A Infanta D. Maria, por Anthonis Mor van Dashorst |
Um livro
sobre Camões que ainda hoje nos deixa pasmados é «Camões e a Infanta D. Maria»,
publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra em 1910. O maior motivo de
espanto, aos nossos olhos contemporâneos, é que tal livro tenha sequer sido
publicado. Na cultura universitária de hoje, com a obrigatoriedade de
arbitragem científica feita por dois especialistas (cuja identidade é ocultada
ao autor do trabalho proposto), um livro que, como este, contradiz todas as
normas académicas nunca teria vindo a lume. O facto de ter sido publicado
afigura-se hoje algo de negativo, mas também de positivo. No plano negativo, a
sua publicação teve o efeito nefasto de encorajar, meio século depois, José
Hermano Saraiva a escrever um livro sobre Camões com a mesma falta de objetividade
e de fundamentação. No lado positivo, este livro de 1910 tem, hoje, o efeito
salutar de constituir um excelente exemplo: «Camões e a Infanta D. Maria» é
tudo o que um livro sobre Camões não deve ser.
O autor
do livro foi José Maria Rodrigues, nascido em Valença em meados do século XIX
(1857). A sua carreira de padre católico e de professor universitário colocou-o
em ambientes contrastantes, desde o Seminário de Braga à então Faculdade de
Teologia de Coimbra e, mais tarde, à Faculdade de Letras de Lisboa, onde
inaugurou a cadeira de Estudos Camonianos em 1924 (em homenagem ao quarto
centenário de Camões). Pelo meio, este letrado monárquico foi professor de
Latim dos infantes D. Luís Filipe e D. Manuel (o futuro D. Manuel II, último
rei de Portugal). O livro «Camões e a Infanta D. Maria» foi dedicado à memória
de D. Luís Filipe, assassinado juntamente com o pai, o rei D. Carlos, em 1908.
O Padre
Rodrigues foi, sem dúvida, um homem que leu Camões de forma aprofundada, como
se vê pelas suas notas brilhantes sobre problemas textuais em Camões: notas
essas que salpicam os rodapés do livro «Camões e a Infanta D. Maria» e que nos
dão que pensar ainda hoje. Rodrigues atreveu-se a questionar muitas passagens
de Camões que, antes dele, não tinham oferecido dúvidas aos leitores; e não
teve qualquer tipo de acanhamento em conjeturar palavras alternativas às que
foram transmitidas como sendo de Camões. Mesmo que não concordemos com as suas
conjeturas, elas levam-nos a refletir com mais profundidade sobre a frase
camoniana. Vou dar só um exemplo: no passo em que lemos, nas edições
quinhentistas, «fogo eterno» (Canção 6), Rodrigues achou que Camões escrevera
«fogo interno». O problema tem a ver com o lugar que esse poema descreve,
problema muito discutido pelos estudiosos de Camões desde o século XVII.
Rodrigues achava que era uma ilha vulcânica (daí «fogo interno»). A expressão
certa é provavelmente «fogo eterno»; mas a conjetura de Rodrigues obriga-nos a
pensar melhor sobre o texto.
Esta
queda para as conjeturas acabou por se revelar fatal quando o Padre Rodrigues
decidiu conjeturar a identidade da figura feminina de classe alta a quem Camões
se dirige como «Senhora» na sua poesia lírica. As hipóteses de entusiastas
anteriores de Camões tinham-se centrado em damas da corte portuguesa: D.
Catarina de Ataíde e D. Francisca de Aragão. Mas o Padre Rodrigues decidiu
apontar lá mais para o alto. Assim meteu-se-lhe na cabeça que a mulher
idolatrada por Camões nos seus poemas líricos seria a Infanta D. Maria
(1521-1577), filha de D. Manuel I e da sua terceira mulher, Leonor (filha de
Joana «a Louca» e irmã do imperador Carlos V).
