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Morpheus, Ego Rodriguez |
UM
RESTO DE INSÓNIA
A
noite chegou até ele sem bater à porta;
devagar,
instalou-se no sofá da sala, escureceu
os
cantos, roubou a luz às lâmpadas. E
não
abriu a boca: enquanto ele, sem nada
compreender,
a empurrava para longe de si,
tentava
abrir as janelas, acendia velas,
que
ela soprava por trás. A noite chega,
assim,
afirmando a sua presença. Não dá
descanso,
a não ser que a aceitem como ela é:
mas
não é fácil tê-la dentro de casa, nem conviver
com
os seus gestos de treva. Talvez se possa,
apenas,
murmurar esse nome que ela nos
roubou,
um dia, e que só agora se nos torna
necessário
lembrar; ou invocar uma proteção
ilusória,
a deusa diurna, de cabelos iluminados
pelo
ouro primaveril. Tudo inútil – e como ela
se
ri!, a noite branca que o obriga a manter
os
olhos abertos, fixando o último fio de luz,
como
se também a sua vida escorresse por aí…
Nuno Júdice, A fonte da vida.
Lisboa, Quetzal, 1997
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Asaliah, INSOMNIA (2020) |
O primeiro sofredor de insónia de que a literatura ocidental nos dá conta é nada menos que Zeus. Já por aí se pode inferir que o problema não escolhe as suas vítimas consoante a sua dignidade ou importância, mas toca a tod@s. Tanto sofre de insónia o bilionário deitado na sua cama em Park Avenue como o pobre no seu covil. No início do Canto II da Ilíada, a insónia de Zeus tem, ainda, uma característica amarga que todos os insomníacos conhecem: é tão desesperante sentirmos a meio da noite que, no mundo inteiro, a única pessoa que não está a dormir somos nós. Sobretudo se estamos deitados na cama ao lado de alguém que está a dormir – como no caso de Zeus, mais uma vez, no referido episódio da Ilíada.
No entanto, se olharmos para a literatura grega no seu todo, vemos que a insónia (ἀγρυπνία) nem sempre é vista em termos exclusivamente negativos. A insónia é sentida como dádiva grata para aqueles que se dedicam à arte da palavra. O facto de o poeta não conseguir dormir de noite é um bom motivo para se sentar à luz da candeia, a burilar e aperfeiçoar os seus versos. Uma poeta do século III antes de Cristo saúda o aparecimento do grande poema de Arato sobre astros e constelações como fruto da insónia do poeta. Para se escrever poesia que valha a pena, é preciso queimar as pestanas. A mesma ideia aparece muitos séculos mais tarde no filme Rich and Famous de George Cukor, quando Jacqueline Bisset no papel de uma escritora diz “if your writing doesn’t keep you awake all night it won’t keep anyone else awake either”.
Na literatura grega mais tardia – já da época cristã – os padres do deserto elogiam muito essa graça divina que é a insónia, já que alegadamente nada faz melhor à alma do que privar o corpo de sono. Esta ideia, formulada por João Clímaco na sua Escada do Paraíso, não é obviamente partilhada pela psicologia moderna, que vê a coisa pela perspectiva contrária: nada faz tanto mal à alma como não dormir. O sono é fundamental.
Uma das razões pelas quais os padres do deserto desaprovavam o sono tinha a ver com a vulnerabilidade do cérebro humano a imaginações eróticas quando é abraçado pelos braços de Morfeu. Todos os pensamentos que conseguimos afugentar ou recalcar durante o dia são como melgas que esperam apenas que adormeçamos para logo atacar. Claro que não cabe aqui um relato de todos os sonhos eróticos que já tive na minha vida (felizmente esquecem-se com uma facilidade enorme), mas quantas e quantas vezes não acordei estarrecido com o facto de ter sonhado ter ido para a cama com alguém cuja atracção erótica à luz do dia nunca se me impusera. Estes sonhos são especialmente incomodativos para pessoas que de dia negam a sua verdadeira orientação sexual, dado que, no mundo do sonho, não é certamente com mulheres que sonha o gay recalcado, casado e pai de filhos. Para homens que procuram viver um quotidiano de castidade por razões de índole religiosa (ou porque são padres ou monges ou porque optaram, enquanto leigos, pela castidade), haverá fases das suas vidas em que a insónia – como modo de escapar a desagradáveis sonhos sexuais – será uma amiga assaz bem-vinda.
Por isso, na sua fascinante Escada do Paraíso (escrita em grego em inícios do século VII depois de Cristo), o monge João Clímaco escreve o seguinte: “a insónia mantém o espírito puro. O monge que não dorme combate a luxúria; o que dorme, dorme com ela. A insónia é a supressão da luxúria, é a libertação das fantasias em sonho. O monge que sofre de insónia é um pescador de pensamentos: no silêncio da noite consegue apanhá-los mais facilmente”.
