segunda-feira, 2 de agosto de 2010

POESIA E POEMA


   
              «Poesia é aquilo que se perde na tradução», Robert Frost
              «A poesia não se explica…», Manuel Alegre
       
                                        
                
                       
  
A definição de poesia é um problema relacionado com o conteúdo que as palavras transmitem e com a atitude assumida por quem pretende transmiti-lo. A poesia, entendida indiferentemente como forma ou conteúdo, é tão real quanto as pessoas e os objectos que nos cercam, e tão real quanto os sonhos e os planos de viagem que nunca se realizam. É, portanto, uma forma do real, o real do espírito, contraposto ao real da matéria, o real físico, cuja percepção se faz pelos sentidos.
   
A poesia tem por objecto privilegiado o «eu». Os elementos que compõem o mundo exterior, o plano do «não-eu», somente interessam e aparecem no poema quando interiorizados, ou como áreas específicas em que o «eu» do poeta se projecta, dum modo que significa, afinal de contas, estar o «eu» à procura da própria imagem, reflectida na superfície do mundo físico. A carga de «não-eu» que pode aparecer na poesia sofre um processo transformador provocado pelas vivências do poeta, de modo a se operar entre o «eu» e o «não-eu» uma íntima e indestrutível fusão.
   
A poesia é a expressão do «eu» por meio de palavras polivalentes e metáforas. A linguagem da poesia é essencialmente conotativa. Isso significa que a palavra poética pode reduzir-se a seus componentes primários (os sons), a suas relações sinestésicas (a cor, o perfume, a musicalidade, a forma) ou a significações irracionais, mágicas, oníricas, delirantes, extravagantes, etc., ou pode ganhar «precisão», próxima da linguagem filosófica.
   
Mas é também do carácter especial assumido pela palavra poética que decorre um dos componentes básicos do fenómeno poético: o ritmo. Entendido não como necessária repetição dum movimento ou duma duração, mas como expressão daquilo que no mundo interior do poeta é permanente movimento em espiral, como uma sequência de sons, de sentidos e de sentimentos ao mesmo tempo musical, semântica e emotiva.
   
Ao sistema harmónico de palavras (metáforas e termos de ligação) através das quais o «eu» do poeta se expressa em seu conteúdo e em seu intrínseco ritmo, dá-se o nome de poema. Portanto, o poema seria a tentativa empreendida pelo poeta no sentido de representar o seu mundo interior: uma súmula de sinais e de metáforas.
   
Massaud Moisés, A Criação Literária ? Poesia, 10.ª edição
São Paulo, Editora Cultrix, 1987 [texto adaptado]
    
   
   
  
                 
                            
                       
   
   
FALAR DE POESIA
   
Antes de tudo, não falar. O poema tem todas as palavras necessárias para que não seja preciso dizer mais nada partir dele.
Depois, falar devagar.
Falar da sua construção. Procurar a origem do poema por dentro do que ele nos diz.
Falar com o poema. Falar de cada palavra, de cada verso. Encontrar através deles os fios de uma lógica que não passa apenas pelo sentido ou pelo que é dito, mas sobretudo pelo que só a percepção instintiva, sensorial, pode captar, no que está para além do que é dito e se solta das próprias palavras.
Ouvir o poema para poder falar dele.
Ignorar todos os discursos sobre o poema e sobre a poesia. Esse lixo verbal só nos impede de ouvir o que o poema tem para dizer.
Depois de falar do poema, e só depois, procurar saber o que outros disseram ? pura curiosidade.
Procurar, como um suplemento de curiosidade, o que os próprios poetas disseram do poema e da poesia.
Se tivermos sabido, com essa leitura, alguma coisa para além do que o poema nos disse, desconfiemos do poema.
Um poema, quando o é, diz tudo o que há para saber sobre si.
     
Nuno Júdice, in Relâmpagon.º 6, Abril, 2000
   
   
   
   

   
   
   
   
   
            
«Eu, apesar de não saber também o que essa palavra significa, não faço a pergunta. Não, porque saber o significado não me resolve nenhuma questão. O significado é paragem no tempo, e a questão é justamente o movimento. Porque poesia durante muito tempo parece que foi sonoridade, ritmo sonoro obtido com palavras; só muito mais tarde se tornou sobretudo escrita e, depois disso ainda, imagem criada a partir de palavras escritas: ritmo visual. Esta evolução dá naturalmente que pensar.»
           