Rodrigues
baseou esta suposição em quê? Em nada. Na p. 2 do seu livro, ele afirma
simplesmente que o alvo do interesse do poeta «era a filha mais nova del-rei D.
Manuel, a infanta D. Maria»: sem factos, sem argumentos, sem nada. A partir da
p. 2, esta afirmação (só pelo ato de ter sido escrita pela pena de Rodrigues)
fica dada como certa e segura. E é a partir dessa página que entramos num
percurso delirante pela poesia lírica de Camões, em que poema atrás de poema é
aduzido como «prova» de uma suposição sem base objetiva externa e que,
internamente, nenhum verso de Camões pode provar.
À
partida, pensar-se-ia que o próprio Camões (que toda a vida foi pobre) teria
juízo suficiente para não andar obcecado com uma princesa das casas reais de
Portugal e da Áustria (isto imaginando que ele a teria conhecido pessoalmente,
possibilidade da qual não há provas). Mas Rodrigues armadilha o seu livro com
frases enviesadas, por meio das quais pretende convencer os leitores da
personalidade que ele projetou em Camões. Assim, ele refere-se a Camões como «o
genial doido» (p. 2), «o desvairado sonhador» (p. 3), «o tresloucado poeta» (p.
5), «o alucinado poeta» (p. 31), «o arrojado poeta» (p. 56), «loucamente
apaixonado pela infanta» (p. 57), «o iludido poeta» (p. 58), «o audacioso
poeta» (p. 60), «o tresloucado mancebo» (p. 65), etc.
Ficamos
com esta imagem de um génio desequilibrado, obcecado por uma «louca pretensão»
(p. 64). E Rodrigues vai imaginando, à medida que cita sonetos e outros poemas
de Camões, o que o poeta e a infanta teriam sentido nos momentos em que esses
poemas teriam sido escritos (ninguém sabe a cronologia dos poemas de Camões: só
sabemos que «Os Lusíadas» foram publicados em 1572). Há um momento em que o
poeta fica «doido de contente» (p. 64), decerto em consequência da sua «teimosa
leviandade» (p. 70). Mas é claro que a infanta não ia dar «ouvidos a um
doidivanas de um poeta» (p. 131). Quando o poeta ouviu dizer que a infanta iria
casar com Filipe II (casamento que não aconteceu), «escreveu com lágrimas de
sangue este admirável soneto» (p. 157): o soneto é o famoso «O dia em que eu
nasci moura e pereça», de cuja autoria camoniana outros estudiosos mais objetivos
têm duvidado.
Ao longo
do livro do Padre Rodrigues sobre o poeta e a infanta, ficamos sempre
espantados como conjeturas apresentadas sem fundamentação numa página viram
factos incontestados algumas páginas mais à frente. É como se Rodrigues se
visse apanhado pela teia das suas efabulações: quanto mais ele as repetia, mais
convincentes elas se lhe afiguravam. O livro é um caso clínico daquilo a que se
chama em inglês «delusion».
Vale a
pena identificar o primeiro passo de todo este delírio, porque se trata de um
erro metodológico em que muitos outros estudiosos de Camões incorreram, desde
Manuel de Faria e Sousa no século XVII a José Hermano Saraiva no século XX.
Rodrigues tomou como ponto assente que o texto lírico de Camões é o «verdadeiro
diário da sua alma apaixonada» (pp. 5-6). Esta premissa - que não pode ser
verdadeira, por causa da presença de inúmeras importações de outros autores na
obra lírica de Camões, desde Horácio e Ovídio a Petrarca e Garcilaso: o texto
camoniano é por definição um fenómeno de ventriloquismo - é a areia movediça
sobre a qual todo o edifício interpretativo de José Maria Rodrigues foi
construído. Eu acho que, lá no outro mundo, o poeta e a infanta passam mal de
rir quando, nas horas vagas do Paraíso, lhes dá para arreliarem carinhosamente
o Padre Rodrigues...
“O poeta, o padre e a infanta | Camões: 500 anos”, Frederico Lourenço, Coimbra, 07-04-2024
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