quarta-feira, 29 de agosto de 2012

LIÇÃO DE COISAS (Vitorino Nemésio)

      
Vitorino Nemésio, última lição recordada no CCB


        
LIÇÃO DE COISAS            
               
A exatidão serena de uma flor
Aconselha-me em vão
A encher de paz e sem amor
O revolto e impreciso coração.

Ó luz tão verdadeira,
Que dás o verde tenro e o branco puro,
Eu dava a vida inteira
Para ser monte ou muro!

Mas ao homem não valem
Desejos minerais:
Aves, flores, que se calem!
Hei-de ser como os mais.

Nem florido no orvalho como a rosa,
Nem azul como o monte arredondado.
Ó imaginação, só tu és dolorosa!
O maior mal ainda é o imaginado.
    

Vitorino Nemésio, Nem Toda a Noite a Vida, Lisboa, Ática, 1953
   



   
    
EXPLORAÇÃO DO POEMA «LIÇÃO DE COISAS»
    
O poeta que tanto interesse nos mereceu pela extraordinária originalidade de muitos dos seus poemas que afirmam a sua vasta cultura e uma apurada sensibilidade, mesmo neste breve e menos hermético poema, se revela um pensador curioso.
O poema é formado por quatro quadras, com rima cruzada, mas de métrica muito irregular e, portanto, com um ritmo variável; ligeiro nos versos curtos (binário, em geral), em especial na 2.ª e na 3.ª quadras; mais lento nos versos mais longos, como acontece na última quadra (e, portanto, ternário, com evidência). A rima é consoante e são agudos os da 1.ª e os 2.º e 3.º versos da 3.ª Todos os mais são graves.
Não há aliterações significativas a nível fónico, o transporte observa-se nos três primeiros versos da 1.ª quadra, no 3.º da 2.ª e no 1.º da 3.ª Em todos os outros há pausas predominantemente fortes marcadas pelo ponto final, pelos dois pontos e pelo ponto de exclamação ‑ três vezes, muito oportunos dentro do sentido da poesia. Sentimos abundantes os sons nasais (a exprimir um certo fechamento no desencanto) onde, excluindo o u, aparecem todas, com predomínio do em (en) que se combina mesmo com o e fechado em verde tenro e aparece proximamente repetido em homemvalem. Também o som on em monte arredondado e com as quatro dentais vincam a forma do monte.
Observemos o poema, a nível de linguagem e de conteúdo.
As coisas que, segundo o título, transmitem uma lição ao poeta são: uma floraluz, aaves, principalmente.
Olhando para uma flor, ele verifica a sua exatidão serena (personificando-a) que oaconselha (de novo a animização), mas inutilmente: «A encher de paz e sem amor / O revolto e impreciso o coração.» Algumas considerações nos sugerem estes dois versos. Como pode o poeta encher de paz o coração, sem amor? ‑ primeiro momento negativo. Ora a flor aconselha a paz ao poeta porque tem revolto impreciso o coração. Qualquer dos adjetivos justificam a necessidade de paz que o poeta não tem, pois o coração não só é revolto, não pacífico, como é também impreciso ‑ não sabe o que quer. É precisamente esta imprecisão que vai justificar os desejos absurdos formulados nos dois últimos versos da 2.ª quadra: «Eu dava a vida inteira / Para ser monte ou muro!» ‑ desejo que lhe é suscitado pela luz: «Ó luz tão verdadeira, / Que dás o verde tenro e o branco puro.» À flor classificou-a de exata serena, à luz classifica-a de verdadeira,adjetivo animizante superlativado pelo advérbio tão; e é verdadeira porque não falseia as coisas, neste caso, as cores: o verde tenro e o branco puro. Realçamos os adjetivos porque nos parecem muito significativos ‑ verde tenro ‑ constitui uma sinestesia visual e táctil, mas ambas as expressões são de sentido concreto; branco puro, já não oferece uma sinestesia e o substantivo concreto está qualificado por um adjetivo de sentido abstrato - puro → pureza, embora puro possa significar a superlativação de branco → branco, branco.
Referimos os desejos absurdos do poeta desejando ser monte ou muro. Para o primeiro serviria o verde tenro; para o 2.°, o branco puro. O que nos parece, porém, é que o poeta podia dar a vida inteira por alguma coisa de mais válido do que um muro. Mas a imaginação é tola.
E, agora, o temos na 3.ª quadra a lamentar a insensatez do homem que concebe desejos minerais, ele que pertence ao reino animal. A opositiva mas deita por terra o inconcebível desejo formulado na 2.ª quadra, apesar do conselho que recebe daexatidão serena de uma flor e da consciência de verdade que lhe é dada pela luz. Por isso surge uma frase exclamativa, carregada de autoridade, a sugerir como que um protesto, uma rejeição: «Aves, flores, que se calem!» Não está expresso o verbo declarativo mas ele está subjacente à oração: «que se calem!». Por isso digo que se calem ‑, aves e flores. As aves surgem pela primeira vez neste conjunto de coisas que lhe servem de lição. Mas o poeta não se conforma com essa lição e a frase exclamativa com o conjuntivo tem sentido imperativo ‑ ele não aceita a lição. «Hei-de ser como os mais.» Não foge à vulgaridade, apesar das lições que as coisas lhe dão, e a forma perifrástica é uma afirmação da intenção que o move: hei-de ser.
