sábado, 10 de julho de 2010

Te espera el mármol que no leerás

   
   
      


Ainda agora comias no prato dos cães.
Com unhas falas do destino que tentaste contrariar
e falas da sua mão pesada que te açoita.
Ofendes o velho guarda
infantilizando a sua voz e o seu cajado.
O universo espera-te enquanto trabalhas e aparas a barba.
Impaciente, pensas nas Erínias que te despedaçam.
Agora estavas aos beijos, a janela fechada, a pouca luz,
num resguardo contra a raiva.
Não respondas. Contorna os lábios,
uma romã para dentro do peito.
Quantas horas foram perdidas
sem que um único momento fosse visível.
Fala-me. Introduz o espírito nas aldrabas da memória.
O sonho incandescente. A luz directa sobre as pedras.
    
José Maria de Aguiar Carreiro
Revista Transe Atlântico n.º 0, junho 2010
    
    
     
*
    
     
    
A QUIEN ESTÁ LEYÉNDOME
     
Eres invulnerable. ¿No te han dado
Los númenes que rigen tu destino
Certidumbre de polvo? ¿No es acaso
Tu irreversible tiempo el de aquel rio
En cuyo espejo Heráclito vio el símbolo
De su fugacidad? Te espera el mármol
Que no leerás. En él ya están escritos
La fecha, la ciudad y el epitafio.
Sueños del tiempo son también los otros,
No firme bronce ni acendrado oro;
El universo es, como tú, Proteo.
Sombra, irás a la sombra que te aguarda
Fatal en el confín de tu jornada;
Piensa que de algún modo ya estás muerto.
       
Jorge Luis Borges
El outro, el mismo (1964)
     
      
*
       
      
A QUEM ESTIVER A LER-ME
      
Tu és invulnerável. Não te deram
Os númenes que te regem o destino,
Certeza da poeira? Não será
Teu tempo irreversível o do rio
Em cujo espelho Heraclito viu símbolo
Do que é fugaz? Aguarda-te esse mármore
Que não lerás. Sobre ele já estão escritos
Uma data, a cidade e o epitáfio.
Sonhos do tempo são também os outros,
Nem firme bronze nem oiro fulgente;
O universo é como tu, Proteu.
Sombra, irás para a sombra que te espera,
Fatal, na conclusão dessa jornada;
Pensa que de algum modo já estás morto.
       
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Jorge Luis Borges, Obras Completas II
Lisboa, Teorema, 1998
       
       
         
         
*
    
      
       
Nem são reconhecidos os tormentos / nem se aprende o amor / e aquilo que na morte nos separa / não nos é revelado.Sentiu uma intensa tristeza que […] fazia parte da sua paisagem abissal, do seu sentido último da existência: os nossos esforços, a nossa euforia, os nossos pequenos sacrifícios, tudo é em vão: não se aprende o amor. E ao morrer? Ao morrer não há qualquer revelação. Nada nos é comunicado na morte.
     
*
   
Nada há a acrescentar: é isso o essencial da nossa morte: não termos já nada a acrescentar: a própria memória ser supérflua, serem supérfluos a dor e o amor que um dia sentimos. Tal é o silêncio de Buda. Por isso diremos, como Semónides de Samos, o elegíaco poeta grego arcaico: Do morto não deveríamos lembrar-nos, se fôssemos sensatos, mais do que um dia. E é verdade também que muito tempo temos para estar mortos e vivemos cheios de infortúnios poucos anos – que mais pode dizer-se? Fica tudo por dizer, evidentemente.
   
Álvaro Pombo, Contra-Natura
Lisboa, Minotauro, 2009, pp. 45 e 369-370.
Tradução de Miguel Serras Pereira
     
      

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/07/10/marmore.aspx]

sábado, 3 de julho de 2010

CERNUDA

    
    
“[…] para o próprio Cernuda nunca houve, em última instância, realidade paradisíaca alguma, só houve fantasia: «Eu bem sei que esta imagem / sempre fixa em minha mente / não és tu mas só a sombra / do amor que existe em mim.»”
    
Álvaro Pombo, Contra-Natura. Lisboa, Minotauro, 2009
     
         
      
       
      
     
     
Luis Cernuda

     
     



SOMBRA DE MÍ
   
Bien sé yo que esta imagen
Fija siempre en la mente
No eres tú, sino sombra
Del amor que en mí existe
Antes que el tiempo acabe.
     
Mi amor así visible me pareces,
Por mí dotado de esa gracia misma
Que me hace sufrir, llorar, desesperarme
De todo a veces, mientras otras
Me levanta hasta el cielo en nuestra vida,
Sintiendo las dulzuras que se guardan
Sólo a los elegidos tras el mundo.
    
