terça-feira, 9 de outubro de 2012

AD AMICOS (Antero de Quental)

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AD AMICOS1
     
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Renasço, amigos, vivo! Há pouco ainda
Disse ao viver: 
«Afunda-te no nada!»

E já, bem vedes, surjo à luz dourada,
‑ No lábio o rir, no peito esp'rança infinda!

Ah, flor da vida! flor viçosa e linda!
Envolto na mortalha regelada
Do só pensar ‑ perdão! ‑ foste olvidada...
Flor do sentir e crer e amar... bem vinda!

A vida! como a sinto, ardente, imensa!
Não única! tomando a imensidade!
Livre! perante Deus surgindo forte!

Que amor! que luz! que pira vasta, intensa!
Plenitude! harmonia! realidade!
Mas melhor que tudo isto é sempre a morte!
         
(1859 a 1863)
Antero de Quental, Raios de Extinta Luz
           
_________________
Expressão latina: «Aos amigos».
Expressão latina: «Para (vossa) consolação».
        
           
              
1. Demonstre, com expressões do poema, que quase todo ele (13 versos) constitui um cântico de exaltação da vida.
2. O último verso do poema poderá considerar-se uma conclusão lógica do soneto? Justifique a sua resposta.
3. Delimite as duas partes em que o poema se divide e confirme que elas se relacionam antiteticamente.
       
António Afonso Borregana, Antero de Quental. O Texto Em Análise - Ensino Secundário, Lisboa, Texto Editora, 1998
          
        
                        Geração de 70 
          
            
AD AMICOS

Em vão lutamos. Como névoa baça,

A incerteza das coisas nos envolve.
Nossa alma, em quanto cria, em quanto volve,
Nas suas próprias redes se embaraça.

O pensamento, que mil planos traça,
É vapor que se esvai e se dissolve;
E a vontade ambiciosa, que resolve,
Como onda entre rochedos se espedaça.

Filhos do Amor, nossa alma é como um hino
À luz, à liberdade, ao bem fecundo,
Prece e clamor dum pressentir divino;

Mas num deserto só, árido e fundo,
Ecoam nossas vozes, que o destino
Paira mudo e impassível sobre o Mundo.
        
Antero de Quental, Sonetos Completos
           
                 
1. Indique de que forma os sonetos transcritos confirmam (ou não) esta afirmação de Vitorino Nemésio: «[…] a dificuldade ao abeirarmo-nos deste homem genial [Antero]reside na contradição aparente do seu espírito, tão depressa elevado a  uma esfera de doce conformidade como abatido a um abismo enegrecido de desesperos».
2. Justifique o emprego da conjunção adversativa no verso 12.
3. Saliente a expressividade da comparação e da metáfora.
           
Ser em Português 12ºA (coord. A. Veríssimo, Areal Ed.,1999).
           
        
        
