sábado, 4 de novembro de 2006

O ÊXTASE DE SANTA TERESA D'ÁVILA


                           
                           
TERESA D’ÁVILA
                           

Eu estou com aquele que me habita
é claro que me acompanha
por isso o meu desenho resplandece
por isso me vês por outra figura
sanguínea e vital.
                           
Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005.
                           
                           
                           

         
O Êxtase de Santa Teresa (grafito anónimo, Lisboa, 1994)


                           
O grafito de Santa Teresa d'Ávila é a expressão visual espontânea que inesperadamente irrompeu dos muros da cidade de Lisboa, em 1994, nomeadamente num dos suportes do viaduto de Alcântara.
                           
Esta é uma reprodução a partir da escultura barroca de Bernini (1598-1680), a quem Lacan reconheceu a expressão de tanto desejo.
                           
Embora o grafito já tenha desaparecido daqueles muros, ficou noticiado no número zero da revista MetropoLis (Janeiro de 1994) e, agora, tenho o gosto de o divulgar na Internet.
                           
                           
O Êxtase de Santa Teresa, Bernini
    
                                                   

Esta escultura de Bernini foi realizada entre 1645 e 1652 para a capela do cardeal Federico Cornaro. Representa o êxtase místico de Santa Teresaferida por uma seta de amor divino disparada por um anjo (que não nos deixa de lembrar Cupido). Nela podemos observar o rico jogo de mármores e dos dourados, as inúmeras linhas ondeantes e de fuga, o corpo da santa e a seta em diagonais opostas. Tal como a pintura, a escultura barroca é plena de sensualidade e movimento.
                           
Teresa de Jesus morreu em Alba de Tormes em 4 de Outubro de 1582.
                           

                           
                           
Miguel Torga, na autobiografia ficcionada que tem por título A Criação do Mundo (1937-1981; 1ª ed. conjunta: 1991; 3ª ed. 2002, Publicações Dom Quixote, p.279), escreve acerca dessa fome de absoluto que atormentou Santa Teresa:
                           
Nos tempos de Coimbra, durante o curso, encarregara os caloiros da casa de trazerem das terras nativas quantos alfarrábios por lá encontrassem, que lhes pagava a vinte escudos o quilo. E numa dessas aquisições a peso vieram-me ter à mãos as obras completas da Doutora. Las Moradas, primeiro, e Castillo Interior, depois, transformaram-me num seu devoto leitor. Ficara enredado nas malhas daquela personalidade ao mesmo tempo ingénua e subtil, maternal e combativa, que se exprimia numa linguagem chá, popular, cheia de graça e de finura, em que cada palavra é a sístole ou a diástole dum coração que nunca deixou de bater humanamente, apesar de abrasado de amor divino. Pela primeira vez encontrava unidos e harmonizados numa criatura o gosto activo dos frutos da terra e a ânsia contemplativa dos manás do céu. E acabara por inscrevê-la no meu calendário ibérico, com um poema que arrepiara o Alvarenga. Mais chegado à condição traída da mulher do que à vocação realizada da monja, embora fosse um preito, era também uma profanação. Morta e sepultada, a decompor-se, a freira enfrentava desencantadamente o vazio da eternidade, numa espécie de êxtase às avessas...
                           
Vai-se embaçando o brilho dos meus olhos!
Apodrece o tutano dos meus ossos!
Crescem as unhas doidas nos meus dedos
Contra a palma da mão encarquilhada!
Medra o livor em mim de tal maneira
Que me babo de nojo do meu nada!
          
                               
Gian Lorenzo Bernini, Beata Lodovica Albertoni, Roma, igreja de San Francesco a ripa.
               
                                  
                  
VERSOS NACIDOS AL FUEGO DEL AMOR   ¯
                          

Vivo sin vivir en mí, 
y de tal manera espero, 
que muero porque no muero.
                           

Vivo ya fuera de mí  
después que muero de amor;  
porque vivo en el Señor,  
que me quiso para sí;  
cuando el corazón le di  
puse en él este letrero:  
que muero porque no muero.

                           

Esta divina prisión  
del amor con que yo vivo  
ha hecho a Dios mi cautivo,  
y libre mi corazón;  
y causa en mí tal pasión  
ver a Dios mi prisionero,  
que muero porque no muero.

