Umberto Eco
O espelho reflete a direita exatamente
onde está a direita e a esquerda onde está a esquerda. É o observador (ingénuo,
mesmo quando faz de físico) que por identificação imagina que é o homem dentro
do espelho e, vendo-se, se dá conta de que traz, por exemplo, o relógio no pulso
direito. Mas o facto é que só o traria se ele, o observador, fosse aquele que
está dentro do espelho (Je est un autre?). Quem, no entanto, evitar
comportar-se como a Alice e não penetrar dentro do espelho, não cairá nessa
ilusão.
Umberto Eco, Sobre os espelhos e outros ensaios,
Lisboa, Difel, 1989, p.15
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Cameron Gordon is a modern narcissus for the peak |
Dicionário de
símbolos
A etimologia (narké), donde provém
narcose, ajuda a compreender a relação desta flor com os cultos infernais, com
as cerimónias de iniciação, segundo o culto de Deméter em Elêusis. Plantam-se
narcisos sobre os túmulos. Simbolizam o entorpecimento da morte, mas duma morte
que talvez não seja mais do que um sono.
Oferecem-se grinaldas de narcisos às
Fúrias, as quais, julga-se, entorpecem os facínoras. A flor nasce na Primavera,
em zonas húmidas: o que a liga à simbologia das águas e dos ritmos sazonais e,
por conseguinte, da fecundidade. Isso significa a sua ambivalência: morte-sono-renascimento.
Na Ásia, o narciso é um símbolo da
felicidade e serve para exprimir os votos de ano novo.
Na Bíblia, o narciso, tal como o
lírio, caracteriza a Primavera e a era escatológica Cântico dos Cânticos, 2, 1).
Esta flor faz lembrar também ‑ mas
num grau inferior de simbolismo ‑ a queda de
Narciso nas águas onde se mirava com prazer: daí o facto de se fazer dela, nas
interpretações moralizantes, o emblema da vaidade, do egocentrismo, do amor e
da satisfação de si próprio.
Os filósofos (L. Lavelle, G. Bachelard) e os poetas (Paul
Valéry) estudaram largamente este mito, geralmente interpretado duma forma um
tanto simplista. A água serve de espelho, mas um espelho aberto sobre as profundezas do eu:
o reflexo do eu que se vê trai
uma tendência para a idealização. Diante
da água que reflete a sua imagem, Narciso sente que a sua beleza continua, que
não está acabada, que é preciso completá-la. Os espelhos de vidro, na clara luz do quarto, dão uma imagem
muito estável. Tornar-se-ão vivos e naturais quando se puder compará-los a uma
água viva e natural, quando a imaginação renaturalizada puder receber a participação dos
espetáculos da fonte e do rio (BACE, 35).
G. Bachelard insiste no papel desse narciso
idealizador. Isso parece-nos tanto mais necessário, escreve, quanto a psicanálise
clássica parece subestimar o papel dessa idealização. Com efeito, o narcisismo nem
sempre é neurótico. Desempenha também um papel positivo na obra estética
(principalmente)... A sublimação nem sempre é a negação de um desejo; não se
apresenta sempre como uma sublimação contra os instintos.
Ela pode ser uma sublimação por um ideal (BACE, 34-35). Essa idealização liga-se
a uma esperança, duma tal fragilidade que desaparece ao menor sopro:
Le moindre soupir
Que j' exhalerais
Me viendrait ravir
Ce que j'adorais
Sur l' eau bleue et blonde
Et cieux et fôrets
Et rose de l'onde.
Paul VaIéry, Narcisse
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O menor suspiro
Que eu exalasse
Viria arrebatar-me
O que eu adorava
Sobre a água azul e dourada
E céus e florestas
E rosa da onda.
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A partir destes versos e do estudo de
Joachim Gasquet, G. Bachelard descobre também um narcisismo
cósmico: é a floresta e o céu que se miram na água com Narciso. Ele já não está
sozinho, o universo reflete-se juntamente com ele e envolve-o, anima-se com a
própria alma de Narciso. E como diz J. Gasquet: O mundo é um imenso Narciso ocupado em
pensar-se a si próprio. Onde se pensaria ele melhor senão nas
suas imagens? pergunta G. Bachelard. No cristal das fontes, um gesto
perturba as imagens, o repouso restitui-as. O mundo refletido é a conquista da
calma (BACE, 36 s).
Foi o perfume do narciso que
enfeitiçou Perséfone, quando Hades, seduzido pela sua beleza, quis raptar a
jovem e levá-la com ele para os Infernos: A flor brilhava com uma luz
maravilhosa, e deixou impressionados todos os que então a viram, tanto
Deuses imortais como homens mortais. Crescera da sua raiz um caule com cem
cabeças e, com o perfume desta bola de flores, todo o vasto Céu sorriu lá do
alto, e toda a terra, e a acre turgidez das ondas do mar. Admirada, a criança
estendeu ao mesmo tempo os dois braços para agarrar no belo brinquedo: mas a
terra de vastos caminhos abriu-se na planície de Nisa, e dali surgiu, com os
seus cavalos imortais, o Senhor de tantos hóspedes, o Cronos invocado sob tantos
nomes. Raptou-a e, apesar da resistência dela, arrastou-a, toda em prantos, no seu carro de ouro (HYMH: Hino a Deméter, v.
4-20).
Para os poetas árabes, o narciso
simboliza, em virtude da sua haste reta, o homem de pé, o servidor assíduo, o
devoto que quer consagrar-se ao serviço de Deus. O mito grego é aqui estranho à
interpretação que desenvolve em muitos poemas todas as metáforas evocadas pela
sua aparência graciosa e pelo seu perfume penetrante.
Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos. Lisboa,
Editorial Teorema, 1994. (Edição original: © 1982, Éditions Robert Laffont S.A.
et Éditions Jupiter, Paris).
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Narcissus", posted by Dan Cretu, 2015-10-16 |
Ovídio (escritor latino, 43 a.C.-17?18? d.C.)
Narciso era filho da bela ninfa
Liríope e de Cefiso. Ao nascer, os pais consultaram o adivinho Tirésias,
perguntando-lhe se o filho teria uma vida longa. Tirésias respondeu: "Sim,
se não se conhecer”. Durante muito tempo as palavras do profeta pareceram
desprovidas de sentido. Seriam, porém, justificadas pela maneira como as coisas
vieram a acontecer, com a morte de Narciso e a sua estranha loucura.
Aos dezasseis anos, Narciso tinha o aspeto
de uma criança e, simultaneamente, de um jovem adulto. A sua beleza delicada
despertava paixões sem fim e a todas ele respondia com um frio desdém. Eco e
muitas outras ninfas nascidas nas ondas e nas montanhas acalentaram, assim, um
amor sem esperança por Narciso. Então, uma das vítimas dos seus desdéns,
erguendo as mãos ao céu, lançou sobre ele uma maldição: "Possa ele amar e
jamais possuir o objeto do seu amor!" A deusa de Ramnunte1 acolheu favoravelmente esta justa
prece.
Um dia, Narciso, fatigado da caça e
do calor, veio deitar-se junto de uma nascente de água límpida. Era um lugar de
encanto: nem os pastores, nem as cabras que pastam nas montanhas, nem qualquer
outro tipo de gado, se tinham jamais aproximado dessas águas brilhantes e
prateadas; cercadas de relva, a floresta em volta protegia-as do calor dos
raios de Sol. Narciso debruça-se sobre a água, tentando apaziguar a sede, mas,
ao fazê-lo, uma outra sede cresce dentro dele: enquanto bebe, fica seduzido
pela imagem que vê refletida na água. Fica em êxtase diante de si próprio e,
sem se mexer, com o olhar fixo, parece uma estátua de mármore de Paros.
Contempla, estendido no solo, dois astros, os seus próprios olhos, os seus
cabelos dignos de Baco, dignos também de Apolo, as suas faces imberbes, o seu
pescoço de marfim, a sua boca singular, o rubor que tinge a brancura nevada da
sua tez. Admira tudo aquilo que nele inspira admiração. Deseja-se, ignorando-o,
a si próprio. Os desejos que sente, é ele próprio que os inspira. É ele o alimento do fogo que o
incendeia. Quantas vezes atirou beijos à onda enganadora! Quantas vezes, para
agarrar o pescoço que estava a ver, mergulhou os braços na água, sem conseguir
enlaçá-lo! Para quê esses esforços vãos para agarrar uma visão fugidia? O
objeto do teu desejo não existe! Afasta-te, e tu farás desaparecer o objeto do
teu amor! Essa sombra que vês é o reflexo da tua imagem. Ela não é nada em si
própria. Foi contigo que ela apareceu, é contigo que persiste, e a tua partida
dissipá-la-ia, se tivesses a coragem de partir.
Mas nem a necessidade de comer nem a
de repousar o arrancam dali. Estendido sobre a erva espessa, contempla, sem se
cansar, a enganadora imagem, e torna-se ele próprio o causador da sua perda.
Soerguendo-se levemente, estende os braços para a floresta que o cerca:
"Já alguém, ó florestas, experimentou mais cruelmente o amor? Entre tantos
amantes que, ao longo dos séculos, procuraram o vosso refúgio, algum sofreu tanto
como eu? Aquele que vejo seduz-me, mas não posso tocar-lhe e, no entanto, não nos
separa a imensidão do mar, nem um longo caminho, nem a montanha, nem uma
muralha de portas cerradas. Uma fina camada de água é tudo o que se interpõe à
nossa união. Ele próprio também me deseja, pois sempre que estendo os lábios
para estas ondas límpidas, ele procura também, com a boca estendida, tocar na
minha. Julgaria quase tocar-lhe, tão frágil é o obstáculo aos nossos desejos.
Quem quer que sejas, sai, vem! Porquê, ser sem igual, porque troças de mim? Quando
te procuro, onde te refugias? Não é, certamente, pelo meu aspeto, nem pela
minha idade que te faço fugir! Muitas ninfas me amaram. No teu rosto querido
deixas-me ler não sei que esperança e, quando estendo os braços, tu também mos
estendes; ao meu sorriso responde o teu sorriso e, muitas vezes, vi correr as
tuas lágrimas, quando deixava correr as minhas; com a cabeça respondes aos meus
sinais e, tanto quanto o adivinho pelos movimentos da tua boca encantadora,
dizes-me palavras que não chegam aos meus ouvidos!"
‑ Entendo agora: tu não és senão eu próprio.
É por mim que ardo de amor, e este fogo, sou eu que o ateio ao mesmo tempo que
o sinto.
O que eu desejo, trago-o em mim, a
minha miséria vem da minha riqueza. Oh! Se eu pudesse separar-me do meu corpo!
Voto insólito num amante: o que eu amo é o mesmo de que quero separar-me. A dor
tira-me as forças; já não me resta muito tempo de vida, extingo-me na flor da
idade. Mas não é o morrer que me aflige, pois, ao morrer, libertar-me-ei do
fardo da minha dor; para aquele que é o objeto da minha ternura, teria
desejado, porém, uma vida mais longa. Agora, nós dois, unidos pelo coração,
exalaremos em conjunto o último suspiro.
Perde a cor da tez, perde o vigor e
as forças, nada resta desse corpo que outrora fora amado por Eco. As últimas
palavras de Narciso, com os olhos mergulhados na água tão familiar, foram:
"Pobre de mim! Criança querida, meu vão amor!”. As suas irmãs, as Náiades,
choraram-no longamente mas não puderam prestar-lhe as honras fúnebres: o corpo
de Narciso tinha desaparecido. No seu lugar, encontraram uma flor amarela tom
de açafrão, com o centro rodeado de folhas brancas.
Ovídio, As Metamorfoses, 1?2? d.C..
Traduzido e adaptado do francês (Les métamorphoses, Paris, Garnier, 1996)
por Ana Garrido, Cristina Duarte, Fátima Rodrigues, Fernanda Afonso e Lúcia
Lemos, in Antologia. Português. 10º Ano /
Ensino Secundário. Lisboa Editora, 2007
_______________________________
(1) Némesis: deusa da vingança divina.
