terça-feira, 2 de outubro de 2012

VOZ DO OUTONO (Antero de Quental)


ANTERO DE QUENTAL

                
VOZ DO OUTONO

Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
‑ "Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima solidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel devesa,
Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da Ilusão!

Mais valera à tua alma visionária
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba vária,

(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
Com ódio e raiva e dor... que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste!" ‑
                

Antero de Quental
           
           
LINHAS DE LEITURA
           
Elabore um comentário ao texto, de acordo com eis seguintes tópicos:
- assunto;
- tema;
- conflito interior manifestado pelo eu lírico;
- principais recursos expressivos e sua pertinência.
      
EXPLICITAÇÃO DE CENÁRIOS DE RESPOSTA
      
Assunto:
- O sujeito poético faz balanço da sua vida, “falando” para si próprio;
- sente-se desiludido e angustiado: mais valia nunca ter sonhado com a mudança de mentalidades, pois esse sonho nunca se concretizou e a mudança falhou
          
Tema: angústia existencial.
           
Conflito interior manifestado pelo eu lírico:
- Conflito interior, de cariz irónico, percebe-se através das duas comparações:
·         mais valia ter sido alguém sem ideias do que alguém que sonhou inocentemente e agora se sente defraudado (1ª estrofe, vv. 3 e 4, e 2ª estrofe);
·         mais valia ter vivido só a sua vida a ter sonhado uma vida melhor para todos e não ter concretizado esse sonho (3ª e 4ª estrofes).
- O sujeito poético dirige-se a si próprio (“meu cansado coração”), desiludido e cansado, para “ouvir" o que lhe diz o fim da vida / a preparação para a nova vida (“Natureza”, “Outono”):
·         devia ter sido alguém sem ambições, que não desejasse uma sociedade perfeita (“Fada da Beleza”), que não acreditasse na revolução de mentalidades e social ('Ilusão");
·         devia ter ficado com os seus ideais da revolução (“alma visionária”) só para si; mais valia ter vivido com todos os seus ideais só para si, nem que para isso tivesse de sentir “ódio e raiva e dor”, por não os ter posto em prática;
·         é que, ao tentar revolucionar a sociedade, o sujeito poético sentiu o mesmo (“ódio e raiva e dor”);
·         a diferença reside no facto de, neste último caso, ele se ter exposto à sociedade; se tivesse guardado só para si essas ideias, não teria passado essa vergonha “coletiva”.
- O sujeito poético concluiu, amargamente, que deveria ter sido mais um igual a tantos que nunca sonharam com nada, e que, por isso, jamais irão viver o conflito que ele está a viver.
           
Recursos expressivos:
- Campo lexical de sonho (“embalar-te”, “Fada de Beleza", “berço da Ilusão”, “alma visionária”; “flor”, “sonhos ideais”);
- anáfora (“Mais te valera…”), que introduz a comparação;
- adjetivos (caracterizam, pela negativa, o mundo real em que o sujeito poético vive);
- apóstrofe (“meu coração cansado”);
- metáfora (“Fada de Beleza”, “berço da Ilusão”);
- frases exclamativas (as das comparações) ‑ traduzem o “arrependimento” irónico pela escolha do passado, a angústia vivida no presente.
                 
Departamento de Línguas Românicas da Escola B 3 / Secundária de Ribeira Grande, 2000.
             
        
        
SUGESTÕES DE LEITURA
        
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/10/02/voz.do.outono.aspx]

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

MÃE (Antero de Quental)


Leontina d'Aguiar, 2014

Mãe ‑ que adormente este viver dorido.
E me vele esta noite de tal frio,
E com as mãos piedosas até o fio
Do meu pobre existir, meio partido...

Que me leve consigo, adormecido,
Ao passar pelo sítio mais sombrio...
Me banhe e lave a alma lá no rio
Da clara luz do seu olhar querido...

Eu dava o meu orgulho de homem – dava
Minha estéril ciência, sem receio,
E em débil criancinha me tornava,

Descuidada, feliz, dócil também,
Se eu pudesse dormir sobre o teu seio,
Se tu fosses, querida, a minha mãe!
              
