Correm turvas
as águas deste rio,
que as do Céu
e as do monte as enturbaram1;
os campos
florecidos se secaram,
intratável2 se fez o vale, e
frio.
Passou o
verão, passou o ardente estio3,
ũas cousas por
outras se trocaram;
os fementidos4 Fados já deixaram
do mundo o
regimento5,
ou desvario6.
Tem o tempo
sua ordem já sabida;
o mundo, não;
mas anda tão confuso,
que parece que
dele Deus se esquece.
Casos,
opiniões, natura7
e uso
fazem que nos
pareça desta vida
que não há
nela mais que o que parece.
Luís de Camões, Rimas,
edição de Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Almedina, 1994, p. 168.
Notas:
1
enturbaram – tornaram turvas.
2
intratável – inacessível; intransitável.
3 estio
– tempo quente e seco.
4
fementidos – enganosos.
5
regimento – governo.
6
desvario – loucura; inquietação; excesso.
7
natura – natureza humana.
Questionário:
1. Explique o
modo como a passagem do tempo é representada nas duas primeiras estrofes.
2. «Tem o tempo
sua ordem já sabida; / o mundo, não» (versos 9 e 10).
Explicite a
oposição presente nestes versos, tendo em conta a globalidade do poema.
3. Selecione a
opção de resposta adequada para completar as afirmações abaixo apresentadas.
Neste soneto,
além do tema da mudança, também se destaca o tema ………………. Perante a realidade que perceciona,
o sujeito poético evidencia um sentimento de ……………….
(A) da
reflexão sobre a vida pessoal … indiferença
(B) da
reflexão sobre a vida pessoal … descrença
(C) do desconcerto … indiferença
(D) do desconcerto … descrença
Chave de correção do questionário de interpretação do soneto:
1. Para que a resposta
seja considerada adequada, devem ser abordados dois
dos tópicos seguintes, ou outros igualmente
relevantes:
‒ a referência à
sequência das estações do ano através da caracterização de elementos da
natureza (em «Correm turvas as águas deste rio, / que as do Céu e as do monte
as enturbaram» – vv. 1-2, remete‑se
para o inverno; em «os campos florecidos» – v. 3, aponta-se para a primavera;
em «os campos [...] se secaram» – v. 3, indicia-se o verão; em «intratável se
fez o vale, e frio» – v. 4, sugere-se o outono);
‒ a referência aos
efeitos que a passagem do tempo provoca na natureza/a referência às
transformações ocorridas na natureza resultantes da passagem inevitável do
tempo (como o turvar das águas do rio ou o secar dos campos florescidos);
‒ a associação entre a
passagem do tempo e a ideia de mudança, evidente no recurso aos verbos «passar»
e «trocar» (vv. 5-6).
Nota – Os tópicos podem ser abordados separadamente ou
de forma integrada.
2. Devem ser abordados
os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
‒ a previsibilidade/a
constância natural da passagem do tempo, evidenciada pelo ritmo cíclico das estações
do ano;
‒ a imprevisibilidade
da natureza humana/dos comportamentos humanos, provocando tal desconcerto no mundo
que «parece que dele Deus se esquece» (v. 11).
3. (D)
Neste soneto, além do tema da mudança, também se
destaca o tema do desconcerto. Perante a realidade que perceciona, o sujeito
poético evidencia um sentimento de descrença.
Fonte: Exame Final Nacional de Português, Prova
639, 2.ª Fase, Ensino Secundário - 12.º Ano de Escolaridade, 2021. Decreto-Lei
n.º 55/2018, de 6 de julho. Prova disponível em https://iave.pt/wp-content/uploads/2021/09/EX-Port639-F2-2021-V1_net.pdf
e critérios de classificação em
https://iave.pt/wp-content/uploads/2021/09/EX-Port639-F2-2021-CC-VD_net.pdf
Textos de apoio:
Camões e o real
O soneto “Correm
turvas as águas deste rio” pode ser lido em
perspectiva a “Verdade, Amor, Razão, Merecimento”, inclusive pela ocorrência em
ambos de uma palavra-chave, “regimento”. Neste texto, basto-me no acima
transcrito, que propõe uma cisão entre “mundo” e “tempo”. O “mundo”, realidade
tangível à experiência do sujeito lírico, é “confuso”, enquanto o tempo mantém
sua ordem. Há, portanto, um divórcio entre tempo e espaço, duas instâncias em
desejada relação que, quando apartadas, criam no poeta uma espécie de precipício
subjetivo. A partir do “tudo posso ver” que se encontra no citado “Que poderei do
mundo já querer”, entendo real como dado espaciotemporal, mas, em “Correm turvas
as águas deste rio”, isso se complica, pois, enquanto o tempo segue seu curso,
o mundo é um “desvario” – por isso, o eu, além da natureza, se encontra perto desse
estado, e a última palavra do segundo quarteto não deixa de ser um verbo em primeira
do singular.