O MITO DE NARCISO COMO REPRESENTAÇÃO DA
ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA
Clara Rocha
O mito de Narciso é naturalmente a
representação mais evocada a propósito da escrita autobiográfica. Narciso que
se contempla nas águas e se apaixona pela sua imagem é também um duplo ser:
simultaneamente o eu que olha
e o outro que é olhado,
o sujeito e o objeto do desejo. Narciso é, ao mesmo tempo, realidade e ilusão:
tem um corpo verdadeiro, e enamora-se desse corpo refletido. Jorge de Sena fala
num poema de Narciso, "que em limos se fundiu com a sua imagem
vácua". (…)
Narciso contempla a sua imagem
refletida, e essa imagem é, ao mesmo tempo, ele próprio e uma reprodução: eu e
o outro estão ligados por uma identidade fantástica. Este desdobramento tem o
seu equivalente manifesto na escrita do eu, onde a dupla corpo e letra mantêm
idêntica relação.
O outro motivo do mito de Narciso é a
fuga. A imagem
refletida caracteriza-se pela mobilidade, pela oscilação, porque a água em que
Narciso se revê é matéria em movimento. Ora tal como a água, a linguagem é um
espelho traiçoeiro: a projeção narcísica é um reflexo que tanto deseja como
receia a cristalização da linguagem, e que tanto se deixa seduzir pelo caudal
das palavras como procura defender-se dele. Há assim na escrita confessional um
jogo de fuga e cristalização, pois o sujeito quer eternizar-se na escrita, mas
teme a irremediável fixação e nem sempre se reconhece nela. Lembre-se que a
cristalização está também presente no mito de Narciso: no lugar onde o jovem
morre, os deuses fazem nascer uma flor.
Desdobramento do sujeito, condição
ilusória da imagem, mobilidade do reflexo, desejo de fixação e eternização da
figura refletida são, pois, os principais motivos do mito de Narciso, tantas
vezes evocado a propósito da escrita autobiográfica.
Clara Rocha, Máscaras de Narciso ‑ Estudos
sobre a Literatura Autobiográfica em Portugal, Coimbra, Almedina, 1992, pp.
50-51 (excerto).
(Re)leituras do mito a partir de um novo papiro99
Deve ser o
cristal que viu Narciso:
água de um poço de ilusões pequenas
onde
morra e renasça o Paraíso.
Miguel Torga, Mergulho
(Diário
6,
1953: 36)
Nas águas se contempla
Narciso, nas águas límpidas que, cristalinas, lhe revelam uma beleza que pode
não ser a sua. Até que um dia, maldição divina ou de um amante preterido, não
são tão límpidas as águas, e a imagem que do homem dá esse espelho natural não
é já pintada com os tons de perfeição de outrora. Afinal, o retrato era mais
belo (falsamente belo) do que a essência desse homem. E no momento da morte,
retrato e essência são uma e a mesma realidade, em tudo coincidentes. O
desespero assim o determina. A beleza de Narciso era, afinal, resultado da
ausência de visão. Conhecida a realidade, pela sua representação, ela não é
mais agradável à vista. E o herói tomba, para o lago, ou para o fundo de si. Só
a morte é lenitivo para a desilusão decorrente da
visão do eu, um esforço
cognitivo que seguiu
o caminho da aparência e não o da essência, e que por isso se revelou
trágico.
Um dos textos
recentemente encontrados em Oxirrinco (P. Oxy. 69. 4711 = “Apêndice Iconográfico”,
figs. 7-8) permite ler três mitos à partida distintos, mas que o editor W. B.
Henry considerou pertencerem a um conjunto de Metamorfoses, por exclusão de hipóteses
atribuídas a Parténio de Niceia, poeta do século I. a.C. de quem preservamos um
conjunto de histórias de amor, em prosa, baseadas na poesia grega, além de alguns
fragmentos poéticos. O papiro apresenta-nos, na frente (↑fr. 1), parte da
narrativa de Adónis (ll. 1-6) e, aparentemente sem qualquer relação, o mito de
Astéria (ll. 7 sq.), que sofreu também uma metamorfose. Filha do titã Ceu e de
Febe, irmã de Leto, transformou-se em codorniz para escapar às perseguições de
Zeus, que por ela se apaixonara, e lançou-se ao mar, onde se transformou na
ilha Ortígia (literalmente, “a ilha das codornizes”), mais tarde conhecida pelo
nome de Delos. No verso do papiro (→ fr. 1) encontramos o que parece ser a
parte final da narrativa do mito de Narciso, que nos ocupará a partir deste
momento. Nada parece confirmar que Parténio tenha tratado este mito, mas
possuímos relíquias que acusam o tratamento da i-gura de Adónis (SH. 641, = fr.
23 e SH. 654 = fr. 37), e daí também a atribuição do achado a este autor. (Para
as referências a Parténio, seguimos a edição de J. M. Edmonds e S. Gaselee
1978.)
Vejamos agora o texto,
que traduzimos a partir da edição de W. H. Henry no volume 69 dos Oxyrhunchus Papyri (págs. 46-53), para
logo de seguida estabelecer um conjunto de reflexões sobre o mito, as suas
diferentes versões e o seu aproveitamento em diferentes registos semióticos.
(faltam 5 versos)
………………………(julgando que) é um
imortal[
…
………………… de aparência semelhante
aos deuses.
…
um inquebrantável] coração ele
tinha, odiado por todos,
(Narciso então) se apaixonou
pela sua própria figura
……………...] mas lamentava o
prazer de um longo sonho
…………………………...] chorou pela sua
beleza
(e então) derramou (o seu
sangue) sobre a terra
………………………………] suportar
…
A principal fonte para o mito de
Narciso, que ao longo dos tempos se impôs quase como única, é como para muitos
outros casos Ovídio (Metamorfoses, 3.
339-510), um longo passo que demonstra o interesse do poeta latino pela
história. Muito brevemente, aqui se conta que Narciso era filho de Cefiso, rei
da Beócia, e da ninfa Leríope. Ao nascer, um oráculo predissera-lhe que viveria
bem até ao momento em que se visse a ele próprio (v. 348). Ao atingir a juventude,
a beleza do herói granjeava-lhe a paixão de um sem número de donzelas e
mancebos, entre as quais a ninfa Eco que, impedida de estabelecer diálogo com
alguém – pois que apenas repetia os finais do que ouvia – foi também por ele
preterida, retirando-se para morrer solitária. Quantos havia desprezado, unidos
pelo mesmo abandono, lhe lançaram uma maldição: que enfim pudesse amar alguém e
não possuir o objeto do seu amor. Havia de ser por si próprio que nasceria a
paixão, nesse coração onde paixão alguma havia já nascido. Um dia, cansado de
uma caçada, acerca-se de um lago para matar a sede e, ao ver o seu reflexo,
apaixona-se pela sua figura, não mais saindo desse local, até morrer. No fundo,
o ser que amava estava mesmo ali, perto de si, do outro lado do espelho (a água
cristalina), mas não podia de forma alguma atingi-lo. Pior do que a distância,
para Narciso, era a proximidade intransponível daquele regato de água. Conta
ainda Ovídio que, no momento em que as Dríades preparavam o seu funeral, em vez
do corpo encontraram uma flor amarela, que em sua homenagem passou a chamar-se
Narciso.
A metamorfose não é, por conseguinte,
explicada em Ovídio. A transformação de homem em flor é algo que ocorre como
que por magia, pela substituição de um cadáver (homem morto) por uma flor (um
ser vivo), no fundo um ressurgir do herói dos mortos que, sob outra forma,
regressa à vida. Os deuses, ao certo, não permitiram que um homem tão belo
desaparecesse por completo, transformando-o em flor, para que toda a humanidade,
até ao fim dos tempos, pudesse contemplá-lo.
Ora, no que concerne à parte final do
mito, a metamorfose de Narciso em flor, parece claro que não é esta a versão
que Parténio segue, no texto que acima transcrevemos e traduzimos (a admitir a
atribuição do papiro). Na versão de Ovídio, como se viu, a morte é também
voluntária, não infligida por outrem, mas este suicídio é lento, decorrente da
inanição. Narciso, simplesmente, deixa-se ficar, preso à contemplação de si
mesmo, até que lhe falecem as forças e acaba por morrer. A visão do seu reflexo
exerce sobre ele um efeito mágico, um encantamento que o faz esquecer as mais
vitais necessidades humanas.
No texto preservado do papiro que
vimos comentando, até ao verso 11, nada de diferente nos é permitido ler. Temos
a expressão da beleza do herói, semelhante na aparência aos próprios imortais
(vv. 7-8), o preterir de todos os pretendentes, motivo do ódio por parte destes
(v. 10) e o enamoramento pela própria figura (v. 11). O verso 12, contudo,
merece já mais atenção. O sonho a que se alude pode muito bem ser entendido
como a ilusão (da beleza) que foi toda a vida de Narciso, algo que agora se
lamenta amargamente, contemplada que foi a verdade (a fealdade) nas águas do
lago. Esta hipótese parece confirmar-se no verso 13: a beleza chorada seria, no
fundo, uma beleza que não há, e que, em boa verdade, se percebe nunca ter
existido de facto. Talvez consequência dessa amarga descoberta, o ato de dar a
morte (v. 14) é extremamente violento e imediato. Se aceitarmos, como parece
credível, que o sujeito do verso é o próprio Narciso, e que o objeto direto é o
sangue, estamos então a falar de um suicídio consciente e cruel. As coordenadas
do final do mito estão então, e tendo como referência Ovídio, completamente
subvertidas. Narciso ter-se-á suicidado ao perceber ser uma ilusão a beleza que
sempre julgou possuir. Precisamos assim, como parece claro, de encontrar uma
outra versão do mito que tenha eventualmente servido de modelo à composição de
Parténio.
Dos demais autores que trataram o
mito de Narciso,101 o testemunho que nos parece mais semelhante é o
de Cónon (FGrHist. 26. 24), numa
versão originária da Beócia, miticamente a terra do próprio herói. O que nos
refere o autor é, a início, o mesmo que podemos ler em Ovídio: Narciso, jovem, preterindo
todos os seus pretendentes. Depois, contudo, a situação muda. Um dos jovens
negados, ao suicidar-se, pede aos deuses que amaldiçoem Narciso, que há de pôr
termo à vida de forma violenta, trespassando o peito com um punhal. Do sangue
derramado sobre a terra explica Cónon (FGrHist.
26. 24. 3) o surgimento do narciso, pelo que não se trata, em boa verdade, de
uma metamorfose, antes de um fenómeno telúrico, da terra que absorve o sangue
derramado e reage com a criação de um novo ser, fenómeno em tudo semelhante à
origem das erínias:
Pensam os autóctones que a primeira flor de narciso nasceu daquela terra,
derramado sobre ela o sangue de Narciso.
Estamos então, com o texto do papiro
e com a versão de Cónon, no âmbito de uma versão mais pessimista do mito. O
espelho, no momento final da vida do herói, resulta na desilusão e no desengano,
na constatação da não existência de uma beleza em que toda uma vida tinha
assentado. Daí que a morte não seja calma, fruto de um apagamento sucessivo das
forças vitais pela inanição, antes dada pelo mais violento dos suicídios. Ela
vem pelo sentimento de solidão, causado pelo afastamento do convívio social e
amoroso, ciente de que só em si próprio existe o belo, um belo que torna
indigna a aproximação de qualquer outra pessoa. É este, no fundo, o
aproveitamento que deste mito fez a moderna psicologia, bem como, a outro
nível, o senso comum, que não raro confunde as noções de narcisismo e egoísmo. Ao
longo dos tempos, e já desde a Antiguidade, muitos foram os que interpretaram o
mito de Narciso, baseados essencialmente numa receção nem sempre rigorosa do
Platonismo. Já Luciano, vulto da segunda sofística (c. 120-190 d.C) o
relacionara com a vaidade, crítica que seria aproveitada pelo Cristianismo.