Alberto Pimenta, Acerca da poética ainda possível
in 
Poemografias: perspectivas da poesia visual portuguesa
Fernando Aguiar; Silvestre Pestana (orgs.), Lisboa, Ulmeiro,1985, p.31.
         
   
   
   
              
      
   
           
           
           

           
LUGAR DA POESIA NO MUNDO DE HOJE
        
«Eucanaã Ferraz pareceu-me colocar a questão no seu lugar exacto, entre as visões excessivamente entusiásticas e mitificadoras e os veredictos mais cépticos ou simplesmente realistas: a poesia tem uma influência mínima, mas não tem de se preocupar em transformá-la em máxima (coisa que, aliás, nunca aconteceu), antes deve assumir, em cada linha, o seu compromisso ético com a vida, independentemente do seu objecto. Pode parecer anacrónico, isto do compromisso ético, mas não é: é apenas clássico. O exílio da poesia e da sua linguagem em relação à tribo foi o caminho que ela (quando saiu da tribo para a "sociedade") encontrou para responder ao silêncio (de morte) pela palavra e dizer a sua razão tantas vezes aparentemente desrazoada. Com uma pertinácia sem par. É por isso que ainda aí está, para continuar a ser, como lembrou o israelita Israel Eliraz, a voz que diz não ao pai ‑ seja ele o Deus do Antigo Testamento, o senso comum ou todos os fazedores de ideologias e de guerras.»
                
João Barrento (2002), a propósito do Encontro Internacional de Poesia
in A Escala do meu Mundo,Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, p. 116.
             
                 

                 
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/08/02/poesia.poema.aspx]

segunda-feira, 26 de julho de 2010

PHILIP LARKIN: THE PAST IS PAST AND THE FUTURE NEUTER




DECEPTIONS
    
    
"Of course I was drugged, and so heavily I did not regain
consciousness until the next morning. I was horrified to
discover that I had been ruined, and for some days I was inconsolable,
and cried like a child to be killed or sent back to my aunt."
   
    
    
   
Even so distant, I can taste the grief,
Bitter and sharp with stalks, he made you gulp.
The sun's occasional print, the brisk brief
Worry of wheels along the street outside
Where bridal London bows the other way,
And light, unanswerable and tall and wide,
Forbids the scar to heal, and drives
Shame out of hiding.  All the unhurried day,
Your mind lay open like a drawer of knives.
     
Slums, years, have buried you. I would not dare
Console you if I could.  What can be said,
Except that suffering is exact, but where
Desire takes charge, readings will grow erratic?
For you would hardly care
That you were less deceived, out on that bed,
Than he was, stumbling up the breathless stair
To burst into fulfillment's desolate attic.
    

Philip Larkin (1922 - 1985 / West Midlands / England)
The Less Deceived, 1950


   


DECEPÇÕES
   
Mesmo de longe, provo o mal azedo
que ele te fez tragar, com hastes finas,
na estampa ocasional do Sol. E o medo
brusco, dos carros, fora, onde te esmaga
Londres, noivando em direção oposta.
Irrespondível luz cultiva a chaga
e nega a teu pudor uma coberta.
Ficou-te, ao lento dia, a alma exposta,
qual gaveta de facas, toda aberta.
Não sei te consolar, nem ousaria.
Cortiços te enterraram. Que dizer?
que a dor é exata. Valeria
julgar, onde foi lei desejo rude?
Pois pouco importarias de saber
que te frustraste menos, nessa cama,
que ele a subir pelos degraus, sem ar,
da mansarda infeliz da plenitude.
    