Antero de Quental


           
LINHAS DE LEITURA
           
Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:
- caracterização da existência do eu poético;
- desejo expresso pelo eu-lírico, atendendo ao valor semântico e à pontuação;
- tom confessional e autocrítica da expressão «minha estéril ciência»;
- destinatário do poema;
- relação do texto com a evolução literária do autor.
           
           
COMENTÁRIO DE TEXTO (PROPOSTA DE CORREÇÃO)
           
O poema apresentado, da autoria de Antero de Quental, intelectual cuja atuação marcou uma viragem na literatura portuguesa, a partir da célebre Questão Coimbrã, de que foi líder, traduz a angústia do poeta e a necessidade de se sentir protegido, para dela se poder afastar.
Com efeito, neste soneto, o eu-poético mostra-se dececionado com a vidacom a sua existência, ao ponto de desejar ser levado pela "mãe", acompanhá-Ia no sono eterno, para poder voltar viver em paz, acarinhado por ela e desprezando a sabedoria que adquiriu enquanto adulto. Manifesta o desejo de voltar a ser criança para ser feliz, porque só assim seria inconsciente e poderia voltar a dormir em paz.
O poema constitui um todo coeso, porque nele se reflete o desejo de o sujeito poético alcançar a tranquilidade nos braços daquela que identifica como mãe e que, neste sentido, o podia acarinhar e proteger.
Desde o inicio se deteta um tom dorido e pessimista e a aspiração ardente de largar tudo o que a vida terrena lhe oferecera, para atingir a paz que a sua alma tanto ansiava. Por isso, os vocábulos utilizados denotam um valor negativo, como no caso de "viver dorido", "noite de tal frio", "pobre existir", “sítio mais sombrio", reforçado pelas frases reticentes, a traduzir um estado emotivo de deceção, característico de alguém que não consegue traduzira turbilhão de emoções que atormentam o seu espírito. Aliás, este poema adquire um tom plangente que reflete de forma surpreendente o eu-lírico.
É graças a esta projeção do íntimo do sujeito lírico que o poema adquire um tom confessional, traduzindo uma espécie de lamento por ter levado uma vida que o conduziu ao desespero. Daí que a autocrítica se evidencie particularmente quando fala da sua "estéril ciência", ou seja, a sua sabedoria, os seus conhecimentos, que não produziram qualquer efeito positivo, muito pelo contrário, o abalaram-no tão fortemente ao ponto de o levarem, agora, a procurar a morte, sob a proteção da "mãe", de forma a dar descanso a um espírito que viveu na ilusão.
O estado de espírito conturbado é ainda percetível na escolha do destinatário. Começa por apelar à "mãe"; dirige todos os apelos a este ser protetor; mas, porque se sente confuso, acaba por identificá-la com a mulher amada, talvez porque fosse esta a estar presente, a escutá-lo. Parece, pois, que a figura morta da mãe encarnou na pessoaviva da amada, facto que revela uma certa confusão mental, característica do momento em que o poeta procura a figura materna para consolo e minimização dos seus problemas.
Esta confusão involuntária entre a mãe e a amada explica, de certa forma, a impossibilidade de concretizar o desejo emitido. É que, apesar do amor que uma mulher possa dar a um homem, este nunca será igual ao amor de mãe. Só ela poderia adoçar o seu sofrimento e, por isso, ele emprega as orações condicionais e o pretérito imperfeito do conjuntivo, modo este que traduz a noção hipotética, a verbalização do desejo, ao contrário do modo indicativo que se reporta a ações concretas.
Tendo em conta a evolução ideológica de Antero de Quental, é possível detetar-se, embora de forma incompleta, a trajetória do poeta: o período da ciência, do orgulho de ser homem, quando fora combativo e lutara por uma transformação social, orientado pela verdaderazão, justiça, liberdade, até ao momento do desalento, do pessimismo, da consciência de que o seu lutar fora inútil e, por isso, apela ao não-ser, aspira ao sono e à morte, para, enfim, alcançar a paz e a tranquilidade.
              