Clemente de Alexandria (Paedagogus 2.
8. 71. 3), por exemplo, estabelecia a ligação entre a vaidade narcísica e o
culto da imagem exterior, que devia ser, pelo contrário, desprezada em prol da
beleza espiritual. Do mesmo modo Plotino (Enneades
1. 6. 8) olhava para Narciso como o mais perfeito exemplo do herói que havia
ignorado que o seu corpo (o que vira refletido) não era ele próprio mais do que
um reflexo (imperfeito e limitado) da sua alma, e que, desejando o que não
merecia ser desejado, com isso se afundara nas águas, metáfora tanto para a
negra noite do Hades como para o Inferno cristão. É isto prova suficiente de
que o mito era já lido em termos simbólicos, dele se retirando ensinamentos filosóficos
e morais. Para Plotino, de resto, é o processo de reflexão de um espelho que
explica a criação de todo o mundo sensível, o que torna o caso de Narciso ainda
mais paradigmático. E neste sentido seguiram, regra geral, os restantes
neoplatonistas. O próprio Marsílio Ficcino, no seu comentário ao Banquete de Platão, entende ainda o episódio
de Narciso como uma confusão do eu (essência, verdade) com a imagem reletida
(aparência, ilusão).
Muitos foram também, entre nós, os
poetas contemporâneos a tratar o mito de Narciso, tantos e de forma tão rica
que aqui não cumpre mencioná-los.102 Preferimos, por isso, enveredar
por um outro registo semiótico, a pintura, analisando, com base nas reflexões
suscitadas pelo texto do papiro, de que forma elas terão estado presente na
mente do artista. Já Filóstrato (Imagines
1. 23) nos dava a descrição de um quadro onde se podia ver um verdadeiro jogo
de espelhos. O rosto de Narciso que se reflete na fonte, a fonte que se reflete
nos seus olhos, os olhos que se refletem no quadro e, por fim (para completar o
ciclo) o próprio quadro que se reflete nos olhos de quem o vê. Um jogo de
espelhos onde, por entre reflexos e reflexos de reflexos, muita essência se
pode perder. Na pintura, Caravaggio (Narciso.
Óleo sobre tela, 110x92 cm: Galeria nacional de Arte Antiga, Roma) pintou de
forma admirável a expressão de desespero no rosto de Narciso, no momento em que
se curva sobre as águas e vê o seu reflexo. E é este reflexo, precisamente, que
se mostra revelador. Ele é um rosto feio, disforme, em nada similar ao do
indivíduo que o contempla. A dicotomia que o artista bem exprime é a da
realidade / aparência ou, de outro modo, essência / suplemento. O reflexo do eu
(suplemento) é, no fundo, a visão que esse eu tem da sua própria essência, no
momento da morte, precisamente o inverso da que cultivara ao longo de toda a
vida. Daí que, entendido este curvar sobre o lago como um exercício de autoconhecimento,
este esforço tenha seguido os trilhos errados.
|
"Narciso", Caravaggio |
|
"Narciso", Stas Svetlichnyy |
Como diria Platão, Narciso procurou a
verdade onde não cabia alcançá-la; buscou a essência no mundo das aparências
(simbolizado no lago), e não poderia de forma alguma contentar-se com o
resultado, fosse ele belo ou feio. De outro modo, podem a disformidade e a
fealdade ser, elas próprias, a essência desse Narciso homem, só percebidas
quando se curvou sobre as águas, quando olhou para o fundo do lago, o fundo de
si próprio, para aí ver a verdade. E, assim sendo, só pelo suplemento, pela
imagem refletida, pode o homem conhecer, ainda que imperfeitamente, a sua
essência, que é deste modo relegada para o campo do incognoscível. Seja o reflexo
verdadeiro ou enganador, não pode de facto o indivíduo olhar-se senão através
dele. Estas as limitações mais básicas da autognose.
Belo ou feio – essencialmente belo ou
essencialmente feio – qualquer que seja a leitura do mito ou a versão antiga
por que optemos, Narciso traz-nos o mistério do outro lado do espelho. Do outro
lado, todo o mundo que imagina Alice antes de entrar no país das maravilhas; do
outro lado do espelho, por vezes, um ser em tudo igual a nós que estende a mão
quando nós próprios a estendemos, de uma aparente similaridade desconcertante;
do outro lado do espelho a verdade, a que se não quer aceder, por medo (Narciso
disforme), ou a mais doce das mentiras (Narciso belo). A avaliar pelo texto do
novo papiro, do outro lado do espelho vem a causa imediata para a morte: a
desilusão, seja pela realidade, seja pela ilusão de uma imagem enganadora. Na
versão de Ovídio, o encantamento provocado pelo reflexo fora a única causa de
morte: um ser que se apaixona por uma imagem (que não é ele próprio) e que
desse modo se esquece de si.
Do outro lado do espelho, no fundo
das águas, não pode enfim estar o verdadeiro Narciso. O Narciso que lá mora é
um eidolon, uma ilusão de ótica, ou
simplesmente um reflexo individualizado do sujeito aí refletido. Do outro lado
do espelho mora o medo, o terror que representa a descida ao fundo de si, o
pavor de aí encontrar a mentira, ou a pior das verdades. Narciso tombou. Resta
só saber o que viu ele, do outro lado.
Coimbra, Fluir Perene, 2008, pp. 117-125.
_____________________________
(99) Artigo originalmente publicado no Boletim de Estudos
Clássicos 45, 2006: 11-18.
(101) As fontes principais para o mito, por ordem
cronológica, parecem ser a) Hino Homérico a Deméter (v. 6 sq.), Cónon (FGrHist. 26. 24), Pausânias (9, 31, 7-9)
e Ovídio (Metamorfose 3. 339-510).
(102) Tanto mais que este assunto foi já tratado por A.
Veloso 1975-1976: 167-190 e José Ribeiro Ferreira 2000: 95- 124.
MÁSCARAS
DE NARCISO
(antologia e leitura orientada de poemas)
SONETO CXXVII
Vendo Narciso em uma fonte clara,
A sombra só da própria formosura,
De si vencido (Amor quis por ventura
Vingar as Ninfas qu'elle desprezara.)
Todo enlevado na beleza rara,
Que seu peito abrasou em chama pura,
Chorando disse, à sua vã figura,
Por quem perdeu em fim a vida chara:
O Ninfa destas águas moradora,
Surda em ouvir-me, muda em responder-me,
Não vês a quem não ouves, nem respondes?
Não vês que sou Narciso? ah que por verme,
Mil Ninfas d’Outras fontes saem fora,
Ε tu por me não ver, nesta t'escondes.
Diogo Bernardes (1530-1605), Rimas
Várias: Flores de Lima, 1597
[…]
No soneto de Diogo Bernardes, que
vamos aqui analisar, o esquema das quadras é precisamente do tipo quiástico
ABBA, enquanto os tercetos apresentam três rimas cruzadas CDE DCE.
No decassílabo, o verso heroico
(acentos na 6.ª e 10.ª sílaba) alterna com o verso sáfico (acentos na 4.ª,8.ª e
10.ª sílaba), sendo as duas variantes repartidas em proporções iguais: dos catorze
decassílabos, sete são heroicos e sete sáficos, mas o primeiro tipo de verso
domina nos tercetos (vv.6, 8, 9, 11-14) e o segundo prevalece nas quadras (vv. 1-5,7 e 10).
A mesma repartição harmoniosa e
equilibrada encontra-se no ritmo dos versos, metade dos quais não tem cesura,
enquanto os outros estão todos fortemente pausados. Veja-se, por exemplo, o incipit
(«Vendo Narciso em uma fonte clara»), ou também o v. 8 «por quem perdeo em
fim a vida cara» ‑ aqui, a cesura é quase impercetível, ao contrário do que
acontece no verso 10 «surda em ouvirme, | muda em responderme» ‑ ou no verso 14 «e tu por me
não ver, | nesta t’escondes», onde a pausa entre os dois hemistíquios está bem
marcada.
Ainda em relação ao ritmo, cabe aqui
sublinhar a presença de quatro cavalgamentos (ou transportes, para usarmos esta
palavra antiga e talvez erudita mas, ao mesmo tempo, elegante e sugestiva):
transportes que anulam, de facto, a pausa final do verso nos nexos 1-2, 3-4,
5-6 e 7-8 (isto é, nos pontos nodais das quadras).
Na primeira estrofe, o desrespeito da
pausa final produz-se em correlação com um sintagma oracional «(Vendo... a
sombra») e com outro locucional («quis... vingar»). Na segunda, o transporte
coincide com uma oração relativa (precisamente, uma subordinada adjetiva de
valor restritivo).
À falta de transportes nos tercetos
corresponde o predomínio, já assinalado, do decassílabo heroico sobre o sáfico,
isto é, a programática moderação do ritmo, pela qual o poeta refreia a
velocidade do verso, respeitando tanto a cesura no meio, como a pausa no final.
Se nos detivermos, agora, no facto de
o ritmo de um poema estar necessariamente ligado à construção sintática dos
seus períodos, poderemos constatar que, neste soneto, não há senão uma oração
subordinada causal, que vai do primeiro até ao oitavo verso: uma única frase
ocupa totalmente as duas quadras. Nela o poeta descreve tanto a cena atual (o
presente), como o seu antecedente lógico-temporal (o passado).
Ao contrário, os tercetos apresentam
um diálogo fictício (que é, na realidade, um monólogo de Narciso), constituído
por uma série de orações interrogativas e exclamativas que vêm alternadas.
Toda a parte inicial do poema, sintaticamente
enleada, gravita em torno da forma verbal disse, bem destacada pela
forte cesura do verso. O período sintático enrola-se em forma de espiral em
torno deste dissílabo, como um sorvedouro, sugerindo a imagem do ambiente
aquático em que o mito situa Narciso (trata-se mais exatamente da fonte em que
ele se debruça).
A mesma sugestão nasce da presença
constante da líquida r na série das
rimas (-ara, -ura, -ora, -erme): cria-se assim uma rede vertical de correspondências
que liga, sem interrupção, toda a sequência das rimas ABCD até à última (-ondes),
que ‑ mesmo faltando-lhe o fonema r
– evoca contudo o substantivo onda, reforçando o sistema fonossimbólico
do soneto.
Ao lado do elemento aquático, aparece
bem clara a natureza silvestre do lugar: o bulício da folhagem, o murmúrio do
arroio, o sussurro da brisa, a voz do bosque, imitada e até recriada pelos
valores fonossimbólicos do f, do s, do v, do ch. Note-se o uso da
aliteração nas séries seguintes: 1 fonte 2 fermosura; 2 sombra só 3 si; 3 vencido
ventura 4 vingar 1 vendo 7 vã 8 vida 11 ves 12 ves verme 14 ver
(e também 10 ouvirme 11 ouves no interior da palavra); até ao
par 6 chama 7 chorando, que sugere o pranto, e ao sintagma 14 nesta
t'escondes. em que o som ch alude ao repentino desaparecimento da
Ninfa dentro da folhagem.
Seguidamente ‑ e passando da segunda
para a primeira articulação da linguagem (conforme a tese funcionalista de
André Martinet), quer dizer dos fonemas para os monemas, dos sons para as
palavras ‑ convirá realçar o papel essencial desempenhado pelos verbos ver e
ouvir (1 vendo 11 não ves 12 não ves... por verme 14
não ver; 10 ouvirme 11 não ouves).
O verbo ver apoia-se numa
tradição que é mais ideológica do que literária, remontando aos filósofos
gregos (Platão e Aristóteles): o Amor só pode nascer pelos olhos, quer dizer
pela vista da pessoa amada (gr. 'ap' ommàton'). O valor que ainda tem este princípio na
Idade Média pode ser facilmente avaliado pelas palavras de Andreas Capellanus,
autor do célebre tratado De Amore: «Caecitas impedit amorem, quia caecus
videre non potest, unde suus possit animus immoderatam suscipere cogitationem,
ergo in eo amor non potest oriri» (trad.: 'um cego ‑ privado, como é, da vista ‑
não pode amar, porque não tem a faculdade de ver').