Y aunque conozco eso, luego pienso
Que sin ti, sin el raro
Pretexto que me diste,
Mi amor, que afuera está con su ternura,
Allá dentro de mí hoy seguiría
Dormido todavía y a la espera
De alguien que, a su llamada,
Le hiciera al fin latir gozosamente.
    
Entonces te doy gracias y te digo:
Para esto vine al mundo, y a esperarte;
Para vivir por ti, como tú vives
Por mí, aunque no lo sepas,
Por este amor tan hondo que te tengo.
          
       

Luis Cernuda (Sevilha, 1902 - Cidade do México,1963)
Vivir sin estar viviendo, 1949






Bien sé yo que...
   
El símbolo de la sombra aparecía ya con profusión en Un Río, un Amor y Los Placeres Prohibidos, pero ahora se ha invertido por completo su significado: lejos de ser el símbolo de un mundo sin sentido por falta de luz, ahora la sombra expresa la proyección de la luz – del Deseo.
    
Mi amor...
    
Esta vez se distingue expresamente entre el “tu” más o menos autónomo y la “imagen” que ele amante forja del él, que es una proyección, una sombra “del afán”. Lo que el “cuerpo hermoso” nos brinda es la posibilidad de encarnar ese afán, de hacer visible y propiamente vivible la energía del Deseo.
     
Y aunque conozco eso...
    
No menos claro queda es la interpretación privilegiada del amante la que otorga esa gracia especial, esa capacidad de enaltecernos o de hundirnos. Y sin embargo ello no debe derivar en un solipsismo masturbatorio, sino que invita por el contrario a reconocer a reconocer y agradecer el rol crucial, sine qua non, que aporta y juega el otro.
      
Entonces te doy gracias...
   
Los versos últimos son de una hermosura clásica, perfecta, plena. “Para esto vine al mundo” debe entenderse como una respuesta, definitiva y concluyente, a poemas anteriores como “He venido para ver” y “La escarcha”. La doble anáfora acumulativa de las preposiciones “para” y “por” sirve precisamente para subrayar la doble función, causal y final, de la segunda: no cabe afirmación más contundente de la fuerza del amor, del valor vitalista del Deseo. Decir que el amado vive, sin saberlo, por mí, no deja de inclinar de nuevo la balanza hacia el subjetivismo, pero el poema explica suficientemente estos asertos y reconoce el papel que juega el cuerpo del amado. Que un yo poético al que las constricciones sociales han condenado reiteradamente a vivir la experiencia del Deseo como exclusivamente individual reduzca (o tienda a reducir) al amado a pretexto de esta experiencia no debe sorprendernos.
     
Ibon Zubiaur, La construcción de la experiencia en la poesía de Luis Cernuda
Reichenberger, Kassel, 2002



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/07/03/cernuda.aspx]

domingo, 20 de junho de 2010

RENÉ CHAR: ALLÉGEANCE



  
    
    
ALLEGEANCE
    
Dans les rues de la ville il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps divisé. Il n'est plus mon amour, chacun peut lui parler. Il ne se souvient plus; qui au juste l'aima? 
    
Il cherche son pareil dans le voeu des regards. L'espace qu'il parcourt est ma fidélité. Il dessine l'espoir et léger l'éconduit. Il est prépondérant sans qu'il y prenne part. 
    
Je vis au fond de lui comme une épave heureuse. A son insu, ma solitude est son trésor. Dans le grand méridien où s'inscrit son essor, ma liberté le creuse. 
    
Dans les rues de la ville il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps divisé. Il n'est plus mon amour, chacun peut lui parler. Il ne se souvient plus; qui au juste l'aima et l'éclaire de loin pour qu'il ne tombe pas?
    
René Char
(L'Isle-sur-la-sorgue - Vaucluse, 1907 - Paris, 1988)
Fureur et Mystère (1948)
     
    
     
      
      
OBSERVÂNCIA
    
Nas ruas da cidade está o meu amor. Pouco importa a onde vai no tempo dividido. Já não é o meu amor, qualquer um pode falar-lhe. Ele já não se lembra; quem ao certo o amou?
    
Procura o seu par no desejo dos olhares. O espaço que percorre é a minha fidelidade. Ele desenha a esperança e ligeiro despede-a. Ele é preponderante sem tomar parte em nada.
    
Vivo no fundo de si como um destroço feliz. Sem que ele saiba, a minha solidão é o seu tesouro. No grande meridiano onde inscreve o seu curso, é a minha liberdade que o escava.
    
Nas ruas da cidade está o meu amor. Pouco importa a onde vai no tempo dividido. Já não é o meu amor, qualquer um pode falar-lhe. Ele já não se lembra; quem ao certo o amou e o ilumina de longe para que não caia?
     