Por essas e outra, “parece” que Deus
“se esquece” do mundo, o que me faz repetir algo do começo deste texto: escrevi
imo para tentar indicar algo que pode ser tão superficial como qualquer
banalidade, mas cuja não evidência precisa da atenção de uns olhos afiados que
lhe permitam (seja ele, o imo, profundo ou superficial), ser visto, ou dado a
ver. A aparência é do esquecimento de Deus, dada à percepção do poeta no mundo
em “desvario”, o que enseja, por sua vez, outra aparência: nesta vida, talvez
não haja nada além da própria aparência, sem imo, sem essência, sem
profundidade. Maria Helena Ribeiro da Cunha, muito dedicada a pensar as bases
filosóficas de que Camões lançou mão, afirma: “Camões percorre o conceito
aristotélico do verosímil, que lhe abre a possibilidade de invocar
continuamente o estranhamento diante de uma realidade contraditória e não
explicada pelo entendimento” (1989, p. 97), o que o leva a formular o próprio desentendimento
diante da desconfortável realidade.
Um
detalhe desse soneto é magistral e revelador: em dois versos, “que parece que dele
Deus se esquece” e “que não há nela mais que o que parece”, há incômoda
proximidade de ocorrências do pronome “que”, não obstante a diferenças das
respectivas funções sintáticas. A aspereza sonora e visual expressa a gagueira
do poeta e do poema, incapazes de dizer maciamente de um desconcerto do mundo
que toca Deus. O atrito dos “que” reforça a incompreensão acerca desse Deus que
poderia concertar e o real, dando-lhe bom regimento: o problema é o da
incognoscibilidade de Deus ou de Sua apatia? Dizendo, ou perguntando, de outro
modo: se “parece” que “Deus se esquece” do mundo, e se, na “vida”, a aparência
(“pareça”) é a de “que não há nela mais que o que parece”, há uma essência
atrás da aparência? Não perco de vista as três ocorrências dessa ideia a partir
do décimo primeiro verso, tampouco que Deus não aparece à Máquina do Mundo. Uma
pergunta feita ao futuro: será possível investigar Deus em Camões tendo como
apetrecho inclusive a ideia de indecidível?
“Camões e o real”, Luis Maffei. Faculdade de
Letras da UFRJ, Metamorfoses (Revista de Estudos Luso Afro-Brasileiros
da Cátedra Jorge de Sena), v. 14, n.º 1, 2017. https://doi.org/10.35520/metamorfoses.2017.v14n1a10504
* * *
Tiempo-caos: angustia
en Camões
Al leer los sonetos líricos
de Luís de Camões encontramos que en su mayoría éstos se encuentran construidos
sobre una base temática bimembre. Los dos componentes de esta arquitectura son el
tiempo en su paso inexorable y el caos resultante. Esta relación dialéctica
trae consigo el contínuo mutar de los órdenes, situación que produce en el poeta
un sentimento angustioso; éste, a su vez, resultado de la anulación de aquellos
valores o normas que ofrecen al hombre seguridad en un momento histórico determinado.
Nuestro propósito es presentar
el desarrollo y tratamiento de estos elementos en el soneto "Correm turvas
as águas deste rio." (Luís
de Camões, Obras completas I. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1956, págs. 255-6).
A la vez, trataremos
de situar esta expresión poética dentro de las corrientes estético filosóficas en
que se desenvuelve el poeta.