Philip Larkin, The Less Deceived, 1950
Tradução de Paulo Mendes de Campos, in O Pasquim
   
   
   
      
IF, MY DARLING

If my darling were once to decide
Not to stop at my eyes,
But to jump, like Alice, with floating skirt into my head,

She would find no table and chairs,
No mahogany claw-footed sideboards,
No undisturbed embers;

The tantalus would not be filled, nor the fender-seat cosy,
Nor the shelves stuffed with small-printed books for the Sabbath,
Nor the butler bibulous, the housemaids lazy:

She would find herself looped with the creep of varying light,
Monkey-brown, fish-grey, a string of infected circles
Loitering like bullies, about to coagulate;

Delusions that shrink to the size of a woman's glove,
Then sicken inclusively outwards. She would also remark
The unwholesome floor, as it might be the skin of a grave,

From which ascends an adhesive sense of betrayal,
A Grecian statue kicked in the privates, money,
A swill-tub of finer feelings. But most of all

She'd be stopping her ears against the incessant recital
Intoned by reality, larded with technical terms,
Each one double-yolked with meaning and meaning's rebuttal:

For the skirl of that bulletin unpicks the world like a knot,
And to hear how the past is past and the future neuter
Might knock my darling off her unpriceable pivot.
    

Philip Larkin, The Less Deceived, 1950


    
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/07/26/larkin.aspx]

segunda-feira, 19 de julho de 2010

UMA FELICIDADE LIVRE DE EUFORIA (Juan Antonio González Iglesias)

      
ESTO ES MI CUERPO
      
Esto es mi cuerpo. Aquí
coinciden el lenguaje y el amor.
La suma de las líneas
que he escrito ha dibujado
no mi rostro, sino algo más humilde:
mi cuerpo. Esto que tocas es mi cuerpo.
Otro lo dijo
mejor. Esto que tocas
no es un libro, es un hombre.
Yo añado que esto que te toca ahora
es un hombre.
Soy yo, porque no hay
ni una sola sílaba que esté libre de amor,
no hay ni una sola sílaba
que no sea un centímetro
cuadrado de mi piel.
En el poema soy acariciable
no menos que en la noche, cuando tiendo
mi sueño paralelo al sueño que amo.
No mosaico, ni número, ni suma.
No sólo eso.
Esto es una entrega. Soy pequeño
y grande entre tus manos.
Ésta es mi salvación. Éste soy yo.
Este rumor del mundo es el amor.
      
Juan Antonio González Iglesias (Salamanca, 1964)
Esto es mi cuerpo, Madrid, Visor Libros, 1997
    
*
      
        
UNA FELICIDAD LIBRE DE EUFORIA
    
    
Dame pobres placeres repetidos,
no un único diamante en la memoria (José Luis García Martín)
    
    
Existe
una felicidad libre de euforia,
una felicidad
sostenida de días, que suceden
sin sucederse, libres
de vértigo también,
una felicidad que no atrae
la atención de los dioses, porque apenas
es. Los que la transitan,
paso a paso, no notan el camino.
Una felicidad sin entusiasmo,
sin acontecimientos. El amor,
como el sol en la fronda, se difunde
humildemente.
     
Esos días el sueño significa
dormir, más que soñar. En sus dominios
nunca hay que levantarse a medianoche
para limpiar las sábanas de arena,
porque no ha habido playa
ni combate. Mas sí serenidad
de otra manera,
como lo que perdura. Y no es inercia.
Ni llama. No hay herida,
y no ciega la espada al mensajero.
     
Últimamente pienso mucho en esto.
No sé si la he tenido. No recuerdo.
He encontrado dos líneas en que pido
una felicidad libre de euforia.
Y, si no la he tenido, me pregunto
por qué sé describir tan justamente
ese país en el que nunca he estado.
      
Juan Antonio González Iglesias (Salamanca, 1964)
Esto es mi cuerpo, Madrid, Visor Libros, 1997
    
     
      
        
Juan Antonio González Iglesias (Salamanca, 1964)

     
        
Para el poeta Juan Antonio González Iglesias (Salamanca, 1964), la poesía es necesaria para contrarrestar los excesos de una sociedad mediática. “La cultura de masas, cuando va bien es democrática, cuando va mal es demagógica, y el cantante, el escritor, el periodista pueden plegarse a los intereses del público, que es el que manda, y eso es un peligro. La ventaja de la poesía es que no se pliega a nada y ofrece una voz muy singularizada, muy libre. El tener un uso individual del lenguaje es un valor de libertad”. (Julia Luzán, “Gente on poesia”, El País, 28/05/2006.)
     