Mas é na última quadra que o poeta condensa o que de mais significativo nos sugere o poema. Se há-de ser como os mais, se não foge à vulgaridade, se tem de seguir o seu destino, lamentavelmente, apesar das suas ambições, não será nada, como sugere nas frases paralelas anafóricas que constituem os dois primeiros versos da quadra: «Nem florido no orvalho como a rosa, / nem azul como o monte arredondado.» Duas coisas lhe servem de comparação relativamente aos seus anseios: a rosa ‑ flor, o montearredondado. Embora ele só tivesse referido desejos minerais ‑ como impossíveis ao homem, embora ele tivesse dito que «... dava a vida inteira / Para ser monte ou muro!», a verdade é que o primeiro verso da última quadra passa pelo reino vegetal. O poeta pertence ao reino animal, mas, no seu sonho impossível, desejaria pertencer a outro reino. No vegetal, é a flor, mais particularmente, a rosa que o atrai ‑ cor, perfume, forma até, talvez, os espinhos, justificarão esta preferência? No mineral é o monte que, à distância, tem um tom azulado. E monte, porquê? Pela vastidão que ele, poeta limitado, não possui? Pela força latente, que faz brotar a floresta? Pela altura, que lhe permite uma maior distanciação do rasteiro, do mesquinho em direção ao infinito? Ao absoluto? E, quando diz arredondado, não será para significar (ultrapassando a rima) a ausência de arestas, de escarpas que tornam difícil o acesso e, portanto, transpondo, para o mundo do homem, desejar que este seja acessível, tratável, como tal monte?
O pensamento do poeta, a partir das coisas, divagou, concebeu desejos, sonhou irrealidades. E aí o temos, nos dois últimos versos do poema, a culpar a sua imaginação desenfreada que o arrasta voluptuosamente e tanto o faz sofrer! De facto, ao longo da poesia de Nemésio foi-nos possível verificar a facilidade com que o poeta transita através das ideias, parando aqui, saltando acolá, mas sempre conseguindo prender a nossa atenção, surpreendida e curiosa, mas firme para não se perder nos meandros do seu pensamento. Foi essa a impressão que nos ofereceu nos programas televisivos em que se revelou um cavaqueador curioso, dispersivo, por vezes, mas nunca incómodo. Ora a leitura mais vasta e profunda dos seus poemas completou essa visão agradável, completou e, até, superlativou o apreço em que o tínhamos, pois, na verdade, não é fácil um humanista como ele, manobrar com tanta exatidão e com tanto à-vontade, assuntos que são do domínio da ciência, como vimos em Limite de Idade.
Compreendem-se bem os dois últimos versos deste poema, depois desse contacto mais profundo com a sua obra. Afinal, divagou em pensamentos que classificámos de absurdos numa personalidade tão multifacetada como foi a de Nemésio. Mas o final do poema justifica convenientemente a causa da evasão que nos revelou: «Ó imaginação, só tu és dolorosa! / O maior mal ainda é o imaginado!» Neste desabafo sentimos uma reminiscência muito acentuada de Fernando Pessoa ‑ Álvaro de Campos ‑ como aliás a sentimos ao longo da poesia. Este desencanto, que leva a sonhos irreais, é muito característico do heterónimo indicado. Para ele o maior mal era o ter nascido, para Nemésio é o imaginado. A imaginação desregrada é a causadora do grande sofrimento daqueles que não vivem com os pés na terra. E este é um caso evidente.
Na estrutura do poema, consideramos três momentos: ‑ no primeiro constituído pelas duas primeiras quadras temos a apresentação: das coisas e dos anseios do poeta. No segundo momento constituído pela 3.ª quadra e pelos dois primeiros versos da 4.ª temos o desenvolvimento das desencantadas conclusões a que chegou, e o negativismo é anunciado logo na opositiva. Mas que inicia a 3.ª quadra e pelas formas negativas não valem, Nem florido, Nem azul. No terceiro momento, constituído pelos dois últimos versos, temos a conclusão.
O poema resulta da comparação, do confronto do eu com o não-eu o qual leva o poeta a exprimi r um desejo impossível e impensável. Mas, ao terminar, o eu regressa ao seu mundo, para concluir que a causa do seu desencanto, da sua frustração estava em si próprio, na imaginação prodigiosa que possuía. Nemésio confirma, assim, o esquema típico de um poema, conforme dizemos em Literatura Prática – vol. I, pág. 51: No poema cruzam-se dois mundos: o mundo do poeta ‑o mundo do eu e o mundo que lhe é exterior ‑, o do não-eu, que acaba por se fundir, consubstanciar com o do poeta (sujeito → objeto → sujeito). E não foi isto que vimos nesta breve exploração do poema?
Literatura Prática (sécs. XIX-XX) 11º AnoLilaz Carriço, Porto Ed., 1986 (4ª ed.), pp. 499-501.
            