                           
¡Ay, qué larga es esta vida!  
¡Qué duros estos destierros,  
esta cárcel, estos hierros  
en que el alma está metida!  
Sólo esperar la salida  
me causa dolor tan fiero,  
que muero porque no muero.
                           
¡Ay, qué vida tan amarga  
do no se goza el Señor!  
Porque si es dulce el amor,  
no lo es la esperanza larga.  
Quíteme Dios esta carga,  
más pesada que el acero,  
que muero porque no muero.
                           
Sólo con la confianza  
vivo de que he de morir,  
porque muriendo, el vivir  
me asegura mi esperanza.  
Muerte do el vivir se alcanza,  
no te tardes, que te espero,  
que muero porque no muero.
                           
Mira que el amor es fuerte,  
vida, no me seas molesta;  
mira que sólo te resta,  
para ganarte, perderte.  
Venga ya la dulce muerte,  
el morir venga ligero,  
que muero porque no muero.
                           
Aquella vida de arriba  
es la vida verdadera;  
hasta que esta vida muera,  
no se goza estando viva.  
Muerte, no me seas esquiva;  
viva muriendo primero,  
que muero porque no muero.
                           
Vida, ¿qué puedo yo darle  
a mi Dios, que vive en mí,  
si no es el perderte a ti  
para mejor a Él gozarle?  
Quiero muriendo alcanzarle,  
pues tanto a mi Amado quiero,  
que muero porque no muero. 
                           

Santa Teresa d’Ávila
Obras Completas, Burgos, Editorial "Monte Carmelo”
                                                   
                                                     

 


CARREIRO, José. “O êxtase de Santa Teresa d'Ávila”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 04-11-2006. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2006/11/o-extase-de-santa-teresa-davila.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2006/11/04/O-_CA00_XTASE-SANTA-TERESA-D_3F00C100_VILA.aspx)



quinta-feira, 26 de outubro de 2006

FRAGMENTOS DE UM DISCURSO AMOROSO

                           
                           
                           
“Dois poderosos mitos fizeram-nos acreditar que o amor podia, devia sublimar-se em criação estética: mito socrático (amar serve para criar uma multidão de belos e magníficos discursos) e o mito romântico (produzirei uma obra imortal escrevendo a minha paixão).”
                           
Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso1977
                           
                           
                           
                           
                           
FRAGMENTOS DE UM DISCURSO AMOROSO
                           
I. PROTESTO
                           
Perco por te fazer perder de mim
que a recusa se faz resposta a outra recusa
ou tão só adiamento. E porque o que parece é
abandono aqui o caminho por que te sigo
por que conduzes.
                          
                           
II. RECOMECEMOS
                           
Voltaste para mais perto
vejo na cidade muitos sinais de ti
liturgias, convites e recusas que o amor produz.
Em tudo estarias comigo
mais do que uma saudação interceptada
que se fragmenta e em pedaços cai
sobre mim.
As palavras são cordéis
o desejo letras
o amor é aí.
Onde estiveres te encontre
nada será indiferente
dirás sim ou adeus
sim ou adeus definitivamente.
                           

José Maria de Aguiar Carreiro

Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005..





A CASA ONDE NOS ABRIGAMOS
                           
A casa onde nos abrigamos, continente repovoado,
lança-nos para lá do limiar da entrada.
O sono suspende, pendular, o vaguear dos sentidos.
Resta uma preocupação desmedida de pertença:
o frio junta as paredes contidas de nossos corpos
e atravessa a casa, abrigo nocturno,
contentor de desvelos inúteis.
                           
A casa esvazia-se:
tenho nítida remanescente
a imagem das três paredes
o desconforto do chão
o vento fresco da noite
o som das ondas.
                           
A casa está perdida
o rosto iluminado retém ainda algo de si
sulco no tempo o corpo
o desenho do corpo
o árbitro.
                           

José Maria de Aguiar Carreiro

Chuva de Época, Ponta Delgada, 2005.
                           
