quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

DA VIDA E DA MORTE


  

A VIDA E A MORTE NO IMAGINÁRIO COLECTIVO

  
  
  
       
       Disco “Unreal: Sidewalk Cartoon” (2006) de Bernardo Sassetti.
       Ilustração de Rui Garrido.
  
  
  
Perante o drama da fugacidade da vida e da fatalidade da morte, Epicuro (filósofo grego, 341-270 a.C.) propõe a seguinte arte de viver:
  
Familiariza-te com a ideia de que a morte não nos diz respeito, pois todo o Bem e todo o Mal residem na sensação; ora a morte é a privação completa desta última. Este conhecimento exacto de que a morte não nos diz respeito tem como consequência apreciarmos melhor as alegrias que nos oferece a vida efémera (que não tem uma duração ilimitada), suprimindo o nosso desejo de imortalidade. Com efeito, deixa de sentir terror quem verdadeiramente compreende que a morte nada tem de atemorizador. (Epicuro, “Carta a Menaceu” in Dicionário Prático de Filosofia, Elisabeth Clément et alii, Ed. Terramar)
  
Não obstante certas filosofias de vida (como o epicurismo, o estoicismo ou o “carpe diemhoraciano) tentarem, talvez em vão e com esforço, construir um ideal ético da tranquilidade, o ser humano, no fundo, continua amargurado com o Tempo.
  
Existir é ser para a morte. Existir é ser para o nada.
  
A ideia da morte mantém-se obsessivamente viva. Será que constitui manifestação de masoquismo e antecipação? Será uma maneira de a exorcizarmos ou habituarmo-nos a ela? Ou talvez de tentarmos reaver os entes perdidos? Será maneira de resistir à mudança e a uma forma de existência desconhecida? Medo duma reabsorção no nada?
  
Heidegger (1889-1976) converte o existente no ser para a morte porque, no seu pensamento, a morte é a possibilidade fundamental do homem. Somos para a morte. A morte é a possibilidade impossível porque, ao contrário dos outros possíveis, que posso realizar, esse possível (a morte...) é aquele que não realizarei. Porquê? Porque jamais poderei dizer: eis-me morto!. (J.Guerra e J. VieiraAula Viva, 1999)
  
Ora, nesse questionar, o problema mais agudo, mais equívoco e por isso mais discutido, é justamente o problema da morte. E de tal modo isto é assim, que esse problema da morte (e paralelamente o do absurdo, o da angústia e da náusea) se tomou como que o sinal de identificação de uma obra existencialista. (Vergílio FerreiraO Espaço Invisível II, 1976)
  
E, todavia, sei-o hoje, só há um problema para a vida, que é o de saber, saber a minha condição, e de restaurar a partir daí a plenitude e a autenticidade de tudo – da alegria, do heroísmo, da amargura, de cada gesto. Ah, ter a evidência ácida do milagre do que sou, de como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que tenho de morrer. A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é de dentro de mim que a sei – não do olhar dos outros. Os astros, a Terra, esta sala, são uma necessidade, existem, mas é através de mim que se instalam em vida: a minha morte é o nada de tudo. Como é possível? Conheço-me o deus que recriou o mundo, o transformou, mora-me a infinidade de quantos sonhos, ideias, memórias, realizei em mim um prodígio de invenções, descobertas que só eu sei, recriei à minha imagem tanta coisa bela e inverosímil. E este mundo complexo, amealhado com suor, com o sangue que me aquece, um dia, um dia – eu o sei até à vertigem – será o nada absoluto dos astros mortos, do silêncio. (Vergílio Ferreira, Aparição, 1959)
  
Segundo Jean-Paul Sartre, o existencialismo parte exclusivamente do homem (O Existencialismo é um Humanismo). “Neste sentido, o existencialismo é um optimismo, uma doutrina de acção”. O que importa é o que o homem faz com o que fizeram dele. O homem, responsável pela sua existência, constrói, conscientemente, o seu próprio projecto de vida.


  
  

EROS E THANATOS


  

Eros e Thanatos



  
Na Antiguidade, a morte é personificada pelo impiedoso Tânato (Tânatos ou Thanatos), filho da noite e irmão do sono. Eros e Tânatos, os deuses da mitologia grega que Freud elegeu para personificar as pulsões da vida e da morte, são normalmente representados juntos.
  