            

QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO
    
1. O poema pode dividir-se em duas partes lógicas.

1.1. Identifique-as.

1.2. Resuma o conteúdo de cada uma delas.

1.3. Refira o valor do conector que as separa.

2. Repare no título do poema.

2.1. Explique de que coisas poderia o sujeito poético aprender uma lição de vida.

2.2. Indique as razões pelas quais o "conselho" da "flor" é "em vão".

2.3. Sublinhe os versos em que o sujeito poético exprime um desejo quase panteísta de identificação com os elementos naturais.

2.4. Interprete a "lição" que o sujeito poético considera que poderia aprender.

3. Ao longo do poema, coração identifica-se com imaginação e paz com ausência de sentimentos. Prove a veracidade desta afirmação.
   

   
CHAVE DE CORREÇÃO
    
1. As duas partes são separadas pela conjunção adversativa Mas.
Na primeira, o sujeito poético exprime um profundo desejo de identificação com a natureza, para assim, despojado de sentimentos, encontrar a paz.
Na segunda, afirma a impossibilidade de aprender esta lição pois a imaginação ‑ a sua capacidade de pensar, de sentir e, portanto, de sofrer ‑ impedem-no de tal.
     
     
Entre Margens. Língua Portuguesa 10º Ano, 
Olga Magalhães e Fernanda Costa, Porto Editora, 2003.
       