Dossier Exame ‑ Português A, 12º ano, 
Maria José Peixoto, Célia Fonseca, Edições ASA, 2003
ISBN: 972-41-3415-6
              
        
        
SUGESTÕES DE LEITURA
        
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/10/01/mae.aspx]

domingo, 30 de setembro de 2012

CHOVAM LÍRIOS E ROSAS NO TEU COLO (Antero de Quental)

  
Marc Chagall, La Marrié, 1950. Gouache pastel.
            


              
ABNEGAÇÃO

Chovam lírios e rosas no teu colo!
Chovam hinos de glória na tua alma!
Hinos de glória e adoração e calma,
Meu amor, minha pomba e meu consolo!

Dê-te estrelas o céu, flores o solo,
Cantos e aroma o ar e sombra a palma,
E quando surge a lua e o mar se acalma,
Sonhos sem fim seu preguiçoso rolo!
E nem sequer te lembres de que eu choro…
Esquece até, esquece, que te adoro…
E ao passares por mim, sem que me olhes,

Possam das minhas lágrimas cruéis
Nascer sob os teus pés flores fiéis,
Que pises distraída ou rindo esfolhes
Antero de Quental
      
      
COMENTÁRIO DE TEXTO
      
"Abnegação" é um soneto de Antero de Quental, poeta dos finais do século XIX, cuja importância para a literatura e para a transformação da mentalidade portuguesa é inegável, visto ser considerado o mentor de uma geração ‑ a de 70 ‑ que protagonizou dois factos sociais importantes no fim desse século: a "Questão Coimbrã", em 1865, e as "Conferências Democráticas do Casino", em 1871. Ligados a esses factos sociais, literários e políticos está, sem dúvida, a necessidade de revigorar a literatura e o pensamento portugueses que, na perspetiva dos autores da "geração de 70", ainda estavam atrasados em relação à Europa. Revolucionário, portanto, nas ideias e nos princípios estéticos, Antero não deixa, contudo, de se mostrar ainda um romântico, que busca o Ideal, a perfeição, em relação ao mundo, em relação a ele próprio, em relação ao amor.
Aliás, o tema do amor em Antero, linha em que se insere a composição em análise, um soneto construído segundo o modelo clássico, de versos decassilábicos, com um esquema rimático ABBA ABBA CCD EED, merece um tratamento especial, na medida em que, ainda imbuído pelos ideais românticos, é de todo afastada a linha sensual que caracterizam, por exemplo, alguns poemas de Garrett. O amor em Antero serve, antes, o seu idealismo platónico; a mulher amada é, antes de mais, uma "visão", uma "miragem", sem referente, sem formas concretas, logo, uma construção mental, idealizada pelo sujeito poético.
É neste contexto temático e poético que "Abnegação" se desenvolve em duas grandes partes – as duas quadras, em que o poeta enuncia o desejo de criar um ambiente idealizado para o ser amado (expresso pelas formas verbais do conjuntivo com valor de desiderato, ora reiteradas anaforicamente ‑ "Chovam"‑; ora isoladas no início da estrofe e da frase- "Dê-te"); os dois tercetos, onde se enuncia a "abnegação" do sujeito poético para com o ser amado, numa espécie de renúncia de si próprio, de apagamento do eu ‑ do seu sofrimento, da sua angústia, da sua existência. Significativo é, aliás, o "pedido" do sujeito poético para que o ser amado o esqueça, ideia repetida ao longo do primeiro terceto de formas diversas ‑ "[...] nem sequer te lembres de que eu choro / Esquece até esquece que eu te adoro...", que confirma a total renúncia, por um lado, e, por outro, a doação plena, inclusive do próprio sofrimento, ao outro ‑ das "lágrimas cruéis", porque manifestações exteriores do sofrimento do poeta, fará a amada surgir "flores fiéis", metáfora da permanência e fidelidade amorosas.
É de forma abnegada e submissa que o sujeito poético se dirige, logo no início, à mulher amada, o que se verifica na enumeração utilizada ‑ "Meu amor, minha pomba e meu consolo" ‑ em que, desde logo, se enuncia o carácter platónico desta relação. Referida primeiramente como relação sentimental ("meu amor"), logo o poeta utiliza como elemento de evocação do ser amado um símbolo de pureza, fragilidade e espiritualidade ("pomba"), e é dentro da espiritualidade que a relação se manterá, na medida em que, em síntese, independentemente das ações que pratique ou do seu interesse pelas dádivas do poeta ‑ o seu "choro", as suas "lágrimas cruéis", a sua presença ("[...] ao passar por mim sem que me olhes") ‑ ele se posicionará sempre, perante a mulher amada, numa atitude de adoração, revelada quer pelo emprego do verbo adorar (“[…] que te adoro"), quer pela superiorização da mulher, pela sua colocação num ambiente ideal, até mesmo divino, preenchido por "lírios e rosas", "hinos de glória e adoração e calma", de "cantos e aroma [...] e sombra [...]", isto é, num ambiente onde se manifestam os símbolos do amor ideal (o lírio e a rosa), mas também elementos que remetem para a harmonia e a suavidade.
Esta idealização é reforçada quer pela utilização, na primeira quadra, de frases curtas e exclamativas, quer pelo efeito de arrastamento que é conseguido na segunda quadra, onde, subordinado a uma única forma verbal ("Dê-te"), se enumera um conjunto de elementos, por vezes ligados pelo polissíndeto ("Cantos e aroma o ar e sombra a palma, E quando surge a Lua e o mar se acalma") que culminam numa imagem de "[ um ] preguiçoso rolo de [sonhos]", que remetem para o desejo do poeta de criação de um ambiente ideal que rodeie a mulher. Por outro lado, nota-se o efeito de suavidade pela utilização das reticências que marcam os dois primeiros versos do primeiro terceto, nessa afirmação de que mesmo perante a distração do outro ("E ao passares por mim, sem que me olhes,"), continuará o sujeito poético numa atitude de desprendimento.
Perante isto, poder-se-á afirmar que para Antero o amor é um sentimento que se manifesta na plena doação ao outro, de sujeição e consolo nesta sujeição, mesmo na ausência de resposta, porque é um sentimento em que se privilegia o bem estar do outro em detrimento da satisfação pessoal. E, neste sentido, Antero, o poeta que via na poesia a "voz da revolução", é ainda um platónico e, em certa medida, um romântico idealista.
           