   

Eros e Thanatos, Sergey Ignatenko (d.n.: 1975)
  
  


Segundo J. Chevalier e A. Gheerbrant (Dicionário dos Símbolos), “na iconografia antiga, amorte é representada por um túmulo, uma figura armada com uma gadanha, uma divindade com um ser humano entre as mandíbulas, um génio alado, dois jovens, um deles negro e o outro branco, um cavaleiro, um esqueleto, uma dança macabra, uma serpente ou qualquer animal psicopompo”, como o cavalo, o cão, etc.
  
Psicopompoé a figura que guia a alma em ocasiões de iniciação e transição: uma função tradicionalmente atribuída a Hermes no mito grego, pois ele acompanhava as almas dos mortos e era capaz de transitar entre as polaridades – não somente a morte e a vida, mas também a noite e o dia, o céu e a terra. (in Dicionário Crítico de Análise Junguiana, Andrew Samuels, Bani Shorter, Alfred Plaut, 1986)
  


    
       
       Michel Henric-Coll
  
  
  
     
       Tânatos, Abecat (us-p.vclart.net)
  
  


  
  

VANITAS OU VAIDADE DA VIDA HUMANA

  
A estes motivos iconográficos associa-se também o conceito de vanitas (vaidade), em que é feita a comparação, por contraste total, entre, por um lado, a efemeridade dos prazeres mundanos, o vazio das ostentações vaidosas do Homem; e, por outro lado, a realidade ameaçadora do triunfo final da morte.
    
  






 
       Bacchus Amelus (1986) Joel-Peter Witkin


    

  
Albrecht Dürer (1471-1528), S. Jerónimo, não datado. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

Pieter Claesz (Burgsteinfurt, 1597/98 - Haarlem, 1661)Vanitas  (1630-1640), colecção privada.
  


Tudo passa, caminhando para a destruição. Consciente disso, o homem barroco fez da sua morte tema dominante do seu pensar, do seu escrever. A presença da morte ocorre a cada passo na poesia barroca. A morte de alguém (alguém ilustre pela sua beleza, pela sua sabedoria, pelo seu poder, pela sua elevada categoria social) é dos motivos frequentemente tratados e utilizados como ponto de partida de meditação sobre a efemeridade dos bens terrenos. Mas na sociedade barroca a morte constitui-se em espectáculo. As pompas fúnebres, a grandiosidade dos monumentos tumulares são ainda formas de ostentação de grandeza, ao mesmo tempo que pretendem dizer o nada dessa grandeza. Há um comprazimento no fúnebre, no macabro, na representação concreta da morte; e há simultaneamente a transformação de tudo isso em pompa, em espectáculo, em exibição esplendorosa(Maria Lucília Gonçalves PiresPoetas do Período Barroco, Lisboa, Editorial Comunicação, 1985, pp. 34-35)
  
  

À FRAGILIDADE DA VIDA HUMANA
  
Esse baixel nas praias derrotado
Foi nas ondas Narciso presumido;
Esse farol nos céus escurecido
Foi do monte libré, gala do prado.
  


Esse nácar em cinzas desatado
Foi vistoso pavão de Abril florido;
Esse Estio em Vesúvios encendido
Foi Zéfiro suave, em doce agrado.
  


Se a nau, o Sol, a rosa, a Primavera
Estrago, eclipse, cinza, ardor cruel
Sentem nos auges de um alento vago,
  


Olha, cego mortal, e considera
Que és rosa, Primavera, Sol, baixel,
Para ser cinza, eclipse, incêndio, estrago.
 


Francisco de Vasconcelos (1665-1723)
  
  


  
       "Vanitas" (1663), Boel
       Vanitas (1663), Pieter Boel (1622-1674)
                      


                      
                      
                      
       
        Vanité...Gustav Klimt  
                      
                     


                
Recentemente, o livro de Almeida Faria Vanitas, 51, Avenue d'Iéna (obra com introdução deEduardo Lourenço) serviu de inspiração para um tríptico da Paula Rego com o título Vanitas(2006).
  
