domingo, 2 de abril de 2023

Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil

 

A Carta está datada de Vera Cruz, 1 de maio de 1500, e assinada por Pêro Vaz de Caminha, escrivão da feitoria de Calecut, enviado por D. Manuel na armada de Pedro Álvares Cabral.

O manuscrito ficou três séculos depositado no arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa, tendo sido publicado apenas em 1817 por historiadores brasileiros.

Desde então, a Carta tem sido objeto de estudo, análise, interpretação e recriação por diversos autores.

Reproduzimos aqui alguns textos que se inspiraram na Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil.

- De Oswald Andrade: “Pero Vaz Caminha” (1925) e “Erro de português” (1927);

- De Cassiano Ricardo: "Ladainha" (1928);

- De Murilo Mendes: “Carta de Pero Vaz” (1932);

- De Sophia de Mello Breyner Andresen; “Descobrimento” (1967),

- De Manuel Alegre: “Nova do Achamento” (1979);

- De Fernando Bonassi: “003 turismo ecológico” (1995-2001) e “134 historinha do brasil” (1998-2001);

- De Rui Rasquilho: “Rio Caí” (1997);

- De Sérgio Natureza/Tunai e interpretado por Elis Regina: “Lembre-se” (1998);

- De Luís Filipe Castro Mendes: “Carta de Pêro Vaz de Caminha” (2000).

Reproduzimos no final a Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil e um verbete da Infopédia sobre a mesma.

 

 

PORTINARI, C. O descobrimento do Brasil. 1956
(A pintura destaca, em primeiro plano, a inquietação dos nativos.)

https://artsandculture.google.com/asset/discovery-of-the-land/bAFcq7FjSTxTdw?hl=pt-br



OSWALD ANDRADE


a descoberta

Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra

os selvagens

Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam por a mão
E depois a tomaram como espantados

primeiro chá

Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real

as meninas da gare

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha

 

Oswald Andrade, Pau-brasil, 1925.

Obras Completas. Vol 7. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971, p. 80

 

Textos de apoio sobre o poema “Pero Vaz Caminha”, de Oswald Andrade

A referência tomada por Oswald de Andrade é clara: o nome do escrivão transforma-se no título de uma das poesias de Pau-Brasil, obra em que o autor coloca em prática as ideias postuladas em seus dois manifestos, aqui citados. O livro é apresentado com os dizeres “por ocasião da descoberta do brasil”, grafado em letras minúsculas, e divide-se em alguns momentos. O que mais nos interessa é o primeiro deles, História do Brasil, composto por oito poemas. Todos eles apresentam uma relação intertextual explícita com textos quinhentistas, percetível pelos títulos que recebem. O que inicia a série é Pero Vaz Caminha. A paródia, e a consequente transcontextualização, são operadas a partir de seu nome e de suas quatro estrofes, nomeadas isoladamente.

“Caminhos da (re)exploração: A Carta em Caminha, Oswald e Bonassi”, Natasha Rocha e Vanderléia Oliveira. LETRAS & LETRAS (http://www.seer.ufu.br/index.php/letraseletras) - v. 31, n. 1 (jan/jun. 2015) - ISSN 1981-5239

***

O poema “Pero Vaz Caminha” faz parte do livro Pau-brasil, publicado em 1925 por Oswald de Andrade (1890-1954), um dos principais nomes do modernismo brasileiro. O livro propõe uma revisão da história e da cultura do Brasil, a partir de uma perspetiva crítica, irónica e antropofágica. A antropofagia, nesse sentido, é uma metáfora para a ideia de devorar e assimilar as influências estrangeiras, sem perder a originalidade e a identidade nacional.

O poema é composto por quatro partes, que reproduzem trechos da carta de Pero Vaz de Caminha, o escrivão que registrou o descobrimento do Brasil em 1500. Cada parte tem um título que resume o tema ou o acontecimento narrado. O poeta usa a técnica do recorte e da colagem, que consiste em selecionar e reorganizar fragmentos de um texto original, criando um novo sentido ou efeito. O poeta também usa a paródia, que é uma imitação cómica ou crítica de um texto ou estilo literário.

A primeira parte, “a descoberta”, apresenta o momento em que os portugueses avistam a terra pela primeira vez. O poeta mantém a linguagem arcaica e formal da carta original, mas suprime os detalhes e as explicações. O resultado é um relato sucinto e objetivo, que contrasta com o tom solene e reverente da carta.

A segunda parte, “os selvagens”, mostra o primeiro contato entre os portugueses e os indígenas. O poeta reproduz a cena em que os portugueses mostram uma galinha aos nativos, que ficam assustados e curiosos. O poeta destaca a diferença cultural e a ingenuidade dos indígenas, que não conhecem nem temem os animais domésticos dos europeus.

A terceira parte, “primeiro chá”, narra o episódio em que os portugueses oferecem uma bebida aos indígenas, provavelmente vinho ou aguardente. O poeta usa a expressão “salto real” para se referir ao efeito da bebida sobre os nativos, que ficam embriagados e dançam. O poeta ironiza a atitude dos portugueses, que se aproveitam da situação para explorar e dominar os indígenas.

A quarta parte, “as meninas da gare”, descreve a aparência física e sexual das mulheres indígenas. O poeta usa termos vulgares e eróticos para retratar o corpo das nativas, que não usam roupas nem se envergonham de sua nudez. O poeta também revela o olhar cobiçoso e lascivo dos portugueses, que não respeitam nem valorizam a cultura e a dignidade das mulheres indígenas.

O poema, portanto, faz uma crítica à colonização portuguesa no Brasil, mostrando como os portugueses se comportaram de forma violenta, exploradora e desrespeitosa com os indígenas. O poema também questiona a visão eurocêntrica e idealizada da história oficial, propondo uma leitura mais crua e realista dos fatos. O poema também expressa uma identidade brasileira híbrida e diversa, formada pela mistura de diferentes povos e culturas.

Adaptado da conversação com o https://chat.openai.com/chat, 28/03/2023

 


OSWALD DE ANDRADE


Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.

 

Oswald de Andrade, Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade, 1927.

 

Texto de apoio sobre o poema “Erro de português”, de Oswald de Andrade

O poema com o título “Erro de português”, de Oswald de Andrade, faz alusão a um facto histórico do seguinte excerto da Carta de Pero Vaz de Caminha: “Na noite seguinte, ventou tanto sueste, com chuvaceiros, que fez caçar as naus, e especialmente a capitânia”. (Registo do dia 23 de abril de 1500, relativo ao contato entre ameríndios e portugueses na época).

O título do poema, "Erro de Português", pode ser interpretado como uma crítica à visão eurocêntrica da história, que considera a chegada dos portugueses ao Brasil como um evento "correto" ou "acertado". A ideia de que os portugueses erraram o caminho das Índias e acabaram por chegar ao Brasil sugere que a colonização foi um erro ou um equívoco.

A oposição entre "vestir" e "despir" também indica a relação de poder entre os colonizadores e os colonizados, uma vez que o índio se veste para se adequar às normas do colonizador.

Ironicamente, o poeta sugere que se os portugueses tivessem chegado num dia de sol, debaixo de um calorão danado, os portugueses é que teriam imitado os índios e tirado as roupas.

A perspetiva diferente da cultura indígena apresentada no poema sugere uma crítica à visão colonialista e uma valorização da diversidade cultural.

