terça-feira, 18 de novembro de 2014

odeia, odeia a luz que começa a morrer



Do not go gentle into that good night,
old age should burn and rave at close of day;
rage,rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
do not go gentle into that good night.

good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night,
rage, rage against the dying of the light.

Dylan Thomas


 



Não entres docilmente nessa noite serena,
porque a velhice deveria arder e delirar no termo do dia;
odeia, odeia a luz que começa a morrer.

No fim, ainda que os sábios aceitem as trevas,
porque se esgotou o raio nas suas palavras, eles
não entram docilmente nessa noite serena.

Homens bons que clamaram, ao passar a última onda, como podia
o brilho das suas frágeis ações ter dançado na baia verde,
odiai, odiai a luz que começa a morrer.

E os loucos que colheram e cantaram o vôo do sol
e aprenderam, muito tarde, como o feriram no seu caminho,
não entram docilmente nessa noite serena.

Junto da morte, homens graves que vedes com um olhar que cega
quanto os olhos cegos fulgiriam como meteoros e seriam alegres,
odiai, odiai a luz que começa a morrer.

E de longe, meu pai, peço-te que nessa altura sombria
venhas beijar ou amaldiçoar-me com as tuas cruéis lágrimas.
Não entres docilmente nessa noite serena.
Odeia, odeia a luz que começa a morrer.

Dylan Thomas
Tradução: Fernando Guimarães




  
Na segunda parte de Ser & Tempo, no capítulo 53, Heidegger diz: "Como possibilidade, a morte não propicia ao ser-aí nada para ser realizado e nada em que, em si mesmo, possa ser real. É a possibilidade de toda relação com..., de todo existir. Na antecipação, a possibilidade 'será sempre maior', ou seja, se desentranha como aquela que desconhece toda medida, todo mais ou menos, significando a possibilidade da impossibilidade, sem medida, da existência." (Ser & Tempo, cap. 53).
Algumas poucas pessoas conseguiram captar tão bem esta possibilidade da impossibilidade. Esta certeza-incerta que a tudo permeia. Estes dias, assistindo Nat. Geo, vi que alguns cientistas estão enlouquecidos procurando explicar com que velocidade caminha nosso universo para seu fim. Falam em uma força escura que faz as todos os objetos do mundo se afastarem um dos outros em direção ao isolamento. Mas os poetas já perceberam tudo isto neste micro cosmos de segundos e minutos de nossas vidas. Não precisam seguir numa contagem de bilhões de anos, mas codificam toda esta maravilha que é estar morrendo em uma dizer radical. Um desses poetas chama-se Dylan Thomas (1914-1953).
http://fass-binder.blogspot.pt/2009/01/do-not-go-gentle-into-that-good-night.html




João Chaves Photography & Video, 2017-08-05



Intertextualidade:

 

Não ouças essas vozes que não param

de crescer a caminho do inverno,

os lugares onde o corpo de erro

em erro abdica de ser corpo

são mortais, não ouças essas vozes

onde o sol apodrece, nunca mais.

 

Eugénio de Andrade, O peso da sombra, 1982

 

O Peso da Sombra foi publicado pela primeira vez em 1982 e é porventura o livro, no universo da obra de Eugénio de Andrade, onde mais notoriamente se manifesta a melancolia e a aguda consciência da passagem do tempo, com os seus efeitos sobre o corpo.

https://www.portoeditora.pt/produtos/ficha/o-peso-da-sombra/16790202

 

No poema «Não ouças essas vozes que não param» ecoa a exortação de Dylan Thomas para não desistirmos da vida, quando a velhice nos toca («Não entres docilmente nessa noite serena»). Deveríamos, destarte, lutar contra a decadência do corpo e perceber a importância de nos mantermos vivos.



    A obra Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2000) de António Lobo Antunes, apresenta uma certa hibridez na sua composição: é classificada como sendo um poema apesar das suas densas 500 páginas e é construída através de uma multiplicidade de vozes narrativas, de perceções e de pensamentos que se entrelaçam, se repetem e se misturam.  


Poderá também gostar de:


Interstellar: odeia, odeia a luz que começa a morrer

No filme Interstellar surge um buraco de minhoca, que cria um atalho no espaço-tempo, e que do outro lado tem planetas estranhos. Mas este não é um filme sobre o espaço interestelar, é sobre o homem. É um hino à vida ao enfatizar a luta com a morte que a ciência permite.
Um atalho no espaço-tempo transporta os personagens até outros planetas DR



O verso “Odeia, odeia a luz que começa a morrer” é de Dylan Thomas, o escritor galês cujo centenário se está a comemorar. A respectiva estrofe é repetida por um dos personagens do filme “Interstellar”, do realizador norte-americano Christopher Nolan, que acaba de se estrear em Portugal e em todo o mundo. Quem a repete é o professor John Brand (Michael Caine), um físico da NASA que procura o mistério último da gravidade e, com ele, a esperança de salvação para uma humanidade ameaçada. O verso de Thomas, que inspirou o título de um romance de António Lobo Antunes, abre um poema belíssimo: “Não entres docilmente nessa noite serena,/ porque a velhice deveria arder e delirar no termo do dia,/ odeia, odeia a luz que começa a morrer.”

Interstellar é uma glosa cinematográfica do tema da morte, neste caso o apocalipse do nosso planeta devastado por tempestades e pragas. Como ocorre em geral nos seus tratamentos artísticos, também aqui a morte é recusada. Escreveu um outro poeta, o alemão Friedrich Hoelderlin: “Onde cresce o perigo, surge também a salvação.” A redenção é, no filme, proporcionada pela ciência e pela sua filha dilecta, a tecnologia.

Desvendemos um pouco do enredo, tentando não desmanchar o prazer dos leitores que ainda não viram. Num futuro indeterminado, vastos campos de milho surgem cobertos por nuvens de poeira e são pasto de doenças. Nesse mundo distópico, com o ar a ficar irrespirável, a ciência e a tecnologia quase desapareceram. Na escola ensina-se que a ida à Lua não passou de um embuste. E os estudos superiores são um capricho face a necessidades básicas de sobrevivência.

É nesse cenário que um agricultor, ex-piloto de testes da NASA, Joe Cooper (Matthew McConaughey), tenta manter a sua família: a espertíssima filha adolescente Murph (em jovem Mackenzie Foy e, mais tarde, Jessica Chastain), o filho e o seu sogro, já que a mulher tinha morrido de um tumor na falta de uma ressonância magnética. Tal cenário dantesco está longe de ser novo na ficção científica: lembrei-me de Um Cântico a Leibowitz, de Walter Miller, onde a humanidade regressa à Idade Média após um desastre nuclear e só um conhecimento muito escasso sobrevive. O filme não é claro sobre a origem do “fim do mundo”. Há uma referência ao Dust Bowl, uma série de tempestades de pó que ocorreram, por incúria humana, durante a Grande Depressão, originando fome e miséria: surgem depoimentos autênticos em vídeo de sobreviventes desses anos. O fim no filme não é, portanto, uma explosão nuclear, mas sim o silêncio imposto pela falta de ar. Como escreveu ainda outro poeta, T. S. Eliot: “É assim que acaba o mundo./ Não com um estrondo,/ mas com um suspiro.”

O que é um buraco de minhoca?
Enquanto há vida há esperança. E a esperança irrompe aqui, de um modo estranho, a meio de uma estante. No quarto de Murph surgem sinais, que enviam Cooper para uma secretíssima base da NASA, às ordens do professor Brand. Ao despedir-se comoventemente da filha, o pai não sabe que lhe está destinado o papel de salvador da humanidade. É enviado para Saturno a bordo de uma estação espacial, pois é lá que se encontra a entrada de um buraco de minhoca, isto é, um atalho ou túnel no espaço-tempo para um longínquo domínio interestelar.

E é do outro lado do buraco que vai partir à aventura para planetas para os quais tinham sido enviados pioneiros com o intuito de encontrar refúgio para a humanidade. O plano principal do professor consistia em domar a gravidade para enviar o que restasse da espécie humana a povoar as novas terras encontradas.

O que são buracos de minhoca? Uma ideia dos físicos teóricos que exige uma prodigiosa distorção do espaço-tempo. Segundo a teoria da relatividade geral de Albert Einstein, invocada repetidamente ao longo do filme, o espaço está ligado ao tempo (o espaço-tempo), a matéria à energia (a matéria-energia) e a matéria-energia comanda o espaço-tempo.

Matéria-energia muito densa pode contorcer o espaço-tempo para formar um tubo. O aproveitamento cinematográfico do conceito não é novo. Já o astrofísico Carl Sagan o tinha feito em Contacto, livro que serviu de guião a um filme onde McConaughey entrou, tendo recorrido aos préstimos do seu colega Kip Thorne. Thorne foi agora o consultor científico de Nolan. O aproveitamento das suas especulações era uma ideia que estava na carteira de Steven Spielberg, o realizador de Encontros Imediatos de Terceiro Grau e deAI, mas este cedeu-a a Nolan, o autor de Memento e de O Cavaleiro das Trevas.

O que há de real nos buracos de minhoca? De facto, não se conhece nenhum. Discute-se, porém, em artigos de física, a possibilidade de os construir, que exigiria não só matéria exótica que dobrasse o nosso espaço-tempo a quatro dimensões mas também possivelmente dimensões adicionais. Um físico companheiro de Cooper explica-lhe no filme com a ajuda de uma folha de papel: marca dois sítios, a entrada e a saída do buraco, e diz que eles ficam ligados se se dobrar a folha, isto é, permitindo outra dimensão. O tema das dimensões adicionais é corrente hoje na cosmologia e na física quântica, apesar de não haver provas da sua existência. A ideia agradou a Einstein por proporcionar a unificação das várias forças da natureza, o seu grande sonho que ainda não se materializou. É nesse assunto que o professor Brand trabalha, no futuro onde o filme nos mergulha.

E o que há do outro lado do buraco de minhoca? Planetas estranhos, um deles tão estranho como as paisagens da Islândia, uma vez que parte do filme foi aí rodado, e um buraco negro gigante, o Gargantua, que teve de ser criado virtualmente. Entre outros truques científicos, o enredo envolve a animação suspensa de astronautas, que consiste na suspensão das funções vitais de uma pessoa em hipotermia, e a disseminação de embriões humanos noutros planetas, criopreservados pela bióloga Amelia Brand (Anne Hathaway), filha do professor. Há também uma profusão de truques cinematográficos, como as imagens panorâmicas tiradas por câmaras IMAX e um nível de som que pode incomodar os ouvidos mais sensíveis e que contrasta violentamente com o silêncio sideral. E há truques científicos que combinam com truques cinematográficos como os cálculos que Kip Thorne efectuou para obter imagens do buraco negro o mais realistas possível.

Trama científica impecável
Como o buraco negro tudo atrai, desde a luz até à curiosidade humana, os nossos heróis acabam por se precipitar para o Gargantua. Cooper entra no buraco negro para obter segredos da força gravitacional com a ajuda de um robô não humanóide a quem o argumentista deu deixas muito engraçadas (faz lembrar o HAL de 2001 Uma Odisseia do Espaço, de Stanley Kubrick, uma das influências reconhecidas por Nolan). Esta é a parte que parece mais inverosímil de toda a trama, cuja base científica é em geral impecável, incluindo as especulações aparentemente desenfreadas sobre a passagem do tempo. Dentro do buraco negro Cooper cai em dimensões superiores, numa tecelagem por trás da estante do quarto da miúda. Sim, miúda, porque Cooper viajou para trás no tempo no interior de Gargantua. Consegue enviar sinais cifrados para o quarto. E Murph consegue recolhê-los.

O Homo sapiens salva-se? Sim, graças à drª. Murph, que acabou por seguir física teórica e prosseguir o projecto do professor Brand (o nome dela afinal enganava pois, contrariando o princípio de Murphy, tudo vai correr bem!). E Cooper fica sepultado no tenebroso buraco negro? Não, porque não era totalmente negro. Vai dar a uma base espacial, em Saturno, para onde a população da Terra, ajudada pelos conhecimentos de física, se tinha conseguido escapar. Ainda chega a tempo de assistir à morte da sua filha, com 124 anos, enquanto ele continua relativamente jovem. É o famoso “paradoxo dos gémeos”, enunciado pelo físico francês Paul Langevin, contemporâneo de Einstein: um gémeo que vá a estrelas distantes à velocidade próxima da luz e volte consegue manter a juventude, enquanto o irmão imóvel na Terra envelheceu.

Contado assim (ou melhor, semi-contado, porque não é melhor não contar as peripécias surpreendentes do longo e engenhoso enredo) até parece ficção científica de série B. Mas não, é um dos grandes filmes do nosso tempo, um tempo dominado pela ciência mas ensombrado pelos riscos. Para além de estar muito bem realizado (talentosos actores e portentosas naves consumiram um orçamento equivalente ao Euromilhões), a obra de Nolan não é sobre o espaço interestelar mas sim sobre o homem, a parte do Universo que afinal mais nos interessa. É um hino à vida ao enfatizar a luta com a morte que o conhecimento científico permite.

Voltemos a Dylan Thomas: “Odeia, odeia a luz que começa a morrer.” Mais do que na ciência, o triunfo da vida baseia-se aqui no amor, um sentimento bem claro na ligação cósmica entre pai e filha. Um ser humano vai ao fundo da escuridão, ao interior do buraco negro, em busca de luz para dar à filha. É um representante da humanidade que destemidamente recusa o fim da espécie, mas, para isso, tem de conjugar o conhecimento com o amor. O conhecimento sozinho não chega para salvar ninguém.