Paula Lobo (dn.sapo.pt, 2007/01/11) descreve a obra: Como a Vanitas das naturezas-mortas, também aqui dois mundos se cruzam na mesma dimensão espaço-tempo, em planos fechados, próximos, no cenário sem janelas, portas ou pontos de fuga. A vida e a morte, no corpo da figura de vestido amarelo que atravessa o tríptico.
  

VANITAS I, Paula Rego, 2006

       
  


No primeiro painel está prostrada, reclinada sobre a mesa. Adormecida ou mergulhada nos seus pensamentos, não sabemos, tem a rodeá-la rosas com espinhos, esqueletos de altares de mortos mexicanos, uma garrafa de vinho, um busto grotesco. Por detrás de si, destacando-se contra a parede branca, há flores vermelhas.
  
No último painel é já uma personagem ameaçadora que nos olha de frente. Sentada, de foice na mão, está mais perto do espectador e exibe, em cima da mesa, vários objectos. Como troféus: uma máscara, uma marafona de trapos típica de Monsanto, bonecos, um rato, uma guitarrinha, uma rosa colhida e uma caveira. A serpente que se move entre eles e o relógio ornamentado torna presente o tempo de vingança.
  
A mediar estas cenas, no painel central do tríptico, está a mesma mulher de vestido amarelo, sentada, de braços cruzados, sem outros adereços além do pano cinzento que lhe serve de fundo (cinzento, como a toalha da mesa que não aparece, este é um reposteiro que oculta). A figura está voltada para nós mas olha à nossa direita, o lado da foice, o lado do futuro. Atenta, defensiva. À espera.
         
  

VANITAS, Paula Rego, 2006
       
  
                
  

DANÇA DA MORTE OU DANÇA MACABRA

  
Segundo o autor Paul Badham, a partir do século VI a morte assumiu um aspecto mais sinistro, à medida que os conceitos de julgamento, purgatório e inferno começaram a ganhar destaque no pensamento cristão. O temor da morte tornou-se um tema dominante na religiosidade medieval e a contemplação da morte, uma característica marcante da espiritualidade cristã. Um fenómeno interessante apontado pelos estudiosos foi a transição de uma tradição antiga que via a morte como o destino colectivo da espécie (et moriemur — “e todos morreremos”) para uma nova tradição, surgida no século XII, que dava ênfase à morte do indivíduo. Nesse período surgiram livros que davam conselhos sobre a “arte de morrer” (ars moriendi), obras populares de consolo e devoção pessoal que visavam auxiliar os fiéis a morrerem bem e a vencerem o temor da morte.
               
  
  
       "Dança Macabra" (Avignon, séc. XIV)
       A morte armada de gadanha, ceifando as vidas de toda a população.
       Cena de Dança Macabra em pintura a fresco do Palácio dos Papas, em Avignon, século XIV.
  
                


Na parte posterior da Idade Média tornou-se comum a expressão memento mori (“lembra-te de que morrerás”), com a qual os monges saudavam uns aos outros nos corredores dos mosteiros. A própria precariedade da vida contribuía para essa mentalidade sombria. Em meados do século XIV, a Peste Negra — uma epidemia de peste bubónica e pneumónica — dizimou cerca de um terço da população da Europa. Um tema famoso na arte, em especial no século XV, era a Dança da Morte ou Dança Macabra, em que a morte, representada por um esqueleto, era mostrada na companhia de representantes de todas as classes sociais. Em algumas gravuras também havia um relógio de areia (ampulheta), que apontava para o carácter transitório da vida. A Dança da Morte era pintada nas paredes e janelas das igrejas, nas fachadas das casas, em pontes e em livros ilustrados. Com frequência, por baixo das gravuras eram colocados versos morais e descritivos que muitas vezes terminavam com as palavras “A morte espera por todos”. Às vezes essa dança também era representada em peças teatrais.  (Alderi Souza de Matos,vidaacademica.netultimato.com.br)
  
  


 
Dança Macabra, por Bernt Notke (Lassan -Vorpommern, 1435 / Lübeck, 1508/09)
  
             
  


Scabbard
 “A Dança da Morte” (Dagger sheath, 1521) por Hans Holbein
  
  
  


XCVII
DANÇA MACABRA
  
a Ernest Christophe.
  