                           
                           
                           
                           
      Segundo Arturo Casas (Universidade de Santiago de Compostela, 2006), a poética elíptica de José Maria de Aguiar Carreiro apresenta uma “decidida tematización da espacialidade, da habitabilidade, dos ocos e os baleiros revisitados ou presaxiados, dos segmentos de vida formulada. Mediterráneo acaso malia o lugar onde foi pensado, grego na semántica como o foron algúns dos arcaicos, entregando case todo ao non dito ou só suxerido, e sendo á vez, en simultaneidade inesquivábel, metadiscursivos, reiterados e autorreferentes na textualidade que se demora como coordenadas non só da escrita senón tamén do experimentado, da vida en suma e dos seus azares obxectivos.”




CARREIRO, José. “Fragmentos de um discurso amoroso”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 26-10-2006. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2006/10/fragmentos-de-um-discurso-amoroso.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2006/10/26/CHUVA-DE-_C900_POCA-ou-NADA-NUNCA-DE-NINGU_C900_M-_2800_2_2900_.aspx)


                      

sábado, 21 de outubro de 2006

CHUVA DE ÉPOCA ou NADA NUNCA DE NINGUÉM

                                                        
                                                        
“Somos a água, e não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.”
       
                                   Jorge Luis Borges, Os Conjurados
                                                        
       
                                                        
“A noite sem sono despertou a conversa em mim, em nós. Foi muito mais que sexo, porque o amor, afinal, aparece assim de repente (como a chuva), e eu já tinha saudades deste tempo.”
                                                        
                                          in “O Sexo e a Cidália”, Grande Reportagem, 28/8/2004.



           
   

           
                 
     
INDIVIDUALIDADE
  
O terceiro homem da humanidade
calibra o silêncio gozoso sem que possamos
apreender tudo sobre ele
roça o impoder crepitante
da aragem diurna sobre o corpo aprendizado
que acaricia
o bastante.
                                                        
Agradeço não saber tudo sobre
categorias especificamente interiores
entes talvez de rude forma binária
felizmente não poderei dizer tudo sobre ti.
                                   
                         José Maria de Aguiar Carreiro
Chuva de Época,Ponta Delgada, 2005.
                                                        
   


                                                     
ESTES DIAS QUE NOS SEPARAM
  
Estes dias que nos separam
a presença mesmo que informe
posso desenhar-te
aureolar-te com meus gestos
ler-te em mim.
                                                        
Os movimentos que faço
lentamente te procriam
e radicam no meu corpo.
                                                        
Farei do gesto uma cópia
infinita dos gestos dos gestos.

       José Maria de Aguiar Carreiro
Chuva de Época,Ponta Delgada, 2005.
                                                        
                                                        
                                                        
           Chuva de Época é o primeiro livro de poemas de José Maria de Aguiar Carreiro. A epígrafe que abre o livro, um verso de Jorge Luis Borges – “Somos a água, e não o diamante duro, / a que se perde, não a que repousa” –, coloca-nos de imediato perante um horizonte de leitura que o que se segue há-de confirmar. Constituído de duas partes, “Nada Nunca de Ninguém” e “O Riso dos Poetas”, o presente poemário faz da(s) continuidade(s), melhor, da consciência dela(s), o chão do seu dizer ou, como se pode ler no poema “Estes dias que nos Separam”: “farei do gesto uma cópia / infinita dos gestos dos gestos”.

           Da negatividade ontológica à negatividade temporal e psicológica, José Maria de Aguiar Carreiro procura, nos poemas que estão dentro, a completude impossível para uma palavra poética a que os advérbios (“Nada Nunca...”), que estão acima, nos sobreavisam para a ausência dela. A epígrafe reconfirma-se: não há presenças a que o dizer poético se possa juntar, nem continuidades de que a poesia seja o seu assomo de felicidade. Face à ausência – de si, dos outros e de um presente que nunca é –, que resta ao poeta senão a reafirmação dos advérbios? Chuva de Época instala-se no interior dessas ausências, para daí dizer o que dizer não se pode. O riso é o sinal dessa impoder, e disso o poeta nos faz seus cúmplices.
           
Fernando Martinho Guimarães



 

CARREIRO, José. “Chuva de Época ou Nada Nunca de Ninguém”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 21-10-2006. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2006/10/chuva-de-epoca-ou-nada-nunca-de-ninguem.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2006/10/21/ChuvadeEpoca.aspx)