Carlos Fiolhais (Professor de física da Universidade de Coimbra), 



quarta-feira, 12 de novembro de 2014

ATÉ AO FIM (Katia Guerreiro)




ATÉ AO FIM

intensamente, amor
intensamente
ponho na minha voz esta saudade
que é feita de futuro no presente
e na ilusão é feita de verdade

intensamente, amor
intensamente

desesperando, amor
desesperando
por mesmo assim eu não te dizer tudo
mesmo ao lembrar-me de onde e como e quando
teu coração mudou
mas eu não mudo

desesperando, amor
desesperando

até ao fim, amor
até ao fim do mundo
tal qual Pedro e Inês
aqui te espero
aqui me tens a mim
neste mísero estado em que me vês

até ao fim, amor
até ao fim, amor
até ao fim

Fado de Katia Guerreiro, 2014.
Álbum: Até ao fim
Letra: Vasco Graça Moura (2006)
Música: Tiago Bettencourt










Alinhamento do álbum Até ao Fim:

  • 9 Amores - Letra e Música: Paulo de Carvalho
  • Mentiras - Letra: Rita Ferro / Música: Pedro de Castro
  • Até Ao Fim - Letra: Vasco Graça Moura / Música: Tiago Bettencourt
  • Eu Disse Ao Mar Que Te Amava - Letra: José Fialho Gouveia / Música: Franklin Godinho (Fado Franklin de quadras)
  • Janela Do Meu Peito - Letra e Música: Alberto Janes
  • Fado Dos Contrários - Letra: Rui Machado / Música: José Marques (Fado Triplicado)
  • Fado Da Noite Que Nos Fez - Letra: Samuel Úria / Música: Alfredo Marceneiro (Fado Versículo)
  • Quero Cantar Para a Lua -Letra: Amália Rodrigues / Música: Pedro de Castro
  • Nesta Noite - Letra e Música / Paulo Valentim
  • As Quatro Operações - Letra: Vasco Graça Moura / Música Tiago Bettencourt e Pedro de Castro
  • Eu Gosto Tanto de Ti (canção para a Mafalda) - Letra e Música: Katia Guerreiro



PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:


Novo álbum de Katia Guerreiro”, Sic Notícias ‑ Cartaz, 2014-11-11





domingo, 9 de novembro de 2014

COMO NARCISO SE PERDE - Uma história fundadora da representação do EU




ÍNDICE

Sobre os espelhos, Umberto Eco (1989)

NarcisoDicionário dos símbolos (1982)

O mito de Narciso, Ovídio (1?2? d. C.)

O mito de Narciso como representação da escrita autobiográfica, Clara Rocha (1992)

Narciso, o belo suicida – (re)leituras do mito a partir de um novo papiro, Carlos A. Martins de Jesus (2008)

Máscaras de Narciso ‑ leitura orientada de poemas:

  • Soneto CXXVII (Vendo Narciso em uma fonte clara), Diogo Bernardes (1597)
  • Narciso, Gentileza, Soror Maria do Céu (século XVIII)
  • Imagem, Manuel Bandeira (1917)
  • Espelhos: o que sois na vossa essência, Rainer Maria Rilke (1923)
  • Narciso, José Régio (1929)
  • Ninguém a outro ama, Ricardo Reis – Fernando Pessoa (1932)
  • EpigramaCecília Meireles (1942)
  • O espelho, Mario Quintana
  • O auto-retrato, Mario Quintana
  • Mundos, Mario Quintana
  • Vidas, Mario Quintana
  • O velho do espelho, Mario Quintana
  • Canção, Mario Quintana
  • Auto-retrato, Miguel Torga (1954) 
  • Lago Turvo, Miguel Torga (1956)
  • O Narciso, Miguel Torga (1950)
  • Mergulho, Miguel Torga (1951)
  • Narciso, Sebastião da Gama (1967)
  • Narciso, Jorge de Sena (1970)
  • Quem educo quando a ti educo?, Joaquim Manuel Magalhães (1974)
  • Sampa, Caetano Veloso (1978)
  • Contranarciso, Paulo Leminski (1983)
  • Narciso, Federico Garcia Lorca (1986)
  • Narciso e Narciso, Ferreira Gullar (1987)
  • Eco e Narciso, Nuno Júdice (1990)
  • Poema narcisista, Linaldo Guedes (1998)
  • A Bela Adormecida no espelho, Alice Ruiz (2010)

 

            
NARCISSUS-JUSTSAMMORRIS in misterabsurdo.com




SOBRE OS ESPELHOS
Umberto Eco

O espelho reflete a direita exatamente onde está a direita e a esquerda onde está a esquerda. É o observador (ingénuo, mesmo quando faz de físico) que por identificação imagina que é o homem dentro do espelho e, vendo-se, se dá conta de que traz, por exemplo, o relógio no pulso direito. Mas o facto é que só o traria se ele, o observador, fosse aquele que está dentro do espelho (Je est un autre?). Quem, no entanto, evitar comportar-se como a Alice e não penetrar dentro do espelho, não cairá nessa ilusão.
Umberto Eco, Sobre os espelhos e outros ensaios, Lisboa, Difel, 1989, p.15


Cameron Gordon is a modern narcissus for the peak




NARCISO
Dicionário de símbolos

A etimologia (narké), donde provém narcose, ajuda a compreender a relação desta flor com os cultos infernais, com as cerimónias de iniciação, segundo o culto de Deméter em Elêusis. Plantam-se narcisos sobre os túmulos. Simbolizam o entorpecimento da morte, mas duma morte que talvez não seja mais do que um sono.
Oferecem-se grinaldas de narcisos às Fúrias, as quais, julga-se, entorpecem os facínoras. A flor nasce na Primavera, em zonas húmidas: o que a liga à simbologia das águas e dos ritmos sazonais e, por conseguinte, da fecundidade. Isso significa a sua ambivalência: morte-sono-renascimento.
Na Ásia, o narciso é um símbolo da felicidade e serve para exprimir os votos de ano novo.
Na Bíblia, o narciso, tal como o lírio, caracteriza a Primavera e a era escatológica Cântico dos Cânticos, 2, 1).
Esta flor faz lembrar também ‑ mas num grau inferior de simbolismo ‑ a queda de Narciso nas águas onde se mirava com prazer: daí o facto de se fazer dela, nas interpretações moralizantes, o emblema da vaidade, do egocentrismo, do amor e da satisfação de si próprio.
Os filósofos (L. Lavelle, G. Bachelard) e os poetas (Paul Valéry) estudaram largamente este mito, geralmente interpretado duma forma um tanto simplista. A água serve de espelho, mas um espelho aberto sobre as profundezas do eu: o reflexo do eu que se vê trai uma tendência para a idealização. Diante da água que reflete a sua imagem, Narciso sente que a sua beleza continua, que não está acabada, que é preciso completá-la. Os espelhos de vidro, na clara luz do quarto, dão uma imagem muito estável. Tornar-se-ão vivos e naturais quando se puder compará-los a uma água viva e natural, quando a imaginação renaturalizada puder receber a participação dos espetáculos da fonte e do rio (BACE, 35).
G. Bachelard insiste no papel desse narciso idealizador. Isso parece-nos tanto mais necessário, escreve, quanto a psicanálise clássica parece subestimar o papel dessa idealização. Com efeito, o narcisismo nem sempre é neurótico. Desempenha também um papel positivo na obra estética (principalmente)... A sublimação nem sempre é a negação de um desejo; não se apresenta sempre como uma sublimação contra os instintos. Ela pode ser uma sublimação por um ideal (BACE, 34-35). Essa idealização liga-se a uma esperança, duma tal fragilidade que desaparece ao menor sopro:

Le moindre soupir
Que j' exhalerais
Me viendrait ravir
Ce que j'adorais
Sur l' eau bleue et blonde
Et cieux et fôrets
Et rose de l'onde.
      
Paul VaIéry, Narcisse
O menor suspiro
Que eu exalasse
Viria arrebatar-me
O que eu adorava
Sobre a água azul e dourada
E céus e florestas
E rosa da onda.
     
     

A partir destes versos e do estudo de Joachim Gasquet, G. Bachelard descobre também um narcisismo cósmico: é a floresta e o céu que se miram na água com Narciso. Ele já não está sozinho, o universo reflete-se juntamente com ele e envolve-o, anima-se com a própria alma de Narciso. E como diz J. Gasquet: O mundo é um imenso Narciso ocupado em pensar-se a si próprio. Onde se pensaria ele melhor senão nas suas imagens? pergunta G. Bachelard. No cristal das fontes, um gesto perturba as imagens, o repouso restitui-as. O mundo refletido é a conquista da calma (BACE, 36 s).
Foi o perfume do narciso que enfeitiçou Perséfone, quando Hades, seduzido pela sua beleza, quis raptar a jovem e levá-la com ele para os Infernos: A flor brilhava com uma luz maravilhosa, e deixou impressionados todos os que então a viram, tanto Deuses imortais como homens mortais. Crescera da sua raiz um caule com cem cabeças e, com o perfume desta bola de flores, todo o vasto Céu sorriu lá do alto, e toda a terra, e a acre turgidez das ondas do mar. Admirada, a criança estendeu ao mesmo tempo os dois braços para agarrar no belo brinquedo: mas a terra de vastos caminhos abriu-se na planície de Nisa, e dali surgiu, com os seus cavalos imortais, o Senhor de tantos hóspedes, o Cronos invocado sob tantos nomes. Raptou-a e, apesar da resistência dela, arrastou-a, toda em prantos, no seu carro de ouro (HYMH: Hino a Deméter, v. 4-20).
Para os poetas árabes, o narciso simboliza, em virtude da sua haste reta, o homem de pé, o servidor assíduo, o devoto que quer consagrar-se ao serviço de Deus. O mito grego é aqui estranho à interpretação que desenvolve em muitos poemas todas as metáforas evocadas pela sua aparência graciosa e pelo seu perfume penetrante.

Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos. Lisboa, Editorial Teorema, 1994. (Edição original: © 1982, Éditions Robert Laffont S.A. et Éditions Jupiter, Paris).



Narcissus", posted by Dan Cretu, 2015-10-16






         O MITO DE NARCISO
         Ovídio (escritor latino, 43 a.C.-17?18? d.C.)

Narciso era filho da bela ninfa Liríope e de Cefiso. Ao nascer, os pais consultaram o adivinho Tirésias, perguntando-lhe se o filho teria uma vida longa. Tirésias respondeu: "Sim, se não se conhecer”. Durante muito tempo as palavras do profeta pareceram desprovidas de sentido. Seriam, porém, justificadas pela maneira como as coisas vieram a acontecer, com a morte de Narciso e a sua estranha loucura.
Aos dezasseis anos, Narciso tinha o aspeto de uma criança e, simultaneamente, de um jovem adulto. A sua beleza delicada despertava paixões sem fim e a todas ele respondia com um frio desdém. Eco e muitas outras ninfas nascidas nas ondas e nas montanhas acalentaram, assim, um amor sem esperança por Narciso. Então, uma das vítimas dos seus desdéns, erguendo as mãos ao céu, lançou sobre ele uma maldição: "Possa ele amar e jamais possuir o objeto do seu amor!" A deusa de Ramnunte1 acolheu favoravelmente esta justa prece.
Um dia, Narciso, fatigado da caça e do calor, veio deitar-se junto de uma nascente de água límpida. Era um lugar de encanto: nem os pastores, nem as cabras que pastam nas montanhas, nem qualquer outro tipo de gado, se tinham jamais aproximado dessas águas brilhantes e prateadas; cercadas de relva, a floresta em volta protegia-as do calor dos raios de Sol. Narciso debruça-se sobre a água, tentando apaziguar a sede, mas, ao fazê-lo, uma outra sede cresce dentro dele: enquanto bebe, fica seduzido pela imagem que vê refletida na água. Fica em êxtase diante de si próprio e, sem se mexer, com o olhar fixo, parece uma estátua de mármore de Paros. Contempla, estendido no solo, dois astros, os seus próprios olhos, os seus cabelos dignos de Baco, dignos também de Apolo, as suas faces imberbes, o seu pescoço de marfim, a sua boca singular, o rubor que tinge a brancura nevada da sua tez. Admira tudo aquilo que nele inspira admiração. Deseja-se, ignorando-o, a si próprio. Os desejos que sente, é ele próprio que os inspira. É ele o alimento do fogo que o incendeia. Quantas vezes atirou beijos à onda enganadora! Quantas vezes, para agarrar o pescoço que estava a ver, mergulhou os braços na água, sem conseguir enlaçá-lo! Para quê esses esforços vãos para agarrar uma visão fugidia? O objeto do teu desejo não existe! Afasta-te, e tu farás desaparecer o objeto do teu amor! Essa sombra que vês é o reflexo da tua imagem. Ela não é nada em si própria. Foi contigo que ela apareceu, é contigo que persiste, e a tua partida dissipá-la-ia, se tivesses a coragem de partir.
Mas nem a necessidade de comer nem a de repousar o arrancam dali. Estendido sobre a erva espessa, contempla, sem se cansar, a enganadora imagem, e torna-se ele próprio o causador da sua perda. Soerguendo-se levemente, estende os braços para a floresta que o cerca: "Já alguém, ó florestas, experimentou mais cruelmente o amor? Entre tantos amantes que, ao longo dos séculos, procuraram o vosso refúgio, algum sofreu tanto como eu? Aquele que vejo seduz-me, mas não posso tocar-lhe e, no entanto, não nos separa a imensidão do mar, nem um longo caminho, nem a montanha, nem uma muralha de portas cerradas. Uma fina camada de água é tudo o que se interpõe à nossa união. Ele próprio também me deseja, pois sempre que estendo os lábios para estas ondas límpidas, ele procura também, com a boca estendida, tocar na minha. Julgaria quase tocar-lhe, tão frágil é o obstáculo aos nossos desejos. Quem quer que sejas, sai, vem! Porquê, ser sem igual, porque troças de mim? Quando te procuro, onde te refugias? Não é, certamente, pelo meu aspeto, nem pela minha idade que te faço fugir! Muitas ninfas me amaram. No teu rosto querido deixas-me ler não sei que esperança e, quando estendo os braços, tu também mos estendes; ao meu sorriso responde o teu sorriso e, muitas vezes, vi correr as tuas lágrimas, quando deixava correr as minhas; com a cabeça respondes aos meus sinais e, tanto quanto o adivinho pelos movimentos da tua boca encantadora, dizes-me palavras que não chegam aos meus ouvidos!"
‑ Entendo agora: tu não és senão eu próprio. É por mim que ardo de amor, e este fogo, sou eu que o ateio ao mesmo tempo que o sinto.
O que eu desejo, trago-o em mim, a minha miséria vem da minha riqueza. Oh! Se eu pudesse separar-me do meu corpo! Voto insólito num amante: o que eu amo é o mesmo de que quero separar-me. A dor tira-me as forças; já não me resta muito tempo de vida, extingo-me na flor da idade. Mas não é o morrer que me aflige, pois, ao morrer, libertar-me-ei do fardo da minha dor; para aquele que é o objeto da minha ternura, teria desejado, porém, uma vida mais longa. Agora, nós dois, unidos pelo coração, exalaremos em conjunto o último suspiro.
Perde a cor da tez, perde o vigor e as forças, nada resta desse corpo que outrora fora amado por Eco. As últimas palavras de Narciso, com os olhos mergulhados na água tão familiar, foram: "Pobre de mim! Criança querida, meu vão amor!”. As suas irmãs, as Náiades, choraram-no longamente mas não puderam prestar-lhe as honras fúnebres: o corpo de Narciso tinha desaparecido. No seu lugar, encontraram uma flor amarela tom de açafrão, com o centro rodeado de folhas brancas.