                
Vaidosa, como um vivo, da nobre estatura,
Com as luvas e o lenço e o seu bouquet tão grande,
Tem a descontracção e a desenvoltura
De uma coquette magra com ar extravagante.
  
Alguém já viu no baile cintura mais fina?
O esplêndido vestido, amplo e majestoso,
Cai abundantemente sobre os pés esguios
E os pompons dos sapatos, lindos como flores.
  
O folhinho a brincar-lhe junto às clavículas
Qual regato lascivo a esfregar-se a um rochedo,
Protege com pudor dos gracejos ridículos
Os fúnebres engodos que teima em esconder.
  
Os seus olhos são feitos do nada e de trevas
E o seu crânio florido, com arte penteado,
Vai oscilando inerte sobre as frágeis vértebras.
Ó charme do vazio loucamente enfeitado.
  
Alguns irão chamar-te uma caricatura,
Não percebendo, amantes bêbados de carne,
A elegância sem nome da humana armadura.
Esqueleto, correspondes ao meu gosto caro!
  
Virás tu perturbar com essa forte careta
Os festejos da Vida? ou um desejo antigo,
Que saiba esporear essa carcaça viva,
Ainda irá levar-te ao festim do Prazer?
  
Com a chama das velas e o som dos violinos
Queres expulsar o teu pesadelo gozão
E ainda vens pedir ao caudal das orgias
Pra refrescar o inferno do teu coração?
  
Inesgotável poço de erros e de asneiras!
Da mais antiga dor o eterno alambique!
Através das costelas, dessa curva grelha,
Eu vejo, errando ainda, a insaciável víbora.
  
A bem dizer, receio que a coqueteria
Não ache um prémio digno de tantos esforços;
Quem, das almas mortais, entende a zombaria?
Os encantos do horror só extasiam os fortes!
  
O abismo desse olhar, com pensamentos trágicos,
Exala uma vertigem; os foliões prudentes
Não irão contemplar sem náuseas bem amargas
O eterno sorriso dos trinta e dois dentes.
  
Porém, quem não estreitou nos braços um esqueleto
E nunca se nutriu dessas coisas funéreas?
O que importa o perfume, a roupa, a toilette?
Quem se mostra enojado é porque se crê belo.
  
Bailando sem nariz, pécora irresistível,
Diz a estes convivas com ar tão chocado:
«Apesar de empoados, vaidosos e finos,
Vocês cheiram à morte! Ó esqueletos muscados,
  
«Antínoos ressequidos, dandies de pele glabra,
Grisalhos sedutores, cadáveres de verniz,
O universal vaivém desta dança macabra
Puxa-vos pra lugares ainda não conhecidos!
  
«Dos frios cais do Sena à ardente orla do Ganges
A manada mortal pula alegre, sem ver
Num buraco do tecto a trombeta do Anjo,
Essa bênção sinistra como um arcabuz negro.
  
«Sob os diversos climas, sóis, a Morte admira
As tuas contorções, cómica Humanidade,
E às vezes como tu, perfumada de mirra,
Mescla a sua ironia à tua insanidade!»
  
  
  



               
                  
       
       E. Duval d’après E. Christophe, La Danse Macabre, La Plume (Junho, 1903)
  
                  
O retorno ao medievo promovido pelo romantismo do século XIX trouxe de volta a Dança Macabra, não mais como símbolo representativo da metodologia cristã, mas como aspecto do medo e do desconhecido, que eles achavam esquecidos no mundo moderno. Goethe redescobriu a Totentanz(como é chamada a Dança Macabra em alemão), e utilizara numa baladaDer Todtentanz, e um outro alemão, Matthias Claudius, logo depois exploraria o tema no clássico Der Tod und das Mädchen(Claudius seria para sempre ofuscado pela versão musicada feita por Schubert em 1817).
  