René Char
    
    
      
    [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/06/20/allegeance.aspx]

segunda-feira, 14 de junho de 2010

I HAVE BEEN HERE BEFORE (Dante Gabriel Rossetti)

Autorretrato, Dante Gabriel Rossetti

 



    

SUDDEN LIGHT


I have been here before,

But when or how I cannot tell:

I know the grass beyond the door,

The sweet keen smell,

The sighing sound, the lights around the shore.

        

You have been mine before,—

How long ago I may not know:

But just when at that swallow’s soar

Your neck turn’d so,

Some veil did fall,— I knew it all of yore.

        

Has this been thus before?

And shall not thus time’s eddying flight

Still with our lives our love restore

In death’s despite,

 

And day and night yield one delight once more?


Dante Gabriel Rossetti (1828-1882)









[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/06/14/Sudden.Light.aspx]   

terça-feira, 8 de junho de 2010

JOHN KEATS: A THING OF BEAUTY IS A JOY FOR EVER

    
John Keats, por Joseph Severn, 1819

   
   
    
A thing of beauty is a joy for ever: 
Its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness; but still will keep
A bower quiet for us, and a sleep
Full of sweet dreams, and health, and quiet breathing.
Therefore, on every morrow, are we wreathing
A flowery band to bind us to the earth,
Spite of despondence, of the inhuman dearth
Of noble natures, of the gloomy days,
Of all the unhealthy and o'er-darkened ways
Made for our searching: yes, in spite of all,
Some shape of beauty moves away the pall
From our dark spirits. Such the sun, the moon,
Trees old and young, sprouting a shady boon
For simple sheep; and such are daffodils
With the green world they live in; and clear rills
That for themselves a cooling covert make
'Gainst the hot season; the mid forest brake,
Rich with a sprinkling of fair musk-rose blooms:
And such too is the grandeur of the dooms
We have imagined for the mighty dead;
All lovely tales that we have heard or read:
An endless fountain of immortal drink,
Pouring unto us from the heaven's brink.
Nor do we merely feel these essences
For one short hour; no, even as the trees
That whisper round a temple become soon
Dear as the temple's self, so does the moon,
The passion poesy, glories infinite,
Haunt us till they become a cheering light
Unto our souls, and bound to us so fast,
That, whether there be shine, or gloom o'ercast;
They always must be with us, or we die.
     
John Keats (Londres, 31 de outubro de 1795 - Roma, 23 de fevereiro de 1821)
Endymion: A Poetic Romance, Londres, Taylor and Hessey, 1818
    



     
A BELEZA EM CADA SER É UMA ALEGRIA ETERNA
     
A beleza em cada ser é uma alegria eterna:
o seu encanto torna-se maior e nunca se há-de perder
no nada; reservar-nos-á ainda um refúgio
de paz, onde adormeceremos, habitados por sonhos
suaves, uma íntima plenitude, uma respiração branda.
Comecemos, assim, a tecer em cada manhã
uma grinalda de flores para nos unirmos à terra,
apesar do desalento, da ausência daqueles
cuja nobreza amávamos, dos dias cheios de escuridão,
de todos os caminhos insalubres e misteriosos,
abertos para os nossos anseios; sim, apesar de tudo,
uma forma de beleza afasta o sudário
das nossas almas sombrias. Assim é o sol, a lua,
as antigas ou novas árvores cuja bênção faz germinar
a sombra sobre os humildes rebanhos; os narcisos
e o mundo verdejante que os cerca; e os límpidos rios
que para si criam um dossel de frescura
durante as estações ardentes; os silvados do bosque
enriquecidos pelo belo, nascente esplendor das rosas;
e, também, a magnificência do destino
que imaginamos para os mortos poderosos;
e as histórias encantadoras que lemos ou escutamos:
fonte inesgotável duma imortal bebida,
que vem do limiar do céu e para nós se derrama.
    
E não é apenas durante algumas horas breves
que ficamos presos a estas essências; assim como as árvores
murmurando à volta dum templo logo se tornam
tão amadas como o próprio templo, também a lua
e a paixão da poesia, glórias inifinitas, tantas vezes
nos assombram, até serem uma luz vivificadora
para a alma, e tão estreitamente nos cingem
que, fique a brilhar o sol ou se apaguem os céus,
para sempre hão-de existir em nós, ou morreremos.
    
John Keats, “A thing of beauty is a joy for ever”
Tradução de Fernando Guimarães
Poesia Romântica Inglesa, Relógio D'Água, 1992
     
    
Morgan Library: manuscrito de “A thing of beauty is a joy for ever”, ENDYMION: A POETIC ROMANCE, John Keats 


    [Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/06/08/keats.aspx]