Ovídio, As Metamorfoses, 1?2? d.C..
Traduzido e adaptado do francês (Les métamorphoses, Paris, Garnier, 1996) por Ana Garrido, Cristina Duarte, Fátima Rodrigues, Fernanda Afonso e Lúcia Lemos, in Antologia. Português. 10º Ano / Ensino Secundário. Lisboa Editora, 2007


_______________________________
(1) Némesis: deusa da vingança divina.








O MITO DE NARCISO COMO REPRESENTAÇÃO DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA
Clara Rocha

O mito de Narciso é naturalmente a representação mais evocada a propósito da escrita autobiográfica. Narciso que se contempla nas águas e se apaixona pela sua imagem é também um duplo ser: simultaneamente o eu que olha e o outro que é olhado, o sujeito e o objeto do desejo. Narciso é, ao mesmo tempo, realidade e ilusão: tem um corpo verdadeiro, e enamora-se desse corpo refletido. Jorge de Sena fala num poema de Narciso, "que em limos se fundiu com a sua imagem vácua". (…)
Narciso contempla a sua imagem refletida, e essa imagem é, ao mesmo tempo, ele próprio e uma reprodução: eu e o outro estão ligados por uma identidade fantástica. Este desdobramento tem o seu equivalente manifesto na escrita do eu, onde a dupla corpo e letra mantêm idêntica relação.
O outro motivo do mito de Narciso é a fuga. A imagem refletida caracteriza-se pela mobilidade, pela oscilação, porque a água em que Narciso se revê é matéria em movimento. Ora tal como a água, a linguagem é um espelho traiçoeiro: a projeção narcísica é um reflexo que tanto deseja como receia a cristalização da linguagem, e que tanto se deixa seduzir pelo caudal das palavras como procura defender-se dele. Há assim na escrita confessional um jogo de fuga e cristalização, pois o sujeito quer eternizar-se na escrita, mas teme a irremediável fixação e nem sempre se reconhece nela. Lembre-se que a cristalização está também presente no mito de Narciso: no lugar onde o jovem morre, os deuses fazem nascer uma flor.
Desdobramento do sujeito, condição ilusória da imagem, mobilidade do reflexo, desejo de fixação e eternização da figura refletida são, pois, os principais motivos do mito de Narciso, tantas vezes evocado a propósito da escrita autobiográfica.

Clara Rocha, Máscaras de Narciso Estudos sobre a Literatura Autobiográfica em Portugal, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 50-51 (excerto).






NARCISO, O BELO SUICIDA
(Re)leituras do mito a partir de um novo papiro99

Deve ser o cristal que viu Narciso:
água de um poço de ilusões pequenas
onde morra e renasça o Paraíso.
Miguel Torga, Mergulho
(Diário 6, 1953: 36)

Nas águas se contempla Narciso, nas águas límpidas que, cristalinas, lhe revelam uma beleza que pode não ser a sua. Até que um dia, maldição divina ou de um amante preterido, não são tão límpidas as águas, e a imagem que do homem dá esse espelho natural não é já pintada com os tons de perfeição de outrora. Afinal, o retrato era mais belo (falsamente belo) do que a essência desse homem. E no momento da morte, retrato e essência são uma e a mesma realidade, em tudo coincidentes. O desespero assim o determina. A beleza de Narciso era, afinal, resultado da ausência de visão. Conhecida a realidade, pela sua representação, ela não é mais agradável à vista. E o herói tomba, para o lago, ou para o fundo de si. Só a morte é lenitivo para a desilusão decorrente da visão do eu, um esforço cognitivo que seguiu o caminho da aparência e não o da essência, e que por isso se revelou trágico.
Um dos textos recentemente encontrados em Oxirrinco (P. Oxy. 69. 4711 = “Apêndice Iconográfico”, figs. 7-8) permite ler três mitos à partida distintos, mas que o editor W. B. Henry considerou pertencerem a um conjunto de Metamorfoses, por exclusão de hipóteses atribuídas a Parténio de Niceia, poeta do século I. a.C. de quem preservamos um conjunto de histórias de amor, em prosa, baseadas na poesia grega, além de alguns fragmentos poéticos. O papiro apresenta-nos, na frente (↑fr. 1), parte da narrativa de Adónis (ll. 1-6) e, aparentemente sem qualquer relação, o mito de Astéria (ll. 7 sq.), que sofreu também uma metamorfose. Filha do titã Ceu e de Febe, irmã de Leto, transformou-se em codorniz para escapar às perseguições de Zeus, que por ela se apaixonara, e lançou-se ao mar, onde se transformou na ilha Ortígia (literalmente, “a ilha das codornizes”), mais tarde conhecida pelo nome de Delos. No verso do papiro (→ fr. 1) encontramos o que parece ser a parte final da narrativa do mito de Narciso, que nos ocupará a partir deste momento. Nada parece confirmar que Parténio tenha tratado este mito, mas possuímos relíquias que acusam o tratamento da i-gura de Adónis (SH. 641, = fr. 23 e SH. 654 = fr. 37), e daí também a atribuição do achado a este autor. (Para as referências a Parténio, seguimos a edição de J. M. Edmonds e S. Gaselee 1978.)
Vejamos agora o texto, que traduzimos a partir da edição de W. H. Henry no volume 69 dos Oxyrhunchus Papyri (págs. 46-53), para logo de seguida estabelecer um conjunto de reflexões sobre o mito, as suas diferentes versões e o seu aproveitamento em diferentes registos semióticos.

(faltam 5 versos)
………………………(julgando que) é um imortal[
………………… de aparência semelhante aos deuses.
um inquebrantável] coração ele tinha, odiado por todos,
(Narciso então) se apaixonou pela sua própria figura
……………...] mas lamentava o prazer de um longo sonho
…………………………...] chorou pela sua beleza
(e então) derramou (o seu sangue) sobre a terra
………………………………] suportar


A principal fonte para o mito de Narciso, que ao longo dos tempos se impôs quase como única, é como para muitos outros casos Ovídio (Metamorfoses, 3. 339-510), um longo passo que demonstra o interesse do poeta latino pela história. Muito brevemente, aqui se conta que Narciso era filho de Cefiso, rei da Beócia, e da ninfa Leríope. Ao nascer, um oráculo predissera-lhe que viveria bem até ao momento em que se visse a ele próprio (v. 348). Ao atingir a juventude, a beleza do herói granjeava-lhe a paixão de um sem número de donzelas e mancebos, entre as quais a ninfa Eco que, impedida de estabelecer diálogo com alguém – pois que apenas repetia os finais do que ouvia – foi também por ele preterida, retirando-se para morrer solitária. Quantos havia desprezado, unidos pelo mesmo abandono, lhe lançaram uma maldição: que enfim pudesse amar alguém e não possuir o objeto do seu amor. Havia de ser por si próprio que nasceria a paixão, nesse coração onde paixão alguma havia já nascido. Um dia, cansado de uma caçada, acerca-se de um lago para matar a sede e, ao ver o seu reflexo, apaixona-se pela sua figura, não mais saindo desse local, até morrer. No fundo, o ser que amava estava mesmo ali, perto de si, do outro lado do espelho (a água cristalina), mas não podia de forma alguma atingi-lo. Pior do que a distância, para Narciso, era a proximidade intransponível daquele regato de água. Conta ainda Ovídio que, no momento em que as Dríades preparavam o seu funeral, em vez do corpo encontraram uma flor amarela, que em sua homenagem passou a chamar-se Narciso.
A metamorfose não é, por conseguinte, explicada em Ovídio. A transformação de homem em flor é algo que ocorre como que por magia, pela substituição de um cadáver (homem morto) por uma flor (um ser vivo), no fundo um ressurgir do herói dos mortos que, sob outra forma, regressa à vida. Os deuses, ao certo, não permitiram que um homem tão belo desaparecesse por completo, transformando-o em flor, para que toda a humanidade, até ao fim dos tempos, pudesse contemplá-lo.
Ora, no que concerne à parte final do mito, a metamorfose de Narciso em flor, parece claro que não é esta a versão que Parténio segue, no texto que acima transcrevemos e traduzimos (a admitir a atribuição do papiro). Na versão de Ovídio, como se viu, a morte é também voluntária, não infligida por outrem, mas este suicídio é lento, decorrente da inanição. Narciso, simplesmente, deixa-se ficar, preso à contemplação de si mesmo, até que lhe falecem as forças e acaba por morrer. A visão do seu reflexo exerce sobre ele um efeito mágico, um encantamento que o faz esquecer as mais vitais necessidades humanas.
No texto preservado do papiro que vimos comentando, até ao verso 11, nada de diferente nos é permitido ler. Temos a expressão da beleza do herói, semelhante na aparência aos próprios imortais (vv. 7-8), o preterir de todos os pretendentes, motivo do ódio por parte destes (v. 10) e o enamoramento pela própria figura (v. 11). O verso 12, contudo, merece já mais atenção. O sonho a que se alude pode muito bem ser entendido como a ilusão (da beleza) que foi toda a vida de Narciso, algo que agora se lamenta amargamente, contemplada que foi a verdade (a fealdade) nas águas do lago. Esta hipótese parece confirmar-se no verso 13: a beleza chorada seria, no fundo, uma beleza que não há, e que, em boa verdade, se percebe nunca ter existido de facto. Talvez consequência dessa amarga descoberta, o ato de dar a morte (v. 14) é extremamente violento e imediato. Se aceitarmos, como parece credível, que o sujeito do verso é o próprio Narciso, e que o objeto direto é o sangue, estamos então a falar de um suicídio consciente e cruel. As coordenadas do final do mito estão então, e tendo como referência Ovídio, completamente subvertidas. Narciso ter-se-á suicidado ao perceber ser uma ilusão a beleza que sempre julgou possuir. Precisamos assim, como parece claro, de encontrar uma outra versão do mito que tenha eventualmente servido de modelo à composição de Parténio.
Dos demais autores que trataram o mito de Narciso,101 o testemunho que nos parece mais semelhante é o de Cónon (FGrHist. 26. 24), numa versão originária da Beócia, miticamente a terra do próprio herói. O que nos refere o autor é, a início, o mesmo que podemos ler em Ovídio: Narciso, jovem, preterindo todos os seus pretendentes. Depois, contudo, a situação muda. Um dos jovens negados, ao suicidar-se, pede aos deuses que amaldiçoem Narciso, que há de pôr termo à vida de forma violenta, trespassando o peito com um punhal. Do sangue derramado sobre a terra explica Cónon (FGrHist. 26. 24. 3) o surgimento do narciso, pelo que não se trata, em boa verdade, de uma metamorfose, antes de um fenómeno telúrico, da terra que absorve o sangue derramado e reage com a criação de um novo ser, fenómeno em tudo semelhante à origem das erínias:
Pensam os autóctones que a primeira flor de narciso nasceu daquela terra, derramado sobre ela o sangue de Narciso.
Estamos então, com o texto do papiro e com a versão de Cónon, no âmbito de uma versão mais pessimista do mito. O espelho, no momento final da vida do herói, resulta na desilusão e no desengano, na constatação da não existência de uma beleza em que toda uma vida tinha assentado. Daí que a morte não seja calma, fruto de um apagamento sucessivo das forças vitais pela inanição, antes dada pelo mais violento dos suicídios. Ela vem pelo sentimento de solidão, causado pelo afastamento do convívio social e amoroso, ciente de que só em si próprio existe o belo, um belo que torna indigna a aproximação de qualquer outra pessoa. É este, no fundo, o aproveitamento que deste mito fez a moderna psicologia, bem como, a outro nível, o senso comum, que não raro confunde as noções de narcisismo e egoísmo. Ao longo dos tempos, e já desde a Antiguidade, muitos foram os que interpretaram o mito de Narciso, baseados essencialmente numa receção nem sempre rigorosa do Platonismo. Já Luciano, vulto da segunda sofística (c. 120-190 d.C) o relacionara com a vaidade, crítica que seria aproveitada pelo Cristianismo. Clemente de Alexandria (Paedagogus 2. 8. 71. 3), por exemplo, estabelecia a ligação entre a vaidade narcísica e o culto da imagem exterior, que devia ser, pelo contrário, desprezada em prol da beleza espiritual. Do mesmo modo Plotino (Enneades 1. 6. 8) olhava para Narciso como o mais perfeito exemplo do herói que havia ignorado que o seu corpo (o que vira refletido) não era ele próprio mais do que um reflexo (imperfeito e limitado) da sua alma, e que, desejando o que não merecia ser desejado, com isso se afundara nas águas, metáfora tanto para a negra noite do Hades como para o Inferno cristão. É isto prova suficiente de que o mito era já lido em termos simbólicos, dele se retirando ensinamentos filosóficos e morais. Para Plotino, de resto, é o processo de reflexão de um espelho que explica a criação de todo o mundo sensível, o que torna o caso de Narciso ainda mais paradigmático. E neste sentido seguiram, regra geral, os restantes neoplatonistas. O próprio Marsílio Ficcino, no seu comentário ao Banquete de Platão, entende ainda o episódio de Narciso como uma confusão do eu (essência, verdade) com a imagem reletida (aparência, ilusão).
Muitos foram também, entre nós, os poetas contemporâneos a tratar o mito de Narciso, tantos e de forma tão rica que aqui não cumpre mencioná-los.102 Preferimos, por isso, enveredar por um outro registo semiótico, a pintura, analisando, com base nas reflexões suscitadas pelo texto do papiro, de que forma elas terão estado presente na mente do artista. Já Filóstrato (Imagines 1. 23) nos dava a descrição de um quadro onde se podia ver um verdadeiro jogo de espelhos. O rosto de Narciso que se reflete na fonte, a fonte que se reflete nos seus olhos, os olhos que se refletem no quadro e, por fim (para completar o ciclo) o próprio quadro que se reflete nos olhos de quem o vê. Um jogo de espelhos onde, por entre reflexos e reflexos de reflexos, muita essência se pode perder. Na pintura, Caravaggio (Narciso. Óleo sobre tela, 110x92 cm: Galeria nacional de Arte Antiga, Roma) pintou de forma admirável a expressão de desespero no rosto de Narciso, no momento em que se curva sobre as águas e vê o seu reflexo. E é este reflexo, precisamente, que se mostra revelador. Ele é um rosto feio, disforme, em nada similar ao do indivíduo que o contempla. A dicotomia que o artista bem exprime é a da realidade / aparência ou, de outro modo, essência / suplemento. O reflexo do eu (suplemento) é, no fundo, a visão que esse eu tem da sua própria essência, no momento da morte, precisamente o inverso da que cultivara ao longo de toda a vida. Daí que, entendido este curvar sobre o lago como um exercício de autoconhecimento, este esforço tenha seguido os trilhos errados.