 

 


Ladaínha
CASSIANO RICARDO


Por se tratar de uma ilha deram-lhe o nome de ilha de Vera-Cruz.

          Ilha cheia de graça
          Ilha cheia de pássaros
          Ilha cheia de luz.

          Ilha verde onde havia
          mulheres morenas e nuas
          anhangás a sonhar com histórias de luas
          e cantos bárbaros de pajés em poracés batendo os pés.

Depois mudaram-lhe o nome
          pra terra de Santa Cruz.
          Terra cheia de graça
          Terra cheia de pássaros
          Terra cheia de luz.

A grande terra girassol onde havia guerreiros de tanga e
onças ruivas deitadas à sombra das árvores mosqueadas de sol

Mas como houvesse em abundância,
certa madeira cor de sangue, cor de brasa
e como o fogo da manhã selvagem
fosse um brasido no carvão noturno da paisagem,
e como a Terra fosse de árvores vermelhas
e se houvesse mostrado assaz gentil,
deram-lhe o nome de Brasil.

          Brasil cheio de graça
          Brasil cheio de pássaros
          Brasil cheio de luz.

 

Cassiano Ricardo (1895-1974), Martim Cererê (1.ª edição: 1928).
12.ª edição: Rio de Janeiro: José Olympio Editora - INL, 1972, p. 33
.

 

Texto de apoio sobre o poema "Ladainha", de Cassiano Ricardo

O poema "Ladainha", de Cassiano Ricardo, presente no livro Martim Cererê, apresenta uma visão poética da história do Brasil a partir das diferentes denominações que a terra recebeu. Inicialmente, a ilha é apresentada como "Ilha cheia de graça / Ilha cheia de pássaros / Ilha cheia de luz", um lugar paradisíaco com mulheres morenas e nuas e cantos bárbaros de pajés. Porém, com a chegada dos colonizadores portugueses, a terra é renomeada para "Terra de Santa Cruz", mas ainda mantendo as qualidades descritas anteriormente.

No entanto, a descoberta de uma madeira cor de sangue e a gentileza da Terra levam os portugueses a dar um novo nome ao lugar: Brasil. A partir daí, o poema repete a mesma estrutura de apresentação das qualidades da terra, agora sob a nova denominação.

A escolha da forma de uma ladainha, uma forma religiosa de oração, sugere a importância histórica e simbólica do evento do descobrimento do Brasil. Além disso, a repetição das características da terra sob diferentes nomes reforça a ideia de que a identidade do país está intrinsecamente ligada às suas qualidades naturais e culturais.

Porém, é importante notar que o poema também faz referência às consequências da colonização, ao apresentar inicialmente a cultura indígena e depois a presença dos guerreiros de tanga e onças ruivas, sugerindo a destruição da cultura original pelo invasor. Ao mesmo tempo, a escolha da palavra "gentil" para descrever a Terra também sugere uma idealização do indígena, caracterizando-o como um povo pacífico e amigável, o que pode ser visto como uma forma de romantizar a colonização e minimizar as atrocidades cometidas pelos colonizadores.

Adaptado da conversação com o https://chat.openai.com/chat, 28/03/2023

  

Descobrimento do Brasil, Moesio Fiuza



Carta de Pero Vaz
MURILO MENDES


A terra é mui graciosa,
Tão fértil eu nunca vi.
A gente vai passear,
No chão espeta um caniço,
No dia seguinte nasce
Bengala de castão de oiro.
Tem goiabas, melancias,
Banana que nem chuchu.

Quanto aos bichos, tem-nos muito,
De plumagens mui vistosas.
Tem macaco até demais
Diamantes tem à vontade
Esmeralda é para os trouxas.
Reforçai, Senhor, a arca,
Cruzados não faltarão,
Vossa perna encanareis,
Salvo o devido respeito.
Ficarei muito saudoso
Se for embora daqui.

 

Murilo Mendes, História do Brasil, 1932

 

Texto de apoio sobre o poema “Carta de Pero Vaz”, de Murilo Mendes

A “Carta de Pero Vaz”, de Murilo Mendes, é um poema que retrata a chegada dos portugueses ao Brasil, através da perspectiva do escrivão Pero Vaz de Caminha, que descreve as maravilhas da nova terra na sua carta ao rei de Portugal.

O poema inicia com uma declaração de encantamento e admiração pela terra brasileira. Pero Vaz destaca a fertilidade do solo, afirmando que nunca viu uma terra tão graciosa e fértil. O poema segue com a descrição da exuberância da fauna e flora brasileiras, destacando a presença de diversas frutas como goiabas, melancias e bananas, além de uma grande variedade de animais, incluindo macacos e aves de plumagens coloridas.

A referência aos diamantes e esmeraldas no poema revela a cobiça dos portugueses pela riqueza da nova terra. A expressão “esmeralda é para os trouxas” denota a esperteza dos portugueses, que consideravam as esmeraldas de pouco valor, por serem abundantes no Brasil, enquanto os diamantes eram mais raros e valiosos.

No verso 14, o sujeito poético dirige-se ao rei de Portugal, pedindo-lhe que reforce a arca para guardar os cruzados (moedas de ouro) que não faltarão. O sujeito poético usa uma linguagem familiar e irreverente para se dirigir ao rei, ao usar a expressão “Vossa perna encanareis”, sugerindo que ele vai “encanar” (enriquecer), mas também usa uma expressão de respeito (“Salvo o devido respeito”) para atenuar sua ousadia. Com isto, o texto satiriza a submissão e a bajulação dos portugueses ao rei.

Por fim, o sujeito poético expressa a sua saudade da terra e a sua vontade de ficar nela, contrariando a expectativa de que os portugueses queriam voltar para a sua terra natal depois de cumprir a sua missão.

 Adaptado da conversação com o https://chat.openai.com/chat, 28/03/2023

 


Descobrimento
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Um oceano de músculos verdes
Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados

Atravessamos fileiras de cavalos
Que sacudiam suas crinas nos alísios

O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados

 

Sophia de Mello Breyner Andresen, “VI - Brasil ou do outro lado do mar” in Geografia, 1.ª ed., 1967, Lisboa, Edições Ática • 2.ª ed., 1972, Lisboa, Edições Ática • 3.ª ed., 1990, Lisboa, Edições Salamandra, ilustrações de Xavier Sousa Tavares • 4.ª ed., revista, 2004, Lisboa, Editorial Caminho. • 1.ª edição na Assírio & Alvim (5.ª ed.), Lisboa, 2014, prefácio de Frederico Lourenço

 

Texto de apoio sobre o poema “Descobrimento”, de Sophia de Mello Breyner Andresen

O poema “Descobrimento”, de Sophia de Mello Breyner Andresen, é uma reflexão sobre a chegada dos portugueses ao Brasil em 1500.

O poema é composto por três estrofes e descreve a viagem dos portugueses pelo oceano Atlântico e sua chegada ao Brasil.

A imagem inicial de "um oceano de músculos verdes" e um "ídolo de muitos braços como um polvo" sugerem um ambiente selvagem, caótico e desconhecido. A descrição do "caos incorruptível que irrompe" reforça a ideia de uma natureza indomada, mas que ao mesmo tempo é capaz de um "tumulto ordenado", uma dança contorcida em volta dos navios.