Desde el primer verso del soneto eje de nuestro análisis, Camões introduce la idea de movimiento que será trabajada en el primer cuarteto. Metafóricamente se proyecta hacia el lector por medio de dos símbolos: el río y la tierra que, al mismo tiempo, están relacionados con la fertilidade y la vida. La imagen referente a las estaciones: "Os campos florescidos se secaram; /Intratável se fez o vale e frio.", señala la perpetuidad temporal de sus elementos dada su naturaleza cíclica y, por contraste, lo efímero del género humano. Junto a este gran tema, fuerza generadora del soneto, Camões sugestivamente desarrolla el segundo componente temático: el caos. Visualmente éste se presenta en la figura del agua: "Correm turvas as aguas deste rio", turbulencia que ha alterado la intrínseca diafanidad de la misma. Podemos notar que el caos aquí está presentado a base de elementos físicos, agua-río, no por ello descartando una posible interpretación filosófica, como veremos más adelante.
El segundo verso establece
una concatenación de acciones que expresan movilidad: "que as do céu e as do
monte as enturbaram;" y, a la vez, se reitera la idea de trastoque en la esencia.
La lluvia cristalina produce el enturbamiento del río; del orden al desorden, del
equilibrio al caos. Como señaláramos, un segundo nivel intelectivo permite recrear
la imagen del río como símbolo de vida, enmarcando la expresión en un contexto religioso
que recuerda las coplas de Jorge Manrique. Esta interpretación nos permite establecer
un paralelo que vincula la tradición literária renacentista con la medieval.
Establecido el acercamiento
al primer cuarteto, vemos como los dos temas presentados son tratados por Camões
a dos niveles, el físico específico y el filosófico-universal.
La intensificación del primer
elemento arquitectónico la encontramos en el segundo cuarteto. El tiempo, presente
en el primer cuarteto, será objeto de análisis retrospectivo desde la inmediatez.
Presenciamos el movimento temporal hacia el pasado: "passou, se trocaram".
Camões presenta ahora la idea cambio-caso no ya de manera particular, sino
universal: "Uas cousas por outras se trocaram", estableciendo nuevamente
la relación entre causa y efecto. Lo caótioco en este cuarteto es presentado en
un marco mítico-filosófico; el destino (Fados) es el responsable del desordenado
mutar ya que, al abondonar el control del mundo, ha legado en el hombre la dirección
del mismo. Por medio de la mitología pagana Camões da la visión renacentista del
hombre como hacedor de su destino. Sin embargo, el cambio de una visión
teocéntrica a una antropocêntrica parece presentarse negativa al poeta pues el hecho
señala la pérdida de la armonía preexistente.
En el primer terceto se
intensifica la idea de organicidad y perpetuidad, relacionándola al plano temporal.
Nuevamente, el poeta señala que sólo aquello externo al hombre continúa su
estado armónico en su eterno devenir: "Tem o tempo sua orden já sabida".
El planteamiento es en estos momentos desde una perspectiva social: "O mundo
não; mas anda tão confuso". Sin embargo, Camões no parece encontrar una explicación
a dicha confusión social y, al encontrarse sin asidero ideológico expresa: "...
parece que Deus se esquece", anguistia hecha verbo que en el plano religioso
tendría ecos de blasfemia.
Esta desorientación provoca
en el poeta una actitud negativa que alcanza su punto álgido en el segungo terceto
expresándola en una visión totalizadora a base de la enumeración: "casos, opinões,
natura e uso". Después de establecidos los elementos, el poeta, como último
intento de encontrar una explicación, los recimina por ser, desde su
perspectiva, los causantes del caos del mundo. Al haber agotado las posibilidades
de encontrarle sentido al mundo concluye diciendo que la vida es sólo un cúmulo
de apariencias: "Fazem que nos pareça desta vida/Que não há nela mais que o
que parece." Expresión que encubre la anguistia experimentada ante la inseguridad
y el caos que no consigue comprender.
Torres-Rosado, S. (1984).