       


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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/29/licao.de.coisas.aspx]

terça-feira, 28 de agosto de 2012

SEMÂNTICA ELECTRÓNICA (Vitorino Nemésio)


           
        

SEMÂNTICA ELECTRÓNICA     ¯
          
Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado
Ordeno ao ordenhador que me ordenhe o ordenhado
Ordinalmente
Ordenadamente
Ordeiramente.
Mas o desordeiro
Quebrou o ordenador
E eu já não dou ordens
Coordenadas
Seja a quem for.
Então resolvo tomar ordens
Menores, maiores.
E sou ordenado,
Enfim ‑ o ordenado
Que tentei ordenhar ao ordenador quebrado.
‑ Mas ‑ diz-me a ordenança ‑
Você não pode ordenhar uma máquina:
Uma máquina é que pode ordenhar uma vaca.
De mais a mais, você agora é padre,
E fica mal a um padre ordenhar, mesmo uma ovelha.
Velhaca, mesmo uma ovelha velha,
Quanto mais uma vaca!
Pois uma máquina é vicária (você é vigário?):
Vaca (em vacância) à vaca.
São ordens...
Eu então, ordinalmente ordeiro, ordenado, ordenhado,
Às ordens da ordenança em ordem unida e dispersa
(Para acabar a conversa
Como aprendi na Infantaria),
Ordenhado chorei meu triste fado.
Mas tristeza ordenhada é nata de alegria:
E chorei leite condensado,
Leite em pó, leite céptico asséptico,
Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético!
        
Vitorino Nemésio, Limite de Idade (1972)
        


       
TEXTOS DE APOIO
        
Na última fase da produção poética de Vitorino Nemésio, o autor reserva-nos uma surpresa: Limite de Idade, 1972. Com efeito, o poeta que tantas vezes pensou a morte, o pecado, a culpa e o possível perdão, transpondo para a linguagem artística as inquietações metafísicas e a reflexão dos filósofos, apresenta-nos, por volta de 1971, prestes a atingir o "limite de idade" estipulado para os funcionários públicos, uma série de poemas percorridos pela meditação acerca da Ciência do nosso tempo. [...]
Limite de Idade é um título que se deve obviamente a um momento da carreira do autor, quiçá o momento mais triste da existência: a passagem à situação de reformado. Doeu a Vitorino Nemésio essa mudança. Sentiu-se como que usado, abusado e remetido à prateleira dos objectos velhos. Contra esse facto protestou. «O homem exerce enquanto vive». Mas a imagem do fim era-lhe inarredável.
        
José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Lisboa, Editora Arcádia, 1978)
        
        
[As várias associações fonéticas, morfo lógicas e estilísticas das palavras] levam à produção de sentidos implícitos, mais velados uns que outros, de forma a proporcionarem ao texto tom parodístico que nele é dominante. Com e feito, através de uma ironia risonha, que não deixa, por isso, de ser condenatória, desenha-se uma imbrincada rede de intertextos, dos quais ressalta como mais premente da situação de aposentado do sujeito de enunciação.
        
Maria Madalena Gonçalves, Poesias de Vitorino Nemésio
        

VITORINO NEMESIO
        
O poema seguinte intitula-se «Semântica Electrónica», representando a tentativa de encontrar sentido em circuitos comutativos que galvanizam o caminho crítico do pensamento mecanizado. A «Semântica Electrónica» é: jogo aleatório e lírico, com recorrências de incerteza na estrutura do pensamento mecanizado, às voltas com desvios, perturbações e ruídos. O que o poeta captou foi transformado na mensagem em que o coeficiente entrópico de incerteza é eliminado através dos processos reiterativos de redundância.
Trata-se de poema cibernético, cuja ordem se baseia no ruído como se verifica nos sistemas auto-organizadores. O poema em debate integra-se, sem remanescentes, no contexto formalístico da Informática, como tentativa realizada de introduzir nos versos o principio comunicativo de ordem a partir da desordem produzida pelo ruído. Os sistemas auto-organizadores, estudados por Von Foerster («On Self – Organizing Systems and Their Envitonments» ‑ em Self-Oganizing Systems, Edictors: Yovitz and Cambron, Pergamon, 1960), reduzidos a poemas aleatórios, transformariam a desordem em nível de prosa na ordem em nível de poesia. É inquestionável que o poema satisfaz condições de sistema auto-organizador: os desvios da ordem prosaica funcionam, na experiência poética, como expressão de tendências, impulsos, irrupções do inconsciente na actividade mental consciente. As irrupções, com carga érgica até o ponto de saturação, deflagram a carga das imagens que expulsa do texto das mensagens poéticas o que é racionalmente inteligível. A inteligibilidade racional do poema, através de mensagens sem ruídos ou desvios, elimina de seu contexto toda força criativa, proveniente da desordem.
Existe desordem fecunda e seminal em «Semântica Electrónica», imantada no seu contexto pelas estruturai redundantes que amplificam a sua forma, intensificando-a até quase o ponto de ruptura interna:
Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado
Ordeno ao ordenhador que me ordenhe o ordenhado
Ordinalmente
Ordenadamente
Ordeiramente.
      