No soneto de Diogo Bernardes, o antigo
lugar-comum adquire mais força ligando-se ao mito de Narciso: aquele jovem de
beleza excecional que Narciso vê, nas águas da fonte, não é senão a sua própria
imagem refletida na superfície aquática como dentro de um espelho. Assim, o ato
de ve, que constitui o verdadeiro começo do amor, sendo ao mesmo tempo o seu
princípio e a sua causa, converte-se em cruel desengano. E o próprio objeto do
amor não é mais do que uma imagem ilusória.
A distribuição das formas do verbo ver
no soneto sublinha a sua natureza de eixo lexical do texto: vendo é
a primeira palavra que se encontra no poema, com a função manifesta de introduzir o
antecedente lógico e temporal da ação indicada na frase principal (disse). Narciso vê
«a sombra só da própria fermosura» e, portanto, fala «à sua vã figura».
A forma verbal disse, no final
das quadras, introduz o tema lexical dos tercetos, todo concentrado na oposição
entre ouvir e responder: Diogo Bernardes alude, com muita
elegância, ao mito da Ninfa Eco, cujo amor não era retribuído por Narciso.
Quando Narciso morre, encantado pela sua própria beleza, a Ninfa Eco repete as
últimas palavras que ele profere: «Ó jovem que amei com esforço vão, adeus!». É precisamente a partir desta fábula
grega que Eco passa de nome próprio a substantivo comum, para indicar
aquele fenómeno acústico devido à reflexão de uma onda sonora por um obstáculo
e percebido como a repetição de um som emitido por uma mesma fonte.
Paralelamente, o nome de Narciso vai
designar uma flor solitária, de cheiro intenso e penetrante, com pétalas alvas
e o interior da corola vermelho escuro. O branco simboliza a pureza virginal, o vermelho
representa o sangue que saiu do peito, quando Narciso ‑ desanimado ‑ deu a si
mesmo a morte. […]
NARCISO, GENTILEZA
Tem o Narciso tanta gentileza,
Que na fonte o rendeu sua beleza,
E hoje, por que o conte,
Há Narciso do espelho, e não da fonte.
Homem, que sem concelho,
Como dama te alinhas ao espelho,
O cristal à mulher, a ti o aço,
Abraça o que te é próprio,
Que ser homem e flor está impróprio
Se és belo, procede de tal arte,
Que quem te vê Narciso, te olhe Marte!
Soror Maria do Céu (1658-1753),
Antologia da Poesia Feminina Portuguesa,
António Salvado. Edições do Jornal do Fundão, 1973.
|
Thomas Dodd
|
IMAGEM
És
como um lírio alvo e franzino,
Nascido
ao pôr-do-sol, à beira d’água,
Numa
paisagem erma onde cantava um sino
A
de nascer inconsolável mágoa...
A
vida é amarga. O amor, um pobre gozo...
Hás
de amar e sofrer incompreendido,
Triste
lírio franzino, inquieto, ansioso,
Frágil
e dolorido...
Manuel Bandeira, A cinza das horas, 1917.
A leitura deste poema inicialmente
traz uma sensação de melancolia, tristeza, fragilidade diante da vida. Porém,
numa leitura mais atenta, pode-se perceber que o poema traz a reatualização do
mito de Narciso de forma implícita. O título “Imagem” já aponta para a questão
do reflexo, um dos principais mitemas do mito de Narciso. Ainda mais, o título
terá este sentido na medida em que se interpreta o primeiro verso. Outros
mitemas que remontam a Narciso aparecem no poema, tais como o eu-lírico se autocontemplando,
nascido à beira d’água, o cenário de floresta, o amor impossível e o sofrimento
diante do desejo inalcançável de si mesmo. Deve-se salientar que os mitemas
estão de forma implícita, o que não impede a afirmação de que o poema traz, em
si, o mito de Narciso.
O poema é composto por dois
quartetos, observando-se versos polimétricos, com rimas externas ABAB, na
primeira estrofe, e CDCD, na segunda estrofe. O primeiro verso, “És como um
lírio alvo e franzino”, remonta, conforme mencionado anteriormente, à questão
do reflexo. Aqui, neste momento inicial, o eu-lírico observa a sua imagem e
analisa a sua beleza, se descobre. Os adjetivos “alvo” e “franzino” evidenciam
a admiração, assim como Narciso se comparou aos deuses quando se reclinou na
fonte. Pode-se depreender que “alvo” significa puro e inocente, e “franzino”,
frágil e delicado – tem-se, então, uma beleza fina, pura, intocável. O substantivo
“lírio” indica uma metonímia com a própria planta narciso, já demonstrando o
final trágico do personagem. Portanto, no primeiro verso, o eu-lírico se vê e
se admira. O conector “como” revela o nível de comparação que ele está tendo ao
se surpreender com a sua própria imagem.
O segundo verso, “Nascido ao
pôr-do-sol, à beira d’água”, revela a origem deste eu-lírico. O verso inteiro
indica um dos mitemas fundamentais de Narciso, ou seja, sob o crepúsculo, na
beira da fonte, o sujeito poético nasceu. A “água”, neste verso, não aparece
gratuitamente, pois o vocábulo aponta diretamente para a reatualização do mito.
O encadeamento do primeiro verso com o segundo registra todo o contexto de
Narciso, o seu nascimento e o cenário póstumo: “A imagem nunca é um elemento:
tem um passado que a constituiu; e um presente que a mantém viva e que permite
a sua recorrência” (BOSI, 2000, p. 22).
Conforme a proposta de interpretação
que se vem desenhando, o terceiro e o quarto versos possuem uma lógica de
sentido, assim como os dois primeiros. O terceiro verso, “Numa paisagem erma
onde cantava um sino”, mostra a situação em que se encontra o personagem do
poema, o seu cenário e os acontecimentos. A “paisagem erma” revela que apenas o
eu-lírico está ali, sozinho, se admirando. O canto do sino são as ninfas,
sobretudo Eco, chamando a persona lírica, pois quando um sino toca, significa
um chamamento a distância. O quarto verso, “A de nascer inconsolável mágoa...”,
descreve o interior emocional que o eu-lírico irá conhecer pela ação de se
apaixonar por si. Narciso foi condenado pelas ninfas do mesmo modo. A inconsolável
mágoa que virá consiste no sofrimento sem solução, dor eterna de uma paixão
não-recíproca.
Interessante observar que o
eu-lírico, nascido nas águas, descobre a gênese do sofrimento na mesma água. O
verbo “nascer” aparece duas vezes nesta estrofe: no segundo verso, indica a
origem do eu-lírico; no quarto, esclarece a raiz da sua dor emocional.
A segunda estrofe legitima os factos
da primeira e mostra um desfecho trágico para o eu-lírico, semelhante ao do
mito de Narciso. O quinto verso traz: “A vida é amarga. O amor, um pobre gozo...”.
No mito original, Narciso fazia parte do programa de formação do efebo para
atividades militares em grupo. Porém, o personagem segue um rumo oposto ao
destino imposto pela cidade. Ele escolhe a solidão dos campos, vivendo sozinho,
sem as atividades militares dos grupos. A primeira parte do quinto verso, “A
vida é amarga”, aponta para um sujeito descontente com a experiência vivida,
assim como Narciso.
Devido ao facto de ser condenado
pelas ninfas, o amor que Narciso descobre será raso de afeto, conforme se vê em
“O amor, um pobre gozo...”. No poema, o eu lírico, mesmo tendo consciência da
efemeridade do amor de si, segue tentando uma aproximação da sua imagem. No
sexto verso, “Hás de amar e sofrer incompreendido”, volta a questão do seu
destino, que é o mesmo de Eco. As antíteses “amar” e “sofrer” começam a
delinear a trajetória do eu-lírico. O
amor por si mesmo lhe trará um
sofrimento indelével.
O sétimo verso, “Triste lírio
franzino, inquieto, ansioso“, descreve todas as sensações percebidas
pelo eu-lírico. A
imagem causa-lhe inquietação e entorpecimento. A tristeza
começa a vir
pelo facto do
reflexo não corresponder inteiramente ao que ele
desejara. Os movimentos do reflexo e a sua não-nitidez, em alguns momentos,
deixam o eu-lírico ansioso e triste.
O
oitavo verso, “Frágil
e dolorido...”, revela
um desfecho interpretativo semelhante ao do mito de
Narciso. O adjetivo “frágil” indica a situação emocional, no sentido da paixão
entorpecida, como também demonstra as consequências físicas e o estado
biológico do eu-lírico. Com o isolamento prolongado, a fome lhe traz dor, mas a
admiração não se encerra, pois ele vai até o fim do sofrimento. Portanto, este
último verso registra o
término do poema
e o do
eu-lírico; aqui, Narciso.
De um amor incompreendido, restam a fragilidade e a
dor, seguidas pela morte, com as reticências sugerindo algo penoso para este personagem
apaixonado.
Por fim, resta apontar que o título –
“Imagem” – remonta ao contexto de reflexo, já que se pode interpretar que a
segundo estrofe é o reflexo turvo da primeira, uma vez que
o poema tem
apenas estas duas,
compostas de versos
com tamanhos semelhantes.
|
Dead Narcissus, with wasting Echo in the background
|
Espelhos:
o que sois na vossa essência,
nunca
ninguém saberá explicá-lo.
Como
os furos do crivo, sois a ausência,
do
tempo a preencher como intervalo.
Vós,
que esbanjais a sala inda deserta –,
vastos
como florestas, quando a noite regressa…
E
o lustre, como hastes múltiplas de algum gamo alerta,
vossa
água inviolável atravessa.
Tanta
vez estais cheios de pinturas.
Umas
em vós parecem estranhadas –,
as
outras afastou-as a vossa timidez.
Mas
a mais bela de todas as figuras
ficará
lá no fundo, até nas faces recatadas
romper
claro e narciso sua timidez.
Os Sonetos a Orfeu de Rainer Maria Rilke, Rainer Maria Rilke, 1923.
Trad. de Vasco Graça Moura. 1ª ed. Lisboa:
Quetzal, 1994. ISBN 972-564-212-0.
|
Thomas Dodd |
NARCISO
Dentro de mim me quis eu ver. Tremia,
Dobrado em dois sobre o meu próprio poço...
Ah, que terrível face e que arcabouço
Este meu corpo lânguido escondia!
Ó boca tumular, cerrada e fria,
Cujo silêncio esfíngico bem ouço!
Ó lindos olhos sôfregos, de moço,
Numa fronte a suar melancolia!...
Assim me desejei nestas imagens,
Meus poemas requintados e selvagens,
O meu Desejo os sulca de vermelho:
Que eu vivo à espera dessa noite estranha,
Noite de amor em que me goze e tenha,
...Lá no fundo do poço em que me espelho!
José Régio, Biografia, 1929.
Trata-se de um soneto decassílabo
onde se observa uma linha de raciocínio lógico nas escolhas dos vocábulos que
garantem as rimas externas dos dois quartetos e tercetos: tremia/escondia; poço/arcabouço; fria/melancolia; ouço/moço; imagens/selvagens; vermelho/espelho e estranha/tenha. Com a liberdade que o leitor goza, no ato de leitura, de organizar
os signos de forma a compreendê-los e interpretá-los, uma nova frase se
constrói no elenco dessas rimas: Tremia
e escondia nesse poço, arcabouço, dessa fria melancolia, que moço ouço, essas
imagens selvagens que no espelho vermelho estranhas tenha.
