MINUTO
O amor? Seria o fruto
trincado até mais não ser?
(Mas para lá do prazer
a Vida estava de luto …)
Fui plantar o coração
no infinito: uma flor…
(Mas para lá do fervor
a Vida gritou que não!)
O amor? Nem flor nem fruto.
(Tudo quanto em nós vibrara
parecia pronto a ceder …)
Foi apenas um minuto:
a fome intensa tão rara!,
de ser criança, ou morrer…
Jovem de 22 anos, David Mourão-Ferreira exprime assim a pressa de quem do amor ainda não aprendeu o prazer da demora, numa confusão adolescente de não saber o que importa.
É ainda o adolescente dos anos
40 que ecoa neste SONETO
DO CATIVO onde ressoam os contrastes entre amor de ouvir
dizer, preconceitos e culpas de pecado numa sociedade vigiada:
Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações
contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da
invenção;
o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas,
incensórias;
a cúmplice partilha nas
histórias
do que os outros dirão ou não
dirão;
se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais
sombria
razão de encantamento e de
desprezo;
não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo
e sujo,
tenho vivido eternamente preso!
A idade avança, a experiência também, e é outra a realidade neste
TERNURA
Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura
amarrotada,
da frescura que vem depois do
Sol,
quando depois do Sol não vem
mais nada…
Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio…
Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou
vestindo,
para enfrentar lá fora aquela
gente
que da nossa ternura anda
sorrindo…
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despedimos assim que estamos
sós!
E no prazer do corpo o amor ganha a essencialidade dos elementos – Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne: / é também água, terra, vento, fogo …
Seguindo esta poesia saberemos
o seu segredo mais à frente – no teu corpo existe o mundo todo!
PRESIDIO
Nem todo o corpo é carne… Não,
nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes
mármore,
às vezes linho, lago, tronco de
árvore,
nuvem ou ave, ao tacto sempre
pouco?…
E o ventre, inconsistente como o lodo?…
E o morno gradeamento dos teus
braços?
Não. Meu amor… Nem todo o corpo
é carne:
é também água, terra, vento,
fogo…
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada
reencontro;
no parque da memória o fugidio
vulto da primavera em pleno Outono…
Nem só de carne é feito este
presídio,
pois no teu corpo existe o
mundo todo!
Mas o perigo de olhar o mundo da cintura para baixo espreita:
CASA
Tentei fugir da mancha mais
escura
que existe no teu corpo, e
desisti.
Era pior que a morte o que
antevi:
era a dor de ficar sem
sepultura.
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me
procura.
Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o
cheiro a fruta
que veste de frescura a
escuridão…
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite
escuta
o que sem voz me sai do coração.
Visitados que foram os tormentos do sexo ao concentrar aí o mundo – Só por dentro … – , voltemos à despreocupada alegria do poeta jovem:
ALBA
Com grinaldas de lodo sobre a
testa,
presos os pés em turbilhões de
limos,
– assim a madrugada nos desperta
e após a preia-mar nós
emergimos.
Lambe-me o rosto a fimbria do lençol,
amarrotada, poluida espuma…
Sobre a salsugem, uma angustia
mole,
que o pensamento arruma e
desarruma.
por fim derruba o muro dos enganos,
e ante nós dois derrama esta
pergunta:
– De que infernos vibrantes nos
soltamos,
sem que o céu compareça ou nos
acuda?
Findo este pequeno tour pela criação poética de David Mourão-Ferreira antes dos 35 anos e da Matura Idade, tenho uma provável surpresa para a maior parte dos leitores: os primeiros poemas publicados aos 19 anos e que o autor, já adulto e consciente, repudiou, nunca os incluindo na sua obra poética.
Estas primícias poéticas foram
publicadas numa edição de autor, colectiva, feita em 1946 e de seu nome RUMOS ANTOLOGIA DE CONTOS E
POEMAS.
A edição contém obras de Ana
Maria Caeiro, Carlos Garcia, David
Mourão Ferreira (sem hífen) João Belchior Viegas,
José-Aurélio, José Rabaça, Mário António, Orlando Pinto Baptista e Vitor
Parracho.