PERFIL BIOGRÁFICO, CULTURAL E LITERÁRIO
           
O poeta e filósofo Antero Tarquínio de Quental, português nascido em Ponta Delgada, capital dos Açores, na ilha de São Miguel a 18 de abril de 1842, revolucionou o contexto literário e político da sociedade coeva, plena de um Romantismo decadente.
Em 1852 segue para Lisboa, junto à mãe Ana Guilhermina da Maia para estudar no colégio Pórtico, na época dirigido pelo poeta António Feliciano de Castilho.
Quatro anos depois encerra os estudos preparatórios para entrar na Universidade de Coimbra, e escreve seus primeiros versos (mais tarde publicados nas revistas literárias: Prelúdios LiteráriosO Académico O Fósforo). Cursando Direito, em 1858 participa da Sociedade do Raio, grupo secreto que trará os nomes de: José e Alberto Sampaio, António Azevedo Castelo Branco, João de Sousa Avelino, entre outros também estudantes ávidos por mudanças naquele meio académico.
Além de escrever folhetos e textos para os jornais da Universidade, tem, em 1861, publicado os seus primeiros Sonetos, prefaciados por João de Deus, poeta e amigo do jovem (a quem dedicou o artigo ―”A propósito de um poeta”).
A partir de 1865 cresce a sua produção e atuação escrita e política na sociedade portuguesa, em que destacamos: o opúsculo Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX contra a chamada opinião liberal, louvando a figura do Papa antiliberal e antiprogressista; a 1.ª edição das Odes Modernas (dedicada ao dileto amigo Germano Meireles); a divulgação da carta destinada a Castilho, intitulada Bom Senso e Bom Gosto, polemizando e gerando a Questão Coimbrã (revolucionando o meio intelectual e literário); e o folheto A Dignidade das Letras e As Literaturas Oficiais. Nesse mesmo ano o poeta destrói algumas poesias sentimentais.
No ano seguinte viaja a Paris com dois intuitos: oferecer um exemplar das Odes, para Michelet e trabalhar como tipógrafo, passando por lá cerca de cinco meses, e voltando desiludido, já com sintomas de um mal que o acompanharia por toda a vida: os problemas físicos que o levariam a quadros de depressão e angústia.
Em 1868, já na cidade de Lisboa, após ter passado um ano em São Miguel, participa do Cenáculo, grupo que defendia as ideias de uma República Federal Ibérica, com as figuras históricas de Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, entre outros.
Passados os anos, em 1871 inaugura as Conferências do Cassino, logo proibidas pelo governo, por seu teor ‘subversivo‘, proferindo na conferência o texto ―As causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos séculos”.
E, para aliviar os males do corpo e os problemas familiares, dedica-se ao estudo das línguas, da literatura comparada e da filosofia, além de iniciar uma tradução do Fausto de Göethe.
No ano seguinte, publica as Primaveras Românticas — Versos dos vinte anos e o folheto político O que é a Internacional, de cunho socialista.
Seu pai Fernando de Quental falece no outro ano, justamente quando o poeta retornara à ilha natal.
Em 1875 sai a segunda edição das Odes (contendo treze novos poemas, substituindo alguns eliminados, que estavam na primeira edição), mas em contrapartida suas crises aumentam. O que, no ano posterior é agravada com o falecimento da mãe. Seguem os anos... dividindo as dores e tempestades psicológicas, com as visitas dos amigos, principalmente Oliveira Martins, companheiro sempre presente, inclusive evitando, em 1879, a primeira tentativa de suicídio do poeta, ao tirar de suas mãos o revólver com que tentara se matar.
Em 1881, retorna à Vila do Conde, desejando buscar ares melhores para viver, porém as alegrias são poucas, entre elas a publicação dos Sonetos, pela Biblioteca Renascença.
É no ano de 1885 que Antero inicia sua preciosa amizade epistolar, mais tarde pessoal, com a filóloga Carolina Michaëlis de Vasconcelos, basilar para a divulgação dos seus versos.
No ano seguinte surgem seus Sonetos Completos (com 109 sonetos, e cinco poemas em quadras, devidamente ‘salvos‘ por Martins, antes do poeta, em uma das suas crises, tentar rasgá-los).
Em 1890 acontece o Ultimato Britânico nas celeumas políticas e econômicas da Inglaterra com Portugal, e Antero é chamado para assumir a presidência da Liga Patriótica do Norte, mais um fracasso pessoal do país e do homem, fazendo-o voltar, definitivamente, para S. Miguel.
Em 1891, ano fatídico, em 11 de setembro suicida-se com dois tiros na boca, na ilha que o acolheu derradeiramente.
No seu tempo tornou-se a voz do novo pensamento de Portugal, bebendo nas fontes da filosofia alemã, de Hegel e Schopenhauer, e na francesa, de Michelet e Proudhon (seu autor preferido). Bem como no universo poético vindos da França, Alemanha e Inglaterra, construindo ideologicamente, em seu país, o Realismo, junto a Eça de Queiroz e outros companheiros. Antero também anunciou o Simbolismo em Portugal, que viria surgir em 1890, e preparou o surgimento do Modernismo de 1915, que traria em Fernando Pessoa o idealizador.
          