No poema, tem-se a presença de dois
sujeitos, Eu/Tu,
que, como o próprio título do poema deixa entrever, representam um só Eu
cindido em dois. A
dualidade do sujeito já vem marcada na forma eleita pelo poeta, o soneto, pois
que ela é simétrica. Outro detalhe a ser observado refere-se às aliterações dos
encontros consonantais nos dois quartetos: Dentro –
tremia – Dobrado
– próprio;
fria – sôfrego
– fronte. A presença da consoante vibrante
/r/ reforça a ideia do medo, do sentimento da experiência religiosa de se estar
diante do numinoso, é a sensação do tremendum – do terror místico. O tremendum (pavor sacer) é uma sensação de apagamento do ser ante o objeto numinoso, é a
sensação do nada. O numinoso é sempre aquilo de que não nos aproximamos sem
morrer. O que significa dizer que essa relação de tremendum ou de veneração, que é estabelecida pelo homem diante do
numinoso, coloca em xeque o conhecimento de si, o cosmos interior do recetor.
Rudolf Otto definiu esse conhecimento de si como o sentimento da criatura que se abisma no seu próprio nada e
desaparece perante o que está acima de toda a criatura (O sagrado. Trad. João Gama. Rio de Janeiro, Edições 70, Ltda. p.19). Essa
experiência religiosa da aniquilação do sujeito que se reencontra no outro Eu
só parece ser possível
no espaço eleito, o da poesia, que possibilita o acesso ao silêncio esfíngico que bem ouço. Somente em dois momentos temos a presença de reticências no poema, que
se apresentam no primeiro quarteto e no segundo terceto, como se representassem
a abertura e o fechamento da frase, do poema e da experiência religiosa: Dobrado em dois sobre meu próprio poço...
Lá no fundo do poço em que me espelho. Há dois poços, o próprio
poço e o poço em que me espelho e o que propicia esse encontro é o
desejo do eu lírico em fazer de sua poesia a expressão de seu desejo, o da
junção dos dois Eus: Assim
me desejei nestas imagens/ Meus poemas requintados e selvagens,/ O meu Desejo
os sulca de vermelho:/ Que eu vivo à espera dessa noite estranha,/ Noite de
amor em que me goze e tenha. Esse poema introduz, neste estudo, uma característica forte da poesia
regiana, a metapoesia. E, enquanto tal, essa poesia apresenta o par dicotômico
“fundo e forma”, os dois elementos coexistem e, contudo, não anulam o conflito,
que é, em verdade, um conflito humano, o da eterna busca pelo autoconhecimento
que não se dá sem pathos.
NINGUÉM A OUTRO
AMA
Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto.
Nada te pese que não te amem. Sentem-te
Quem
és, e és estrangeiro.
Cura de ser quem és, amam-te ou nunca.
Firme contigo, sofrerás avaro
De
penas.
10-8-1932
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa.
(Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.)
Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). - 145.
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Narcissus languishing by his reflection, Nicolas Bernardt Lepicie
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EPIGRAMA
Narciso, foste
caluniado pelos homens,
por teres deixado cair,
uma tarde, na água incolor,
a desfeita grinalda
vermelha do teu sorriso.
Narciso, eu sei que não
sorrias para o teu vulto, dentro
da onda:
sorrias para a onda,
apenas, que enlouquecera, e que
sonhava
gerar no ritmo do seu
corpo, ermo e indeciso,
a estátua de cristal
que, sobre a tarde, a contemplava,
florindo-a para sempre,
com o seu efêmero sorriso...
Cecília
Meireles, Vaga Música, 1942
Nessa peça de longos versos, o sujeito lírico dialoga
solidariamente com Narciso retomando o relato mítico e a hermenêutica dos
homens que o condenaram. Tal retomada ocorre mediante delicada subversão dos
elementos em jogo no mito. Na primeira terça, de modo metonímico, a poeta alude
à queda do sorriso, “desfeita grinalda vermelha”, na “água incolor” para falar,
em verdade, da queda do moço nas águas, o que é um modo eufemizado de sugerir
que sua morte não foi intencional, por suicídio conforme dispõe o mito, mas por
uma queda inevitável.
Na segunda apóstrofe a Narciso, o eu lírico, ainda em
declarada cumplicidade, afiança saber que o sorriso do jovem não é para o seu
reflexo, o “vulto, dentro da onda”, mas para a onda posta em relação com ele.
Essa onda insurge como o outro da relação e é antropomorfizada na loucura de
sonhar uma criação a partir do belo corpo do rapaz. Note-se a variante do mito
na transposição da loucura de Narciso para a onda, porquanto a fixação
patológica não é dele por seu reflexo, mas da onda por ele. Ao transferir a
fascinação perturbada para a onda, a poeta acrescenta a não indiferença do
moço, já que a onda é alvo da contemplação sorridente de Narciso, “sorrias para
a onda”. Há aqui, portanto, o encontro, certa comunhão, do jovem com um
terceiro que também não se manifesta no original do mito.
O dístico final do poema revela o louco sonho da onda: ela desejava
conceber uma “estátua de cristal” com o corpo de Narciso, “sonhava / gerar no
ritmo do seu corpo”. Por isso, ela precisava do seu belo sorriso para enfeitar
sua obra: “florindo-a, para sempre, com o seu efêmero sorriso...” Desse modo, a
poeta desloca a ênfase do relato mítico — a fraqueza de Narciso em apegar-se a
própria imagem — para a ambição insana da onda, metonímia das águas, tornando-a
a grande responsável pela desdita do rapaz. E, por fim, a poeta chama Narciso
para dizer que, embora os homens o caluniem, ela sabe o alcance da injustiça,
pois conhece a verdade, uma verdade que destoa da oficial, na qual o jovem foi
seduzido pela onda das águas e, por essa paixão votada a ela não a si mesmo,
também foi arrebatado para a morte.
Por essas incursões, pode-se constatar a recorrência ao
arquétipo de Narciso tanto no texto poético de García Lorca como no de Cecília
Meireles. O espanhol e a brasileira empreendem um mergulho ontológico, nas
águas ancestrais do mito, selando o encontro vivo da poesia defronte o espelho,
onde, de posse dessa fonte não contaminada, refundem a palavra poética das suas
lições e, do caos ao cosmo, tentam superar a atomização restaurando sua
integralidade na esfera do poético. Assim, a bela figura de Narciso deve
continuar inspirando os poetas e, conforme considerou Jung, sua sombra ou seu
reflexo — a imago perdida do triste moço — deve também perdurar acesa em nós
(BRANDÃO, 2005, p. 189).
O
ESPELHO
E
como eu passasse por diante do espelho
não
vi meu quarto com as suas estantes
nem
este meu rosto
onde
escorre o tempo.
Vi
primeiro uns retratos na parede:
janelas
onde olham avós hirsutos
e
as vovozinhas de saia-balão
como
pára-quedistas às avessas que subissem do fundo do tempo.
O
relógio marcava a hora
mas
não dizia o dia. O tempo,
desconcertado,
estava
parado.
Sim,
estava parado
em
cima do telhado...
como
um catavento que perdeu as asas!
O
AUTO-RETRATO
No
traço que me faço
-
traço a traço –
às
vezes me pinto nuvem,
às
vezes me pinto árvore...
às
vezes me pinto coisas
de
que nem há mais lembrança...
ou
coisas que não existem
mas
que um dia existirão...
e,
desta lida, em que busco
-
pouco a pouco –
minha
eterna semelhança,
no
final, que restará?
Um
desenho de criança...
corrigido
por um louco!
MUNDOS
Um
elevador lento e de ferragens belle
époque
me
leva ao antepenúltimo andar do Céu,
cheio
de espelhos baços e de poltronas como o hall
de
qualquer um antigo Grande Hotel,
mas
deserto, deliciosamente deserto
de
jornais falados e outros fantasmas da TV,
pois
só se vê, ali, o que ali se vê
e
só se escuta mesmo o que está bem perto:
é
um mundo nosso, de tocar com os dedos,
mas
este – onde a gente nunca está, ao certo,
no
lugar em que está o próprio corpo
mas
noutra parte, sempre do lado de lá!
não,
não este mundo – onde um perfil é paralelo ao outro
e
onde nenhum olhar jamais se encontrará...
VIDAS
Nós
vivemos num mundo de espelhos,
mas
os espelhos roubam nossa imagem...
quando
eles se partirem numa infinidade de estilhas
seremos
apenas pó tapetando a paisagem.
Homens
virão, porém, de algum mundo selvagem
e,
com estes brilhantes destroços de vidro,
nossas
mulheres se adornarão, seus filhos
inventarão
um jogo com o que sobrar dos ossos.
E
não posso terminar a visão
porque
ainda não terminou o soneto
e
o tempo é uma tela que precisa ser tecida...
mas
quem foi que tomou agora o fio da minha vida?
que
outro lábio canta, com a minha voz perdida,
nossa
eterna primeira canção?!
O
VELHO DO ESPELHO
Por
acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
que
me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém,
seu rosto ... é cada vez mais estranho...
meu
Deus, meu Deus... parece
meu
velho pai! – que já morreu!
Como
pude ficarmos assim?
Nosso
olhar – duro – interroga:
“O
que fizeste de mim?!”
eu,
Pai?! Tu é que me invadiste,
lentamente,
ruga a ruga... Que importa?! Eu sou, ainda,
aquele
mesmo menino teimoso de sempre
e
os teus planos enfim lá se foram por terra.
Mas
sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra! –
Vi
sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...
Mario Quintana
Mario
Quintana - Poesia Completa. Apontamentos de História Sobrenatural, Editora
Nova Aguillar
A
recorrência ao mito de narciso na poesia de Quintana é significativa. Mas não
como uma imagem totalizante, na qual se possam ler os mitemas mais importantes,
ou mais reconhecíveis, e ver uma narrativa completa. Não se pode esquecer que a
época de Mário é marcada pela fragmentação, ou pela multiplicação dos pedaços
que antes compunham um todo facilmente montado como se fosse um quebra-cabeça.
As partes que volta e meia compõem as identidades do poeta são encabeçados pela
figura do pai (“O velho do espelho”), por objetos insólitos para essa relação,
tais como o baú (“A alma e o baú”), retratos de parede das avozinhas (“O
espelho”), elementos da natureza (“Auto-retrato”), os sapatos (“Canção de
primavera”), e outros. É bom lembrar de Bauman: (...) só se pode comparar a
biografia com um quebra-cabeça incompleto, ao qual faltam muitas peças (e
jamais se saberá quantas). Deduz-se que a construção de uma identidade,
marca mitêmica mais importante no mito para os tempos modernos e sucedâneos,
assumiu a forma de um experimento que não tem fim. Por outro lado, a identidade
só se estabelece como busca quando se a perde. Sempre que se ouvir essa
palavra [identidade], pode-se estar certo de que está havendo uma batalha.
(...) Ela só vem à luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia no momento em
que desaparecem os ruídos da refrega (BAUMAN, 2005).
A
releitura de Mário passa por recortes de mitemas, que muitas vezes fazem com
que nossa leitura se disperse e não perceba que por trás de sua poesia está um
homem representativo do seu tempo, isto é, visceralmente multiplicado em dois
ou mais imagens de si mesmo. Para isso, é preciso considerar que o mito de
narciso tem sido muito caro à modernidade. A crise de identidade advinda com o
agravamento da modernidade tem no mito um respaldo significativo. Em Mário, não
se trata apenas do sujeito particular, mas de uma representação de humanidade
muito afeita ao Brasil do século XX, como aliás, seus companheiros de geração
modernista: Cecília Meireles e seus auto-retratos, Vinícius de Moraes como o
homem belo e erótico, Murilo Mendes multiplicado em suas inúmeras formas de
fazer poesia, Jorge de Lima e as religiões que o formaram, etc.
De
Quintana, tomo um poema especial para esta perspectiva:
CANÇÃO
Cheguei a concha da orelha
à concha do caracol.
Escutei
vozes amadas
que eu julgava
eternamente perdidas.
Uma havia
que dentre as outras mais
graves
tão clara e alta se
erguia...
que eu escutei mas
descobri
que era a minha própria
voz:
sessenta anos havia
ou mais
que ali estava encerrada.
