quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

DIA DE AMIGOS

   
Steve Walker
   

AMIZADE I
       
– Dirás poesia com os meus sentimentos.
– É possível, é como me buscasse no sonho de outrem.
Não é inocente o espírito que nos habita,
necessário é saber onde arrumar a sabedoria.
       
Volveram alguns anos
e da conversa retenho a vaga impressão de termos falado de crenças,
do corpo humano sobre a Terra.
Não é inocente o espírito que nos habita.
A quem atribuir o valimento das fontes, das águas onde emerge?
Por um só encontro se faz uma amizade,
são viajantes que se encontram e afastam.
Na altura terei condito poesia
como não restasse mais tempo além daquele que foi seu.
Chamo objectos que matizaram a tela
sem que tenha por desenho pessoas,
mas momentos e espaços.
Luz, talvez, que viaja em correntes insignes,
funde no último plano do quadro e se afasta.
A retina arde
o sabor amarga
o tempo esvai e pára.
Em que parte somada encontro o conteúdo daquelas palavras,
o que se perde?
Não recordo de alguma vez ter dito poesia com os seus sentimentos.
       
José Maria de Aguiar Carreiro
       
       

       

       
DIA DE AMIGOS
       
Nas quatro semanas antes do Entrudo, todas as quintas-feiras são dedicadas a festejos muito particulares nas ilhas dos Açores.
       
Ao todo são quatro dias que alargam o Carnaval a um mês de folia: Amigos (25 de Janeiro de 2007), Amigas (01 de Fevereiro de 2007), Compadres (08 de Fevereiro de 2007) eComadres (15 de Fevereiro de 2007).
       
Segundo os registos existentes, estas datas festejam-se há pelo menos cem anos. Noutros tempos, passavam-se estas quintas-feiras em bailaricos, patuscadas e a fazer o que se chamava de “assaltos” (as pessoas mascaravam-se e iam a casa umas das outras, onde se comia, bebia, dançava e festejava).
       
Actualmente, estes dias continuam a festejar-se nos Açores com variações que acompanham os gostos sociais. Os restaurantes, bares e discotecas recebem os convivas com programas para amigos que andam na pândega, como este, por exemplo:
       
       
25 de Janeiro de 2007 – 5ª feira 
DIA DOS AMIGOS 

Restaurante: 
Serviço à mesa personalizado por strippers em lingerie das 20h as 2h.
Das 2h as 4h: shows de strip e dj 

Menu: 
Bacalhau Proibido 
Desejo de Lombo 
Sobremesa: Colchão de Noiva 

nota: todos os pratos serão confeccionados com afrodisíacos.

Coyote Bar com elas em lingerie.

Shows de strip feminino e dj 

Senhores, preparem-se que elas são uma boooomba!!!
1 de Fevereiro de 2007 – 5ª feira 
DIA DAS AMIGAS 

Restaurante: 
Serviço à mesa personalizado por strippers masculinos de fio dental das 20h as 00h 
Das 0h às 4h: shows de strip masculino e dj 

Menu: 
Xuxu Gratinado 
Desejo de Lombo recheado com a "Ameixa" 
Sobremesa: Floresta Negra encantada 

nota: todos os pratos serão confeccionados com afrodisíacos.

Coyote Bar com eles em fio dental 

Shows de strip masculino e dj 

Senhoras, eles são de arrasar... ;-)
      
             


CARREIRO, José. “Dia de amigos”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 25-01-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/01/dia-de-amigos.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/01/25/amizade.aspx)


quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

BICHO DA TERRA - cântico em honra de Miguel Torga

    
      
     
       
     
BICHO DA TERRA
     
“Nada há de permanente debaixo do sol” (Eclesiastes)
     
     
Sei do condão da mente e do condão da carne
sobre a mente. O sexo tangível da idade.
Eu sou a veloz condução dos congéneres bichos
que são da terra, que se agitam nos telhados
e desviam nossos olhares para lá das paredes sujas.
Atrevo e atiro para o chão as trevas e as glórias altas
faço e desfaço altos silos, combatentes reprogramações –
partes de um mesmo todo indefinido e inteligente?
Tudo é aluído na terra e será conforme a dor.
Modulo no vazio. Nem uma lápide, um livro ou uma oração
perdurarão no tempo.
É limitada a rede com que um homem se diz
e, no entanto, deseja
cortada rede com que principia
cortados fios que tece.
Deixarei estas palavras na crueza do corpo
num amplo quarto de um manicómio ou de uma prisão.
     
José Maria de Aguiar Carreiro
     
     
     
Nabucodonosor II, Rei de Babilónia. Pintura de William Blake, c. 1805. 
                 
           
           
O FRACO MOMENTO DA VIDA
     
Pode um homem querer mais do que é
ou apenas abarcar o prazer momentâneo
imaginar o belo, o infinito
     
pode um homem supor ser desejado por alguém
tão igual ao desejo que nem se aperceba da figura
do olhar e das palavras de uma casa que não é a sua.
Como olhar-se ao espelho, ver a pele envelhecida e dizer sou eu
quando estão as sensações fora do alcance da pele
dir-se-á velho? velho
que palavras inventará para esconder as falhas da carne
o bloqueio do desejo pela mente cansada
augura ele uma decrépita e eterna valia?
     