Departamento de Línguas Românicas da Escola Secundária Domingos Rebelo, Ponta Delgada, 1998 [?]
       
        
        
SUGESTÕES DE LEITURA
        
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


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sábado, 29 de setembro de 2012

NOCTURNO (Antero de Quental)


       
       
NOCTURNO

Espírito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a lua,
Filho esquivo1 da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento...

Como um canto longínquo - triste e lento -
Que voga2 e subtilmente se insinua,
Sobre o meu coração, que tumultua3,
Tu vertes pouco a pouco o esquecimento...

A ti confio o sonho em que me leva
Um instinto de luz, rompendo a treva,
Buscando, entre visões, o etemo Bem.

E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de Ideal, que me consome,
Tu só, Génio da noite, e mais ninguém!
      
Antero de Quental
      
     
_______________
esquivo: fugidio.
2 voga: flutua.
que tumultua: que está em tumulto, que se inquieta.
      
      


      
            
COMENTÁRIO DE TEXTO
      
Elabore um comentário do poema que integre o tratamento dos seguintes tópicos:

- características atribuídas pelo sujeito poético ao «tu»;

- descrição do estado psicológico do «eu»;

- aspetos formais e recursos estilísticos relevantes (apresente no mínimo dois de cada);

- Importância do segundo terceto para a construção do sentido do texto.
      
     
     
EXPLICITAÇÃO DE CENÁRIOS DE RESPOSTA
      
Características atribuídas pelo sujeito poético ao "tu"

O "tu" é caracterizado pelo sujeito poético como uma entidade:
- incorpórea, etérea, fugidia e noturna, apresentando a configuração de uma entidade transcendente ("Espírito que passas", "Filho esquivo da noite", "Génio da noite" - vv. 1, 3 e 14);
- clarividente e compassiva, distinguindo-se pela capacidade excecional de compreensão do drama íntimo do sujeito de quem é confidente ("Tu só entendes bem", "A ti confio o sonho", "tu entendes o meu mal", "Tu só [...] e mais ninguém" - vv. 4, 9, 12 e 14);
- reconfortante e balsâmica, apaziguando o sujeito ao proporcionar-lhe o "esquecimento" do seu "tormento" interior ("Sobre o meu coração que tumultua,/ Tu vertes pouco a pouco o esquecimento" - vv. 7-8);
- …
    