A música ainda traria dois dos mais famosos exemplos de representação da Dança Macabra, na verdade mais presentes que a própria iconografia: a Totentanz, de Franz Liszt (inspirada na balada deGoethe) e a Danse Macabre (op. 40), composta por Camille Saint-Saëns. A peça de Liszt é uma série de paráfrases sobre o tema gregoriano do Dies Irae, parte da Missa de Réquiem, escrita para piano e orquestra. A obra começou a ser feita em 1840, mas só foi terminada por volta de 1850, embora só tenha tido a estreia em Haia quinze anos depois. Há registros que a inspiração de Liszt tenha vindo das ilustrações de Holbein, mas estudiosos defendem que Liszt talvez tenha tomado como inspiração O triunfo da Morte, encontrado num cemitério de Pisa, ou Il trionfo della Morte, de Andrea Orcagna. Uma outra fonte citada, certamente utilizada, foi a cena da Noite de Sabá, movimento da Sinfonia Fantásticade Hector Berlioz.
  
Já a Danse Macabre, de Camille Saint-Saëns (1835-1921) é hoje a mais citada referência do termo. Composta em 1874, estreou em 24 de janeiro de 1875 em Paris. Baseado em um poema de Jean Lahor, pseudónimo de Henri Cazalis, descreve um esqueleto, representando a Morte, que toca violino num macabro festim que começa à meia noite. Ao som do seu violino afinando, vários outros esqueletos levantam-se para dançar e o baile só termina com o cantar do galo que anuncia a aurora. O inteligente uso da orquestra serve para melhor ilustrar a história: o badalar da meia noite é feito pela harpa e pelas trompas. O primeiro violino faz a Morte, os esqueletos que bailam são representados pelo xilofone e o galo, pelo oboé.
  
  
DANSE MACABRE
  
Zig et zig et zag, la mort cri cadence 
Frappant une tombe avec son talon, La mort à minuit joue un air de danse,  Zig et zig et zag, sur son violon.  Le vent d'hiver souffle, et la nuit est sombre, Des gémissements sortent des tilleuls;  Les squelettes blancs vont à travers l'ombre Courant et sautant sous leurs grands linceuls,    
On entend claquer les os des danseurs,  
Un couple lascif s'asseoit sur la mousse  
Comme pour goûter d'anciennes douceurs.    
De racler sans fin son aigre instrument.  
Un voile est tombé! La danseuse est nue!  
Son danseur la serre amoureusement.   
Et le vert galant un pauvre charron -  
Horreur! Et voilà qu'elle s'abandonne  
Comme si le rustre était un baron!    
Quels cercles de morts se donnant la main! 
Zig et zig et zag, on voit dans la bande  
Le roi gambader auprès du vilain!    
On se pousse, on fuit, le coq a chanté  
Oh! La belle nuit pour le pauvre monde!  
Et vive la mort et l'égalité! 
Zig et zig et zag, chacun se trémousse,  
Zig et zig et zag, la mort continue  
La dame est, dit-on, marquise ou baronne.  
Zig et zig et zig, quelle sarabande!  
Mais psit! tout à coup on quitte la ronde, 
  
Henri Cazalis (1840-1909)
  
  
  
Outras representações inspiradas pela ideia da Dança Macabra vão aparecer na música, na literatura e no cinema. A Máscara da Morte Escarlate (de Edgar Allan Poe), Uma noite no Monte Calvo(de Moussorgsky), o desenho de Disney “The Skeleton Dance” (das Silly Symphonies de 1929), nas canas finais de O Sétimo Selo de Ingmar Bergman, etc. (orecifeassombrado.com.br)

  
  
       O SÉTIMO SELO
         A partida de xadrez com a Morte
       em O sétimo selo (1956), de Ingmar Bergman
  
  
No filme O sétimo seloAntonius Block, um nobre que volta das Cruzadas da Terra Santa para o seu castelo na Escandinávia, no meio de uma crise existencial, vê-se na contingência de jogar xadrez com a Morte para salvar a própria vida. Block não pretende vencer a sua partida contra a Morte. Sabe que a tarefa é impossível, mas está decidido a ganhar algum tempo. O que ele deseja, antes de ser levado para o outro lado deste mistério, é o conhecimento.
  
No final deste filme de Ingmar Bergman, Antonius Block e todas as pessoas com as quais ele se cruza na sua jornada terminam executando a Dança da Morte. “Dançam rumo a escuridão e a chuva cai em seus rostos”, diz um trovador que testemunha a cena.
  
