obrigaram-nos
a procurar habitação mais condigna. Tábua a tábua, o rio ia
sendo ladeado por
barracos de madeira, iguais aos palheiros das praias de Vieira de Leiria mas
assentes em estacas cravadas no leito ou nas margens, para escaparem às
copiosas inundações e não se afastarem do barco, seu único sustento. É por esta
altura, nos anos 20 e 30, que o Tejo ganha cor: ao invés da monotonia alva que
rodeia o estuário, as casas de palafita dos avieiros são pintadas
de vermelho, azul e verde.
No
apogeu da migração de Vieira de Leiria, chegaram a "fundar-se" 80 lugarejos avieiros. Escaroupim,
Palhota, Caneiras, Carrasqueira, Barreira da Bica, Lezirão, Muge, Valada, Carregado,
Vila Franca de Xira, Alhandra, Póvoa de Santa Iria... Por todo o lado, quase
até Santarém, assomavam
pequenas aldeias berrantes, que ao longe pareciam flutuar nas
águas. Habitações
trôpegas e modestas
– “pequenas, talvez para que as não vissem; tímidas, para que não as mandassem
destruir", no dizer de Alves Redol - com cozinha, uma
salinha e um ou dois
minúsculos quartos. Por cima das camas, apetrechadas com singelos colchões de
palha e velhas mantas, ficavam penduradas as redes. A entrada fazia-se por umas escadas que
desciam para o rio.
Não
eram só as casas a pintalgar o Tejo. Também os naturais de Vieira de Leiria se vestiam
com roupas garridas. As mulheres envergavam blusas com pregas, saias de xadrez preto
ou castanho e amarelo (ou vermelho, ou azul), casacos rematados por rendas,
lenço na cabeça e um
omnipresente avental - fosse no labor mais árduo,
ajudando o marido a puxar as redes, fosse na festa mais catita. Os homens usavam
calças de fazenda, sempre arregaçadas na bainha, e camisas de flanela aos quadrados, com um barrete preto ou uma
boina vermelha.
Vasco Loubet http://www.vascoloubet.eu/portfolio_page/rancho-ceifeiras/ |
Com o tempo, a comunidade abriu-se mais.
Aqui e ali, um ou outro pescador oferecia-se aos campos,
quando o peixe, a crescer de esperteza ou a mingar de tamanho, fintava as redes
ou as atravessava sem mácula. Empurrados para fora do rio, desempregados e
puxados pelas fábricas que lhes invadiram o espaço, os netos e os bisnetos dos avieiros largaram paulatinamente a
vida no Tejo.
Hoje,
pode dizer-se que o tempo dos avieiros já lá vai. A modernidade encarregou-se
de os extinguir, pescador por pescador. Restam apenas algumas casas,
abandonadas ou a servir de barracão, entretanto empalidecidas, desbotadas pelo
sol e pela água, apoiadas em apodrecidas e débeis escoras de madeira. As poucas casitas originais que ainda se
mantêm de pé estão agora entre as últimas habitações típicas de
palafita da Europa. Em Escaroupim, no concelho de Salvaterra de Magos, um antigo
lar avieiro foi remodelado e convertido em museu.
A
história dos pescadores que fizeram da aventura rotina, essa, não morrerá nunca. Alves Redol
deixou-a contada no romance Avieiros, um dos pilares do neorrealismo português.
O livro foi editado em 1942, mas começou a ser escrito na cabeça do
vila-franquense quando
ele era ainda uma criança: Alves Redol, que crescera ao lado dos filhos
dos varinos, seus companheiros de escola e de brincadeiras, ficou certo dia embasbacado a
olhar para o singular e rude desconhecido que viu entrar numa taberna, encher um garrafão de
tinto e abalar sem uma palavra; um amigo disse-lhe que o homem era um avieiro, que vivia
da apanha do sável, e a curiosidade transformou-se em
obsessão por conhecer melhor aquele povo.
Três
décadas depois deste episódio, e ao fim de quatro anos a tentar convencê-los, Alves Redol conseguiu
que o deixassem viver com eles, na aldeia de Palhota,
durante a época do
sável, para os acompanhar nas pescarias, entrar-lhes na alma e
imortalizar-lhes o legado. Com uma condição ‑ tinha de levar a mulher com ele, não fosse o escritor
roubar-lhes mais do que a história.
“Ciganos do rio”, L.R./A.R.. Super Interessante nº 207, julho 2015
Este artigo é uma
adaptação de um dos capítulos do livro Histórias do Tejo, do
jornalista Luís Ribeiro (A Esfera dos Livros, 2013)