De David Mourão-Ferreira constam
do livro 5 poemas, quais sejam:
QUINTO POEMA DE HESITAÇÃO
VOZ
CÂNTICO
IMAGEM
PEDIDO
Este último diz-se que pertence
ao livro no prelo “BARCO
ENCALHADO” que a contra-capa de RUMOS anuncia
“A sair brevemente”.
O “BARCO ENCALHADO”, que eu saiba nunca
viu a luz do dia e o primeiro livro a publicar pelo autor foi antes A SECRETA VIAGEM em
1950.
Temos pois que nos 4 anos que mediaram, o poeta desencalhou o barco e seguiu na viagem que nos contou e da
qual extraí MINUTO.
Eis então os poemas de RUMOS
QUINTO POEMA DE HESITAÇÃO
Não me digam que não,
Que pr’além desta vida
Não existe outra vida,
Onde os sonhos deixarão de ser
sonhos,
Permanecendo neles, porém,
Aquele encanto e aquela graça
Que só os sonhos têm…
Não me digam que não,
Que por trás destes muros,
Serenos e caiados –
Destinos conhecidos – ,
Não existem regatos
E não existem prados
E rosas e lirios…
Não me digam que não,
Que não hei-de encontrar
Em busca de quem vou…
Não me digam que não!,
Deixem-me ir iludido,
Já que iludido estou!…
E depois, se eu voltar,
Inutil e cansado,
Digam-me então, que não,
Que errei o meu caminho…
Deixem-me então, morrer,
Vazio de sonhos e podre de
cansaços…
Digam-me então que não!,
Ainda que eu vos peça de joelhos
E vos estenda os braços!…
VOZ
Apenas respondo às vozes
Que chamam dentro de mim.
Meus passos só são velozes
Pra essas vozes assim…
Não me chamem pois de fora,
Que nunca vou nem irei.
Se acaso me for embora
É respeito à minha lei.
Apenas respondo às vozes
Que chamam dentro de mim:
Só irei quando chamarem!
Só então direi que sim!
CÂNTICO
Ah! São as árvores erguidas
E os caminhos desertos,
Desertos e abertos,
Promessas de vida…,
Ah! São os lamentos de cores
E os ambientes tristes,
Lembranças de dores…;
Ah! É tudo isto,
Tudo, tudo,
Que me envolve, me inunda,
Me estende seu manto
De pureza e de encanto…
– Pureza que eu canto,
Encanto de tudo!…
IMAGEM
Rio manso como um charco,
Largo ninho de gaivotas,
Sulcado por tanto barco,
Desiludido das rotas!
Rio manso como um charco!
Tu és bem a minha imagem:
Em mim também há um barco
Já cansado de viagem…
Mas sou inferior a ti,
Que deslizas para o mar,
Enquanto que eu, ai de mim!,
Não sei onde irei parar…
PEDIDO
Antes de tu apareceres,
Eu era um barco encalhado,
Perdido num mar qualquer…
Era um relógio parado,
Que ninguém queria arranjar,
Não obstante ainda ter
Muita corda para andar…
Antes de tu apareceres,
Ai tanta cois aque eu era,
Sem nada ser, afinal…!
Era um romance imperfeito,
Que tinha o grande defeito
De ser bastante banal…
Mas agora… agora que tu vieste,
Que tu vieste e encheste
Da sombra dos teus cabelos
E dos teus gestos singelos
O marasmo dos meus dias…
Agora… agora, o que peço
É que fiques!,
Não me deixes!,
Pra que eu não tenha outra vez
As passadas horas frias
Daquelas vãs agonias
Que tu viste – e já não vês!
Lidas estas primícias
dificilmente se suspeita a floração de que mais tarde o poeta seria capaz. E
certamente não tinha ainda travado conhecimento com a balzaquiana do andar de
cima, iniciadora nas lides do amor e fonte de inspiração segura dos primeiros poemas
aceites na obra poética.
Noticia Bibliográfica:
Tal como referi no início, os
poemas foram transcritos de LIRA
DE BOLSO, antologia de escolha do poeta e publicada em 1969 por publicações dom quixote na
colecção cadernos de poesia.
Carlos Fernandes