Atravessando fileiras de cavalos que sacudiam suas crinas nos alísios, os navegadores deparam-se com um mar que se torna "muito novo e muito antigo" para mostrar as praias e um povo de “homens recém-criados ainda cor de barro / ainda nus ainda deslumbrados”. A imagem de homens recém-criados é uma metáfora para o momento em que a cultura europeia entrou em contacto com novos povos, ainda não moldados pelas influências da civilização ocidental.

"Descobrimento" é um poema que evoca a ambiguidade e a complexidade da experiência da descoberta, ao mesmo tempo em que celebra a beleza e a majestade da natureza.

 Adaptado da conversação com o https://chat.openai.com/chat, 28/03/2023

 




Nova do Achamento
MANUEL ALEGRE


(Quarta-feira, 22 de abril)

Sabei porém que foi um sobressalto
E tremo ainda ao pô-lo no papel.
Vimos primeiro um monte muito alto
E outras serras mais baixas ao sul dele.

Vimos depois as serras terra chã
Muito formosa e cheia de arvoredos.
Era a luz a surgir de seus segredos
E em nós embora tarde era manhã.

Nem sei dizer Senhor o espanto e os medos.

Achar Senhor é pão que mata a fome
Da ânsia de mais mundo e de mais luz.
E ao monte grande o Capitão pôs nome
De Pascoal. E à terra de Vera Cruz.

Manuel Alegre, Nova do Achamento (Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel). Lisboa, Publicações Europa-América, [1979]

 

Texto de apoio sobre o poema “Nova do Achamento”, de Manuel Alegre

O poema "Nova do Achamento", de Manuel Alegre, é uma reinterpretação lírica da Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel, que relata a descoberta do Brasil em 1500. O poema é escrito na primeira pessoa e o eu lírico é Pêro Vaz de Caminha. “O verso decassílabo sustenta o tom épico, assim como a manutenção da divisão em diário.” (Ribeiro: 2002)

A primeira estrofe descreve a vista do monte e das serras ao sul, e a segunda estrofe destaca a beleza da terra com suas árvores e a luz que surge dos seus segredos. A terceira estrofe evoca a emoção e o medo dos navegadores diante do desconhecido, e a última estrofe menciona o batismo do monte como Pascoal e da terra como Vera Cruz.

O poema de Manuel Alegre apresenta uma visão idealizada e poética da chegada dos portugueses ao Brasil, que contrasta com a visão histórica da colonização como um processo de exploração e dominação. Por exemplo, na segunda estrofe do poema, o autor descreve a beleza da terra com suas árvores e a luz que surge dos seus segredos, o que sugere uma visão bucólica e poética dos primeiros contatos entre portugueses e indígenas. Essa descrição idealizada contrasta com a realidade histórica de que a chegada dos portugueses ao Brasil foi marcada por conflitos e violência contra os povos indígenas. Além disso, a simplicidade da linguagem utilizada no poema, sem muitos elementos de figuras de linguagem e com predominância de palavras simples, também sugere uma visão mais ingénua e idealizada dos primeiros contatos entre portugueses e indígenas. A descrição dos medos e espantos dos navegadores diante do desconhecido, presente na terceira estrofe, também evoca uma visão mais romântica e sentimental da chegada dos portugueses ao Brasil.

No entanto, essa visão idealizada é desafiada pela última estrofe, que menciona o ato de batismo do monte e da terra pelos portugueses. Essa referência sugere que a chegada dos portugueses ao Brasil também implicou na imposição da sua cultura e da sua religião sobre os povos indígenas, o que cria um contraponto à visão poética e bucólica apresentada anteriormente.

 Adaptado da conversação com o https://chat.openai.com/chat, 28/03/2023

 




003 turismo ecológico
FERNANDO BONASSI


 

Os missionários chegaram e cobriram das selvagens o que lhes dava vergonha. Depois as fizeram decorar a ave-maria. Então lhes ensinaram bons modos, a manter a higiene e lhes arranjaram empregos nos hotéis da floresta, onde se chega de uísque em punho. Haveria uma lógica humanitária exemplar no negócio, não fosse o fato de as índias começarem a deitar-se com os hóspedes. Nada faz com que mudem. Seus maridos, chapados demais, não sentem os cornos. De qualquer maneira, todos levam o seu. Só mesmo esse Deus civilizador é quem parece ter perdido outra chance. (Cuiabá – Brasil – 1995)

Fernando Bonassi, Passaporte: relatos de viagens. São Paulo: Cosac Naify, 2001

 

Texto de apoio sobre a minificção “003 turismo ecológico”, de Fernando Bonassi

O que acontece nas minificções de Passaporte, de Fernando Bonassi, é um misto de uma releitura embebida do mal-estar da contemporaneidade e alusões ao texto do escrivão português.

Percebe-se que algumas figuras e expressões reaparecem nesse texto. Uma delas, por meio da qual a intertextualidade mais explícita com a Carta ocorre é, novamente, a retomada do termo vergonha, presente logo no início do texto. A partir do segundo período da minificção percebe-se um rompimento temporal. O contexto de missão exploratória deixa de ser o quinhentista e passa a ser o atual, já que as índias, uma vez doutrinadas por outros valores são realocadas em empregos comuns – e aqui já não é possível afirmar que são valores de um colonizador, pois o espaço-tempo foi atualizado. […]

Ao contrapor as visões do sagrado em turismo ecológico e na Carta percebe-se uma grande alteração de tratamento. O tom respeitoso desenvolvido no texto quinhentista para falar da religião é completamente abandonado no texto de Fernando Bonassi. A intertextualidade entre esses elementos é temática, mas não só pela retomada dos termos textuais. A atualização ocorre pela evidência do fracasso da figura divina como força doutrinante. Se a missão quanto aos índios era catequizá-los, fazê-los cristãos crentes na santa fé católica e “cuidar da sua salvação”, como queria Pero Vaz, para fazer dos indígenas uma população civilizada, sucursal europeia, seu fracasso foi registrado no texto de Passaporte. Asseverar que “Só mesmo esse Deus civilizador é quem parece ter perdido outra chance” (BONASSI, 2001, n.p.) corresponde a afirmar que todo projeto empreendido a salvar o outro daquilo que se julga pecado, baixeza ou selvageria está fadado ao fracasso. Principalmente quando a ferramenta utilizada para fazê-lo são as instituições religiosas.

Caminhos da (re)exploração: A Carta em Caminha, Oswald e Bonassi”, Natasha Rocha e Vanderléia Oliveira. LETRAS & LETRAS (http://www.seer.ufu.br/index.php/letraseletras) - v. 31, n. 1 (jan/jun. 2015) - ISSN 1981-5239

 

J. Bosco



134 historinha do brasil
FERNANDO BONASSI


Três caravelas lotadas de badulaques partem de uma Europa recém-saída de mais uma escuridão e ávida por molho pardo condimentado. Um povo americano de sangue bom demais vai à praia com as vergonhas de fora. Os marujos chupam limão, apesar dos dentes podres. Os ameríndios procuram no além-mar outros paraísos que os confortem, apesar da superprodução de bananas. Do encontro desses esfuziantes destroços, nascem minúsculas povoações cheias de ideias, academias e três refeições por dia, cercadas de fome e burrice por todos os lados. (Belém- Portugal- 1998)

Fernando Bonassi, Passaporte: relatos de viagens. São Paulo: Cosac Naify, 2001

 

Texto de apoio sobre a minificção “134 historinha do brasil”, de Fernando Bonassi

O texto de Bonassi começa pelas três caravelas, elementos identificadores inequívocos e quase caricatos da expedição portuguesa do descobrimento do Brasil. A seguir, os aspectos elementares cedem lugar a dados históricos permeados por crítica ferina. Os “badulaques” não eram senão bugigangas destinadas a impressionar os selvagens de uma terra distante, expondo um jogo onde contavam a esperteza do conquistador e a ingenuidade do conquistado, como se percebe adiante em “um povo americano de sangue bom demais”.