"Narciso", Caravaggio
  
Link permanente da imagem incorporada
"Narciso", Stas Svetlichnyy


Como diria Platão, Narciso procurou a verdade onde não cabia alcançá-la; buscou a essência no mundo das aparências (simbolizado no lago), e não poderia de forma alguma contentar-se com o resultado, fosse ele belo ou feio. De outro modo, podem a disformidade e a fealdade ser, elas próprias, a essência desse Narciso homem, só percebidas quando se curvou sobre as águas, quando olhou para o fundo do lago, o fundo de si próprio, para aí ver a verdade. E, assim sendo, só pelo suplemento, pela imagem refletida, pode o homem conhecer, ainda que imperfeitamente, a sua essência, que é deste modo relegada para o campo do incognoscível. Seja o reflexo verdadeiro ou enganador, não pode de facto o indivíduo olhar-se senão através dele. Estas as limitações mais básicas da autognose.
Belo ou feio – essencialmente belo ou essencialmente feio – qualquer que seja a leitura do mito ou a versão antiga por que optemos, Narciso traz-nos o mistério do outro lado do espelho. Do outro lado, todo o mundo que imagina Alice antes de entrar no país das maravilhas; do outro lado do espelho, por vezes, um ser em tudo igual a nós que estende a mão quando nós próprios a estendemos, de uma aparente similaridade desconcertante; do outro lado do espelho a verdade, a que se não quer aceder, por medo (Narciso disforme), ou a mais doce das mentiras (Narciso belo). A avaliar pelo texto do novo papiro, do outro lado do espelho vem a causa imediata para a morte: a desilusão, seja pela realidade, seja pela ilusão de uma imagem enganadora. Na versão de Ovídio, o encantamento provocado pelo reflexo fora a única causa de morte: um ser que se apaixona por uma imagem (que não é ele próprio) e que desse modo se esquece de si.
Do outro lado do espelho, no fundo das águas, não pode enfim estar o verdadeiro Narciso. O Narciso que lá mora é um eidolon, uma ilusão de ótica, ou simplesmente um reflexo individualizado do sujeito aí refletido. Do outro lado do espelho mora o medo, o terror que representa a descida ao fundo de si, o pavor de aí encontrar a mentira, ou a pior das verdades. Narciso tombou. Resta só saber o que viu ele, do outro lado.

Coimbra, Fluir Perene, 2008, pp. 117-125.


_____________________________
(99) Artigo originalmente publicado no Boletim de Estudos Clássicos 45, 2006: 11-18.
(101) As fontes principais para o mito, por ordem cronológica, parecem ser a) Hino Homérico a Deméter (v. 6 sq.), Cónon (FGrHist. 26. 24), Pausânias (9, 31, 7-9) e Ovídio (Metamorfose 3. 339-510).
(102) Tanto mais que este assunto foi já tratado por A. Veloso 1975-1976: 167-190 e José Ribeiro Ferreira 2000: 95- 124.








MÁSCARAS DE NARCISO
(antologia e leitura orientada de poemas)


SONETO CXXVII

Vendo Narciso em uma fonte clara,
A sombra só da própria formosura,
De si vencido (Amor quis por ventura
Vingar as Ninfas qu'elle desprezara.)

Todo enlevado na beleza rara,
Que seu peito abrasou em chama pura,
Chorando disse, à sua vã figura,
Por quem perdeu em fim a vida chara:

O Ninfa destas águas moradora,
Surda em ouvir-me, muda em responder-me,
Não vês a quem não ouves, nem respondes?

Não vês que sou Narciso? ah que por verme,
Mil Ninfas d’Outras fontes saem fora,
Ε tu por me não ver, nesta t'escondes.

Diogo Bernardes (1530-1605), Rimas Várias: Flores de Lima, 1597



[…]
No soneto de Diogo Bernardes, que vamos aqui analisar, o esquema das quadras é precisamente do tipo quiástico ABBA, enquanto os tercetos apresentam três rimas cruzadas CDE DCE.
No decassílabo, o verso heroico (acentos na 6.ª e 10.ª sílaba) alterna com o verso sáfico (acentos na 4.ª,8.ª e 10.ª sílaba), sendo as duas variantes repartidas em proporções iguais: dos catorze decassílabos, sete são heroicos e sete sáficos, mas o primeiro tipo de verso domina nos tercetos (vv.6, 8, 9, 11-14) e o segundo prevalece nas quadras (vv. 1-5,7 e 10).
A mesma repartição harmoniosa e equilibrada encontra-se no ritmo dos versos, metade dos quais não tem cesura, enquanto os outros estão todos fortemente pausados. Veja-se, por exemplo, o incipit («Vendo Narciso em uma fonte clara»), ou também o v. 8 «por quem perdeo em fim a vida cara» ‑ aqui, a cesura é quase impercetível, ao contrário do que acontece no verso 10 «surda em ouvirme, | muda em responderme» ‑ ou no verso 14 «e tu por me não ver, | nesta t’escondes», onde a pausa entre os dois hemistíquios está bem marcada.
Ainda em relação ao ritmo, cabe aqui sublinhar a presença de quatro cavalgamentos (ou transportes, para usarmos esta palavra antiga e talvez erudita mas, ao mesmo tempo, elegante e sugestiva): transportes que anulam, de facto, a pausa final do verso nos nexos 1-2, 3-4, 5-6 e 7-8 (isto é, nos pontos nodais das quadras).
Na primeira estrofe, o desrespeito da pausa final produz-se em correlação com um sintagma oracional «(Vendo... a sombra») e com outro locucional («quis... vingar»). Na segunda, o transporte coincide com uma oração relativa (precisamente, uma subordinada adjetiva de valor restritivo).
À falta de transportes nos tercetos corresponde o predomínio, já assinalado, do decassílabo heroico sobre o sáfico, isto é, a programática moderação do ritmo, pela qual o poeta refreia a velocidade do verso, respeitando tanto a cesura no meio, como a pausa no final.
Se nos detivermos, agora, no facto de o ritmo de um poema estar necessariamente ligado à construção sintática dos seus períodos, poderemos constatar que, neste soneto, não há senão uma oração subordinada causal, que vai do primeiro até ao oitavo verso: uma única frase ocupa totalmente as duas quadras. Nela o poeta descreve tanto a cena atual (o presente), como o seu antecedente lógico-temporal (o passado).
Ao contrário, os tercetos apresentam um diálogo fictício (que é, na realidade, um monólogo de Narciso), constituído por uma série de orações interrogativas e exclamativas que vêm alternadas.
Toda a parte inicial do poema, sintaticamente enleada, gravita em torno da forma verbal disse, bem destacada pela forte cesura do verso. O período sintático enrola-se em forma de espiral em torno deste dissílabo, como um sorvedouro, sugerindo a imagem do ambiente aquático em que o mito situa Narciso (trata-se mais exatamente da fonte em que ele se debruça).
A mesma sugestão nasce da presença constante da líquida r na série das rimas (-ara, -ura, -ora, -erme): cria-se assim uma rede vertical de correspondências que liga, sem interrupção, toda a sequência das rimas ABCD até à última (-ondes), que ‑ mesmo faltando-lhe o fonema r – evoca contudo o substantivo onda, reforçando o sistema fonossimbólico do soneto.
Ao lado do elemento aquático, aparece bem clara a natureza silvestre do lugar: o bulício da folhagem, o murmúrio do arroio, o sussurro da brisa, a voz do bosque, imitada e até recriada pelos valores fonossimbólicos do f, do s, do v, do ch. Note-se o uso da aliteração nas séries seguintes: 1 fonte 2 fermosura; 2 sombra só 3 si; 3 vencido ventura 4 vingar 1 vendo 7 8 vida 11 ves 12 ves verme 14 ver (e também 10 ouvirme 11 ouves no interior da palavra); até ao par 6 chama 7 chorando, que sugere o pranto, e ao sintagma 14 nesta t'escondes. em que o som ch alude ao repentino desaparecimento da Ninfa dentro da folhagem.
Seguidamente ‑ e passando da segunda para a primeira articulação da linguagem (conforme a tese funcionalista de André Martinet), quer dizer dos fonemas para os monemas, dos sons para as palavras ‑ convirá realçar o papel essencial desempenhado pelos verbos ver e ouvir (1 vendo 11 não ves 12 não ves... por verme 14 não ver; 10 ouvirme 11 não ouves).
O verbo ver apoia-se numa tradição que é mais ideológica do que literária, remontando aos filósofos gregos (Platão e Aristóteles): o Amor só pode nascer pelos olhos, quer dizer pela vista da pessoa amada (gr. 'ap' ommàton'). O valor que ainda tem este princípio na Idade Média pode ser facilmente avaliado pelas palavras de Andreas Capellanus, autor do célebre tratado De Amore: «Caecitas impedit amorem, quia caecus videre non potest, unde suus possit animus immoderatam suscipere cogitationem, ergo in eo amor non potest oriri» (trad.: 'um cego ‑ privado, como é, da vista ‑ não pode amar, porque não tem a faculdade de ver').
No soneto de Diogo Bernardes, o antigo lugar-comum adquire mais força ligando-se ao mito de Narciso: aquele jovem de beleza excecional que Narciso vê, nas águas da fonte, não é senão a sua própria imagem refletida na superfície aquática como dentro de um espelho. Assim, o ato de ve, que constitui o verdadeiro começo do amor, sendo ao mesmo tempo o seu princípio e a sua causa, converte-se em cruel desengano. E o próprio objeto do amor não é mais do que uma imagem ilusória.
A distribuição das formas do verbo ver no soneto sublinha a sua natureza de eixo lexical do texto: vendo é a primeira palavra que se encontra no poema, com a função manifesta de introduzir o antecedente lógico e temporal da ação indicada na frase principal (disse). Narciso vê «a sombra só da própria fermosura» e, portanto, fala «à sua vã figura».
A forma verbal disse, no final das quadras, introduz o tema lexical dos tercetos, todo concentrado na oposição entre ouvir e responder: Diogo Bernardes alude, com muita elegância, ao mito da Ninfa Eco, cujo amor não era retribuído por Narciso. Quando Narciso morre, encantado pela sua própria beleza, a Ninfa Eco repete as últimas palavras que ele profere: «Ó jovem que amei com esforço vão, adeus!». É precisamente a partir desta fábula grega que Eco passa de nome próprio a substantivo comum, para indicar aquele fenómeno acústico devido à reflexão de uma onda sonora por um obstáculo e percebido como a repetição de um som emitido por uma mesma fonte.
Paralelamente, o nome de Narciso vai designar uma flor solitária, de cheiro intenso e penetrante, com pétalas alvas e o interior da corola vermelho escuro. O branco simboliza a pureza virginal, o vermelho representa o sangue que saiu do peito, quando Narciso ‑ desanimado ‑ deu a si mesmo a morte. […]

Ler mais: “O mito de narciso num soneto de Diogo Bernardes”, Barbara Spaggiari. Humanitas. Vol. 51 (1999).







NARCISO, GENTILEZA

Tem o Narciso tanta gentileza,
Que na fonte o rendeu sua beleza,
E hoje, por que o conte,
Há Narciso do espelho, e não da fonte.
Homem, que sem concelho,
Como dama te alinhas ao espelho,
O cristal à mulher, a ti o aço,
Abraça o que te é próprio,
Que ser homem e flor está impróprio
Se és belo, procede de tal arte,
Que quem te vê Narciso, te olhe Marte!

Soror Maria do Céu (1658-1753),
Antologia da Poesia Feminina Portuguesa,
António Salvado. Edições do Jornal do Fundão, 1973.




Thomas Dodd





IMAGEM

És como um lírio alvo e franzino,
Nascido ao pôr-do-sol, à beira d’água,
Numa paisagem erma onde cantava um sino
A de nascer inconsolável mágoa...
A vida é amarga. O amor, um pobre gozo...
Hás de amar e sofrer incompreendido,
Triste lírio franzino, inquieto, ansioso,
Frágil e dolorido...

Manuel Bandeira, A cinza das horas, 1917.