Neilton Limeira Florentino de Lima, Diálogo poético entre Antero de Quental e Augusto dos Anjos: a modernidade luso-brasileira (Dissertação de mestrado).  Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 2007, pp. 11-13
           
           
TEMÁTICA, ESTILO E LINGUAGEM DA POESIA DE ANTERO DE QUENTAL
  • Amor (retrato da mulher anjo como reflexo da "divina formosura", característica dos românticos, lirismo de êxtase);
  • Sonho (transfiguração do ambiente circundante, tendência para a evasão através do sonho);
  • Morte (presença da noite, debilidade espiritual, a dor de Ser, solidão, ceticismo);
  • Tédio (inquietações metafisicas, introversão);
  • Sentimento/Razão (um sentimento de contraste e consciência da limitação de todas as coisas, perspetiva filosófica da vida e do mundo, anseio de renovação moral e social);
  • Grandes ideais (Liberdade, Justiça, Amor, Bem, poesia de combate);
  • Religiosidade (busca de um Deus diferente);
  • Tom arrebatado e solene;
  • Grande expressividade semântica e morfológica (verbos, adjetivos, advérbios, conjunções adversativas e copulativas);
  • Linguagem clássica ("coorte"," verbo", etc.);
  • Expressividade sonora e rítmica (encavalgamento, rima monótona, aliteração, polissíndeto, anáfora);
  • Uso de determinados recursos estilísticos como forma de expressão dos seus estados de espírito (vocativo, reticências, interrogações);
  • Alegorias (Ideia, Razão, Noite, Morte, etc.);
  • Forma dialogada em alguns poemas.
           
Cecília Sucena e Dalila Chumbinho, Sebenta de Português: Antero de Quental – introdução ao estudo da obra, Estoril, Edição da papelaria Bonanza, [Edição: 2006]
        
A angústia existencial. Figurações do poeta. Diferentes configurações do Ideal.
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
          
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/10/09/ad.amicos.aspx]

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

HINO À RAZÃO (Antero de Quental)

Thomas Lerooy

          


       
     HINO À RAZÃO
     
     Razão, irmã do Amor e da Justiça,
     Mais uma vez escuta a minha prece,
     É a voz dum coração que te apetece,
     Duma alma livre, só a ti submissa.
     
     Por ti é que a poeira movediça
     De astros e sóis e mundos permanece;
     E é por ti que a virtude prevalece,
     E a flor do heroísmo medra e viça.
     
     Por ti, na arena trágica, as nações 
     Buscam a liberdade, entre clarões; 
     E os que olham o futuro e cismam, mudos,
     
     Por ti, podem sofrer e não se abatem, 
     Mãe de filhos robustos, que combatem 
     Tendo o teu nome escrito em seus escudos!
          
(1874-1880)
Antero de Quental
      
          
TEXTOS DE APOIO / LINHAS DE LEITURA
        
Lutando furioso contra a desilusão, caindo esmagado pelo aniquilamento, Antero de Quental ensimesmou-se (para usar de uma feliz expressão espanhola) meteu-se dentro de si, a sós consigo, apelou para as energias do seu instinto de homem, e foi isso o que lhe inspirou o belo «Hino à Razão».
          
Oliveira Martins, «Prefácio» in Os sonetos completos de Anthero de Quental, Porto, Livraria Portuense, 1886
         
                       

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Thomas Lerooy
         
                      
                      