Os civilizados europeus são reduzidos, em poucas palavras, a representantes de uma cultura de valores duvidosos, posto que “recém-saída de mais uma escuridão” e, sobretudo, nem ao menos autossuficientes, pois é sabido que partiram para as Índias em busca de fornecedores de alimentos e especiarias, uma vez que a Europa vivia um período de fome àquela época. Nesse relato, os europeus(encantados com as frutas tropicais, como o limão), nada têm a ver com a beleza europeia (branca e de olhos azuis) dos filmes hollywoodianos ou do imaginário brasileiro, mas são descritos como marujos de dentes podres, uma forma descritiva bastante realista a respeito da colonização do território brasileiro, iniciada por dois portugueses degredados deixados com os índios para aprender-lhes a língua, além de dois grumetes que fugiram da frota cabralina que seguiria para as Índias (SILVA, 2004, p. 14).

A cultura indígena também recebe críticas, pois embora não estivessem em expedição à procura de novos mercados fornecedores de alimentos, os indígenas possuíam em sua cultura aspectos facilitadores do fatídico contato com os europeus, como crenças que profetizavam a chegada de deuses barbudos vindos do mar destinados a governar todas as tribos. Este cenário antropológico, ironicamente denominado “esfuziantes destroços”, resultaria, na visão do autor, num encontro cultural capaz de dar início a novas formas de pensamento e comportamento legitimadores de uma estrutura social alimentada “de fome e burrice por todos os lados” subjacente à história da sociedade brasileira.

A presença do realismo na literatura de viagem brasileira contemporânea: Realismo e pós-modernidade na obra Passaporte, de Fernando Bonassi, Carlos Cristiano de Oliveira. Universidade de Brasília - Instituto de Letras, 2013

 

Cartoon de Laerte



Rio Caí
RUI RASQUILHO


 

Encontrada a terra
Na coincidência da Páscoa
Caminha olhou da grande nau
A praia
E escreveu ao Rei

Nu
O dono da terra
Olhou o branco marítimo
Trazido pelo vento

A praia clareava a floresta
Junto do mar
Enfeitada de penas e flechas

De espadas

No vermelho branco do encontro
A surpresa não teve fingimento
Na vertigem do silêncio da palavra

O Rei
Leu a carta de Caminha
E ordenou a invenção da história
Como se nada fosse o que era

 

Rui Rasquilho, 25 Poemas brasileiros e uma saga lusitana. Brasília, DF: Thesaurus, 1997

 

Texto de apoio sobre o poema “Rio Caí”, de Rui Rasquilho

Rui Rasquilho é um poeta, historiador e diplomata português, nascido em 1945. Ele escreveu 25 Poemas brasileiros e uma saga lusitana em 1997, quando era diretor do Instituto Camões no Brasil. O poema Rio Caí faz parte dessa obra e é uma reflexão sobre o encontro entre os portugueses e os indígenas na costa brasileira em 1500.

O título do poema é uma referência ao Rio Cahy, cujo nome é uma palavra de origem indígena. A palavra “Cahy” provém do tupi-guarani e significa “caminho do rio”.

“Os rios são um estímulo à colonização de uma região, pois a água é fundamental para a sobrevivência. O Rio Caí, portanto, teve influência decisiva no movimento migratório para área de abrangência de sua bacia. De forma parcial ou total, 42 municípios da região da Serra e do Vale do Caí utilizam suas águas.” (https://jornalibia.com.br/cadernos/especiais/rio-cai-e-cenario-de-muitas-e-boas-historias-na-regiao/)

Logo no início do poema, é evocada a figura de Caminha, o cronista da expedição portuguesa que chegou ao Brasil em 1500. A referência à coincidência da Páscoa indica que a chegada dos portugueses foi vista como um evento sagrado e providencial, que marcou o início de uma nova fase na história do país.

De seguida, o poema evoca a figura do "dono da terra", o índio que observou “o branco marítimo /trazido pelo vento”.

A descrição da praia enfeitada de "penas e flechas / De espadas" sugere uma tensão entre os povos indígenas e os colonizadores, que acabaria por marcar a história do Brasil por séculos. A referência ao "vermelho branco do encontro" sugere a ideia de que a chegada dos portugueses trouxe consigo uma mistura de culturas e sangue. A "vertigem do silêncio da palavra" pode ser vista como uma referência à complexidade e à ambiguidade das relações coloniais, em que o entendimento mútuo era difícil ou mesmo impossível.

Por fim, o poema sugere que a história do Brasil foi "ordenada" ou inventada de acordo com os interesses dos colonizadores, de forma a legitimar a exploração e a dominação dos povos indígenas. A frase "Como se nada fosse o que era" sugere a ideia de que a história oficial pode esconder ou distorcer a verdade dos factos, criando uma realidade que não corresponde totalmente à experiência dos povos que a viveram.

Adaptado da conversação com o https://chat.openai.com/chat, 28/03/2023

 

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Praia_da_Barra_do_Cahy


 


LEMBRE-SE
Elis Regina / Sérgio Natureza / Tunai


Longe...
Sombras desenhadas no horizonte
Cavalos cobertos de ouro e bronze
Vassalos de um rei de não sei onde
Cavaleiros estrangeiros
A bandeira de um invasor

Noite...
E um tropel atravessa a fumaça

Tropas...
Tropeçando num céu de fogo e prata
O mundo acabou de repente,
Quando a manhã começava
A dor começou
Com o chicote, com as esporas, com as espadas
Terror das legiões
Das ambições e praças
Chagas no seio de uma terra abençoada
O céu desabou
De repente, quando a gente levantava
O pó levantou, sufocando quem vivia, respirava

Passou...
O tempo, mas não apagou a marca

Marcou...
Marcou nos corações, nas mentes e nas praças

Hoje...
Na memória viva de uma raça
Um pavor latente
Uma ameaça
E um canto maior que todo o medo
Espalhando amor por onde passa.

Elis Regina, Elis vive, WEA International Inc., 1998.
Composto por Sérgio Natureza / Tunai.
O álbum Elis Vive é o registo ao vivo do concerto que a artista fez no Anhembi, em 1979, dentro da turné Elis, Essa Mulher.

 



Texto de apoio sobre a canção “Lembre-se”, de Sérgio Natureza / Tunai e interpretada por Elis Regina

A canção "Lembre-se", interpretada por Elis Regina, é uma reflexão sobre as consequências da invasão e colonização em terras abençoadas e o sofrimento das pessoas que viveram essa história. Escrita por Sérgio Natureza e Tunai, a música apresenta uma narrativa sombria, marcada por imagens de cavaleiros estrangeiros, tropas e um céu de fogo e prata. A letra sugere um mundo que acabou repentinamente e deixou para trás marcas profundas.