A leitura deste poema inicialmente traz uma sensação de melancolia, tristeza, fragilidade diante da vida. Porém, numa leitura mais atenta, pode-se perceber que o poema traz a reatualização do mito de Narciso de forma implícita. O título “Imagem” já aponta para a questão do reflexo, um dos principais mitemas do mito de Narciso. Ainda mais, o título terá este sentido na medida em que se interpreta o primeiro verso. Outros mitemas que remontam a Narciso aparecem no poema, tais como o eu-lírico se autocontemplando, nascido à beira d’água, o cenário de floresta, o amor impossível e o sofrimento diante do desejo inalcançável de si mesmo. Deve-se salientar que os mitemas estão de forma implícita, o que não impede a afirmação de que o poema traz, em si, o mito de Narciso.
O poema é composto por dois quartetos, observando-se versos polimétricos, com rimas externas ABAB, na primeira estrofe, e CDCD, na segunda estrofe. O primeiro verso, “És como um lírio alvo e franzino”, remonta, conforme mencionado anteriormente, à questão do reflexo. Aqui, neste momento inicial, o eu-lírico observa a sua imagem e analisa a sua beleza, se descobre. Os adjetivos “alvo” e “franzino” evidenciam a admiração, assim como Narciso se comparou aos deuses quando se reclinou na fonte. Pode-se depreender que “alvo” significa puro e inocente, e “franzino”, frágil e delicado – tem-se, então, uma beleza fina, pura, intocável. O substantivo “lírio” indica uma metonímia com a própria planta narciso, já demonstrando o final trágico do personagem. Portanto, no primeiro verso, o eu-lírico se vê e se admira. O conector “como” revela o nível de comparação que ele está tendo ao se surpreender com a sua própria imagem.
O segundo verso, “Nascido ao pôr-do-sol, à beira d’água”, revela a origem deste eu-lírico. O verso inteiro indica um dos mitemas fundamentais de Narciso, ou seja, sob o crepúsculo, na beira da fonte, o sujeito poético nasceu. A “água”, neste verso, não aparece gratuitamente, pois o vocábulo aponta diretamente para a reatualização do mito. O encadeamento do primeiro verso com o segundo registra todo o contexto de Narciso, o seu nascimento e o cenário póstumo: “A imagem nunca é um elemento: tem um passado que a constituiu; e um presente que a mantém viva e que permite a sua recorrência” (BOSI, 2000, p. 22).
Conforme a proposta de interpretação que se vem desenhando, o terceiro e o quarto versos possuem uma lógica de sentido, assim como os dois primeiros. O terceiro verso, “Numa paisagem erma onde cantava um sino”, mostra a situação em que se encontra o personagem do poema, o seu cenário e os acontecimentos. A “paisagem erma” revela que apenas o eu-lírico está ali, sozinho, se admirando. O canto do sino são as ninfas, sobretudo Eco, chamando a persona lírica, pois quando um sino toca, significa um chamamento a distância. O quarto verso, “A de nascer inconsolável mágoa...”, descreve o interior emocional que o eu-lírico irá conhecer pela ação de se apaixonar por si. Narciso foi condenado pelas ninfas do mesmo modo. A inconsolável mágoa que virá consiste no sofrimento sem solução, dor eterna de uma paixão não-recíproca.
Interessante observar que o eu-lírico, nascido nas águas, descobre a gênese do sofrimento na mesma água. O verbo “nascer” aparece duas vezes nesta estrofe: no segundo verso, indica a origem do eu-lírico; no quarto, esclarece a raiz da sua dor emocional.
A segunda estrofe legitima os factos da primeira e mostra um desfecho trágico para o eu-lírico, semelhante ao do mito de Narciso. O quinto verso traz: “A vida é amarga. O amor, um pobre gozo...”. No mito original, Narciso fazia parte do programa de formação do efebo para atividades militares em grupo. Porém, o personagem segue um rumo oposto ao destino imposto pela cidade. Ele escolhe a solidão dos campos, vivendo sozinho, sem as atividades militares dos grupos. A primeira parte do quinto verso, “A vida é amarga”, aponta para um sujeito descontente com a experiência vivida, assim como Narciso.
Devido ao facto de ser condenado pelas ninfas, o amor que Narciso descobre será raso de afeto, conforme se vê em “O amor, um pobre gozo...”. No poema, o eu lírico, mesmo tendo consciência da efemeridade do amor de si, segue tentando uma aproximação da sua imagem. No sexto verso, “Hás de amar e sofrer incompreendido”, volta a questão do seu destino, que é o mesmo de Eco. As antíteses “amar” e “sofrer” começam a delinear a trajetória do eu-lírico.  O amor por si  mesmo lhe trará um sofrimento indelével.
O sétimo verso, “Triste lírio franzino, inquieto, ansioso“, descreve todas as sensações  percebidas  pelo  eu-lírico.  A  imagem  causa-lhe  inquietação e entorpecimento. A  tristeza  começa  a  vir  pelo  facto  do  reflexo  não  corresponder inteiramente ao que ele desejara. Os movimentos do reflexo e a sua não-nitidez, em alguns momentos, deixam o eu-lírico ansioso e triste.
O  oitavo  verso,  “Frágil  e  dolorido...”,  revela  um  desfecho  interpretativo semelhante ao do mito de Narciso. O adjetivo “frágil” indica a situação emocional, no sentido da paixão entorpecida, como também demonstra as consequências físicas e o estado biológico do eu-lírico. Com o isolamento prolongado, a fome lhe traz dor, mas a admiração não se encerra, pois ele vai até o fim do sofrimento. Portanto, este último verso  registra  o  término  do  poema  e  o  do  eu-lírico;  aqui,  Narciso.  De  um  amor incompreendido, restam a fragilidade e a dor, seguidas pela morte, com as reticências sugerindo algo penoso para este personagem apaixonado.
Por fim, resta apontar que o título – “Imagem” – remonta ao contexto de reflexo, já que se pode interpretar que a segundo estrofe é o reflexo turvo da primeira, uma vez  que  o  poema  tem  apenas  estas  duas,  compostas  de  versos  com  tamanhos semelhantes.

O mito de Narciso no poema ‘Imagem’, de Manuel Bandeira”, Bruno Marques Duarte.
Revista Iluminart – ISSN : 1984-8625 – Número 5 – Agosto de 2010 - IFSP – Campus Sertãozinho





Dead Narcissus, with wasting Echo in the background


Espelhos: o que sois na vossa essência,
nunca ninguém saberá explicá-lo.
Como os furos do crivo, sois a ausência,
do tempo a preencher como intervalo.

Vós, que esbanjais a sala inda deserta –,
vastos como florestas, quando a noite regressa…
E o lustre, como hastes múltiplas de algum gamo alerta,
vossa água inviolável atravessa.

Tanta vez estais cheios de pinturas.
Umas em vós parecem estranhadas –,
as outras afastou-as a vossa timidez.

Mas a mais bela de todas as figuras
ficará lá no fundo, até nas faces recatadas
romper claro e narciso sua timidez.

Os Sonetos a Orfeu de Rainer Maria Rilke, Rainer Maria Rilke, 1923.

Trad. de Vasco Graça Moura. 1ª ed. Lisboa: Quetzal, 1994. ISBN 972-564-212-0.


Creative photo art by Thomas Dodd
Thomas Dodd


NARCISO

Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!

Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico bem ouço!
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!...

Assim me desejei nestas imagens,
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:

Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho!

José Régio, Biografia, 1929.



Trata-se de um soneto decassílabo onde se observa uma linha de raciocínio lógico nas escolhas dos vocábulos que garantem as rimas externas dos dois quartetos e tercetos: tremia/escondia; poço/arcabouço; fria/melancolia; ouço/moço; imagens/selvagens; vermelho/espelho e estranha/tenha. Com a liberdade que o leitor goza, no ato de leitura, de organizar os signos de forma a compreendê-los e interpretá-los, uma nova frase se constrói no elenco dessas rimas: Tremia e escondia nesse poço, arcabouço, dessa fria melancolia, que moço ouço, essas imagens selvagens que no espelho vermelho estranhas tenha.
No poema, tem-se a presença de dois sujeitos, Eu/Tu, que, como o próprio título do poema deixa entrever, representam um só Eu cindido em dois. A dualidade do sujeito já vem marcada na forma eleita pelo poeta, o soneto, pois que ela é simétrica. Outro detalhe a ser observado refere-se às aliterações dos encontros consonantais nos dois quartetos: Dentro – tremia – Dobrado – próprio; fria – sôfrego – fronte. A presença da consoante vibrante /r/ reforça a ideia do medo, do sentimento da experiência religiosa de se estar diante do numinoso, é a sensação do tremendum – do terror místico. O tremendum (pavor sacer) é uma sensação de apagamento do ser ante o objeto numinoso, é a sensação do nada. O numinoso é sempre aquilo de que não nos aproximamos sem morrer. O que significa dizer que essa relação de tremendum ou de veneração, que é estabelecida pelo homem diante do numinoso, coloca em xeque o conhecimento de si, o cosmos interior do recetor. Rudolf Otto definiu esse conhecimento de si como o sentimento da criatura que se abisma no seu próprio nada e desaparece perante o que está acima de toda a criatura (O sagrado. Trad. João Gama. Rio de Janeiro, Edições 70, Ltda. p.19). Essa experiência religiosa da aniquilação do sujeito que se reencontra no outro Eu só parece ser possível no espaço eleito, o da poesia, que possibilita o acesso ao silêncio esfíngico que bem ouço. Somente em dois momentos temos a presença de reticências no poema, que se apresentam no primeiro quarteto e no segundo terceto, como se representassem a abertura e o fechamento da frase, do poema e da experiência religiosa: Dobrado em dois sobre meu próprio poço... Lá no fundo do poço em que me espelho. Há dois poços, o próprio poço e o poço em que me espelho e o que propicia esse encontro é o desejo do eu lírico em fazer de sua poesia a expressão de seu desejo, o da junção dos dois Eus: Assim me desejei nestas imagens/ Meus poemas requintados e selvagens,/ O meu Desejo os sulca de vermelho:/ Que eu vivo à espera dessa noite estranha,/ Noite de amor em que me goze e tenha. Esse poema introduz, neste estudo, uma característica forte da poesia regiana, a metapoesia. E, enquanto tal, essa poesia apresenta o par dicotômico “fundo e forma”, os dois elementos coexistem e, contudo, não anulam o conflito, que é, em verdade, um conflito humano, o da eterna busca pelo autoconhecimento que não se dá sem pathos.

As encruzilhadas de Deus: uma leitura da estética e da religiosidade na poesia de José Régio”,
Adna Candido de Paula (Profª. Adjunta da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD)










NINGUÉM A OUTRO AMA

Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto.
Nada te pese que não te amem. Sentem-te
        Quem és, e és estrangeiro.
Cura de ser quem és, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrerás avaro
        De penas.

10-8-1932
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa.
(Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).  - 145.




Narcissus languishing by his reflection, Nicolas Bernardt Lepicie




EPIGRAMA

Narciso, foste caluniado pelos homens,
por teres deixado cair, uma tarde, na água incolor,
a desfeita grinalda vermelha do teu sorriso.
Narciso, eu sei que não sorrias para o teu vulto, dentro
da onda:
sorrias para a onda, apenas, que enlouquecera, e que
sonhava
gerar no ritmo do seu corpo, ermo e indeciso,
a estátua de cristal que, sobre a tarde, a contemplava,
florindo-a para sempre, com o seu efêmero sorriso...

Cecília Meireles, Vaga Música, 1942



Nessa peça de longos versos, o sujeito lírico dialoga solidariamente com Narciso retomando o relato mítico e a hermenêutica dos homens que o condenaram. Tal retomada ocorre mediante delicada subversão dos elementos em jogo no mito. Na primeira terça, de modo metonímico, a poeta alude à queda do sorriso, “desfeita grinalda vermelha”, na “água incolor” para falar, em verdade, da queda do moço nas águas, o que é um modo eufemizado de sugerir que sua morte não foi intencional, por suicídio conforme dispõe o mito, mas por uma queda inevitável.
Na segunda apóstrofe a Narciso, o eu lírico, ainda em declarada cumplicidade, afiança saber que o sorriso do jovem não é para o seu reflexo, o “vulto, dentro da onda”, mas para a onda posta em relação com ele. Essa onda insurge como o outro da relação e é antropomorfizada na loucura de sonhar uma criação a partir do belo corpo do rapaz. Note-se a variante do mito na transposição da loucura de Narciso para a onda, porquanto a fixação patológica não é dele por seu reflexo, mas da onda por ele. Ao transferir a fascinação perturbada para a onda, a poeta acrescenta a não indiferença do moço, já que a onda é alvo da contemplação sorridente de Narciso, “sorrias para a onda”. Há aqui, portanto, o encontro, certa comunhão, do jovem com um terceiro que também não se manifesta no original do mito.
O dístico final do poema revela o louco sonho da onda: ela desejava conceber uma “estátua de cristal” com o corpo de Narciso, “sonhava / gerar no ritmo do seu corpo”. Por isso, ela precisava do seu belo sorriso para enfeitar sua obra: “florindo-a, para sempre, com o seu efêmero sorriso...” Desse modo, a poeta desloca a ênfase do relato mítico — a fraqueza de Narciso em apegar-se a própria imagem — para a ambição insana da onda, metonímia das águas, tornando-a a grande responsável pela desdita do rapaz. E, por fim, a poeta chama Narciso para dizer que, embora os homens o caluniem, ela sabe o alcance da injustiça, pois conhece a verdade, uma verdade que destoa da oficial, na qual o jovem foi seduzido pela onda das águas e, por essa paixão votada a ela não a si mesmo, também foi arrebatado para a morte.
Por essas incursões, pode-se constatar a recorrência ao arquétipo de Narciso tanto no texto poético de García Lorca como no de Cecília Meireles. O espanhol e a brasileira empreendem um mergulho ontológico, nas águas ancestrais do mito, selando o encontro vivo da poesia defronte o espelho, onde, de posse dessa fonte não contaminada, refundem a palavra poética das suas lições e, do caos ao cosmo, tentam superar a atomização restaurando sua integralidade na esfera do poético. Assim, a bela figura de Narciso deve continuar inspirando os poetas e, conforme considerou Jung, sua sombra ou seu reflexo — a imago perdida do triste moço — deve também perdurar acesa em nós (BRANDÃO, 2005, p. 189).