Ceder ao sono, neste ideário ascético, é visto como sinal de fraqueza, como incapacidade de superar as exigências do corpo, como incapacidade de lhes sobrepor as razões da espiritualidade e do intelecto. Mas, por outro lado, dormir é tão bom! Muitas vezes na minha vida me tenho insurgido contra visitas inoportunas da insónia, mas até hoje tenho optado por lidar com ela de forma amigável, sem tentar vencê-la por meios químicos. Já me aconteceu estar toda a noite na cama de olhos fechados, mas – como o pescador de pensamentos de João Clímaco – completamente acordado. E claro que já me exasperei com quem ressonava beatificamente ao meu lado. Hoje aceito que na minha idade é normal dormir menos, e esforço-me por acolher, cada noite, a presença alternada no meu quarto desses dois amigos gregos que me acompanharão até ao fim da vida: o sono (ὕπνος) e a insónia (ἀγρυπνία). Desde que quem durma ao meu lado não ressone, tudo bem.
(na foto: a minha cadela Thisbe claramente desagradada há muitos anos por eu estar a dormir – e ela não)
Frederico Lourenço, "Insónia", Facebook, 24-11-2016
INSÓNIA
Não
durmo, nem espero dormir.
Nem
na morte espero dormir.
Espera-me
uma insónia da largura dos astros,
E
um bocejo inútil do comprimento do mundo.
Não
durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não
posso escrever quando acordo de noite,
Não
posso pensar quando acordo de noite —
Meu
Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!
Ah,
o ópio de ser outra pessoa qualquer!
Não
durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E
o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam
por mim, transtornadas, coisas que me sucederam —
Todas
aquelas de que me arrependo e me culpo —;
Passam
por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam —
Todas
aquelas de que me arrependo e me culpo —;
Passam
por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E
até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.
Não
tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito
a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá
fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um
grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra
ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.
Estou
escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos
a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos
a teimar em dizer isso,
Versos,
versos, versos, versos, versos...
Tantos
versos...
E
a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!
Tenho
sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir
Sou
uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma
abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo
o necessário para sentir consciência,
Salvo
— sei lá salvo o quê...
Não
durmo. Não durmo. Não durmo.
Que
grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que
grande sono em tudo exceto no poder dormir!
Ó
madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem,
inutilmente,
Trazer-me
outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem
trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque
sempre és alegre, e sempre trazes esperanças,
Segundo
a velha literatura das sensações.
Vem,
traz a esperança, vem, traz a esperança.
O
meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me
as costas de não estar deitado de lado.
Se
estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
Vem,
madrugada, chega!
Que
horas são? Não sei.
Não
tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não
tenho energia para nada, para mais nada...
Só
para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim,
escritos no dia seguinte.
Todos
os versos são sempre escritos no dia seguinte.
Noite
absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz
em toda a Natureza.
A
Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente.
A
Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras,
Costuma
dizer-se isto.
A
Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas
mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente.
Mas não durmo.
27-3-1929
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944
(imp. 1993). - 273.
Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/2358
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Caspar David Friedrich, "O viajante sobre o mar de névoa", 1818
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INSÓNIA
Ó retrato da morte, ó noite amiga
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha do meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!
Pois manda Amor, que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga:
E vós, ó cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!
Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores.
Bocage
OS ANJOS DA MEIA NOITE
PHOTOGRAPHIAS
Quando a insônia, qual lívido vampiro,
Como o arcanjo da guarda do Sepulcro,
Vela à noite por nós,
E banha-se em suor o travesseiro,
E além geme nas franças do pinheiro
Da brisa a longa voz ...
Quando sangrenta a luz no alampadário
Estala, cresce, expira, após ressurge,
Como uma alma a penar;
E canta aos quizos rubros da loucura
A febre - a meretriz da sepultura
A rir e a soluçar...
Quando tudo vacila e se evapora,
Muda e se anima, vive e se transforma.
Cambaleia e se esvai...
E da sala na mágica penumbra
Um mundo em trevas rápido se obumbra...
E outro das trevas sai...
........................................................................
Então... nos brancos mantos que arregaçam
Da meia-noite os Anjos alvos passam
Em longa procissão!
E eu murmuro ao fitá-los assombrado:
São os Anjos de amor de meu passado
Que desfilando vão...
Almas, que um dia no meu peito ardente
Derramastes dos sonhos a semente,
Mulheres, que eu amei!
Anjos louros do céu! virgens serenas!
Madonas, Querubins ou Madalenas!
Surgi! aparecei!
Vinde, fantasmas! Eu vos amo ainda;
Acorde-se a harmonia à noite infinda
Ao roto bandolim ...
.....................................................................
E, no éter, que em notas se perfuma,
As visões s'alteando uma por uma...
Vão desfilando assim!...