A canção foi gravada ao vivo, em 1979, durante o período da ditadura militar no Brasil, e pode ser vista como uma forma de resistência e de valorização das raízes nacionais. Assim, a canção enfatiza a importância da memória, do amor e da resistência como forma de enfrentar o medo e a opressão.

Há diversas imagens que remetem para a história do Brasil. Por exemplo:

- as “sombras desenhadas no horizonte” podem representar os navios portugueses chegando ao litoral brasileiro;

- os “cavalos cobertos de ouro e bronze” podem simbolizar a riqueza e o poder dos colonizadores;

- o “tropel atravessa a fumaça” pode sugerir a violência e a destruição causadas pela invasão;

- o “céu de fogo e prata” pode aludir às armas e às riquezas exploradas pelos portugueses;

- o “chicote”, as “esporas” e as “espadas” podem evocar a opressão e a escravidão dos indígenas e dos africanos;

- o “pó levantou sufocando quem vivia” pode indicar a morte e o sofrimento dos nativos;

- a “marca” que não se apagou pode se referir à herança cultural deixada pelos colonizadores;

- o “pavor latente” pode expressar o medo de novas invasões ou ditaduras;

- e o “canto maior que todo medo” pode significar a esperança e a resistência do povo brasileiro.



Parque Xcaret, Cancún - México



Carta de Pêro Vaz de Caminha
LUÍS FILIPE CASTRO MENDES


É equívoca a ternura. Demasiados gestos
Para uma só palavra.
E agora que será de nós? Ficar aqui?

Esta terra contém água em demasia.
Prefiro a inteireza da pedra. Mas que podemos nós
fazer
Quando as palavras sobram
E o amor acontece?

Luís Filipe Castro Mendes, Revista Camões n.º 8, 2000.  Disponível em:  
http://cvc.instituto-camoes.pt/conhecer/biblioteca-digital-camoes/explorar-por-autor/1406-1406/file.html

 

Texto de apoio sobre o poema “Carta de Pêro Vaz de Caminha”, de Luís Filipe Castro Mendes

O poema "Carta de Pêro Vaz de Caminha", de Luís Filipe Castro Mendes, apresenta uma abordagem interessante da história do descobrimento do Brasil e, mais especificamente, da figura de Pêro Vaz de Caminha, que escreveu a famosa carta relatando a chegada dos portugueses ao novo continente. O poema, no entanto, não é uma mera reinterpretação histórica, mas uma reflexão poética sobre a natureza da ternura, do amor e da linguagem.

O poema começa com uma observação intrigante sobre a "equívoca ternura", que é representada como algo que se desdobra em demasiados gestos para uma só palavra. Essa ambiguidade parece ser uma metáfora para a complexidade das relações humanas e a dificuldade de expressar os sentimentos de forma clara e concisa. A partir daí, o poema passa a questionar o destino dos personagens históricos envolvidos na descoberta do Brasil e a relação deles com a terra recém-descoberta.

O poema aborda a questão da água em excesso na nova terra, que é apresentada como uma característica que perturba a integridade e a estabilidade da pedra. A escolha da pedra como contraposição à água sugere uma busca por algo sólido e permanente, em oposição à fluidez e à incerteza que a água representa. Essa tensão entre o sólido e o fluido, o estável e o mutável, é uma das principais temáticas do poema.

Por fim, o poema chega a uma conclusão que é ao mesmo tempo desafiadora e esperançosa. As palavras, que anteriormente pareciam sobrar, são apresentadas como o meio através do qual o amor acontece. Esse final sugere que, apesar da dificuldade de expressar a ternura e a complexidade das relações humanas, é através da linguagem que podemos encontrar algum sentido e significado para nossas experiências.

Adaptado da conversação com o https://chat.openai.com/chat, 28/03/2023

 

https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4185836



Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil
PÊRO VAZ DE CAMINHA


    Senhor:

Posto que o capitão desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que nesta navegação agora se achou, não deixarei também de dar minha conta disso a Vossa Alteza, o melhor que eu puder, ainda que – para o bem contar e falar – o saiba fazer pior que todos.

Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para alindar nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.

Da marinhagem[1] e singraduras[2] do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo:

A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e as nove horas, nos achámos entre as Canárias, mais perto da Grã-Canária, onde andámos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de São Nicolau, segundo o dito de Pêro Escolar, piloto.

Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais!

[Terça-feira, 21 de abril de 1500. Sinais de terra]

E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo[3], até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa[4], que foram 21 dias de abril, estando da dita ilha obra de seiscentas e sessenta ou seiscentas e setenta léguas, segundo os pilotos diziam, topámos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho[5], assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno[6]. [Quarta-feira, 22 de abril] E, quarta-feira seguinte, pela manhã topámos aves a que chamam fura-buxos[7].

Neste dia, a horas de véspera[8], houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o MONTE PASCOAL – e à terra – a TERRA DA VERA CRUZ.

[Quinta-feira, 23 de abril]

Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças[9], e, ao sol-posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras[10], em dezanove braças – ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezassete, dezasseis, quinze, catorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançámos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais ou menos.

Dali avistámos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.

Então lançámos fora os batéis e esquifes[11]; e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor, onde falaram entre si. E o capitão- -mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que[12] ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens.

Eram pardos[13], todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas[14]. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijamente[15] sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.

Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Deu-lhes somente um barrete[16] vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro[17] preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal[18] grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira[19], as quais peças creio que o capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.

[Sexta-feira, 24 de abril]

Na noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus[20], e especialmente a capitânia.

E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada[21] e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos[22].

Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo[23], e mandou o capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.

E, velejando nós pela costa, acharam os ditos navios pequenos, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro, um recife[24] com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram[25]. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol-posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.

E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia[26]. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.

A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andavam nus, sem cobertura alguma[27]. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos[28] e verdadeiros, do comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez[29], ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.

Os cabelos seus são corredios[30]. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa[31], de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera[32] (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.

O capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro[33]. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata.

Mostraram-lhes um papagaio pardo que o capitão traz consigo; tomaram-no na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.

Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, fartéis[34], mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e se alguma coisa provavam, logo a lançavam fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes água em uma albarrada[35]. Não beberam. Mal a tomarem na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.

Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.

Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.

Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas[36], e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins[37], e o da cabeleira esforçava- se por a não quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.

[Sábado, 25 de abril]

Ao sábado pela manhã mandou o capitão fazer vela, e fomos demandar[38] a entrada, qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças – ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do capitão-mor. E daqui mandou o capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram os braços, seus cascavéis[39] e suas campainhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras[40]. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.

Fomos assim de frecha[41] direitos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram muito. E mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperava um pelo outro, mas antes corriam a quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga[42], e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo tornaram a nós; e com eles vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.

Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água e tomavam alguns barris que nós levávamos; enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todo chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas[43]. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-nos aqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linhos ou por qualquer coisa que homem[44] lhes queria dar.

Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos mais.

Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha[45]; outros traziam três daqueles bicos a saber, um no meio e os dois nos cabos[46]. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques[47]. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.

Ali por então não houve mais fala nem entendimento com eles, por a berberia[48] deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém.