Cecília Meireles e García Lorca entre os espelhos de Narciso”, Soraya Borges Costa,
Revista Crioula nº 8 – novembro de 2010.


Ler também: A poeta ao espelho(Cecília Meireles e o mito de narciso), Jose Carlos Zambolli. Dissertação (Mestrado). Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002.







DdiArte

O ESPELHO

E como eu passasse por diante do espelho
não vi meu quarto com as suas estantes
nem este meu rosto
onde escorre o tempo.

Vi primeiro uns retratos na parede:
janelas onde olham avós hirsutos
e as vovozinhas de saia-balão
como pára-quedistas às avessas que subissem do fundo do tempo.
O relógio marcava a hora
mas não dizia o dia. O tempo,
desconcertado,
estava parado.

Sim, estava parado
em cima do telhado...
como um catavento que perdeu as asas!


Adrian Kissing, 2007.


O AUTO-RETRATO

No traço que me faço
- traço a traço –
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...

e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco –
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança...
corrigido por um louco!


MUNDOS

Um elevador lento e de ferragens belle époque
me leva ao antepenúltimo andar do Céu,
cheio de espelhos baços e de poltronas como o hall
de qualquer um antigo Grande Hotel,

mas deserto, deliciosamente deserto
de jornais falados e outros fantasmas da TV,
pois só se vê, ali, o que ali se vê
e só se escuta mesmo o que está bem perto:

é um mundo nosso, de tocar com os dedos,
mas este – onde a gente nunca está, ao certo,
no lugar em que está o próprio corpo

mas noutra parte, sempre do lado de lá!
não, não este mundo – onde um perfil é paralelo ao outro
e onde nenhum olhar jamais se encontrará...


VIDAS

Nós vivemos num mundo de espelhos,
mas os espelhos roubam nossa imagem...
quando eles se partirem numa infinidade de estilhas
seremos apenas pó tapetando a paisagem.

Homens virão, porém, de algum mundo selvagem
e, com estes brilhantes destroços de vidro,
nossas mulheres se adornarão, seus filhos
inventarão um jogo com o que sobrar dos ossos.

E não posso terminar a visão
porque ainda não terminou o soneto
e o tempo é uma tela que precisa ser tecida...

mas quem foi que tomou agora o fio da minha vida?
que outro lábio canta, com a minha voz perdida,
nossa eterna primeira canção?!


O VELHO DO ESPELHO

Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto ... é cada vez mais estranho...
meu Deus, meu Deus... parece
meu velho pai! – que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar – duro – interroga:
“O que fizeste de mim?!”
eu, Pai?! Tu é que me invadiste,
lentamente, ruga a ruga... Que importa?! Eu sou, ainda,
aquele mesmo menino teimoso de sempre
e os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra! –
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...

Mario Quintana
Mario Quintana - Poesia Completa. Apontamentos de História Sobrenatural, Editora Nova Aguillar


A recorrência ao mito de narciso na poesia de Quintana é significativa. Mas não como uma imagem totalizante, na qual se possam ler os mitemas mais importantes, ou mais reconhecíveis, e ver uma narrativa completa. Não se pode esquecer que a época de Mário é marcada pela fragmentação, ou pela multiplicação dos pedaços que antes compunham um todo facilmente montado como se fosse um quebra-cabeça. As partes que volta e meia compõem as identidades do poeta são encabeçados pela figura do pai (“O velho do espelho”), por objetos insólitos para essa relação, tais como o baú (“A alma e o baú”), retratos de parede das avozinhas (“O espelho”), elementos da natureza (“Auto-retrato”), os sapatos (“Canção de primavera”), e outros. É bom lembrar de Bauman: (...) só se pode comparar a biografia com um quebra-cabeça incompleto, ao qual faltam muitas peças (e jamais se saberá quantas). Deduz-se que a construção de uma identidade, marca mitêmica mais importante no mito para os tempos modernos e sucedâneos, assumiu a forma de um experimento que não tem fim. Por outro lado, a identidade só se estabelece como busca quando se a perde. Sempre que se ouvir essa palavra [identidade], pode-se estar certo de que está havendo uma batalha. (...) Ela só vem à luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem os ruídos da refrega (BAUMAN, 2005).
A releitura de Mário passa por recortes de mitemas, que muitas vezes fazem com que nossa leitura se disperse e não perceba que por trás de sua poesia está um homem representativo do seu tempo, isto é, visceralmente multiplicado em dois ou mais imagens de si mesmo. Para isso, é preciso considerar que o mito de narciso tem sido muito caro à modernidade. A crise de identidade advinda com o agravamento da modernidade tem no mito um respaldo significativo. Em Mário, não se trata apenas do sujeito particular, mas de uma representação de humanidade muito afeita ao Brasil do século XX, como aliás, seus companheiros de geração modernista: Cecília Meireles e seus auto-retratos, Vinícius de Moraes como o homem belo e erótico, Murilo Mendes multiplicado em suas inúmeras formas de fazer poesia, Jorge de Lima e as religiões que o formaram, etc.
De Quintana, tomo um poema especial para esta perspectiva:

CANÇÃO

Cheguei a concha da orelha
à concha do caracol.

Escutei
vozes amadas
que eu julgava
eternamente perdidas.

Uma havia
que dentre as outras mais graves
tão clara e alta se erguia...

que eu escutei mas descobri
que era a minha própria voz:
sessenta anos havia
ou mais
que ali estava encerrada.

Meu Deus, as coisas que ela dizia!
As coisas que perguntava!
Eu deixei-as sem resposta.

As outras vozes, mais graves,
tampouco
nenhuma lhe respondia.

O mundo é um búzio oco,
menino...

mundo de vozes perdidas
e onde apenas o eco
eternamente
repete as mesmas perguntas.

Trata-se de poema de forma bastante livre, assim como a constituição dos seus versos. As estrofes são variadas, o que indica uma certa liberdade formal que certamente acompanha também uma certa liberdade temática. A primeira leitura do poema não desvenda de imediato o que o está formatando, isto é, o mito de narciso. A paráfrase, bastante simples, revela que o texto recria uma imagem, ou uma brincadeira muito comum entre as crianças, pois se trata de ouvir o marulhar do côncavo das conchas. Essa cena apresenta um pouco de movimento, seguido de um quadro estático, no qual o eu-lírico apenas ouve um som e se põe a fazer considerações que repercutem no seu pensamento. Aquilo que ouve causa-lhe surpresa, mas não o movimenta o suficiente para agir. Ao ouvir as vozes do passado em substituição do marulhar, uma delas a sua própria sessenta anos antes, fica calado e não interage com nenhuma. Conclui que o mundo é um búzio oco com as mesmas perguntas de sempre, sem as respostas de sempre. Aparentemente nada conduz nosso olhar para os mitemas de narciso, contudo é sempre bom lembrar que os poetas de origem modernista, como ele, mantêm, ao lado da metapoesia, constituindo uma das partes do duplo, a auto-persecução, material mitêmico fundamental do mito na modernidade e sucedâneos. 
A ação inicial que o poema concretiza é muito singela e remete a um contexto infantil. O eu-lírico pretende escutar alguma coisa na casca do caracol, como o fazem as crianças. São duas conchas, de materiais radicalmente diferentes – o pavilhão da orelha, que tem uma forma encaracolada para captar melhor o som, e a casca protetora da lesma cujo formato é espiralado. No poema, a cartilagem humana e a massa óssea do molusco se aproximam para unir os tempos, isto é, o presente e o passado. Sintomaticamente estas primeiras estrofes do poema são governadas por verbos no pretérito.
O poema admite uma divisão ternária concernente aos tempos verbais empregados. Comparecem, em ordem de presença, o pretérito perfeito, o pretérito imperfeito e o indicativo presente. Essa gradação encerra uma significação muito particular de o poeta lidar com suas marcas do passado. 
A ação propriamente dita é realizada no perfeito indicativo – cheguei – indicando uma ação realizada. Esse passado se manterá fechado até o momento em que na continuidade desta ação se sobrepõe uma outra, de caráter não ativo, isto é, escutei – também no pretérito perfeito. Ocorre que essa ação encerrada no passado passa a ser relativizada com o inesperado do resultado: pela audição, o eu-lírico teve acesso a um tempo que achava enterrado. A partir do pronome relativo (“que eu julgava”), que serve justamente para relativizar as partes, o tempo verbal, ainda que no pretérito, passa a ser declinado no imperfeito, indicando uma certa continuidade da ação, diminuindo o caráter definitivo do passado.  Aparecem, na seqüência, os verbos “julgava”, “havia”, “erguia”, “era”.  O ato de aproximação e de ouvir as vozes do passado, que estavam reclusas na concha, determinam uma relação especular entre o homem de hoje e a criança de ontem. A quarta estrofe coloca o inusitado da descoberta. O menino que fora retorna não pela imagem visual, típica no mito de narciso, mas pela imagem auditiva: “que eu escutei mas descobri / que era a minha própria voz: / sessenta anos havia / ou mais / que ali estava encerrada.
Sem dúvida, muitas outras questões estão presentes neste poema de Quintana. Mas gostaria de apontar que a infância, nele, não serve apenas como resgate de um tempo feliz, à moda romântica. Ela é o decalque do original. Como cópia, deveria estar à serviço da perscrutação, no entanto o eu-lírico é categórico. Reconhece-se na voz do passado, mas nega-se ao diálogo. Certamente, o próprio poema reflete sobre essa negativa. A última estrofe determina, pela declinação temporal aliada à significação dada à Eco, a incompatibilidade entre aquilo que foi com aquilo que é.  Assim, o poeta recoloca e redimensiona um mitema muito caro ao mito de narciso, qual seja, a Eco, ninfa que desencadeia uma boa parte da dissonância identitária do rapaz. No poema, destituída de tamanha importância, resta-lhe apenas ser uma representação, porquanto está substantivada, de uma repetição inócua e estéril, pois não é capaz de responder, apenas de repetir as perguntas. Esta terceira e última parte do poema está declinada no presente do indicativo, e o faz através de um verbo de ligação, cuja significação se concentra em definir uma existência: “O mundo é um búzio oco”.
Há, no final do poema, um sentido de pessimismo que se revela na desistência do eu-lírico em buscar sua identidade perdida da voz infantil (passados sessenta anos ou mais) que a concha do caramujo e da sua orelha lhe trazem de volta. As perguntas que sua própria voz lhe fazem ficam sem resposta e sem atenção. Apesar de saber sua, a voz do passado não lhe pertence mais. A descontinuidade entre o original e o decalque parece não ter solução.
A mito de narciso, neste poema, perde muitos de seus mitemas “originais”, adaptando-os e redimensionando-os para um outro “ensinamento”.  Não há mais a presença direta da água como espelho sobre o qual o sujeito se debruça para se ver. A Fonte Téspia assume uma outra configuração. A “concha”, cujo simbolismo está relacionado à água, à fecundidade, à libido, ao feminino tem uma abrangência particular e individual, e sua versão como “búzio”, que também se liga aos mesmos arquétipos da lua-água, da gestação-fertilidade compreende um todo maior que ultrapassa a medida individual – o mundo. No entanto, ambos elementos simbólicos compõem, no poema, uma expressão de significado oximórico, pois o búzio é produtor do som primordial e originário das águas primevas (esse caráter primordial está colocado, implicitamente, no tempo a que o eu-lírico localiza nas vozes ouvidas – sua infância), bem como representa a noção do eu, da consciência individual, através do desenvolvimento espiralóide de suas formas, remetendo, assim, às grande evoluções interiores e exteriores (CHEVALIER; 1997).
Quintana diferentemente de muitos poetas de sua geração, renega o auto-conhecimento pela via especular. No mito, o espelho sobre o qual se dá o enamoramento e o auto-reconhecimento é feito de água, a Fonte Téspia, buscando nela a imagem visual necessária para reconhecer o eu-outro. Quando Narciso consegue identificar-se como imagem e decalque, morre de inanição ao lado das águas. No poema de Quintana, o espelho não se faz de água, mas de ar, já que a Fonte se transmuta em concha e dela saem as vozes em cima das quais o eu-lírico reconhece-se, passados sessenta anos. A imagem que propicia o auto-reconhecimento é auditiva, e não visual. Ocorre que esse narciso se recusa a se ver e a se ouvir, isto é, não quer saber de eu e eu-outro. Não morre explicitamente como o do mito, mas sua recusa equivale a uma espécie de morte, na qual se percebe um certo conformismo diante das indagações humanas. De forma inusitada, na poesia de Quintana, a poesia de Apontamentos de História Sobrenatural, há reescrituras do mito, nas quais o poeta prioriza certos segmentos, como neste caso a relação especular, mas igualmente os modifica alterando suas substâncias, como da água passa ao ar, ou da imagem visual passa à auditiva. Por outro lado, a persecução intensa que vem marcando o mito desde a modernidade, nele deixa de ser alvo a ser atingido, porque a imagem especular, descoberta sempre com surpresa, é negada. Trata-se, enfim, de um narciso escusado, porquanto se recusa a um dos mitemas mais significativos do mito para a modernidade, qual seja, esgaravatar a si mesmo.  

Raquel R. Souza, “Mário Quintana e o narciso escusado”. Texto apresentado no Seminário sobre os Cem anos de Mário Quintana, FURG, novembro de 2006. Ler mais em: https://www.academia.edu/4395527/Mario_Quintana_e_o_narciso_escusado





"Narciso", Pierre et Gilles (2013)


O caso de Miguel Torga é muito expressivo para dar conta da entrada da palavra «Auto-retrato» no léxico poético português do século XX (a acompanhar a dicionarização da palavra em 1949). Com efeito, Torga escreve possivelmente com pouco tempo de diferença os poemas «Retrato», publicado em Diário VI, de 1953, e datado de 12 de março de 1952 (TORGA, 2000: 447), e «Auto-retrato», publicado em Penas do Purgatório, de 1954 (TORGA, 2000: 497):

 

Auto-retrato

 

É por detrás do espelho que me vejo,

Numa espécie de quadro em negativo.

Sinais fundos e certos de que vivo,

Mas sem a nitidez que todos me atribuem

Desde o começo.