José Maria de Aguiar Carreiro

                     

CARREIRO, José. “Bicho da terra - cântico em honra de Miguel Torga”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 17-01-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/01/bicho-da-terra-cantico-em-honra-de.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/01/17/bichodaterra.aspx)


sábado, 30 de dezembro de 2006

MAGMA 3

    
“Mas tudo o que nos toca, a ti e a mim,
toma-nos juntos numa só arcada
que arranca de duas cordas um som único.”
                                                                                    Rainer Maria Rilke
                                                                                           “Canção de amor” in Novos poemas, 1907 e 1908.
       
       


                 
“Sommer night's dream” (1997), Niklaus Troxler (designer gráfico)




      

DUETO
       
Um fechar de olhos, o toque do lençol no rosto
deslocam o corpo do eixo em que se segura
há uma coreografia nos movimentos, um dueto ou
a imagem inicial de duas cordas do mesmo violoncelo
em vibração concertada. Os músculos jogam em coreografia
as sensações unificam-se e os sentimentos resultam felizes.
       
in MAGMA nº 3, Dezembro 2006, Lajes do Pico, Edições Atlânticas
       



       
             
Violoncelo, Netlabel Merzbau
       
       


UM LUME DESTROÇANDO A VISÃO
       
Gostara do falatório, aquele límpido discorrer de graças
dos ditames da meia idade
mas eu já não estava ali, no canto desperdiçado de uma casa.
Quis comemorar um sentimento igual, desejo límpido não rasurado
e trazer igual o desejo de outras épocas.
Poderia ler o dia, a luz aberta a cozinhar durante horas
o vago violoncelo que toca em tua e minha memória comum
diria também as palavras que se repetem em espaços por corpos idênticos
e que afastados refazem o tempo inoperante.
Na boca o corpo demora-se em latitude distante
por claustros, sorrisos solapados
parecendo comerciar o ralhar dos melros
mas disso não faria um joguete, um lardear de pívias
a porta aberta para fugir.
Onde o lugar das calças, das camisas?
trova para esses momentos desabitados.
Eu brinco, ando pela casa, olho tudo finitamente
eliminando a grande altitude o uivar do lobo.
Tudo o que é previsível está aqui como peça de mobiliário
erradamente
abortando a luz de deus com um arame de siso, riso, mijo.
Estendo horizontalmente o deus verde
cubro de vómito de cantador
o efeito de dejectar o que já não importa
cubro com pastel o que outrora foi lançado à germinação.
Eu quero um lume destroçando a minha visão.
       
in MAGMA nº 3, Dezembro 2006, Lajes do Pico, Edições Atlânticas
       
       


       
UM LUME IMENSO
       
Há um gato na janela, há um gato no telhado da casa em frente.
Sei que há um animal a ocupar parte do cérebro enquanto trabalho
e outro ocupando-se de mim enquanto ressona no cérebro um gato enroscado.
Há um pássaro a musicar o pulso e outro sobrevoando a cabeça
como uma língua de fogo que alumia sem incendiar.
Há um lume acima do cabelo como um rosto e outro rosto
lobrigando para os aceitar.
Um nó enlaça os livros na estante ou talvez vários nós
fazem o pensamento das coisas – uma vontade incerta
de ser um homem só para uma humanidade jazente.
Eu quero um pássaro afogueado dentro e fora de mim.
Um lume imenso tocando as tábuas.
       
in MAGMA nº 3, Dezembro 2006, Lajes do Pico, Edições Atlânticas
       
       

      
      
       
Magma é uma revista de periodicidade semestral editada pelo Município das Lajes do Pico. A coordenação do número 3, referente a Dezembro de 2006, coube ao escritor e professor universitário Urbano Bettencourt que fez uma selecção de nomes da literatura contemporânea das denominadas ilhas afortunadas ou abençoadas (macaronésia, do grego makáron = feliz, afortunado; nesoi = ilhas) que constituem os arquipélagos dos AçoresMadeiraCabo Verde eCanárias (os poetas canarinos são traduzidos por José Agostinho Baptista).
      
Eis os abensonhados:
      
Açores
Alexandre Borges
Joel Neto
José Maria de Aguiar Carreiro
Luís Filipe Borges
Mariana Matos
Nuno Costa Santos
Rogério Sousa
Sónia Bettencourt
Tiago Prenda Rodrigues
      
Madeira
Carlos Nogueira Fino
José de Sainz-Trueva
José Viale Moutinho
Maria Aurora Homem
      
Cabo Verde
José Luís Hopffer Almada
José Luiz Tavares
Mário Lúcio Sousa
Pedro Javier C. Garcia
      
Canárias
Ana Maria Fagundo
Antidio Cabal González
Juan Carlos de Sancho
      

      
Faço votos para que tal bênção continue a dar frutos apetecíveis e não se torne em ostracismo. Senão vejamos: por um lado, estas ilhas isoladas têm a fortuna de uma biogeografia únicas, por outro, a maioria dos seres vivos endémicos estão em risco de extinção ou extintos.
      
Além do mais, como diz o escritor argelino Yasmina Khadra em entrevista ao Le Monde (e reeditado no Courrier Internacional nº 91): “Acho perigoso para um escritor ficar-se pelo que qualifico de literatura endémica, limitada no tempo e no espaço, como uma gripe”.
      


CARREIRO, José. “Magma 3”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 30-12-2006. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2006/12/magma-3.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2006/12/30/magma3.aspx)