E nesta ordenação, semanticamente desordenada, surgem os ruídos que suscitam a ordem no caos e na entropia. A estratégia de decisão nemesiana extrai a ordem do caos, compelindo a Caixa Negra do poema a transformar as suas trevas em pura luminosidade.
As decisões do poeta incidem sobre o paralelismo isomórfico entre ordenador eordenhador, entre ordene e ordenhe, entre ordenado e ordenhado ‑ tudo isso sob a égide da ordem. Nos versos finais do poema, a temática da ordenação e da ordenha cristaliza·se em
Mas tristeza ordenhada é nata de alegria:
E chorei leite condensado,
Leite em pó, leite céptico asséptico,
Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético!
        
Nestes últimos versos, tristeza ordenhada ‑ nata de alegria ‑ leite condensado ‑ Leite em pó, leite céptico asséptico, ‑ milagre ordinal e mundo cibernético congregam-se para enfatizar a redundância do pensamento poético-electrónico, na desordem ordenadora dos ruídos, com ressonância plástico-verbal polivalente. Em «Padre-Nosso Nuclear», entretanto, a expansão da forma impregna-se de intensidade plástico-descritiva: o verso final exacerba a expressividade temática do poema, amplificando-a:
        
PADRE-NOSSO NUCLEAR
                                  
O Senhor teve pena do seu servo
E ele rezou, agradeceu
Com um rosário de electrões muito bonitos nos seus círculos,
Ave-Marias em eclipse:
Padre nosso que estais nos céus
E nos deste o escudo do ozone
E o fósforo nas ondas domar
E em nós a água e o carbone

O Senhor teve pena do seu servo
E guiou a mão de Becquerel
E pôs um raminho de polónio
Ao peito de Madame Curie,
Mas veio o Diabo e queimou tudo
Num cogumelo venenoso
E imitou o chumbo no plutónio
Em honra de Plutão, já se vê…
Cobrem-se todos com a mesma manta,
O Diabo atómico pinta a manta.

Padre nosso que estais nos céus,
Diz o servo de Deus molecular,
Seja feira a vossa vontade
No computador e no radar,
Na ribose entre as proteínas,
No café sem açúcar da manhã

Sem planta nem margarinas
Quando os pobres se erguem da enxerga
Para a serapilheira dos sacos
Dizendo à vida: Rai’s te parto!
Mas Deus perdoa a quem tem o ozone
E o bem-aventurado de Franklin
Ousado no tecto dos ricos
Como a cegonha nas almearas.
Qual raio! O quê! Se esta manhã
Os Carregadores de Pernambuco
Têm uma partida a despachar,
E quem é que há-de alombar
Se um raio mesmo os fulminar?

Padre nosso que estais nos céus…
O meu rosário é tão bonito
Com os seus bugalhos de França
E a Ave-Maria da Polónia,
Rezado nos encontros Solvay:
Pai Nosso, diz Niels em Copenhagen
Para dizer Amen em Cavendish,
Santa Maria da Polónia
Já Notre Dame no Pasteur:
Tudo terras cristãs como Portugal, oh douler!
      
"«Limite de Idade» : a imagética" / Euryalo Cannabrava. 
In: Revista Colóquio/Letras. Ensaio, n.º 24, Mar. 1975, p. 41-44.
     