Baça inquietação, ambígua semelhança

Com aquele velho, jovem ou criança

Que pareço.

(TORGA, 1954: 55; 2000: 497.)

Ler mais: Teresa Ferreira, Autorretratos na Poesia Portuguesa do Século XX, Teresa Ferreira. Universidade Nova de Lisboa – FCSH, 2019



Vejamos então um poeta que se autoperscruta no lago cujas águas, no poema apresentado, estão turvas.


LAGO TURVO

Angústia marginada,
Meu canto é um lago turvo
Que devolve a paisagem, como um eco
Silencioso.
Um lago onde me afogo
Sem vontade,
Puramente impelido
Por não sei que fatal necessidade
De me sentir poeta e possuído.

Mar sem nascente e só do meu tamanho,
A doçura que tem é um sal sem gosto.
E a estranha inquietação de que se anima,
E o céu olha de cima,
São rugas que se agitam no meu rosto.

Coimbra, 28 de Abril de 1956
Miguel Torga, Diário VIII, 822.



Julgamos pertinente referir o contexto de produção deste poema, pois, como já sucedeu anteriormente, a sua inserção num registo que se pretende diário permite-nos fazê-lo. Os versos foram escritos após a morte e enterro do pai do poeta (26 de Abril de 1956). Momento de passagem, de transição para uma nova etapa da vida, o diarista regista que “O número um da família passei a ser eu, e quando alguém perguntar pelo dono da casa, ou a morte vier de novo, terei de aparecer à porta e dizer: Aqui estou.”(Diário VIII, 821) Analisando o seu percurso de vida, acrescenta ainda: “Acabou definitivamente a minha infância, e olho com terror este insólito fantasma adulto em que subitamente me transformei.” (Diário VIII, 821). Muito ao seu jeito, sentindo-se irmão da fauna e da flora que bem conhece, denuncia o desconcerto, o pânico e a impotência perante a situação: “Pareço uma rês enfragada, a que ninguém pode acudir. Gemo no fundo do abismo, com a alma partida, e só no desespero encontro conforto.” (Diário VIII, 821).
Não admira, portanto, que surja o momento de auto-observação, para se atingir a autognose, seguindo os preceitos délficos. Contudo, o reflexo não é nítido, o lago é turvo e não permite o autoconhecimento, o eco185 que transmite é silencioso. Impelido / por não sei que fatal necessidade / de se sentir poeta e possuído, o sujeito poético afoga-se no lago, embora sem vontade. Tantas linhas de leitura, tantas possibilidades de interpretação… Tantas talvez como as dúvidas do sujeito poético, poeta, uma vez mais.
José Ribeiro Ferreira diz-nos que
“Em Miguel Torga, Narciso simboliza sobretudo o desejo de introspeção do homem (…) Outras vezes o mito aparece como símbolo do desejo do artista em rever-se na sua própria obra – quer seja o poema, o quadro, a estátua ou a sinfonia – que é «espelho de cada Narciso» (Diário VI, 1953, p. 36). É esta conceção do mito como introspeção da alma humana – do homem que deseja «ver-se» por inteiro e que «denodadamente se procura», quer seja artista, poeta ou pensador (…)”.186

Narciso nasce para a cultura ocidental por intermédio das Metamorfoses de Ovídio. Sem dúvida a versão mais conhecida do mito (até porque as fontes mitográficas mais conhecidas dos artistas, como os poemas homéricos, a Teogonia ou os trágicos gregos, não o referem), foi através dela que também Torga acedeu a este mythos. A figura mítica é descendente de Cefiso e da ninfa Liríope, que pergunta a Tirésias se o filho viverá muitos anos. O “fatidicus uates” responde-lhe, elíptica e enigmaticamente: “Si se non nouerit”187. Embora aparentemente inofensivo, este “Se não se conhecer a si próprio” vai determinar todo o mythos narcísico.
Passando diante de um apelativo lago, Narciso pára para beber, contudo esta sede dá origem a outra, conotativa, metafórica, mais difícil de matar: “dumque sitim sedare cupit, sitis altera crevit, / dumque bibit, visae correptus imagine formae”188 Enamorado de si, “Quantas vezes beijos vãos não deu àquela fonte enganadora! / Quantas vezes não mergulhou os braços no meio das águas / para abraçar o pescoço que vê, e não se abraçou a si mesmo!”189. Conjuga em si, simultaneamente, o amador (probat / petit) e a cousa amada (probatur / petitur) camonianos190. Deste modo, não conseguindo unir-se a si próprio, decide que “nunc duo concordes anima moriemur in una”191 (atente-se na expressividade de una anima).
Contudo, ao fazer esta afirmação, derramando lágrimas, turva a superfície da água, que lhe devolve uma imagem desfocada, “obscura”, no original: “Dixit et ad faciem rediit male sanus eandem / et lacrimis turbauit aquas, obscuraque moto / reddita forma lacu est”192.
A análise do texto ovidiano permite-nos inferir que Torga o conhecia bem, que leu a fonte mitográfica e que partiu dela para (se) (re)criar mythos. Também o sujeito poético, cujo canto é um lago turvo, terá movido as águas com as suas lágrimas de angústia e de inquietação. E também ele mergulha no lago, afogando-se, no mar sem nascente que, paradoxalmente, possui uma doçura que é um sal sem gosto.
Debruçando-se sobre este poema, Maria Fernanda Afonso afirma que a “referência espacial do mundo de Baixo (cf. «lago», «onde me afogo»)” “nos remete para um Narciso ctónico ou, melhor dizendo, para a outra face do poeta que se consubstancia em Orfeu.”193 Ou seja, uma vez mais, o mythos é poiesis e metapoiesis. Narciso é também o poeta que, à semelhança do Orfeu que desceu dentro de si, mergulha e se afoga em si mesmo, numa tentativa de se conhecer, à Poesia e ao seu canto.

O filho de Cefiso, na obra de Torga, obviamente não se esgota neste poema. Contudo, a insistência no movimento das águas, que não permite a autoperscrutação, mantém-se. Vejamos o poema “O Narciso”, de Cântico do Homem (1950).


O NARCISO

O desenho impreciso
De cada rosto humano, refletido!
Mas o velho Narciso
Continua fiel e debruçado
Sobre o ribeiro…
Por que não há de ver-se inteiro
Quem todo se deseja revelado?
Devorador da vida lhe chamaram,
A ele, artista, sábio e pensador,
Que denodadamente se procura!
À movediça e trágica tortura
De velar dia e noite a líquida corrente
Que dilui a verdade,
Quiseram-lhe juntar a permanente
Ironia
Desse labéu de pérfida maldade
Que turva mais ainda a imagem fugidia… 194

Narciso é o artista, o sábio, o pensador, que procura as respostas em si, desejando ver-se inteiro, todo revelado. Contudo, uma vez mais, as águas turvas tornam a imagem fugidia.
Torga produziu um outro poema que faz referência a esta figura mítica. “Mergulho” foi motivado pela visita ao Poço do Inferno, na Serra da Estrela:


MERGULHO

Tirem o Céu da sua altura triste;
Olhem a cor do inferno aqui no chão:
Verde-esmeralda que, se não existe,
É um milagre de luz em cada mão.
Anjos de barro, o nosso espelho apenas
Deve ser o cristal que viu Narciso:
Água dum poço de ilusões pequenas
Onde morra e renasça o Paraíso. 195

Serra da Estrela, Poço do Inferno, 22 de Julho de 1951


Em tom disfórico, o poema reflete sobre o Céu e o inferno e, uma vez mais, sobre o Homem, anjo de barro. Embora a água já não seja turva, mas cristal, o lago é simplesmente um poço de ilusões pequenas.
Terminando, pretendemos demonstrar novamente como o texto fundador de Ovídio foi recebido, acolhido e (re)criado por Torga. Concluindo a narrativa de Narciso, o poeta latino remata com a sua metamorfose, ocorrida após a morte: “croceum pro corpore florem / inveniunt foliis medium cingentibus albis”196. Torga recupera esta transfiguração, aplicando-a ao povo português, no ensaio sobre “Lisboa”, parte integrante de Portugal:
“Enamorado de si, morreu Narciso à beira dum regato onde se mirava. E as ninfas, compadecidas da sua desgraça, pediram aos deuses que o transformassem numa flor.
Narcisos que fomos também um dia, esperava-nos um destino igual ao do filho de Cefiso. Lisboa é essa flor em que o destino nos transformou; o Tejo, o rio onde nos perdemos a contemplar a própria imagem.”197
Verificamos, deste modo, as multímodas e plurissignificantes leituras que o autor faz dos mitos.


A influência clássica na obra poética de Miguel Torga: o caso particular do ‘Diário’
Ana Sofia Sequeira Madeira de Albuquerque e Aguilar, Lisboa, FLUL, 2010.


______________________
(185) Reconhecemos aqui uma outra vertente do mito de Narciso, que, segundo Ovídio (Metamorfoses, III, 356-401), terá rejeitado a ninfa Eco, eterna duplicadora das últimas sílabas das palavras pronunciadas por outros.
(186) FERREIRA, José Ribeiro, “O mito de Narciso na poesia portuguesa contemporânea”, in AA. VV., A Mitologia Clássica e a Sua Recepção na Literatura Portuguesa. Braga: Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Filosofia, 2000, 109.
(187) Metamorfoses, III, 348.
(188) Metamorfoses, III, 415-416. Tradução, op. cit., 96: “Enquanto procura acalmar a sede, uma outra sede cresce; / e enquanto bebe, arrebata-o a imagem da figura que vê.”)
(189) Tradução de Metamorfoses, III, 427-429: “inrita fallaci quotiens dedit oscula fonti, / in mediis quotiens visum captantia collum / bracchia mersit aquis nec se deprendit in illis!”.
(190) Metamorfoses, III, 425-426: “se cupit inprudens et, qui probat, ipse probatur, / dumque petit, petitur, pariterque accendit et ardet”.
(191) Metamorfoses, III, 473. Tradução (op. cit., 97): “Agora morreremos os dois juntos, num só último sopro”.
(192) Metamorfoses, III, 474-476 (o destacado é nosso). Tradução (op. cit., 97-98): “Assim dizendo, em delírio, volta-se para aquela mesma face, / e com lágrimas turvou a superfície da água: estremecendo, / a lagoa devolveu a imagem desfocada.”.
(193) AFONSO, Maria Fernanda, Escrita e Mito em Miguel Torga: Espelhos do Eu Poeta, tese de Mestrado em Literatura Portuguesa apresentada à FLUL (Lisboa, 1995) 33.
(194) Cântico do Homem, 1950: 407.
(195) Diário VI, 1953: 602.



Narciso, Erika Mériaux (2010)

NARCISO CEGO

Tudo o que de mim se perde
acrescenta-se ao que sou.
Contudo, me desconheço.
Pelas minhas cercanias
passeio — não me frequento.

Por sobre fonte erma e esquiva
flutua-me, íntegra, a face.
Mas nunca me vejo: e sigo
com face mal disfarçada.
Oh que amargo é o não poder
rosto a rosto contemplar
aquilo que ignoto sou;
distinguir até que ponto
sou eu mesmo que me levo
ou se um nume irrevelável
que (para ser) vem morar
comigo, dentro de mim,
mas me abandona se rolo
pelos declives do mundo.

Desfaço-me do que sonho:
faço-me sonho de alguém
oculto. Talvez um Deus
sonhe comigo, cobice
o que eu guardo e nunca usei.

Cego assim, não me decifro.
E o imaginar-me sonhado
não me completa: a ganância
de ser-me inteiro prossegue.
E pairo — pânico mudo —
entre o sonho e o sonhador.

Publicado no livro Narciso Cego; Seguido do Romance do Primogênito (1952).
In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.


NARCISO

Curvei, sobre o regato, o corpo todo...

Porém, mal entrevi o meu retrato,
que foi olhar e as águas do regato
se turbaram, manchadas do meu lodo.

Depois, cavei cá dentro com denodo;
perfumei-me de flores azuis do mato;
e, quando cri expulso o lodo inato,
mais uma vez curvei o meu corpo todo.

E as águas tardaram em toldar...
Mas debruço-me ainda, pois espero
que me hão de um dia, claras, espelhar.

Tanto faz ver-me belo ou feio, então;
só cristalinas, límpidas, as quero,
prà tua sede antiga, meu Irmão.

Sebastião da Gama, Itinerário Paralelo, 1967





Caravaggio, Narcissus 1598-99 Darren Hasson recreation
Caravaggio, Narcissus 1598-99 Darren Hasson recreation




NARCISO

De n'água contemplar-se onde se vê Narciso
se inclina sobre si para beijar-se e a imagem
avança em lábios trémulos que o respirar
ansioso escrespa o espelho prestes a partir-se.

Não foi de contemplar-se ou de a si mesmo amar-se
que em limos se fundiu com a sua imagem vácua
mas de não ter sabido quando não de olhar
nem só de húmidos beijos se perfaz o amor.
Jorge de Sena, 1970-07-09






[QUEM EDUCO QUANDO A TI EDUCO?]

Quem educo quando a ti educo?
A lenta corrupção.
Pego em objetos e educo-te.
Olho para ti
e estás longe
que vou ao teu encontro.
   
Aprendo de ti o aprendido de mim.
   
Joaquim Manuel Magalhães, Envelope, 1974



DONJUANISMO INVERTIDO, O NARCISO MODERNO E O VAZIO

Parece evidente o narcisismo típico da pós-modernidade. O «Eu», alvo de todos os investimentos, «torna-se um espelho vazio à força de “informações”, uma questão sem resposta à força de associações e análises, uma estrutura aberta e indeterminada» (Lipovetsky, 1989:53). O afastamento do outro é, por um lado, a constatação de que o outro é o vazio, por outro lado, e ainda que inconscientemente, é um modo de preservar as suas próprias opções: «Estar sozinho é o preço / duma vida?» (J. M. Magalhães, Uma Luz com toldo vermelho, Lisboa, Editorial Presença, 1990, p. 21).
O Narciso pós-moderno cultiva o «flight from feeling» (Lipovetsky, 1989:72), encontrando-se assim num estado de apatia, indiferença, desencanto, «não só a fim de o indivíduo se proteger contra as deceções amorosas, mas também contra os seus próprios impulsos, que podem sempre ameaçar o seu equilíbrio interior» (idem, ibidem). Esta indiferença cultivada acaba também por gerar vulnerabilidades.