Tiempo-caos: angustia en Camões. Mester,
13(1). http://dx.doi.org/10.5070/M3131013704
Retrieved from https://escholarship.org/uc/item/6t52q9z0
* * *
A crise
metafísico-religiosa
Qual é a realidade de Camões? Da
oposição entre o contentamento (supostamente) passado e o descontentamento
presente, do contraste entre o empiricamente impossível e o empiricamente real,
Camões encaminha-se para uma formulação metafísica do problema da crise
subjectiva do tempo psicológico e do desconcerto do mundo, numa tentativa de
escapar à conformação ou aceitação do absurdo da vida e à sua dupla verdade,
numa busca desesperada da Verdade, que o liberte de todas as aporias e o
encaminhe numa solução com sentido.
Tal é a tentativa de Camões para
resolver (pelo menos explicar) o problema do desconcerto objectivo do mundo –
aquele que se refere à distribuição desencontrada de prémios e castigos –, que
adopta uma solução mística para poder justificar a presença de acontecimentos
ou de casos que contribuem (aparentemente) para a ausência da ordem ou do
regimento do mundo visível, ao sabor dos caprichos e das incongruências da
Fortuna, e fazem com que os homens se julguem perseguidos pelos efeitos do
desconcerto de um mundo tão confuso, que parece que Deus se esquece dele (“Tem
o Tempo a sua ordem já sabida, / o mundo não, mas anda tão confuso / que parece
que dele Deus se esquece. / Casos, opiniões, Natura e Uso / fazem que nos
pareça desta vida / que não há nela mais que o que parece.”25). Mas estas
perseguições são na verdade transcendentes à compreensão da mente humana, pois
que a razão é impotente para integrar a experiência, solucionar e transcender a
aparência do desconcerto do mundo; na verdade este desconcerto não é aparente,
está antes justamente determinado pelos desígnios de Deus (desde o pecado
original): o que para Deus é justo parece injusto aos homens (“(...) dedicai,
se quereis, ao Desconcerto / novas honras e cegos sacrifícios, / que por
castigo igual de antigos vícios / quer Deus que andem as cousas por acerto. /
Não caiu neste modo de castigo / quem pôs culpa à Fortuna, quem somente / crê
que acontecimentos há no mundo. / A grande experiência é grão perigo, / mas o
que Deus é justo e evidente / parece injusto aos homens e profundo.”26).
A razão humana só pode restringir-se à
experiência fenomenológica, à observação dos factos e dos fenómenos da natureza
que envolvem todas as contradições vivenciais, conceptuais, éticas, morais e
axiológicas (“Verdade, Amor, Razão, Merecimento, / qualquer alma farão segura e
forte. / Porém Fortuna, Caso, Tempo e Sorte / têm do confuso mundo o regimento.
/ Efeitos mil revolve o pensamento / e não sabe a que causa se reporte, / mas
sabe que o que é mais que vida e morte / que não o alcança humano
entendimento.”27).
A essência do desconcerto só poderá ser equacionada pelo entendimento humano,
através da crença fideísta na acção divina. Porém, acreditar em Deus não
significa descobrir uma razão no desconcerto do mundo; significa, sim, aceitar
a sua irracionalidade no plano da experiência e confiar numa razão profunda
inacessível aos homens. Ter muito visto e experimentado é melhor, mais válido,
do que acreditar nas razões vãs dos doutos, pois que há coisas que se crêem e
não acontecem e há coisas que acontecem e não se crêem; por isso, dada a
incapacidade da razão para compreender este paradoxo entre a teoria racional
positiva e a experiência fenomenológica negativa, entre o que se passa, o que realmente
acontece, e a sede de verdade, de justiça, melhor ainda é crer em Cristo
(“Doctos varões darão razões subidas, / mas são experiências mais provadas / e por
isso é melhor ter muito visto. / Cousas há i que passam sem ser cridas, / e
cousas cridas há sem ser passadas. / Mas o milhor de tudo é crer em Cristo”.28). Ao evocar Deus
como a causa última lógica e racional do mundo, Camões não se deixa de conformar
com a ideia do absurdo; simplesmente a racionalidade que não está no mundo está
em Deus; até a necessidade de um universo (aparentemente) ilógico está em Deus;
a inteligibilidade dos actos de Deus não existe no plano racional da teoria nem