Meu Deus, as coisas que
ela dizia!
As coisas que perguntava!
Eu deixei-as sem resposta.
As outras vozes, mais
graves,
tampouco
nenhuma lhe respondia.
O mundo é um búzio oco,
menino...
mundo de vozes perdidas
e onde apenas o eco
eternamente
repete as mesmas
perguntas.
Trata-se
de poema de forma bastante livre, assim como a constituição dos seus versos. As
estrofes são variadas, o que indica uma certa liberdade formal que certamente
acompanha também uma certa liberdade temática. A primeira leitura do poema não
desvenda de imediato o que o está formatando, isto é, o mito de narciso. A
paráfrase, bastante simples, revela que o texto recria uma imagem, ou uma
brincadeira muito comum entre as crianças, pois se trata de ouvir o marulhar do
côncavo das conchas. Essa cena apresenta um pouco de movimento, seguido de um
quadro estático, no qual o eu-lírico apenas ouve um som e se põe a fazer
considerações que repercutem no seu pensamento. Aquilo que ouve causa-lhe
surpresa, mas não o movimenta o suficiente para agir. Ao ouvir as vozes do
passado em substituição do marulhar, uma delas a sua própria sessenta anos
antes, fica calado e não interage com nenhuma. Conclui que o mundo é um búzio
oco com as mesmas perguntas de sempre, sem as respostas de sempre.
Aparentemente nada conduz nosso olhar para os mitemas de narciso, contudo é
sempre bom lembrar que os poetas de origem modernista, como ele, mantêm, ao
lado da metapoesia, constituindo uma das partes do duplo, a auto-persecução,
material mitêmico fundamental do mito na modernidade e sucedâneos.
A
ação inicial que o poema concretiza é muito singela e remete a um contexto
infantil. O eu-lírico pretende escutar alguma coisa na casca do caracol, como o
fazem as crianças. São duas conchas, de materiais radicalmente diferentes – o
pavilhão da orelha, que tem uma forma encaracolada para captar melhor o som, e
a casca protetora da lesma cujo formato é espiralado. No poema, a cartilagem
humana e a massa óssea do molusco se aproximam para unir os tempos, isto é, o
presente e o passado. Sintomaticamente estas primeiras estrofes do poema são
governadas por verbos no pretérito.
O
poema admite uma divisão ternária concernente aos tempos verbais empregados.
Comparecem, em ordem de presença, o pretérito perfeito, o pretérito imperfeito
e o indicativo presente. Essa gradação encerra uma significação muito
particular de o poeta lidar com suas marcas do passado.
A
ação propriamente dita é realizada no perfeito indicativo – cheguei – indicando
uma ação realizada. Esse passado se manterá fechado até o momento em que na
continuidade desta ação se sobrepõe uma outra, de caráter não ativo, isto é,
escutei – também no pretérito perfeito. Ocorre que essa ação encerrada no
passado passa a ser relativizada com o inesperado do resultado: pela audição, o
eu-lírico teve acesso a um tempo que achava enterrado. A partir do pronome
relativo (“que eu julgava”), que serve justamente para relativizar as partes, o
tempo verbal, ainda que no pretérito, passa a ser declinado no imperfeito,
indicando uma certa continuidade da ação, diminuindo o caráter definitivo do
passado. Aparecem, na seqüência, os
verbos “julgava”, “havia”, “erguia”, “era”.
O ato de aproximação e de ouvir as vozes do passado, que estavam reclusas
na concha, determinam uma relação especular entre o homem de hoje e a criança
de ontem. A quarta estrofe coloca o inusitado da descoberta. O menino que fora
retorna não pela imagem visual, típica no mito de narciso, mas pela imagem
auditiva: “que eu escutei mas descobri / que era a minha própria voz: /
sessenta anos havia / ou mais / que ali estava encerrada.
Sem
dúvida, muitas outras questões estão presentes neste poema de Quintana. Mas
gostaria de apontar que a infância, nele, não serve apenas como resgate de um
tempo feliz, à moda romântica. Ela é o decalque do original. Como cópia,
deveria estar à serviço da perscrutação, no entanto o eu-lírico é categórico.
Reconhece-se na voz do passado, mas nega-se ao diálogo. Certamente, o próprio
poema reflete sobre essa negativa. A última estrofe determina, pela declinação
temporal aliada à significação dada à Eco, a incompatibilidade entre aquilo que
foi com aquilo que é. Assim, o poeta
recoloca e redimensiona um mitema muito caro ao mito de narciso, qual seja, a
Eco, ninfa que desencadeia uma boa parte da dissonância identitária do rapaz.
No poema, destituída de tamanha importância, resta-lhe apenas ser uma
representação, porquanto está substantivada, de uma repetição inócua e estéril,
pois não é capaz de responder, apenas de repetir as perguntas. Esta terceira e
última parte do poema está declinada no presente do indicativo, e o faz através
de um verbo de ligação, cuja significação se concentra em definir uma
existência: “O mundo é um búzio oco”.
Há,
no final do poema, um sentido de pessimismo que se revela na desistência do
eu-lírico em buscar sua identidade perdida da voz infantil (passados sessenta
anos ou mais) que a concha do caramujo e da sua orelha lhe trazem de volta. As
perguntas que sua própria voz lhe fazem ficam sem resposta e sem atenção.
Apesar de saber sua, a voz do passado não lhe pertence mais. A descontinuidade
entre o original e o decalque parece não ter solução.
A mito de narciso, neste poema, perde
muitos de seus mitemas “originais”, adaptando-os e redimensionando-os para um
outro “ensinamento”. Não há mais a
presença direta da água como espelho sobre o qual o sujeito se debruça para se
ver. A Fonte Téspia assume uma outra configuração. A “concha”, cujo simbolismo
está relacionado à água, à fecundidade, à libido, ao feminino tem uma
abrangência particular e individual, e sua versão como “búzio”, que também se
liga aos mesmos arquétipos da lua-água, da gestação-fertilidade compreende um
todo maior que ultrapassa a medida individual – o mundo. No entanto, ambos
elementos simbólicos compõem, no poema, uma expressão de significado oximórico,
pois o búzio é produtor do som primordial e originário das águas primevas (esse
caráter primordial está colocado, implicitamente, no tempo a que o eu-lírico
localiza nas vozes ouvidas – sua infância), bem como representa a noção do eu,
da consciência individual, através do desenvolvimento espiralóide de suas
formas, remetendo, assim, às grande evoluções interiores e exteriores
(CHEVALIER; 1997).
Quintana diferentemente de muitos poetas de
sua geração, renega o auto-conhecimento pela via especular. No mito, o espelho
sobre o qual se dá o enamoramento e o auto-reconhecimento é feito de água, a
Fonte Téspia, buscando nela a imagem visual necessária para reconhecer o
eu-outro. Quando Narciso consegue identificar-se como imagem e decalque, morre
de inanição ao lado das águas. No poema de Quintana, o espelho não se faz de
água, mas de ar, já que a Fonte se transmuta em concha e dela saem as vozes em
cima das quais o eu-lírico reconhece-se, passados sessenta anos. A imagem que
propicia o auto-reconhecimento é auditiva, e não visual. Ocorre que esse
narciso se recusa a se ver e a se ouvir, isto é, não quer saber de eu e
eu-outro. Não morre explicitamente como o do mito, mas sua recusa equivale a
uma espécie de morte, na qual se percebe um certo conformismo diante das
indagações humanas. De forma inusitada, na poesia de Quintana, a poesia de Apontamentos
de História Sobrenatural, há reescrituras do mito, nas quais o poeta
prioriza certos segmentos, como neste caso a relação especular, mas igualmente
os modifica alterando suas substâncias, como da água passa ao ar, ou da imagem
visual passa à auditiva. Por outro lado, a persecução intensa que vem marcando
o mito desde a modernidade, nele deixa de ser alvo a ser atingido, porque a
imagem especular, descoberta sempre com surpresa, é negada. Trata-se, enfim, de
um narciso escusado, porquanto se recusa a um dos mitemas mais significativos
do mito para a modernidade, qual seja, esgaravatar a si mesmo.
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"Narciso", Pierre et Gilles (2013)
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O caso de Miguel Torga é muito expressivo para dar conta da entrada da palavra «Auto-retrato» no léxico poético português do século XX (a acompanhar a dicionarização da palavra em 1949). Com efeito, Torga escreve possivelmente com pouco tempo de diferença os poemas «Retrato», publicado em Diário VI, de 1953, e datado de 12 de março de 1952 (TORGA, 2000: 447), e «Auto-retrato», publicado em Penas do Purgatório, de 1954 (TORGA, 2000: 497):
Auto-retrato
É por detrás do espelho que me vejo,
Numa espécie de quadro em negativo.
Sinais fundos e certos de que vivo,
Mas sem a nitidez que todos me atribuem
Desde o começo.
Baça inquietação, ambígua semelhança
Com aquele velho, jovem ou criança
Que pareço.
(TORGA, 1954: 55; 2000: 497.)
Ler mais: Teresa Ferreira, Autorretratos na Poesia Portuguesa do Século XX, Teresa Ferreira. Universidade Nova de Lisboa – FCSH, 2019
Vejamos então um poeta que se
autoperscruta no lago cujas águas, no poema apresentado, estão turvas.
LAGO TURVO
Angústia marginada,
Meu canto é um lago turvo
Que devolve a paisagem, como um eco
Silencioso.
Um lago onde me afogo
Sem vontade,
Puramente impelido
Por não sei que fatal necessidade
De me sentir poeta e possuído.
Mar sem nascente e só do meu tamanho,
A doçura que tem é um sal sem gosto.
E a estranha inquietação de que se anima,
E o céu olha de cima,
São rugas que se agitam no meu rosto.
Coimbra, 28 de Abril de
1956
Miguel Torga, Diário
VIII, 822.
Julgamos pertinente referir o
contexto de produção deste poema, pois, como já sucedeu anteriormente, a sua
inserção num registo que se pretende diário permite-nos fazê-lo. Os
versos foram escritos após a morte e enterro do pai do poeta (26 de Abril de
1956). Momento de passagem, de transição para uma nova etapa da vida, o
diarista regista que “O número um da família passei a ser eu, e quando alguém
perguntar pelo dono da casa, ou a morte vier de novo, terei de aparecer à porta
e dizer: Aqui estou.”(Diário VIII, 821) Analisando o seu percurso de
vida, acrescenta ainda: “Acabou definitivamente a minha infância, e olho com
terror este insólito fantasma adulto em que subitamente me transformei.” (Diário
VIII, 821). Muito ao seu jeito, sentindo-se irmão da fauna e da flora que
bem conhece, denuncia o desconcerto, o pânico e a impotência perante a
situação: “Pareço uma rês enfragada, a que ninguém pode acudir. Gemo no fundo
do abismo, com a alma partida, e só no desespero encontro conforto.” (Diário
VIII, 821).
Não admira, portanto, que surja o
momento de auto-observação, para se atingir a autognose, seguindo os preceitos
délficos. Contudo, o reflexo não é nítido, o lago é turvo e não permite
o autoconhecimento, o eco185 que transmite é silencioso.
Impelido / por não sei que fatal necessidade / de se sentir
poeta e possuído, o sujeito poético afoga-se no lago, embora sem
vontade. Tantas linhas de leitura, tantas possibilidades de interpretação…
Tantas talvez como as dúvidas do sujeito poético, poeta, uma vez mais.
José Ribeiro Ferreira diz-nos que
“Em Miguel Torga,
Narciso simboliza sobretudo o desejo de introspeção do homem (…) Outras vezes o
mito aparece como símbolo do desejo do artista em rever-se na sua própria obra
– quer seja o poema, o quadro, a estátua ou a sinfonia – que é «espelho de cada
Narciso» (Diário VI, 1953, p. 36). É esta conceção do mito como
introspeção da alma humana – do homem que deseja «ver-se» por inteiro e que
«denodadamente se procura», quer seja artista, poeta ou pensador (…)”.186
Narciso nasce para a cultura
ocidental por intermédio das Metamorfoses de Ovídio. Sem dúvida a versão
mais conhecida do mito (até porque as fontes mitográficas mais conhecidas dos
artistas, como os poemas homéricos, a Teogonia ou os trágicos gregos,
não o referem), foi através dela que também Torga acedeu a este mythos.