                       
Numa primeira leitura, poderá causar estranheza o facto de o poeta irmanar conceitos tão díspares como a Razão, o Amor e a Justiça. No· entanto, estes três substantivos abstratos não poderiam deixar de estar associados, uma vez que a Razão é sinónimo de fraternidade e solidariedade, o Amor significa fraternidade e a Justiça tem subjacente a igualdade. Ao conciliar a Razão e o Amor, conceitos à partida antagónicos, pois a Razão aparece aliada à reflexão, à inteligência, enquanto o Amor se identifica com sentimento e emoção, o poeta pretende chamar a atenção para o facto de que só será possível atingir o Bem, a Liberdade, a Virtude, em suma, a Justiça, se a Razão e o Amor caminharem lado a lado. Ainda na 1ª quadra, que constitui uma espécie de introdução, o eu lírico revela-se uma alma inteiramente livre, apesar de submeter-se aos ditames da Razão.
Ora, com explicar então esta antítese? Afigura-se-nos fácil, tendo em conta o que anteriormente foi dito, compreender o sentido desta aparente contradição, pois o poeta, embora seja um ser livre, para atingir o seu Ideal terá de se subjugar à Razão, a qual mostra o verdadeiro caminho a seguir. Esta é o suporte das lutas e da mudança, daí nas três estrofes seguintes, através da repetição anafórica "Por ti" e de sucessivas enumerações, o poeta reforçar toda a sua crença na Razão. É por ela que "...na arena trágica, as nações / Buscam a liberdade, entre clarões", é ela que dá incentivo aos revolucionários, aos combatentes ("filhos robustos"),que através da sua luta, sempre movidas pela Razão, fazem prevalecer a virtude e o heroísmo:
"E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça. "
A importância que o poeta atribui à Razão manifesta-se igualmente no uso constante de:
-        polissíndeto, na 2ª e 3ª estrofes;
-        verbos no imperativo ("escuta");
-        verbos no presente (''permanece'', "prevalece", "medra", " viça", "buscam" , etc.) que apontam a intemporalidade da mensagem transmitida;
-        metáforas (“… na arena trágica... ", "Mãe de filhos robustos, que combatem/Tendo o teu nome escrito em seus escudos!");
-        encavalgamento, associado à vírgula, que transmite a fluidez de pensamento do poeta ("E os que olham o futuro e cismam, mudos/ Por ti, podem sofrer e não se abatem");
-        o ponto de exclamação do último verso revela o estado emocional do sujeito poético, que, embora presente ao longo de todo o poema, se expressa mais nítida e entusiasticamente no final do soneto.
          
Cecília Sucena e Dalila Chumbinho, Sebenta de Português: Antero de Quental – introdução ao estudo da obra, Estoril, Edição da papelaria Bonanza, [Edição/reimpressão: 2006]
                                

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Thomas Lerooy
                       
                               
                       

O poeta considera a Razão «irmã do Amor e da Justiça», porque é a voz do sentimento («a voz do coração», v. 3; «duma alma», v. 4).
Procurando o sentido da vida e da dor, o poeta tenta unir a razão ao coração. Compara a razão a um a«mãe de filhos robustos», v. 13, o que contrasta com a voz do coração (v. 3) a que se submete. A antítese «livre»/«submissa» (v. 4) confirma a antinomia entre a razão de fundo ateísta e o amor e a prece de raiz católica. O poeta tenta resolver esta aparente oposição considerando que a submissão por amor se torna dignificante. Daí que «a virtude prevaleça / E a flor do heroísmo medra e viça» (vv. 7-8).
A anáfora «Por ti» remete para a luta travada pelo Homem, ao longo da História, em nome da razão. Esta luta é presente/passado e futuro (presente histórico). Pela Razão, ainda, permanece a harmonia no universo (vv. 5-6), por ela se mantém a virtude e se desenvolve o heroísmo (vv. 7-8), por ela as nações procuram encontrar a liberdade (vv. 9-10), por ela se sofre, se combate para que o futuro seja livre e melhor (vv. 11-14). A anáfora reforça a importância da Razão para o Homem se realizar no mundo e realizar o próprio mundo.
Só com a Razão se manifesta o Amor, se consegue a justiça e se atinge a liberdade, o último fim que ansiosamente busca «entre clarões» (v. 10). A atracção pela Liberdade que se apresenta como autodeterminação do se não invalida a liberdade humana condicionada. Por isso, afirma  que a prece «è a voz [] duma alma livre, só a ti submissa» (vv. 3-4). A «alma livre» é considerada pela Razão, mas é por esta mesma Razão que as nações buscam a Liberdade, como fim último.
Amor, Justiça, Liberdade são três valores que ressaltam deste soneto. Ao tornar a Razão irmã do Amor e da Justiça, o poeta revela-se preocupado em harmonizar conceitos.
Cabe à Razão levar o Homem a saber que só o Amor e a Justiça podem criar a harmonia e levar à Liberdade.
          