(...) De ti
que nem reconhecer-me poderias
não imagino sequer o teu rosto de agora.
Algum intervalo, então, de dinheiro ou de temor,
Fez de nós este visco que tombou
Em distantes poços muito fundos.
               
(J. M. Magalhães, A Poeira levada pelo vento, Lisboa, Editorial Presença, 1993, p. 32)

A relação com o outro é dolorosa, pois falta-lhe a ingenuidade de acreditar na veracidade dos sentimentos. Passando o paradoxo, o eu que habita o outro é ninguém.
A este amor falta a esperança, falta a ilusão, falta o encanto, é somente uma entrega desenganada: «O corpo aceita o quase nada do amor.» (idem, ibidem:38). É um desamor.

Restos - O exercício crítico e poético de Joaquim Manuel Magalhães,
Paula Cristina Oliveira da Cruz, Universidade do Minho, outubro de 2001, pp. 75-76.



“Donna”, da série “Unadorned” (2012), Julia Fullerton-Batten




SAMPA

Alguma coisa acontece no meu coração
que só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João
é que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
da dura poesia concreta de tuas esquinas
da deselegância discreta de tuas meninas

Ainda não havia para mim Rita Lee, a tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
que só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
chamei de mau gosto o que vi
de mau gosto, mau gosto
é que Narciso acha feio o que não é espelho
e a mente apavora o que ainda não é mesmo velho
nada do que não era antes quando não somos mutantes

E foste um difícil começo
afasto o que não conheço
e quem vem de outro sonho feliz de cidade
aprende depressa a chamar-te de realidade
porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
da força da grana que ergue e destrói coisas belas
da feia fumaça que sobe apagando as estrelas
eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços
tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva

Panaméricas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
mais possível novo quilombo de Zumbi
e os novos baianos passeiam na tua garoa
e novos baianos te podem curtir numa boa

Caetano Veloso, LP Muito Dentro da Estrela Azulada, 1978



Em 1978 Caetano Veloso gravou a canção Sampa. Embora seu lançamento tenha ocorrido quase dez anos após o fim do Tropicalismo, a canção conserva marcas temáticas e estilísticas do movimento. Sampa poetiza uma cidade de contrastes: a modernização socioeconômica acelerada e excludente, a vitalidade cultural, a convivência da diversidade. São Paulo é vista sob o olhar do migrante e sua tomada de consciência ante a metrópole carregada de vitalidade e contradições. Conquanto estampando uma primeira impressão negativa da cidade, algo incompreensível (“porque és o avesso do avesso do avesso do avesso”), ao final da canção, o eu poético incorpora o espaço, passando a fazer parte dele, podendo entendê-lo, admirá-lo, aceitá-lo (“E os novos baianos passeiam na tua garoa/E novos baianos te podem curtir numa boa”).

Comunicação & educação • Ano XV • número 3 • set/dez 2010.



O compositor apropria-se do mito de Narciso para explicar, simbolicamente, o que lhe ocorreu quando conheceu a cidade de São Paulo.

Ler também:
Passando por um filtro chamado São Paulo: isto é Brasil”, Luiz Gonzaga Falcão Vasconcelos e Cláudia Maria de Freitas. Uberlândia, Olhares & Trilhas, 2002. ISSN: 1983-3857
Sampa, um exercício intertextual”, Zemaria Pinto, 2005-10-20
Por trás da letra: Sampa”, Luís Pini Nader, 2009-09-08
Da cidade moderna à pós-moderna: uma análise da construção de imaginários sobre a cidade nas canções Sampa e A cidade”, Ana Carolina Costa Porto, Luziana Marques da Fonseca Silva eMayrinne Meira Wanderley. Conferencias.cies.iscte, Second International Conference of Young Urban Researchers, 2011-10-14
Do difícil começo à boa garoa – análise da música Sampa, de Caetano Veloso., Poliana Jacqueline Queiroz e Leonardo Yamamura Bueno. Revista Café com Sociologia, Vol.2, Nº3. Outubro de 2013.












CONTRANARCISO
em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós

Paulo Leminski, Caprichos e Relaxos. São Paulo, Editora Brasiliense, 1983



“Narciso morre de sede, ao beber sua imagem” (Paulo Leminski)

No poema “contranarciso” Leminski desenvolve de forma poética o conceito psicanalítico de narcisismo como função essencial na formação do Eu. […]
Leminski faz no opúsculo “Metaformose, uma viagem pelo imaginário grego”, uma leitura pós-moderna e concisa do clássico “Metamorfoses” de Ovídio. Reconstrói ali grande parte dos mitos descritos no clássico, sem se ater às divisões temáticas e ao rigor estilístico do texto ovidiano. Chega mesmo a cruzar alguns personagens dando-nos uma panorâmica talvez mais coerente com o amplo escopo do que se agrupa hoje em uma denominada mitologia grega.
Essa pequena digressão pelas “metaformoses” leminskianas é para situar o mito de Narciso na sua obra, e que está sintetizado na frase aqui em epígrafe e que termina o livro citado [“Narciso morre de sede, ao beber sua imagem” (Paulo Leminski)]. Leminski tem arguta percepção do papel da mitologia no estudo da condição humana, e no poema “contranarciso” parece mostrar, por uma inversão do mito, sua necessidade de constantemente beber em outros lagos, mesmo tendo que viver a angústia de não beber em si mesmo.

Ler mais: “Metamorfoses do Eu na poesia de Leminski”, Ruy Perini. Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid, 2006.


Franz von Stuck - v.Stuck / Narcissus / c.1926
"Narciso", Franz von Stuck (1926)



NARCISO

Niño,
¡Que te vas a caer al río!

En lo hondo hay una rosa
y en la rosa hay otro río.

¡Mira aquel pájaro! ¡Mira
aquel pájaro amarillo!

Se me han caído los ojos
dentro del agua.

¡Dios mío!
¡Que se resbala! ¡Muchacho!

…Y en la rosa estoy yo mismo.

Cuando se perdió en el agua
comprendí. Pero no explico.
NARCISO

Menino,
Vais cair no rio!

No fundo há uma rosa
e na rosa há outro rio.

Olha aquele pássaro! Olha
aquele pássaro amarelo!

Caíram-me os olhos
dentro d’água.

Deus meu!
Ele escorrega! Menino!

... E na rosa estou eu mesmo.

Quando se perdeu na água
compreendi. Mas não explico.

Federico Garcia Lorca, Canciones. Madrid, Espasa-Calpe, 1986









NARCISO E NARCISO

Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira. 

Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
                 E se amam mentindo
                            no fingimento que é necessidade
                            e assim
                 mais verdadeiro que a verdade. 

Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
                       E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
- e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
                       se odiando. 

O espelho
                   embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam
                         que o inferno de Narciso
                         é ver que o admiravam de mentira.

Ferreira Gullar, Barulhos (1980 1987).
Rio de Janeiro, José Olympio, 1987


A retomada ao mito de Narciso, além de promover uma reflexão sobre a “ilusão” da imagem especular e desta duplicidade inerente ao ser humano (a “outridade” de que fala Octavio Paz), permite tratar o tema dos espelhos enquanto uma qualidade reflexiva que possibilita ao poeta pensar seu próprio ato poético, ou seja, o processo de criação literária.

Ler mais: Sueli Aparecida da Costa e Antônio Donizeti da Cruz “O Mito de Narciso e a Imagem Especular na Lírica de Ferreira Gullar” in Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários, Volume 11 (2007) – 1-131. ISSN 1678-2054



«Narcissus», Ergo Rodriguez, 2018



Narcissus, Ego Rodriguez Illustration, 2021






ECO E NARCISO

Nela, vive o som que os deuses roubaram
ao fugitivo amante; sem destino, consome-se
no fundo de um espelho que repetiu o choro
da amada. Não o ouviu; nem viu essa
cuja beleza a terra sepulta, solitária,
condenada ao jogo da natureza. Olha-se,
fixamente, despindo-se da folhagem
que as chuvas acumularam no abrigo dos vales;
cobrindo-se com o brilho húmido que ofuscou
o furtivo aceno; dançando, enfim, quando
o vento envolve os arbustos com o desvelo
de um murmúrio de flauta. Aqui,
engana-o a imagem de que fogem as águas
que o seu reflexo suspende, detendo
o inelutável tempo; nenhuma súplica, porém,
restituirá um corpo à sombra
que persegue. Tão perto, no entanto, dos seus
braços que imitam a realidade!, procura
o seu conforto no fundo das fontes. «Quem és?»
«És», repete, sem que a voz se distinga
- e os seus lábios se revelem, turvos
de ânsia, num rigor de verso.

Nuno Júdice, As regras da perspectiva, Quetzal Editores, 1990.




Narciso, Anthony Gayton (2006)





POEMA NARCISISTA

(o espelho é minha alma…)

sou narcisista
estupidamente narcisista
não nazista
nem stalinista
nem collorista
ou qualquer outro “ista”
irritante e exibicionista
sou apenas narcisista

(o espelho é meu guia…)

sou narcisista
politicamente narcisista
não comunista
nem monarquista
nem capitalista
ou qualquer outro “ista”
desnecessário e alienista
sou apenas narcisista

(o espelho me acalma…)

sou narcisista
ingenuamente narcisista
não umbandista
nem adventista
nem catolicista
ou qualquer outro “ista”
religioso ou contritista
sou apenas narcisista

(o espelho me alicia…)

sou narcisista
literariamente narcisista
não concretista
nem positivista
nem parnasianista
ou qualquer outro “ista”
complicado e radicalista
sou apenas narcisista

(o espelho é minha alma
o espelho é meu guia
o espelho me acalma
o espelho me alicia)

sou narcisista
pretensiosamente narcisista
e quem não for
atire a primeira pedra...
...no espelho.

Linaldo Guedes, Os zumbis também escutam blues e outros poemas
Textoarte Editora, 1998



https://www.facebook.com/AlicesAdventuresinFandomland




A BELA ADORMECIDA NO ESPELHO

Há uma mulher mais bela que eu?

olhar doce
azul turquesa
abertos à força do rímel?
olhos que não vêem
coração que não sente
fotografia em movimentos
suaves, suaves, suaves.
Do outro lado
pano de fundo
o mundo.
Retorno
contorno a boca
por dentro, catatonia
não se transparece
na aparência oca.
Ombro reto
sobrancelha arqueada
falta pouco
para ser amada
caricatura, minha cara
ranhura na moldura
essa ruga
não devia estar aí
se multiplica
contra a vontade
no tempo gasto
para não deixar
aparecer o tempo.
me diga espelho meu


Alice Ruiz, Dois em Um. São Paulo: Iluminuras, 2010.

No poema há jogo de sentidos, entre o conto de Branca de neve e a Bela Adormecida, pois embora o título aluda à historia da Bela Adormecida, no primeiro verso “Há uma mulher mais bela que eu?” a reminiscência é à Madrasta de Branca de neve mirando-se no espelho.
[Note-se o] dúbio sentido que o refletir-se no espelho pode trazer: o tempo perdido sem notar-se como mulher, sem reconhecer e ter sua identidade ou o despertar da consciência dessa feminilidade.

Ler mais: “O mito de narciso na poética de Alice Ruiz S.”, Helena Maria Medina Marques, Revista Memento V.5, n.1, jan.-jun. 2014 Revista do mestrado em Letras Linguagem, Discurso e Cultura – UNINCOR ISSN 2317-6911






Em "Back to Back" de Michael Leonard (1999),
 Narciso desencantado consigo próprio vira as costas ao espelho.


O LAGO E NARCISO

Quase todo mundo conhece a história original (grega) sobre Narciso: um belo rapaz que, todos os dias, ia contemplar seu rosto num lago. Era tão fascinado por si mesmo que, certa manhã, quando procurava admirar-se mais de perto, caiu na água e terminou morrendo afogado.
No lugar onde caiu, nasceu uma flor, que passamos a chamar de Narciso.
O escritor Oscar Wilde, porém, tem uma maneira diferente de terminar esta história. Ele diz que, quando Narciso morreu, vieram as Oréiades – deusas do bosque – e viram que a água doce do lago havia se transformado em lágrimas salgadas.
“Por que você chora?”, perguntaram as Oréiades.
“Choro por Narciso”.
“Ah, não nos espanta que você chore por Narciso”, continuaram elas. “Afinal de contas, todas nós sempre corremos atrás dele pelo bosque, você era o único que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua beleza”.
“Mas Narciso era belo?”, quis saber o lago.
“Quem melhor do que você poderia saber?”, responderam, surpresas, as Oréiades. “Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruçava todos os dias”.
O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse: “eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que era belo. Choro por ele porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas margens, eu podia ver, no fundo dos seus olhos, a minha própria beleza refletida”.

Paulo Coelho, 2009-11-17




     Ligações externas:


  • Eco e Narciso, leituras de um mito (Autores e textos da antiguidade seguidos de uma antologia de autores portugueses ou de língua portuguesa), Organização de Abel N. Pena. Lisboa, Edições Cotovia, 2017
  • Literatura para jovens: O palco do Eu”, Teresa Mergulhão. Comunicação apresentada no I Colóquio Ibérico de «Literatura Infantil e Interculturalidade»/III Simposium da Red de Universidades Lectoras. Castelo Branco: ESECB. 16-17 de Novembro de 2009.




Fotografia por Georgina Cranston, Sudão






"Narcissyphus" (Narcissus + Sisyphus), Dan Piraro & Wayne Honath







CARREIRO, José. “COMO NARCISO SE PERDE - Uma história fundadora da representação do EU”. Portugal, Folha de Poesia, 09-11-2014 (última atualização: 16-07-2020. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2014/11/como-narciso-se-perde-uma-historia.html

[Publicação simultânea em: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/11/09/COMO-NARCISO-SE-PERDE.aspx]