A figura mítica é descendente de Cefiso e da ninfa Liríope, que pergunta a
Tirésias se o filho viverá muitos anos. O “fatidicus uates” responde-lhe,
elíptica e enigmaticamente: “Si se non nouerit”187. Embora
aparentemente inofensivo, este “Se não se conhecer a si próprio” vai determinar
todo o mythos narcísico.
Passando diante de um apelativo lago,
Narciso pára para beber, contudo esta sede dá origem a outra, conotativa,
metafórica, mais difícil de matar: “dumque sitim sedare cupit, sitis altera
crevit, / dumque bibit, visae correptus imagine formae”188 Enamorado
de si, “Quantas vezes beijos vãos não deu àquela fonte enganadora! / Quantas
vezes não mergulhou os braços no meio das águas / para abraçar o pescoço que
vê, e não se abraçou a si mesmo!”189. Conjuga em si,
simultaneamente, o amador (probat / petit) e a cousa
amada (probatur / petitur) camonianos190. Deste
modo, não conseguindo unir-se a si próprio, decide que “nunc duo concordes
anima moriemur in una”191 (atente-se na expressividade de una
anima).
Contudo, ao fazer esta afirmação,
derramando lágrimas, turva a superfície da água, que lhe devolve uma
imagem desfocada, “obscura”, no original: “Dixit et ad faciem rediit male sanus
eandem / et lacrimis turbauit aquas, obscuraque moto / reddita
forma lacu est”192.
A análise do texto ovidiano
permite-nos inferir que Torga o conhecia bem, que leu a fonte mitográfica e que
partiu dela para (se) (re)criar mythos. Também o sujeito poético, cujo canto
é um lago turvo, terá movido as águas com as suas lágrimas de angústia e
de inquietação. E também ele mergulha no lago, afogando-se, no mar
sem nascente que, paradoxalmente, possui uma doçura que é um sal
sem gosto.
Debruçando-se sobre este poema, Maria
Fernanda Afonso afirma que a “referência espacial do mundo de Baixo (cf. «lago»,
«onde me afogo»)” “nos remete para um Narciso ctónico ou, melhor dizendo, para
a outra face do poeta que se consubstancia em Orfeu.”193 Ou seja, uma vez mais,
o mythos é poiesis e metapoiesis. Narciso é também o poeta
que, à semelhança do Orfeu que desceu dentro de si, mergulha e se
afoga em si mesmo, numa tentativa de se conhecer, à Poesia e ao seu canto.
O filho de Cefiso, na obra de Torga,
obviamente não se esgota neste poema. Contudo, a insistência no movimento das
águas, que não permite a autoperscrutação, mantém-se. Vejamos o poema “O
Narciso”, de Cântico do Homem (1950).
O NARCISO
O desenho impreciso
De cada rosto humano, refletido!
Mas o velho Narciso
Continua fiel e debruçado
Sobre o ribeiro…
Por que não há de ver-se inteiro
Quem todo se deseja revelado?
Devorador da vida lhe chamaram,
A ele, artista, sábio e pensador,
Que denodadamente se procura!
À movediça e trágica tortura
De velar dia e noite a líquida corrente
Que dilui a verdade,
Quiseram-lhe juntar a permanente
Ironia
Desse labéu de pérfida maldade
Que turva mais ainda a imagem fugidia… 194
Narciso é o artista, o sábio,
o pensador, que procura as respostas em si, desejando ver-se inteiro,
todo revelado. Contudo, uma vez mais, as águas turvas tornam a imagem
fugidia.
Torga produziu um outro poema que faz
referência a esta figura mítica. “Mergulho” foi motivado pela visita ao Poço do
Inferno, na Serra da Estrela:
MERGULHO
Tirem o Céu da sua altura triste;
Olhem a cor do inferno aqui no chão:
Verde-esmeralda que, se não existe,
É um milagre de luz em cada mão.
Anjos de barro, o nosso espelho apenas
Deve ser o cristal que viu Narciso:
Água dum poço de ilusões pequenas
Onde morra e renasça o Paraíso.
195
Serra da Estrela, Poço do
Inferno, 22 de Julho de 1951
Em tom disfórico, o poema reflete
sobre o Céu e o inferno e, uma vez mais, sobre o Homem, anjo
de barro. Embora a água já não seja turva, mas cristal, o
lago é simplesmente um poço de ilusões pequenas.
Terminando, pretendemos demonstrar
novamente como o texto fundador de Ovídio foi recebido, acolhido e (re)criado
por Torga. Concluindo a narrativa de Narciso, o poeta latino remata com a sua metamorfose,
ocorrida após a morte: “croceum pro corpore florem / inveniunt foliis medium
cingentibus albis”196. Torga recupera esta transfiguração, aplicando-a
ao povo português, no ensaio sobre “Lisboa”, parte integrante de Portugal:
“Enamorado de si, morreu Narciso à
beira dum regato onde se mirava. E as ninfas, compadecidas da sua desgraça,
pediram aos deuses que o transformassem numa flor.
Narcisos que fomos também um dia,
esperava-nos um destino igual ao do filho de Cefiso. Lisboa é essa flor em que
o destino nos transformou; o Tejo, o rio onde nos perdemos a contemplar a
própria imagem.”197
Verificamos, deste modo, as
multímodas e plurissignificantes leituras que o autor faz dos mitos.
______________________
(185) Reconhecemos aqui uma outra vertente do mito de
Narciso, que, segundo Ovídio (Metamorfoses, III, 356-401), terá
rejeitado a ninfa Eco, eterna duplicadora das últimas sílabas das palavras
pronunciadas por outros.
(186) FERREIRA, José Ribeiro, “O mito de Narciso na poesia
portuguesa contemporânea”, in AA. VV., A Mitologia Clássica e a Sua Recepção
na Literatura Portuguesa. Braga: Centro de Estudos Clássicos da Faculdade
de Filosofia, 2000, 109.
(187) Metamorfoses, III, 348.
(188) Metamorfoses, III, 415-416. Tradução, op.
cit., 96: “Enquanto procura acalmar a sede, uma outra sede cresce; / e
enquanto bebe, arrebata-o a imagem da figura que vê.”)
(189) Tradução de Metamorfoses, III, 427-429: “inrita
fallaci quotiens dedit oscula fonti, / in mediis quotiens visum captantia
collum / bracchia mersit aquis nec se deprendit in illis!”.
(190) Metamorfoses, III, 425-426: “se cupit inprudens
et, qui probat, ipse probatur, / dumque petit, petitur, pariterque accendit et
ardet”.
(191) Metamorfoses, III, 473. Tradução (op. cit.,
97): “Agora morreremos os dois juntos, num só último sopro”.
(192) Metamorfoses, III, 474-476 (o destacado é
nosso). Tradução (op. cit., 97-98): “Assim dizendo, em delírio, volta-se
para aquela mesma face, / e com lágrimas turvou a superfície da água:
estremecendo, / a lagoa devolveu a imagem desfocada.”.
(193) AFONSO, Maria Fernanda, Escrita e Mito em Miguel
Torga: Espelhos do Eu Poeta, tese de Mestrado em Literatura Portuguesa
apresentada à FLUL (Lisboa, 1995) 33.
(194) Cântico do Homem, 1950: 407.
(195) Diário VI, 1953: 602.
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Narciso, Erika Mériaux (2010) |
NARCISO CEGO
Tudo o que de mim se perde
acrescenta-se ao que sou.
Contudo, me desconheço.
Pelas minhas cercanias
passeio — não me frequento.
Por sobre fonte erma e esquiva
flutua-me, íntegra, a face.
Mas nunca me vejo: e sigo
com face mal disfarçada.
Oh que amargo é o não poder
rosto a rosto contemplar
aquilo que ignoto sou;
distinguir até que ponto
sou eu mesmo que me levo
ou se um nume irrevelável
que (para ser) vem morar
comigo, dentro de mim,
mas me abandona se rolo
pelos declives do mundo.
Desfaço-me do que sonho:
faço-me sonho de alguém
oculto. Talvez um Deus
sonhe comigo, cobice
o que eu guardo e nunca usei.
Cego assim, não me decifro.
E o imaginar-me sonhado
não me completa: a ganância
de ser-me inteiro prossegue.
E pairo — pânico mudo —
entre o sonho e o sonhador.
Publicado
no livro Narciso Cego; Seguido do Romance do Primogênito (1952).
In:
MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.
NARCISO
Curvei, sobre o regato, o corpo todo...
Porém, mal entrevi o meu retrato,
que foi olhar e as águas do regato
se turbaram, manchadas do meu lodo.
Depois, cavei cá dentro com denodo;
perfumei-me de flores azuis do mato;
e, quando cri expulso o lodo inato,
mais uma vez curvei o meu corpo todo.
E as águas tardaram em toldar...
Mas debruço-me ainda, pois espero
que me hão de um dia, claras, espelhar.
Tanto faz ver-me belo ou feio, então;
só cristalinas, límpidas, as quero,
prà tua sede antiga, meu Irmão.
Sebastião da Gama, Itinerário
Paralelo, 1967
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Caravaggio, Narcissus 1598-99 Darren Hasson recreation
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NARCISO
De n'água contemplar-se onde se vê Narciso
se inclina sobre si para beijar-se e a imagem
avança em lábios trémulos que o respirar
ansioso escrespa o espelho prestes a partir-se.
Não foi de contemplar-se ou de a si mesmo amar-se
que em limos se fundiu com a sua imagem vácua
mas de não ter sabido quando não de olhar
nem só de húmidos beijos se perfaz o amor.
Jorge de Sena, 1970-07-09
[QUEM EDUCO
QUANDO A TI EDUCO?]
Quem
educo quando a ti educo?
A
lenta corrupção.
Pego
em objetos e educo-te.
Olho
para ti
e
estás longe
que
vou ao teu encontro.
Aprendo
de ti o aprendido de mim.
Joaquim Manuel Magalhães, Envelope, 1974
DONJUANISMO INVERTIDO, O NARCISO
MODERNO E O VAZIO
Parece evidente o narcisismo típico
da pós-modernidade. O «Eu», alvo de todos os investimentos, «torna-se um
espelho vazio à força de “informações”, uma questão sem resposta à força de
associações e análises, uma estrutura aberta e indeterminada» (Lipovetsky, 1989:53).
O afastamento do outro é, por um lado, a constatação de que o outro é o vazio,
por outro lado, e ainda que inconscientemente, é um modo de preservar as suas
próprias opções: «Estar sozinho é o preço / duma vida?» (J. M. Magalhães, Uma
Luz com toldo vermelho, Lisboa, Editorial Presença, 1990, p. 21).
O Narciso pós-moderno cultiva o «flight
from feeling» (Lipovetsky, 1989:72), encontrando-se assim num estado de
apatia, indiferença, desencanto, «não só a fim de o indivíduo se proteger
contra as deceções amorosas, mas também contra os seus próprios impulsos, que
podem sempre ameaçar o seu equilíbrio interior» (idem, ibidem). Esta
indiferença cultivada acaba também por gerar vulnerabilidades.
(...) De ti
que nem reconhecer-me poderias
não imagino sequer o teu rosto
de agora.
Algum intervalo, então, de
dinheiro ou de temor,
Fez de nós este visco que
tombou
Em distantes poços muito
fundos.
(J. M. Magalhães, A
Poeira levada pelo vento, Lisboa, Editorial Presença, 1993, p. 32)
A relação com o outro é dolorosa,
pois falta-lhe a ingenuidade de acreditar na veracidade dos sentimentos.