na experiência da realidade empírica mas sim na síntese mística e na solução
volitiva do plano divino. Assim, só através da superação metafísico-religiosa
do desconcerto do mundo e do dissídio vivencial, mental e espiritual é que se
pode descobrir o processo da Verdade transcendente e encontrar um sentido
ontológico e gnoseológico para a existência humana: se nos reportarmos ao mundo
inteligível através da solução derradeira que irrompe da Graça divina, o
desconcerto desaparece e o tempo fica iliminado; a saudade e a esperança perdem
a esta luz a sua natureza empírica e temporal; a alma deixa de estar sujeita
aos efeitos da mudança e inscreve-se num plano metacronológico de plenitude
escatológica. É a partir desta solução fideísta (de matriz augustiniana e não
neoplatónica ou antineoplatónica) – que não deixa de - ser também, na Lírica
camoniana, uma solução estética, pela criação fictícia de um universo utópico
de beleza, liberdade e fé, através do canto divino de libertação e ascensão espirituais
–, que Camões se encontra para resolver as suas contradições, antinomias e
tensões nas redondilhas “Sôbolos Rios” – aliás, já aludido na primeira parte da
dissertação. É através do acto volitivo da fé, só possível com a ajuda da
Graça, que Camões se separa do mundo sensível e alcança o mundo inteligível (e
não pela simples contemplação intelectual, de matriz platónica). Como afirma Aguiar
e Silva, “nas últimas quintilhas do poema exprime-se uma visão sombriamente
pessimista e uma valoração radicalmente negativa de tudo quanto procede do mundo
visível e da carne que encanta(s), / filha de Babel tão feia, ao mesmo tempo
que se exalta, num triunfalismo furiosamente penitencial, a destruição de todo
o afecto, de todo o deleite, de todo o liame, enfim, que possa prejudicar ou
retardar o apelo e a acção da Graça. O clímax deste triunfalismo exicial por
ser salvífico, encontra-se nestes versos (...): E beato quem tomar / seus pensamentos
recentes / e em nacendo os afogar, / por não virem a parar / em vícios graves e
urgentes. / Quem com eles logo der / na pedra do furor santo, / e, batendo, os
desfizer / na Pedra, que veio a ser enfim cabeça do Canto. Estes versos
significam um sacrificium intellectus (...)”29
As redondilhas “Sôbolos Rios” são por
isso uma solução de superação da síntese de fundamentação e dinâmica
neoplatónicas (tese recebida por herança cultural e desmentida pelo mundo
empírico que o poeta experimentou) e exprimem um momento dramático que se
resolve não por obra da inteligência mas por decisão e volição do recurso à
Graça Divina. Tal como o faz para se libertar da obsessão do desconcerto do
mundo, Camões escolhe (decide) crer em Cristo para poder resolver as suas
contradições e encontrar, pela reminiscência e pela estética (poética) da
utopia, a ordem do universo num lugar pré-terreno (Paraíso perdido), de onde
foi o homem feliz. Contrapondo-se à sequência de paradoxos que atestam o
desconcerto do mundo, em termos utópicos, o poeta vai projectar o sonho da
verdadeira felicidade, em busca de um sonho apaziguador de regresso às origens.
Para isso impõe-se uma recusa desse presente histórico injusto, corrompido e
pervertido, babélico, desconcertante e sufocante, e projecta-se a esperança e o
sonho de um mundo melhor no futuro – como o retorno da primitiva Idade De
Ouro.
Daniela Barbosa
Conceição, Pregnância da(s) crise(s) na obra de Camões, Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra, 2010
_______________________
(25)
Cf. Soneto n.º 104, “Correm turvas as águas deste rio”, ibidem,
p. 108.
(26)
Cf. Soneto n.º 165, “Vós outros que buscais repouso certo”, ibidem, p.
199.
(27)
Cf. Soneto n.º 166, “Verdade, Amor, Razão, Merecimento”, ibidem, p. 199.
(28)
Ibidem, p. 199.
(29)
Cf. Vítor Manuel de Aguiar e Silva, “Amor e mundividência na lírica camoniana”,
in Camões: labirintos e fascínios, Lisboa, Cotovia, 1994, pp. 176, 177.
CARREIRO, José. “Correm
turvas as águas deste rio, Camões”. Portugal, Folha de Poesia,
10-09-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/09/correm-turvas-as-aguas-deste-rio-camoes.html