      
QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO
        
1. Poderá identificar a «Razão», cantada neste poema, com a «Ideia», exaltada no poema  Tese e Antítese I? Justifique baseando-se na mensagem dos poemas.
2. Que expressividade encontra na repetição de «por ti», em lugar de destaque?
3. Transcreva dois versos que sugiram que a Razão se identifica panteistamente com a Ideia Universal, uma espécie de alma do mundo que comanda a História.
4. Com base na repetição de «por ti», demonstre que a dimensão histórica enforma o sentido global do poema.
     
António Afonso Borregana, Antero de Quental, o texto em análise – ensino secundário, Lisboa, Texto Editora, 1998.
        

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Poderá também gostar de:
        

  Exposição oral sobre a análise do soneto "Hino à Razão", de Antero de Quental, disponível na Escola Virtual.

 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/10/08/hino.a.razao.aspx]

domingo, 7 de outubro de 2012

TESE E ANTÍTESE (Antero de Quental)

  
ANTERO DE QUENTAL, por Rui Rodrigues de Sousa

          
     TESE E ANTÍTESE
    
     I
    
     Já não sei o que vale a nova ideia,
     Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
     Torva no aspeto, à luz da barricada,
     Como bacante após lúbrica ceia!
     
     Sanguinolento o olhar se lhe incendeia…
     Respira fumo e fogo embriagada…
     A deusa de alma vasta e sossegada
     Ei-la presa das fúrias de Medeia!
     
     Um século irritado e truculento 
     Chama à epilepsia pensamento, 
     Verbo ao estampido de pelouro e obus...
     
     Mas a ideia é num mundo inalterável, 
     Num cristalino céu, que vive estável... 
     Tu, pensamento, não és fogo, és luz!
       
(entre 1865 e 1871)

     II
     
     Num céu intemerato e cristalino
     Pode habitar talvez um Deus distante,
     Vendo passar em sonho cambiante
     O Ser, como espetáculo divino.
     
     Mas o homem, na terra onde o destino
     O lançou, vive e agita-se incessante…
     Enche o ar da terra o seu pulmão possante...
     Cá da terra blasfema ou ergue um hino...
     
     A ideia encarna em peitos que palpitam:
     O seu pulsar são chamas que crepitam,
     Paixões ardentes como vivos sóis!
     
     Combatei pois na terra árida e bruta, 
     ‘Té que a revolva o remoinhar da luta, 
     ‘Té que a fecunde o sangue dos heróis!
          
(1870)
Antero de Quental [Livro Segundo]
            
           
TEXTOS DE APOIO / LINHAS DE LEITURA
         
Tese e Antítese – são sonetos de inspiração hegeliana no título e no 2º e 3º versos da 2ª quadra de Antítese, mas também está presente a sugestão de Proudhon  na luta do homem por um mundo melhor, embora, aqui, desvirtuada. Em Tese aponta para um socialismo pacífico, em Antítese para o revolucionário. Na verdade, a poesia é a voz da revolução.
O sentido contraditório do título justifica-se no comportamento errado do homem, quanto aos meios de que se serve para implantar a Ideia que, no seu aspeto sublime, não está de acordo com os desmandos que os homens praticam com um rótulo que falsificam. O homem luta, esbraveja, comete torpidades com a fúria de Medeia; mas a referida Ideia quer denodo, paixão, entusiasmo, mas não fúria; quer acordes de hino, não blasfémias de malditos. Em sonetos como estes estamos perante Antero apolíneo, olímpico.
          
Literatura Prática (sécs. XIX-XX) 11º Ano, Lilaz Carriço, Porto Ed., 1986 (4ª ed.), pp. 194-195.
          