Acenámos-lhes que se fossem; assim o fizeram e passaram além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis e encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e tornámo-nos às naus. Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos. Tornámos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de lhe tirar coisa alguma, antes o mandaram com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele tornou e o deu, à vista de nós, àquele que da primeira vez o agasalhara. Logo voltou e nós trouxemo-lo.  

Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por louçainha[49] todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado[50] como S. Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todo assim, como nós. E com isto nos tornámos e eles foram-se.

À tarde saiu o capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os outros capitães das naus em batéis a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o capitão o não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu – ele com todos nós – em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar fica mui vazio. Porém é por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns marinheiros, que ali andavam com um chinchorro[51], pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos às naus já bem de noite.

[Domingo, 26 de abril]

Ao domingo de Pascoela, pela manhã, determinou o capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperavel[52], e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre Frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.

Ali era com o capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho.

Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção.

Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram[53] corno ou buzina e começaram a saltar e a dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias – duas ou três que aí tinham –, as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé.

Acabada a pregação, voltou o capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcámos e tomos todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo, na dianteira, por ordem do capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhe o mar levara, para lho dar; e nós todos, obra de tiro de pedra[54], atrás dele.

Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não.

Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que assim os andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e o estômago eram de sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais vermelha.

Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em terra.

Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao capitão; e viemo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram.

Neste ilhéu onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto. Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um tão grande e tão grosso como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.

E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do capitão-mor, com os quais ele se apartou[55], e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa viagem.

E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros destes degredados.

Sobre isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar. E que portanto não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.

E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado.

Acabado isto, disse o capitão que fôssemos nos batéis em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e também para folgarmos.

Fomos todos nos batéis em terra, armados e a bandeira connosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenavam que saíssemos. Mas tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um jogo de mancal[56]. E mal desembarcámos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes davam.

Passaram além tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima onde outros estavam.

Então o capitão fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio, e fez tornar a todos.

A gente que ali estava não seria mais que a costumada. E tanto que o capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns daqueles, não porque o conhecessem por senhor, pois me parece que não entendem, nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passara já para aquém do rio.

Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas.

Então tornou-se o capitão aquém do rio, e logo acudiram muitos à beira dele.

Ali veríeis[57] galantes pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam bem assim.

Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia vergonha alguma.

Também andava aí outra mulher moça, com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum.

Depois andou o capitão para cima ao longo do rio, que corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho, que trazia na mão uma pá de almadia. Falava, enquanto o capitão esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós quantas lhe demandávamos acerca de ouro, que nós desejávamos saber se na terra havia.

Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora esse buraco. O capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela direto ao capitão, para lha meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um pouco; e então enfadou-se o capitão e deixou-o, e um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa, mas por amostra. Depois houve-a o capitão, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar a Vossa Alteza.

Andámos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não mui altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.

Então tornou-se o capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado.

Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real[58], de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza[59] como de animais monteses, e foram-se para cima.

E então o capitão passou o rio com todos nós outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada[60] por cima e sai a água por muitos lugares.

E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia.

Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão que para a outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro[61]. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar.

O capitão, ao velho, com quem falou, deu uma carapuça vermelha. E com toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que se apartou e começou de passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar de lá para aquém.

Os outros dois, que o capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram – do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isto andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias[62] monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos, que não pode mais ser.

Isto me fez presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos casa alguma ou maneira delas.

Mandou o capitão àquele degredado Afonso Ribeiro que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mais à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes – disse ele – que um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Douro e Minho.

E assim nos tornámos às naus, já quase noite, a dormir.

[Segunda-feira, 27 de abril]

À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos com as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se connosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha vermelha ou qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muito estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, segundo creio, o capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza.

E, segundo diziam esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados; outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armal[63], e todos com os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos.

Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagados entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.

Todos andam rapados até cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e pestanas.

Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas da tintura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois dedos.

E o capitão mandou àquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem lá andar entre eles, e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo[64], com que eles folgavam. Aos degredados mandou que lá ficassem esta noite.

Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas numa só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios[65]; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo e outra no outro.

Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame[66] e outras sementes, que na terra há e eles comem. Mas, quando se fez tarde, fizeram-nos logo tornar a todos e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles.

Resgataram lá por cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos[67] e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o capitão vo-los há de mandar, segundo ele disse.

E com isto vieram; e nós tornámo-nos às naus.

[Terça-feira, 28 de abril]

À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa.

Estavam na praia, quando chegámos, obra de sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegámos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto connosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer.

Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou.

Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a cruz, porque eles não têm coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas com cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá.

Era já a conversação deles connosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.

O capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia (e a outras, se houvessem novas delas) e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram.

Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos, somente algumas pombas seixas[68], e pareceram-me bastante maiores que as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!

Cerca da noite nos volvemos para as naus com nossa lenha.

Eu, creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que – eu creio – o capitão a Ela[69] há de enviar.

[Quarta-feira, 29 de abril]

À quarta-feira não fomos em terra, porque o capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos.

Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico branco e os rabos curtos.

Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos[70] e homens de prol[71]. Mandou-os essa noite mui bem pensar e tratar. Comeram toda a vianda[72] que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e folgaram aquela noite.

E assim não houve mais este dia que para escrever seja.

[Quinta-feira, 30 de abril]

À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E, por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão[73] cozido, frio e arroz.

Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.

Acabado o comer, metemo-nos no batel e eles connosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco-montês[74], bem revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta[75] para cima. E vinha tão contente com ela, como se tivera uma grande joia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí.

Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam este dia à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinquenta.

Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam connosco do que lhes dávamos. Bebiam, alguns deles, vinho; outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem[76], o beberão de boa vontade.

Andavam todos tão dispostos, tão bem feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis.

Andavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós andávamos entre eles.

Foi o capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água, que a nosso parecer era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomámos água.

Ali ficámos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas prumagens[77], que homem as não pode contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos[78].

Quando saímos do batel, disse o capitão que seria bom irmos direitos à cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos em joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la.

Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.

E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar, aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E, imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa.

Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim.

Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.

Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.

Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira que, se a gente todos quisera convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta noite às naus, senão quatro ou cinco, a saber; o capitão-mor, dois; Simão de Miranda, um, que trazia já por pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem.

Um dos que o capitão trouxe era um dos hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegámos, o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.

[Sexta-feira, 1 de maio]

E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar[79] a cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar.

Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de procissão.

Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passámos o rio, ao longo da praia, e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta[80]. Andando ali nisto, vieram bem cento e cinquenta ou mais.

Chantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o Padre Frei Henrique[81], a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram connosco a ela obra de cinquenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós.

E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram connosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantados, e em tal maneira sossegados, que certifico a Vossa Alteza nos fez muita devoção.

Estiveram assim connosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o capitão com alguns de nós outros.

Algum deles, por o sol ser grande[82], quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinquenta ou cinquenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomámos.

Acabada a missa tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva[83], e assim se subiu junto com o altar, em uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos[84], cujo é o dia, tratando, ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a devoção.

Esses, que estiveram sempre à pregação, quedaram-se como nós olhando para ele. E aquilo, que digo, chamava alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda[85], houveram por bem que se lançasse uma ao pescoço de cada um. Pelo que o padre Frei Henrique se assentou ao pé da cruz e ali, a um por um, lançava a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinquenta.