    
                        
LEITURA ORIENTADA DO POEMA “SEMÂNTICA ELECTRÓNICA”
        
1. O texto constrói-se com uma profusão de ideias, de imagens, e os campos de sentidos deslocam-se e variam a cada passo (domínio da pecuária, religioso, militar, científico…).
Atente nos diversos sentidos que servem de base ao jogo de associações:
ordem: sucessão, seriação cronológica ou numérica; imposição; sacramento.
ordenança: mandado, lei; soldado às ordens de um oficial.
ordenador: calculadora, cérebro electrónico (computador, máquina); aquele que ordena.
ordenhar: mungir, tirar leite.
ordenado: salário; aquele que executa ordens; organizado; numerado; feito padre.
vaca; vaca-leiteira: fonte de proventos; à vaca: à mama.
vacância: vagatura, lazer.

1.1. Agrupe as palavras que, no poema, se associam em termos semânticos.

1.2. Faça o levantamento dos vocábulos que apenas se associam por sonoridade.

2. Identifique o estado de espírito do sujeito poético nos versos 6 a 10.

3. De que forma o texto de José Martins Garcia se aplica ao conteúdo do poema?

4. Justifique o título do poema.
         
Ser em Português 12, coord. A. Veríssimo, Porto, Areal Editores, 1999.
       
       

SUGESTÕES DE LEITURA
      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/28/semantica.eletronica.aspx]

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

EU, COMOVIDO A OESTE, poema 30 (Vitorino Nemésio)

          





        
POEMA 30
     
Na ave que passou
Recolhi o quê?
Deus a levou.
Minha saudade, não:
Essa
Traz de longe e de anos
Uma palha,
Sinal de triste e de sujo
Que ainda uma lágrima valha,
Lá onde a alma começa.
Assim os cães que muito amam
Voltam a casa do dono.
Que perdidos!
O seu amor vagabundo
Os enrosca naquele sono
Cheio do cabo do mundo.
Triste, me sinto ir
Entre a ave e a saudade,
Sem saber preferir.
Tudo largo de mão!
Creio até que perdi a minha idade
E o instinto e silêncio do meu cão.
    

Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste (1940)
          
         



LINHAS DE LEITURA
      
Considere as seguintes linhas de leitura do poema:

• a ave que passou ‑ o tempo fugaz;

• a saudade que ficou ‑ tristeza e mancha;

• o cão ‑ motivo doméstico da fidelidade do dono (à casa de onde partiu);

• entre a partida e o regresso do filho pródigo ‑ o dilema, o nada.

        
Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999.

       
       

SUGESTÕES DE LEITURA
     

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/27/poema30.aspx]

domingo, 26 de agosto de 2012

EU, COMOVIDO A OESTE, poema 18 (Vitorino Nemésio)






     
POEMA 18
    
Sombra, leva mais longe a tua linha,
Que a tarde vai-se e levanta
A sua roupa de horas,
‑ Tudo o que a tarde tinha.

Quando a água do tanque é mais profunda,
Olhar ‑ e ser mais velho!
Como num mar, no tempo entramos;
Ele é que nos inunda
A casa até ao espelho.

Já tudo retira as tendas
Para outra água e verde;
Os camelos vão sem unhas;
Só diante de nós o que se perde,
Alma, já não é vida.

Tu, nem a morte supunhas.
            

Vitorino Nemésio, Eu, Comovido a Oeste (1940)
          



         
LINHAS DE LEITURA
      
Procure, no poema, linhas de significado, considerando:

• o apelo à sombra, o apelo à distância;

• a água do tanque da infância tornada espelho da velhice;

• a caminhada, os signos da errância: «tendas, camelos»;

• o tempo: o sentimento de perda;

• o tempo: a morte.

        
Plural 12, E. Costa, V. Baptista, A. Gomes, Lisboa Editora, 1999.


       
       
SUGESTÕES DE LEITURA
 

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/08/26/poema18.aspx]