*
          
Antero exprime, mais uma vez, a lição hegeliana, denunciada até na terminologia ‑Tese e Antítese ‑ e no tema fundamental: o Ser passa como espetáculo divino a um Deus distante. Mas, talvez contraditoriamente, exprime-se no segundo soneto o otimismo social, confiança na felicidade futura, num mundo novo: influência do pensamento utópico de Proudhon que defende a teoria do aperfeiçoamento autónomo e inevitável da sociedade. ‑Cf. Feliciano Ramos (Antero de Quental na Poesia Filosófica, Vila do Conde, 1936, pág. 67): «A crença robusta num sistema de «Ideias» de paz, de fraternidade e de justiça, e a confiança no seu triunfo progressivo e indiscutível, anima calorosamente o apostolado social de Proudhon e inspira o idealismo anteriano referente ao acabamento da opressão, da miséria e do crime.»
Repare-se que Antero designa por Ideia «as crenças metafisicas que aspiravam a influir decisivamente na marcha social». (Cf. Joaquim de Carvalho, ob. cit., pág. 26). ‑Atente-se ainda como, no primeiro soneto, Antero repele toda a imagem de violência, para reafirmar a sua adesão ao mundo inalterável da Ideia, identificado religiosamente ao cristalino Céu. Para António Sérgio (Antero de Quental, Sonetos, Lisboa [1967], pág. 63), é o seguinte o problema destes dois sonetos: «Competirá ao apóstolo o ser também político?» ‑ Para Sant'Anna Dionísio (Antero ‑ Algumas Notas sobre o seu Drama e a sua Cultura, Lisboa, 1934, pág. 174), «a intenção do segundo soneto (Antítese) é (...) mostrar que as lutas que no primeiro (Tese) pareciam torpes, não são, de facto, inúteis; que são mesmo necessárias, porque, embora o pensamento não seja fogo, mas luz, ele só pode realizar-se e inserir-se na "terra árida e bruta", encarnando no peito fremente dos homens».
vv. 2-8. Notar o processo retórico: a personificação da «nova ideia» por meio da comparação com figuras mitológicas.
vv. 9-11. Notar a oposição com os vs. 12-13.
vv. 13-14. Notar que o soneto conclui por uma afirmação que se opõe à dúvida inicial e que é intensificada pelo paralelismo fónico e semântico.
v. 15 e segs. Notar que o soneto se define pela oposição: «Num céu» / «na terra», ou «espetáculo divino» / «espetáculo humano».
vv. 21-28. O espetáculo humano caracteriza-se pela «luta», que é vida e morte gloriosa, não já do indivíduo mas de todos os que combatem pela Ideia.
          
[Note-se que] no Livro Segundo, inclui o poeta as poesias combativas, de sátira às instituições, de protesto contra a sociedade, e de previsão das catástrofes necessárias «ante o altar encoberto do Futuro».
          
Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária Comentada. Século XIX. Do Romantismo ao Realismo. Poesia, Lisboa, Editora Ulisseia, 1985, 2ª edição.
          
          
*
          
Ainda sobre a ideia de Tese e Antítese e sua combinação na respetiva Síntese, lembremos que nos últimos dos seus escritos em prosa Antero apresenta a doutrina que esboça como síntese de dois termos antitéticos: materialismo e idealismo. A filosofia da natureza dos naturalistas tem este período: "Matéria e espírito, determinismo e liberdade não são ideias contraditórias senão na aparência: de facto, são só duas esferas diferentes de compreensão, tese e antítese, cuja síntese é a Razão"; e termina pelo seguinte: "se a conclusão final das ciências tem de ser, como creio, o mecanismo universal a conclusão final do pensamento metafisico tem por seu lado de ser o universal idealismo. Mas já hoje se começa a compreender que entre estes dois termos não há contradição essencial, e que esta tese e antítese é redutível a uma síntese, que satisfaça plenamente tanto a ciência como a especulação. Essa síntese, em que o idealismo aparecerá como complemento necessário do mecanismo, já hoje se deixa antever; e creio que nem a todos parecerá temeridade e paradoxo concebê-la, como eu a concebo nem idealista nem materialista no antigo e mais usual sentido das palavras, mas, num sentido novo e mais profundo, como materialista e idealista.
          