1.ª SOMBRA
MARIETA
Como o gênio da noite, que desata
O véu de , rendas sobre a espádua nua,
Ela solta os cabelos... Bate a lua
Nas alvas dobras de um lençol de prata
O seio virginal que a mão recata,
Embalde o prende a mão... cresce, flu
Sonha a moça ao relento... Além na
Preludia um violão na serenata!...
...Furtivos passos morrem no lajedo...
Resvala a escada do balcão discreta...
Matam lábios os beijos em segredo...
Afoga-me os suspiros, Marieta!
Oh surpresa! oh palor! oh pranto! oh medo!
Ai! noites de Romeu e Julieta. . .
2.ª SOMBRA
BÁRBORA
Erguendo o cálix que o Xerez perfuma.
Loura a trança alastrando-lhe os joelhos,
Dentes níveos em lábios tão vermelhos,
Como boiando em purpurina escuma;
Um dorso de Valquíria... alvo de bruma,
Pequenos pés sob infantis artelhos,
Olhos vivos, tão vivos, como espelhos,
Mas como eles também sem chama alguma;
Garganta de um palor alabastrino,
Que harmonias e músicas respira...
No lábio - um beijo... no beijar - um hino;
Harpa eólia a esperar que o vento a fira,
— Um pedaço de mármore divino...
— É o retrato de Bárbara - a Hetaira. —
3.ª SOMBRA
ESTER
Vem! no teu peito cálido e brilhante
O nardo oriental melhor transpira!
Enrola-te na longa cachemira,
Como as judias moles do Levante,
Alva a clâmide aos ventos - roçagante...
Túmido o lábio, onde o saltério gira...
Ó musa de Israel! pega da lira...
Canta os martírios de teu povo errante!
Mas não... brisa da pátria além revoa,
E ao delamber-lhe o braço de alabastro,
Falou-lhe de partir... e parte... e voa. . .
Qual nas algas marinhas desce um astro...
Linda Ester! teu perfil se esvai... s'escoa...
Só me resta um perfume... um canto... um rastro...
4.a SOMBRA
FABÍOLA
Como teu riso dói... como na treva
Os lêmures respondem no infinito:
Tens o aspecto do pássaro maldito,
Que em sânie de cadáveres se ceva!
Filha da noite! A ventania leva
Um soluço de amor pungente, aflito...
Fabíola!... É teu nome!... Escuta é um grito,
Que lacerante para os céus s'eleva!...
E tu folgas, Bacante dos amores,
E a orgia que a mantilha te arregaça,
Enche a noite de horror, de mais horrores...
É sangue, que referve-te na taça!
É sangue, que borrifa-te estas flores!
E este sangue é meu sangue... é meu... Desgraça!
5.ª e 6.ª SOMBRAS
CÂNDIDA E LAURA
Como no tanque de um palácio mago,
Dous alvos cisnes na bacia lisa,
Como nas águas que o barqueiro frisa,
Dous nenúfares sobre o azul do lago,
Como nas hastes em balouço vago
Dous lírios roxos que acalenta a brisa,
Como um casal de juritis que pisa
O mesmo ramo no amoroso afago....
Quais dous planetas na cerúlea esfera,
Como os primeiros pâmpanos das vinhas,
Como os renovos nos ramais da hera,
Eu vos vejo passar nas noites minhas,
Crianças que trazeis-me a primavera...
Crianças que lembrais-me as andorinhas! ...
7.ª SOMBRA
DULCE
Se houvesse ainda talismã bendito
Que desse ao pântano - a corrente pura,
Musgo - ao rochedo, festa - à sepultura,
Das águias negras - harmonia ao grito...,
Se alguém pudesse ao infeliz precito
Dar lugar no banquete da ventura...
E tocar-lhe o velar da insônia escura
No poema dos beijos - infinito...,
Certo. . . serias tu, donzela casta,
Quem me tomasse em meio do Calvário
A cruz de angústias que o meu ser arrasta!. . .
Mas ,se tudo recusa-me o fadário,
Na hora de expirar, ó Dulce, basta
Morrer beijando a cruz de teu rosário!...
8.ª SOMBRA
ÚLTIMO FANTASMA
Quem és tu, quem és tu, vulto gracioso,
Que te elevas da noite na orvalhada?
Tens a face nas sombras mergulhada...
Sobre as névoas te libras vaporoso ...
Baixas do céu num vôo harmonioso!...
Quem és tu, bela e branca desposada?
Da laranjeira em flor a flor nevada
Cerca-te a fronte, ó ser misterioso! ...
Onde nos vimos nós? És doutra esfera ?
És o ser que eu busquei do sul ao norte...
Por quem meu peito em sonhos desespera?
Quem és tu? Quem és tu? - És minha sorte!
És talvez o ideal que est'alma espera!
És a glória talvez! Talvez a morte!
Castro Alves, Santa Izabel, agosto
de 1870
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Insomnia, Chris Duke |