*
     
Sus poemas hablan de la belleza y del heroísmo en la vida diaria. Además de poeta, es pintor, traductor de latín y profesor de filología en la Universidad de Salamanca.- Ana Nance
     
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/07/19/Juan.Antonio.Gonzalez.Iglesias.aspx]

sábado, 10 de julho de 2010

Te espera el mármol que no leerás

   
   
      


Ainda agora comias no prato dos cães.
Com unhas falas do destino que tentaste contrariar
e falas da sua mão pesada que te açoita.
Ofendes o velho guarda
infantilizando a sua voz e o seu cajado.
O universo espera-te enquanto trabalhas e aparas a barba.
Impaciente, pensas nas Erínias que te despedaçam.
Agora estavas aos beijos, a janela fechada, a pouca luz,
num resguardo contra a raiva.
Não respondas. Contorna os lábios,
uma romã para dentro do peito.
Quantas horas foram perdidas
sem que um único momento fosse visível.
Fala-me. Introduz o espírito nas aldrabas da memória.
O sonho incandescente. A luz directa sobre as pedras.
    
José Maria de Aguiar Carreiro
Revista Transe Atlântico n.º 0, junho 2010
    
    
     
*
    
     
    
A QUIEN ESTÁ LEYÉNDOME
     
Eres invulnerable. ¿No te han dado
Los númenes que rigen tu destino
Certidumbre de polvo? ¿No es acaso
Tu irreversible tiempo el de aquel rio
En cuyo espejo Heráclito vio el símbolo
De su fugacidad? Te espera el mármol
Que no leerás. En él ya están escritos
La fecha, la ciudad y el epitafio.
Sueños del tiempo son también los otros,
No firme bronce ni acendrado oro;
El universo es, como tú, Proteo.
Sombra, irás a la sombra que te aguarda
Fatal en el confín de tu jornada;
Piensa que de algún modo ya estás muerto.
       
Jorge Luis Borges
El outro, el mismo (1964)
     
      
*
       
      
A QUEM ESTIVER A LER-ME
      
Tu és invulnerável. Não te deram
Os númenes que te regem o destino,
Certeza da poeira? Não será
Teu tempo irreversível o do rio
Em cujo espelho Heraclito viu símbolo
Do que é fugaz? Aguarda-te esse mármore
Que não lerás. Sobre ele já estão escritos
Uma data, a cidade e o epitáfio.
Sonhos do tempo são também os outros,
Nem firme bronze nem oiro fulgente;
O universo é como tu, Proteu.
Sombra, irás para a sombra que te espera,
Fatal, na conclusão dessa jornada;
Pensa que de algum modo já estás morto.
       
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Jorge Luis Borges, Obras Completas II
Lisboa, Teorema, 1998
       
       
         
         
*
    
      
       
Nem são reconhecidos os tormentos / nem se aprende o amor / e aquilo que na morte nos separa / não nos é revelado.Sentiu uma intensa tristeza que […] fazia parte da sua paisagem abissal, do seu sentido último da existência: os nossos esforços, a nossa euforia, os nossos pequenos sacrifícios, tudo é em vão: não se aprende o amor. E ao morrer? Ao morrer não há qualquer revelação. Nada nos é comunicado na morte.
     
*
   
Nada há a acrescentar: é isso o essencial da nossa morte: não termos já nada a acrescentar: a própria memória ser supérflua, serem supérfluos a dor e o amor que um dia sentimos. Tal é o silêncio de Buda. Por isso diremos, como Semónides de Samos, o elegíaco poeta grego arcaico: Do morto não deveríamos lembrar-nos, se fôssemos sensatos, mais do que um dia. E é verdade também que muito tempo temos para estar mortos e vivemos cheios de infortúnios poucos anos – que mais pode dizer-se? Fica tudo por dizer, evidentemente.
   
Álvaro Pombo, Contra-Natura
Lisboa, Minotauro, 2009, pp. 45 e 369-370.
Tradução de Miguel Serras Pereira
     
      

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2010/07/10/marmore.aspx]