António Sérgio, in Sonetos de Antero de Quental, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1984 (7ª ed.)
          
          
*
          
A dialética tem uma extensa tradição que vai até Platão. Mas no caso de Hegel a dialética é tão importante que dá nome à sua filosofia: a filosofia dialética.
A dialética expressa, pela sua parte, a contradição do mundo existente e, por outra, a necessidade de superar os limites presentes com o propósito de uma realização total e efetiva da liberdade e da infinidade.
A realidade, enquanto dialética, está submetida a um processo, é regida e movida pela contradição, encontra-se internamente relacionada (é inter-relacional) e é constituída como oposição de contrários.
Assim, cada realidade remete para a totalidade, para o todo, e só pode ser compreendida e explicada em relação ao todo. Por isso Hegel expressa isto de modo breve e preciso na seguinte frase: "O verdadeiro é o todo."
Devido a esta redução do ser ao pensar, a filosofia de Hegel, já idealista, converte-se num idealismo absoluto. No fim de contas não se trata tanto da redução do ser ao pensar como da interpretação do real, do ser, como ideia ou razão. "Todo o real é racional", é outra frase de Hegel."
[…]
O sistema filosófico de Hegel pode dividir-se em três partes: lógica, filosofia da natureza e filosofia do espírito.
A lógica estuda o 'desenvolvimento das noções universais das determinações do pensamento, que são o fundamento de toda a existência natural e espiritual e que constituem a evolução lógica do absoluto. […] Hegel identifica o real e o racional, o ser e o pensamento, que se apoiam num princípio único e universal: a ideia.
Do desenvolvimento da ideia resultam todas as determinações do ser. A ciência estuda este desenvolvimento e a lógica determina as suas leis, que são a contradição e a conciliação dos contrários. Toda a ideia tem três momentos: primeiro apresenta-se (a tese); opõe-se a si mesma (a antítese); e, finalmente, regressa a si mesma conciliando tese e antítese (a síntese). O objeto da filosofia da natureza é continuar este desenvolvimento do mundo real exterior à ideia.
          
Didacta, Enciclopédia temática ilustrada, Vol. Arte e Filosofia, F. G. P. Editor, 1997.
          
         
 
          
          
QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO
         
1. Estes dois sonetos opõem-se, mas completam-se também. De que modo é que os títulos contribuem para esse duplo efeito?
2. "Tese" e "antítese" são dois termos que lembram de imediato as filosofias de Kant e Hegel. Mas a contraposição ou antinomia que implicam não será também afim do diálogo teatral entre personagens que ocupam posições distintas?
3. A religião e a revolução são campos de sentido que os sonetos atravessam. De que modos?
4. A "ideia" parece ser o símbolo central a ambos os poemas, sob duas formas distintas. Há ou não sugestão de uma tomada de partido por parte do "eu" que os assina?  
Cadernos de Literatura. Português A. 12º Ano. Caderno do Aluno
 
Cristina Duarte, Fátima Rodrigues e Mª de Sousa Tavares, Amadora, Raiz Editora, 1995
             
5. O questionário que se segue diz respeito ao segundo soneto de «Tese e Antítese» de Antero de Quental.
5.1. Pronuncie-se acerca da relação Homem/Deus, tal como a entende o sujeito poético.
5.2. Divida o soneto em duas partes lógicas, justificando a divisão efetuada.
5.3. Caracterize o destinatário da mensagem poética, comprovando a resposta com citações.
5.4. "O seu pulsar são chamas que crepitam,/Paixões ardentes como vivos sóis".
‑ Comente a expressividade das metáforas e da comparação.
5.5. Explicite a relação sujeito poético/destinatário da mensagem poética.
5.6. Indique dois recursos linguísticos e/ou estilísticos de que se serve o sujeito poético para enfatizar a sua mensagem, exemplificando-os.
5.7. Tendo em conta a divisão proposta por António Sérgio, identifique a faceta em que se incluirá este soneto, explicando-a.

SUGESTÕES DE LEITURA
        
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/10/07/tese.antitese.aspx]