  
Descrição do estado psicológico do "eu"
Debatendo-se com um profundo e doloroso conflito emocional, ciente do seu isolamento, o sujeito poético busca consolo na atmosfera tranquila da noite ("quando o vento/ Adormece no mar e surge a lua" - vv. 1-2). Atormentado, dirige-se à noite-confidente (o "Espírito" que passa, "Filho esquivo da noite"), a qual não só compreende a sua dor, como a apazigua, fazendo descer o "esquecimento" sobre o seu "coração" tumultuado. A serenidade daqui resultante vai-se instalando progressivamente ("pouco a pouco") e o "eu" confia à entidade que interpela (o "Génio da noite") a natureza do seu drama, isto é, o "sonho" de romper a "treva", movido por "Um instinto de luz", na busca ("entre visões") do "eterno Bem".
      

Aspetos formais e recursos estilísticos relevantes

De entre os recursos estilísticos presentes neste poema, salientam-se os seguintes:
- a apóstrofe ("Espírito que passas", "Filho esquivo da noite", "Tu só", "Tu só, Génio da noite" - vv. 1, 3, 4 e 14), evidenciando a interpelação do sujeito poético ao "Espírito" da noite, reiteradamente feita no poema;
- a personificação ("quando o vento/ Adormece" - vv. 1-2), conferindo um valor humano ao "vento";
- a comparação ("Como um canto longínquo" - v. 5), sublinhando a dimensão melódica encantatória da noite, que propicia o "esquecimento";
- a anáfora ("Tu") entre os versos 4, 8 e 14, marcando claramente o valor singular do "Espírito", do "Génio da noite", enquanto confidente;
- a antítese ("eterno Bem" vs "meu mal"; "luz" vs "treva"), revelando o carácter paradoxal da busca do "eu", a qual, visando atingir o "Bem", se constitui como o "mal" que atormenta intimamente o sujeito poético;
- o vocabulário associado à noite ("lua", "noite", "treva", "Génio da noite"), reiterando e amplificando o sentido anunciado pelo título do poema: "Nocturno" (temporal, mas também psicológico);
- as reticências, instalando a noção de suspensão do discurso e de prolongamento interior do pensamento;
- …
      
Em relação aos aspetos formais, temos, nomeadamente:
- composição poética: um soneto (duas quadras e dois tercetos, sendo o último destes a chave do poema);
- verso decassílabo;
- esquema rimático: ABBA/ ABBA/ CCD/ EED/; rima interpolada e emparelhada;
- …

      
Importância do segundo terceto para a construção do sentido do texto

O segundo terceto é a chave do soneto, reiterando o papel tutelar da noite-confidente (já apontado no final da primeira quadra), mas, sobretudo, clarificando a natureza do "tormento" do "eu".
Iniciada pela coordenativa "E", esta estrofe marca a continuidade em relação ao discurso anterior, tendo como objetivo reforçar a importância do "tu" enquanto única instância capaz de compreender o "mal sem nome" que domina o sujeito: "Tu só [...] e mais ninguém". Este facto é visível tanto no recurso, por duas vezes, ao pronome 'tu', como no modo de nomeação dessa entidade por "Génio da noite".
Além disso, reitera-se o objeto da busca do "eu", isto é, o "ideal", o anseio do sumamente perfeito, "o eterno Bem", que provoca ao sujeito um sofrimento psicológico e físico, que é associado à doença ("febre", "que me consome").
      
Exame Nacional do Ensino Secundário nº 138. Prova Escrita de Português A, 12º Ano 
(plano curricular correspondente ao Dec.-Lei nº 286/89, de 29 de Agosto)
Curso Geral – Agrupamento 4. 2006, 1ª fase
      
        
        
SUGESTÕES DE LEITURA
        
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>

 
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