Isto acabado – era já bem uma hora depois do meio-dia – viemos a comer às naus, trazendo o capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o Céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca[86] e ao outro uma camisa destoutras[87].

E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm[88]. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre mais devagar ande, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram ambos.

Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.

Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação.

Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer.

Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui partida.

Esta terra, Senhor, me parece que da ponta mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras[89], delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão arvoredos, que nos parecia muito longa.

Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.

Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.

Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.

E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecut, isso bastaria. Quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.

E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer mo fez pôr assim pelo miúdo.

E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer graça especial, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro[90] – o que d'Ela receberei em muita mercê.

Beijo as mãos de Vossa Alteza.

Deste Porto Seguro, da vossa ilha da Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

PÊRO VAZ DE CAMINHA

Documento original depositado na Torre do Tombo, Gavetas, Gav. 15, mç. 8, n.º 2

 

Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, estudo introdutório e notas de Maria Paula Caetano e Neves Águas. Mem-Martins: Publicações Europa-América, s/d

 



[1] Marinhagem: arte de navegar; faina de bordo.

[2] Singradura: navegação diária (de 24 horas) realizada por navio à vela, e geralmente contada entre o meio-dia de dois dias seguidos.

[3] De longo: movimento progressivo e retilíneo em relação a um ponto determinado. (Jaime Cortesão, A Carta de Pêro Vaz de Caminha)

[4] Oitavas de Páscoa: oito dias depois da Festa da Páscoa, que terminam no chamado Domingo de Pascoela.

[5] Botelho: espécie de alga, também chamada “sargaço”.

[6] Rabo-de-asno: supõe-se que seja uma planta medicinal usada para bloquear a hemorragia nasal.

[7] Fura-buxos: aves aquáticas da família dos procelarídeos.

[8] Horas de véspera: hora canónica em que se rezava a oração da tarde, entre as 15h e o pôr do sol.

[9] Braça: medida equivalente a cerca de 2,20 m.

[10] Surgir âncoras: lançar as âncoras.

[11] Esquifes: pequenas embarcações transportadas nas naus, utilizadas para salvamento em caso de naufrágio ou como transporte para terra.

[12] Tanto que: assim que.

[13] Pardo: cor entre o branco e o preto.

[14] Vergonhas: de emprego habitual nos séc. XV e XVI para denominar as partes pudentas.

[15] Rijamente: decididamente.

[16] Barrete: carapuça.

[17] Sombreiro: chapéu de abas largas.

[18] Ramal: colar.

[19] Aljaveira: pensa-se serem sementes deste tipo de planta (aljaveira) ou moluscos dos mares tropicais.

[20] Caçar as naus: sair a nau do seu rumo por ação do vento, maré ou qualquer outro imprevisto da natureza.

[21] Abrigada: Sítio abrigado das intempéries.

[22] Nos acertarmos: Nos orientarmos.

[23] Fomos de longo: Navegámos ao longo de.

[24] Recife: Rochedo, que corresponde ao atual topónimo Coroa Vermelha.

[25] Amainaram: Recolheram as velas e pararam o barco.

[26] Almadia: Embarcação comprida e estreita usada pelos indígenas.

[27] Bons rostos […] sem cobertura alguma: Esta perfeição física dos indígenas teria impressionado bastante quem com eles lidou nestes primeiros anos de contacto. Assim, a sua nudez demonstraria a sua inocência, pois, como não tinham sido corrompidos pela civilização, eram naturalmente bons, tal como Deus os tinha criado, vivendo ainda no seio de uma natureza sã e acolhedora. Estavam, então, isentos do pecado, e aguardavam apenas que até eles fosse levada a palavra de Deus para que se tornassem bons cristãos. Pelo menos era o que se pensava. (M. Viegas Guerreiro, Carta a El-Rei D. Manuel sobre o Achamento do Brasil).

[28] Ossos brancos: Adorno de ponta fina que se prolongava para fora dos lábios e com uma base larga a segurar. «[…] ainda hoje o usam os índios do Brasil, que, por isso, se designam Botocudos. Outras populações do globo se enfeitam com ele, como os Macondes de Moçambique e de Tanganhica, mas estes introduzem-no no lábio superior.» (M. Viegas Guerreiro, op. cit.)

[29] Roque de xadrez: Nome dado às quatro torres do xadrez.

[30] Corredios: Lisos.

[31] Solapa: Modo de os indígenas usarem os cabelos, parte caindo sobre a testa e parte sobre o resto do crânio, que era rapado.

[32] Como cera: Segundo Jaime Cortesão (op. cit.), «esta cera era 'almácega', ou seja, a resina da 'pistácia lentisco'... Como essa goma era branda e a cabeleira de penas muito basta e unida, podia facilmente levantar-se ou separar-se dos cabelos, sem lavagem».

[33] Ali havia ouro: Pelo menos foi o que os portugueses quiseram entender pelos gestos dos índios.

[34] Fartéis: Bolos de açúcar e amêndoas envoltos em capa de farinha e trigo.

[35] Albarrada: Vasilha própria para beber água e vinho.

[36] Fanadas: Circuncisadas.

[37] Coxins: Almofadas que servem também de assento.

[38] Demandar: Procurar.

[39] Cascavéis: Guizos.

[40] Saber do seu viver e maneiras: Era costume irem condenados à morte integrados nas armadas. Eram ainda enviados pelos soberanos para que desempenhassem as missões mais arriscadas e para realizarem os primeiros contactos com os nativos, chegando a ficar entre eles para aí aprenderem a língua e colherem informações, que seriam de grande utilidade aquando da chegada de outras frotas. Assim aconteceu com estes dois condenados à morte que acompanhavam a frota de Cabral.

[41] De frecha: Rapidamente.

[42] Braga: Coxa.

[43] Manilhas: Argolas de metal usadas nos braços ou nas pernas, como adorno.

[44] Homem: Pronome indefinido corrente no século XVI, significando “alguém” ou “qualquer pessoa”.

[45] Espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha: Pequenos recipientes de couro, para vinho, sendo a tampa de pau chamada “de espelho”.

[46] Cabos: Extremidades.

[47] Escaques: Quadrados como os do tabuleiro de xadrez.

[48] Berberia: Barbárie.

[49] Louçainha: Vaidade.

[50] Asseteado: Trespassado por setas.

[51] Chinchorro: Rede de arrastar.

[52] Esperavel: Espécie de dossel ou pálio fixo.

[53] Tangeram: Tocaram.

[54] Tiro de pedra: Alcance dum projétil lançado pela peça de artilharia chamada “pedreiro”, que se pode calcular em cerca de 450 m.

[55] Apartou: Afastou.

[56] Jogo de mancal: Bordão curto, ferrado nas pontas, usado no jogo da malha.

[57] Ali veríeis: Este seria um modo muito usado de iniciar descrições, ao qual Pêro Vaz de Caminha deveria estar muito habituado.

[58] Salto real: Salto mortal.

[59] Esquiveza: Desconfiança.

[60] Apaulada: Pantanosa.

[61] Cevadoiro: Isca usada para atrair e caçar aves.

[62] AIimárias: Animais irracionais (selvagens).

[63] Panos de armar: Tapeçarias.

[64] Ledo: Alegre.