Eis a dança macabra da cena final em que a Morte conduz o cavaleiro e seus amigos ao mundo das trevas:
  
  
  
       "Dança Macabra", cena de "O Último Selo"
  
  
Como reacção à guerra do Vietname e desafiado por um estudante, Thomas Cornell criou uma pintura chamada Dança da Morte:
  
  
       
Thomas Cornell, “Dance of Death” (1968-69)
       
  
  
dappledwithshadow:

Dance with DeathErnst Fuchs (Austrian, b.1935)
DANCE WITH DEATH. ERNST FUCHS



Para finalizar, acompanhe uma dança macabra:






CARREIRO, José. “Da vida e da morte”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 28-02-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/02/da-vida-e-da-morte.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/02/28/morte.aspx)


quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

VIAGEM NA FAMÍLIA


a    m e u    p a i
  
Ernesto Carreiro (1923-2006)
  
    
  
FINITUDE

Que nos acontece de tão fatídico
que parece ser eterna a finitude do corpo
como acontece o fim da voz?
  
estarei um pouco ligado à luz
acha que na fogueira arde.
  
José Maria de Aguiar Carreiro
  
  



  
Ponta Delgada, 20 de Fevereiro de 2006.
  
Hoje, quando fui à visita das 20h, encontrei-o amarrado. Tiveram de o imobilizar, pois ele queria retirar os tubos de oxigénio e de soro. Queria vir-se embora, tresvariava, não sabia onde estava, referia factos e pessoas que só ocorreram na sua mente. Meu pai está no fim. Se estivesse consciente, estaria triste com a sua situação; contudo, como está a viver de ilusões mentais, isso liberta-o da tristeza consciente e dá-lhe outras preocupações que só poderiam ocorrer se tivesse uma vida activa.
  
Enquanto fala, coloco, instintivamente, a mão sobre a cabeça. Os cabelos brancos. É meu pai.
  
Que impoder.
  
  
  
Nordeste, 24 de Fevereiro de 2006.
  
A casa estremece de velha aquando da passagem do vento. Dentro em breve serei expulso destas paredes, só eu preencho os espaços com o meu corpo. Acostumara-me à casa repartida por três. Agora que um foco de energia se extinguiu, eu tento pensar no corpo como um objecto cósmico. E, nesse sentido, vejo harmonia – a possível – no mundo que me rodeia, de que faço parte. Por ora, não farei contas ao espírito. Apenas me retenho vagamente na energia irradiante que se extinguiu para se incorporar na terra velha e larga.
  
Com Vergílio Ferreira aprendi a ajeitar-me aos elementos, o fogo, o ar, a água e a terra, tidos outrora como os componentes do Universo. Só assim me apaziguo. Acomodo-me a um poema de Sophia:
  
Em todos os jardins hei-de florir,
em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
todas as praias onde o mar ondeia.
  
Um dia serei eu o mar e a areia,
a tudo quanto existe me hei-de unir,
e o meu sangue arrasta em cada veia
esse abraço que um dia de há-de abrir.
  
Então receberei no meu desejo
todo fogo que habita na floresta
conhecido por mim como um beijo.
  
Então serei o ritmo das paisagens,
a secreta abundância dessa festa
que eu via prometida nas imagens.
  
Não é hábito deter-me nos bens passados. Prefiro, antes, a fuga para a frente. Confio no devir, na potencialidade do cruzamento dos corpos. Sou apenas o espaço que enformo, aqui e agora.
  
  
  
Ponta Delgada, 8 de Março de 2006.
  
O corpo tem seus próprios cuidados: ora nos faz agarrar à vida, ora nos faz desistir dela, por força do seu próprio peso. Passamos uma vida a dominar o corpo com a mente, mas no fim da nossa história é ele que nos subjuga.
  
  
  
Nordeste, 22 de Abril de 2006.
  
Há um cadáver decompondo-se na terra. Eu sei. Vejo loucamente. O corpo requisitado pelo universo.
  
Como o Tempo, o incrível Tempo nos fez!
  
Tudo é aluído na terra e será conforme a dor.
Nem uma lápide, um livro ou uma oração
perdurarão no tempo.
  