Passando o paradoxo, o eu que habita o outro é ninguém.
A este amor falta a esperança, falta
a ilusão, falta o encanto, é somente uma entrega desenganada: «O corpo aceita o
quase nada do amor.» (idem, ibidem:38). É um desamor.
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“Donna”, da série “Unadorned” (2012), Julia Fullerton-Batten |
SAMPA
Alguma coisa acontece no meu coração
que só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João
é que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
da dura poesia concreta de tuas esquinas
da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim Rita Lee, a tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
que só quando cruzo a Ipiranga e a Avenida São João
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
chamei de mau gosto o que vi
de mau gosto, mau gosto
é que Narciso acha feio o que não é espelho
e a mente apavora o que ainda não é mesmo velho
nada do que não era antes quando não somos mutantes
E foste um difícil começo
afasto o que não conheço
e quem vem de outro sonho feliz de cidade
aprende depressa a chamar-te de realidade
porque és o avesso do avesso do avesso do avesso
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
da força da grana que ergue e destrói coisas belas
da feia fumaça que sobe apagando as estrelas
eu vejo surgir teus poetas de campos e espaços
tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva
Panaméricas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
mais possível novo quilombo de Zumbi
e os novos baianos passeiam na tua garoa
e novos baianos te podem curtir numa boa
Caetano Veloso, LP Muito Dentro da
Estrela Azulada, 1978
Em 1978
Caetano Veloso gravou a canção Sampa. Embora seu lançamento tenha ocorrido
quase dez anos após o fim do Tropicalismo, a canção conserva marcas temáticas e
estilísticas do movimento. Sampa poetiza uma cidade de contrastes: a modernização
socioeconômica acelerada e excludente, a vitalidade cultural, a convivência da
diversidade. São Paulo é vista sob o olhar do migrante e sua tomada de
consciência ante a metrópole carregada de vitalidade e contradições. Conquanto
estampando uma primeira impressão negativa da cidade, algo incompreensível (“porque
és o avesso do avesso do avesso do avesso”), ao final da canção, o eu poético
incorpora o espaço, passando a fazer parte dele, podendo entendê-lo, admirá-lo,
aceitá-lo (“E os novos baianos passeiam na tua garoa/E novos baianos te podem
curtir numa boa”).
Comunicação & educação • Ano XV •
número 3 • set/dez 2010.
O compositor apropria-se
do mito de Narciso para explicar, simbolicamente, o que lhe ocorreu quando
conheceu a cidade de São Paulo.
Ler também:
CONTRANARCISO
em
mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o
outro
que há em mim
é você
você
e você
assim
como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
Paulo Leminski,
Caprichos
e Relaxos. São Paulo, Editora
Brasiliense, 1983
“Narciso morre de
sede, ao beber sua imagem” (Paulo Leminski)
No poema
“contranarciso” Leminski desenvolve de forma poética o conceito psicanalítico
de narcisismo como função essencial na formação do Eu. […]
Leminski faz no opúsculo
“Metaformose, uma viagem pelo imaginário grego”, uma leitura pós-moderna e
concisa do clássico “Metamorfoses” de Ovídio. Reconstrói ali grande parte dos
mitos descritos no clássico, sem se ater às divisões temáticas e ao rigor
estilístico do texto ovidiano. Chega mesmo a cruzar alguns personagens
dando-nos uma panorâmica talvez mais coerente com o amplo escopo do que se
agrupa hoje em uma denominada mitologia grega.
Essa pequena digressão pelas
“metaformoses” leminskianas é para situar o mito de Narciso na sua obra, e que
está sintetizado na frase aqui em epígrafe e que termina o livro citado [“Narciso morre de sede, ao beber sua imagem” (Paulo
Leminski)]. Leminski tem arguta percepção do papel da mitologia no
estudo da condição humana, e no poema “contranarciso” parece mostrar, por uma
inversão do mito, sua necessidade de constantemente beber em outros lagos,
mesmo tendo que viver a angústia de não beber em si mesmo.
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"Narciso", Franz von Stuck (1926) |
NARCISO
Niño,
¡Que te vas a caer al río!
En lo hondo hay una rosa
y en la rosa hay otro río.
¡Mira aquel pájaro! ¡Mira
aquel pájaro amarillo!
Se me han caído los ojos
dentro del agua.
¡Dios mío!
¡Que se resbala! ¡Muchacho!
…Y en la rosa estoy yo mismo.
Cuando se perdió en el agua
comprendí. Pero no explico.
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NARCISO
Menino,
Vais cair no rio!
No fundo há uma rosa
e na rosa há outro rio.
Olha aquele pássaro! Olha
aquele pássaro amarelo!
Caíram-me os olhos
dentro d’água.
Deus meu!
Ele escorrega! Menino!
... E na rosa estou eu mesmo.
Quando se perdeu na água
compreendi. Mas não explico.
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Federico Garcia Lorca, Canciones. Madrid, Espasa-Calpe, 1986
NARCISO E
NARCISO
Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira.
Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
E
se amam mentindo
no fingimento que é necessidade
e
assim
mais
verdadeiro que a verdade.
Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
E
fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
- e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
se
odiando.
O espelho
embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam
que
o inferno de Narciso
é
ver que o admiravam de mentira.
Ferreira Gullar, Barulhos (1980 1987).
Rio de Janeiro, José Olympio, 1987
A retomada ao mito de Narciso, além
de promover uma reflexão sobre a “ilusão” da imagem especular e desta
duplicidade inerente ao ser humano (a “outridade” de que fala Octavio Paz),
permite tratar o tema dos espelhos enquanto uma qualidade reflexiva que
possibilita ao poeta pensar seu próprio ato poético, ou seja, o processo de
criação literária.
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«Narcissus», Ergo Rodriguez, 2018
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Narcissus, Ego Rodriguez Illustration, 2021 |
ECO E NARCISO
Nela, vive o som que os deuses roubaram
ao fugitivo amante; sem destino, consome-se
no fundo de um espelho que repetiu o choro
da amada. Não o ouviu; nem viu essa
cuja beleza a terra sepulta, solitária,
condenada ao jogo da natureza. Olha-se,
fixamente, despindo-se da folhagem
que as chuvas acumularam no abrigo dos vales;
cobrindo-se com o brilho húmido que ofuscou
o furtivo aceno; dançando, enfim, quando
o vento envolve os arbustos com o desvelo
de um murmúrio de flauta. Aqui,
engana-o a imagem de que fogem as águas
que o seu reflexo suspende, detendo
o inelutável tempo; nenhuma súplica, porém,
restituirá um corpo à sombra
que persegue. Tão perto, no entanto, dos seus
braços que imitam a realidade!, procura
o seu conforto no fundo das fontes. «Quem és?»
«És», repete, sem que a voz se distinga
- e os seus lábios se revelem, turvos
de ânsia, num rigor de verso.
Nuno Júdice, As regras da perspectiva, Quetzal
Editores, 1990.
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Narciso, Anthony Gayton (2006) |
POEMA
NARCISISTA
(o espelho é minha
alma…)
sou narcisista
estupidamente
narcisista
não nazista
nem stalinista
nem collorista
ou qualquer outro
“ista”
irritante e
exibicionista
sou apenas
narcisista
(o espelho é meu
guia…)
sou narcisista
politicamente
narcisista
não comunista
nem monarquista
nem capitalista
ou qualquer outro
“ista”
desnecessário e
alienista
sou apenas
narcisista
(o espelho me
acalma…)
sou narcisista
ingenuamente
narcisista
não umbandista
nem adventista
nem catolicista
ou qualquer outro
“ista”
religioso ou
contritista
sou apenas
narcisista
(o espelho me
alicia…)
sou narcisista
literariamente
narcisista
não concretista
nem positivista
nem parnasianista
ou qualquer outro
“ista”
complicado e
radicalista
sou apenas
narcisista
(o espelho é minha
alma
o espelho é meu guia
o espelho me
acalma
o espelho me
alicia)
sou narcisista
pretensiosamente
narcisista
e quem não for
atire a primeira
pedra...
...no espelho.
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https://www.facebook.com/AlicesAdventuresinFandomland |
A BELA ADORMECIDA NO ESPELHO
Há uma mulher mais bela que eu?
olhar doce
azul turquesa
abertos à força do rímel?
olhos que não vêem
coração que não sente
fotografia em movimentos
suaves, suaves, suaves.
Do outro lado
pano de fundo
o mundo.
Retorno
contorno a boca
por dentro, catatonia
não se transparece
na aparência oca.
Ombro reto
sobrancelha arqueada
falta pouco
para ser amada
caricatura, minha cara
ranhura na moldura
essa ruga
não devia estar aí
se multiplica
contra a vontade
no tempo gasto
para não deixar
aparecer o tempo.
me diga espelho meu
Alice Ruiz, Dois
em Um. São Paulo: Iluminuras, 2010.
No poema há jogo de sentidos, entre o
conto de Branca de neve e a Bela Adormecida, pois embora o título aluda à
historia da Bela Adormecida, no primeiro verso “Há uma mulher mais bela que
eu?” a reminiscência é à Madrasta de Branca de neve mirando-se no espelho.
[Note-se o] dúbio sentido que o
refletir-se no espelho pode trazer: o tempo perdido sem notar-se como mulher,
sem reconhecer e ter sua identidade ou o despertar da consciência dessa
feminilidade.
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Em "Back to Back" de Michael Leonard (1999), Narciso desencantado consigo próprio vira as costas ao espelho. |
O LAGO E NARCISO
Quase todo mundo conhece a
história original (grega) sobre Narciso: um belo rapaz que, todos os dias, ia
contemplar seu rosto num lago. Era tão fascinado por si mesmo que, certa manhã,
quando procurava admirar-se mais de perto, caiu na água e terminou morrendo
afogado.
No lugar onde caiu, nasceu
uma flor, que passamos a chamar de Narciso.
O escritor Oscar Wilde,
porém, tem uma maneira diferente de terminar esta história. Ele diz que, quando
Narciso morreu, vieram as Oréiades – deusas do bosque – e viram que a água doce
do lago havia se transformado em lágrimas salgadas.
“Por que você chora?”,
perguntaram as Oréiades.
“Choro por Narciso”.
“Ah, não nos espanta que
você chore por Narciso”, continuaram elas. “Afinal de contas, todas nós sempre
corremos atrás dele pelo bosque, você era o único que tinha a oportunidade de
contemplar de perto sua beleza”.
“Mas Narciso era belo?”,
quis saber o lago.
“Quem melhor do que você
poderia saber?”, responderam, surpresas, as Oréiades. “Afinal de contas, era em
suas margens que ele se debruçava todos os dias”.
O lago ficou algum tempo
quieto. Por fim, disse: “eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que
era belo. Choro por ele porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas
margens, eu podia ver, no fundo dos seus olhos, a minha própria beleza
refletida”.
Paulo Coelho, 2009-11-17
Ligações externas:
- Eco e Narciso, leituras de um mito (Autores e textos
da antiguidade seguidos de uma antologia de autores portugueses ou de língua portuguesa),
Organização de Abel N. Pena. Lisboa, Edições Cotovia, 2017
- “Literatura para jovens: O palco do Eu”, Teresa Mergulhão.
Comunicação apresentada no I Colóquio Ibérico de «Literatura Infantil e
Interculturalidade»/III Simposium da Red de Universidades Lectoras. Castelo
Branco: ESECB. 16-17 de Novembro de 2009.
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Fotografia por Georgina Cranston, Sudão |
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"Narcissyphus" (Narcissus + Sisyphus), Dan Piraro & Wayne Honath |
CARREIRO, José. “COMO NARCISO SE PERDE - Uma história
fundadora da representação do EU”. Portugal, Folha de Poesia, 09-11-2014 (última atualização: 16-07-2020.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2014/11/como-narciso-se-perde-uma-historia.html
[Publicação
simultânea em: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/11/09/COMO-NARCISO-SE-PERDE.aspx]