[65] Esteios: Escoras; varas; peças de madeira com que se sustém algo.

[66] Inhame: Tubérculos comestíveis, da família das Discoreáceas.

[67] Papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos: Araras, segundo Jaime Cortesão.

[68] Pombas seixas: Pombas bravas.

[69] Ela: D. Manuel, Vossa Alteza. Passa-se aqui da segunda para a terceira pessoa, como forma de acentuar a distância e subordinação.

[70] Dispostos: Graciosos.

[71] Homens de prol: Homens nobres, dos principais.

[72] Vianda: Qualquer coisa de alimento.

[73] Lacão: Presunto.

[74] Armadura de porco-montês: Presa de javali.

[75] Revolta: Voltada.

[76] Avezarem: Acostumassem.

[77] Prumagens: Talvez “folhagem”.

[78] Palmitos: Miolo comestível do fruto da palmeira.

[79] Chantar: Fincar no chão.

[80] Tiros de besta: Nos séculos XV e XVI era esta medida usual da distância, correspondente, possivelmente, a cerca de 140 m ou 150 m, que as setas de uma besta vulgar de peão conseguiam alcançar.

[81] Frei Henrique Soares, de Coimbra, que ia a Calecute como guardião dos oito frades da Ordem de S. Francisco que integravam a armada de Pedro Álvares Cabral.

[82] Por o sol ser grande: Cerca do meio-dia, pois o Sol ia alto.

[83] Ficou em alva: Ficou só com uma túnica branca, sobre a qual tinha vestido e estola.

[84] Apóstolos: S. Filipe e S. Tiago Menor, festejados pela Igreja a 1 de maio.

[85] Ficaram ainda da outra vinda: Nicolau Coelho tinha sido o capitão da nau Bérrio, da frota de Vasco da Gama, aquando do descobrimento do caminho marítimo para a Índia.

[86] Camisa mourisca: Comprida e larga, idêntica à dos Árabes.

[87] Camisa destoutras: Vulgar, mais curta e chegada ao corpo.

[88] Nenhuma idolatria, nem adoração têm: Mais do que os negros, os indígenas brasileiros tornavam-se, assim, um bom campo para espalhar a fé cristã, pelo que para isso apenas careciam de uma pronta atenção da parte de D. Manuel, para que lhes fossem enviados missionários.

[89] Barreiras: Termo muito utilizado nos roteiros da época, para conhecimento das costas, designando a parte alcantilada – a pique ou com um declive muito acentuado.

[90] Jorge de Osório: Genro de Pêro Vaz de Caminha, que se encontrava degredado em São Tomé, pelas justiças de D. Manuel.


 

Texto de apoio: verbete sobre a Carta do Achamento do Brasil

Carta de Pero Vaz de Caminha, escrita a D. Manuel I em 1500, por altura da descoberta do Brasil pelo navegador Pedro Álvares Cabral. Este é um documento essencial e curiosíssimo de um momento supremo da História e da cultura portuguesas, e, como tal, um paradigma da literatura de viagens do Renascimento e da cultura nova, de base experimental e tendência crítica, na qual, segundo Jaime Cortesão, está contido o «fermento crítico» responsável pelo espírito filosófico do século XVIII.

Trata-se de uma verdadeira carta-narrativa, na qual são descritos a geografia, a fauna, a flora do Brasil, a aparência e a psicologia dos nativos, os métodos e experiências de contacto dos portugueses e as reações mútuas, obviamente a partir de uma perspetiva etnocêntrica que estuda a nova terra e a população com o objetivo de colher algum proveito: «[Nesta terra] não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro, nem lho vimos. A terra, porém, em si é de muito bons ares [...]. Mas o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente».

A própria «salvação» religiosa da população nativa é capitalizável, na medida em que os portugueses acalentavam então a noção de que a grandiosidade dos seus empreendimentos derivaria do facto de os feitos da sua História se relacionarem com a expansão da fé cristã, e portanto beneficiarem sempre da proteção de Deus. É a mesma conceção providencialista da História portuguesa que encontramos em Os Lusíadas. A expansão era encarada, não só como o alargamento da civilização e da cultura em que o Homem de então mais perfeitamente realizava as suas potencialidades - a portuguesa -, mas também Deus mais dilatava no mundo a sua lei. Numa perspetiva humanista e neoplatónica, portanto, era através da expansão portuguesa que o Homem se aproximava cada vez mais do estatuto divino, o qual, aliás, se cumpre metaforicamente nos cantos finais de Os Lusíadas.

Deste modo, a Carta do Achamento do Brasil é um documento fundamental para a compreensão do Renascimento português, logo, também da História do mundo.

 

Porto Editora – Carta do Achamento do Brasil na Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2023-03-27]. Disponível em https://www.infopedia.pt/$carta-do-achamento-do-brasil

 

 

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CARREIRO, José. “Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 02-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/carta-de-pero-vaz-de-caminha-el-rei-d.html



sábado, 1 de abril de 2023

Camões dirige-se aos seus contemporâneos, Jorge de Sena

Camões, ao longo da sua obra, vai tendo vários interlocutores. No século XX, Jorge de Sena escreveu o seguinte poema em que o locutor é Camões e os interlocutores são os seus contemporâneos.

 


CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

  





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Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

Assis, 11/6/1961

Jorge de Sena, Antologia Poética, edição de Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa, Guimarães, 2010, p. 127.

 

1. Explicite duas das acusações que o sujeito poético faz aos seus contemporâneos, de acordo com o conteúdo dos versos de 1 a 11.

2. «Não importa nada: que o castigo / será terrível» (versos 12 e 13).

Explique o modo como o sujeito poético prevê a concretização do castigo.

3. Selecione a opção de resposta adequada para completar a afirmação abaixo apresentada.

Ao longo do poema, o sujeito poético exprime, entre outros, um sentimento de ____ que é evidenciado por artifícios como ____.

(A) autocomiseração … a repetição de vocábulos com sentido antitético

(B) autocomiseração … o recurso a enumerações

(C) revolta … o recurso a enumerações

(D) revolta … a repetição de vocábulos com sentido antitético

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Devem ser abordados dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

O sujeito poético acusa os seus contemporâneos:

de praticarem plágio, por se apropriarem de ideias, temas, motivos, palavras, imagens, metáforas e símbolos utilizados na sua poesia;

de lhe negarem a primazia e a ousadia, nomeadamente na inovação linguística (causadora de sofrimento), no «entendimento dos outros» e na «coragem de combater»;

de o votarem ao desprezo, na medida em que não o citam, rejeitam a sua poesia e aclamam outros.

2. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

o sujeito poético permanecerá na memória de todos, tal como a sua obra, enquanto os seus contemporâneos serão esquecidos (até pelos familiares mais próximos);

o sujeito poético não só recuperará a autoria da totalidade da obra roubada, mas também prevê que lhe venha a ser atribuída a autoria do «pouco e miserável» (v. 20) produzido pelos seus contemporâneos;

o sujeito poético será homenageado após a sua morte num túmulo onde repousarão os restos mortais de outrem.

3. Chave: (C)

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 – Ensino Secundário, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho). República Portuguesa – Educação / IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2021, Época Especial

 

 


CARREIRO, José. “Camões dirige-se aos seus contemporâneos, Jorge de Sena”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 01-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/camoes-dirige-se-aos-seus.html