Como vencer a morte da mente? Talvez reproduzindo-a integralmente noutro mecanismo criado pelo Homem. Poderíamos viajar pelo cosmos à velocidade com que pode viajar a informação. Poder-se-ia, até, unir todas as mentes numa só, formando uma supermente que estaria disseminada em muitos pontos do universo.
  
Sem possibilidade de fazer uma cópia da matriz do cérebro, somos, individualmente, seres para a morte.
  
    
  
Ponta Delgada, 15 de Setembro de 2006.
  
Nos anos anteriores, minha irmã telefonava-me a lembrar que hoje nosso pai fazia anos. Dele eu fixara o ano do seu nascimento, 1923. Em redor da casa paterna, lembro alguns marcos no tempo. Não sei ao certo as idades. Minha mãe nasceu a 12 de Dezembro de 1928; minha irmã a 2 de Outubro, cerca de uns dez anos antes de eu nascer, mais coisa menos coisa; e os sobrinhos, com os quais eu cresci e ajudei a crescer, mantêm a idade dos afectos.
  
  
  
Nordeste, 21 de Fevereiro de 2007
  11:50:36
  
  
No deserto de Itabira
a sombra de meu pai
tomou-me pela mão.
Tanto tempo perdido.
Porém nada dizia.
Não era dia nem noite.
Suspiro? Voo de pássaro?
Porém nada dizia.
  
Longamente caminhamos.
Aqui havia uma casa.
A montanha era maior.
Tantos mortos amontoados,
o tempo roendo os mortos.
E nas casas em ruína,
desprezo frio, humidade.
Porém nada dizia.
  
A rua que atravessava
a cavalo, de galope.
Seu relógio. Sua roupa.
Seus papéis de circunstância.
Suas histórias de amor.
Há um abrir de baús
e de lembranças violentas.
Porém nada dizia.
  
No deserto de Itabira
as coisas voltam a existir,
irrespiráveis e súbitas.
O mercado de desejos
expõe seus tristes tesouros;
meu anseio de fugir;
mulheres nuas; remorso.
Porém nada dizia.
  
Pisando livros e cartas,
viajamos na família.
Casamentos; hipotecas;
os primos tuberculosos;
a tia louca; minha avó
traída com as escravas,
rangendo sedas na alcova.
Porém nada dizia.
  
Que cruel, obscuro instinto
movia sua mão pálida
subtilmente nos empurrando
pelo tempo e pelos lugares
defendidos?
Olhei-o nos olhos brancos.
Gritei-lhe: Fala! Minha voz
vibrou no ar um momento,
bateu nas pedras. A sombra
prosseguia devagar
aquela viagem patética
através do reino perdido.
Porém nada dizia.
  
Vi mágoa, incompreensão
e mais de uma velha revolta
a dividir-nos no escuro.
A mão que eu não quis beijar,
o prato que me negaram,
recusa em pedir perdão.
Orgulho. Terror nocturno.
Porém nada dizia.
  
Fala fala fala fala.
Puxava pelo casaco
que se desfazia em barro.
Pelas mãos, pelas botinas
prendia a sombra severa
e a sombra se desprendia
sem fuga nem reacção.
Porém ficava calada.
  
E eram distintos silêncios
que se entranhavam no seu.
Era meu avô já surdo
querendo escutar as aves
pintadas no céu da igreja;
a minha falta de amigos;
a sua falta de beijos;
eram nossas difíceis vidas
e uma grande separação
na pequena área do quarto.
  
A pequena área da vida
me aperta contra o seu vulto,
e nesse abraço diáfano
é como se eu me queimasse
todo, de pungente amor.
Só hoje nos conhecermos!
Óculos, memórias, retratos
fluem no rio do sangue.
As águas já não permitem
distinguir seu rosto longe,
para lá de setenta anos...
Senti que me perdoava
porém nada dizia.
  
As águas cobrem o bigode,
a família, Itabira, tudo.
  
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
  
  
  
  
.

  
Paula Rego, The Cadet and his Sister [O cadete e a irmã], 1988.
Acrílico em papel sobre tela, 213.4x213.4




CARREIRO, José. “Viagem na família”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 21-02-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/02/viagem-na-familia.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/02/21/pai.aspx)