domingo, 7 de outubro de 2012

TESE E ANTÍTESE (Antero de Quental)

  
ANTERO DE QUENTAL, por Rui Rodrigues de Sousa

          
     TESE E ANTÍTESE
    
     I
    
     Já não sei o que vale a nova ideia,
     Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
     Torva no aspeto, à luz da barricada,
     Como bacante após lúbrica ceia!
     
     Sanguinolento o olhar se lhe incendeia…
     Respira fumo e fogo embriagada…
     A deusa de alma vasta e sossegada
     Ei-la presa das fúrias de Medeia!
     
     Um século irritado e truculento 
     Chama à epilepsia pensamento, 
     Verbo ao estampido de pelouro e obus...
     
     Mas a ideia é num mundo inalterável, 
     Num cristalino céu, que vive estável... 
     Tu, pensamento, não és fogo, és luz!
       
(entre 1865 e 1871)

     II
     
     Num céu intemerato e cristalino
     Pode habitar talvez um Deus distante,
     Vendo passar em sonho cambiante
     O Ser, como espetáculo divino.
     
     Mas o homem, na terra onde o destino
     O lançou, vive e agita-se incessante…
     Enche o ar da terra o seu pulmão possante...
     Cá da terra blasfema ou ergue um hino...
     
     A ideia encarna em peitos que palpitam:
     O seu pulsar são chamas que crepitam,
     Paixões ardentes como vivos sóis!
     
     Combatei pois na terra árida e bruta, 
     ‘Té que a revolva o remoinhar da luta, 
     ‘Té que a fecunde o sangue dos heróis!
          
(1870)
Antero de Quental [Livro Segundo]
            
           
TEXTOS DE APOIO / LINHAS DE LEITURA
         
Tese e Antítese – são sonetos de inspiração hegeliana no título e no 2º e 3º versos da 2ª quadra de Antítese, mas também está presente a sugestão de Proudhon  na luta do homem por um mundo melhor, embora, aqui, desvirtuada. Em Tese aponta para um socialismo pacífico, em Antítese para o revolucionário. Na verdade, a poesia é a voz da revolução.
O sentido contraditório do título justifica-se no comportamento errado do homem, quanto aos meios de que se serve para implantar a Ideia que, no seu aspeto sublime, não está de acordo com os desmandos que os homens praticam com um rótulo que falsificam. O homem luta, esbraveja, comete torpidades com a fúria de Medeia; mas a referida Ideia quer denodo, paixão, entusiasmo, mas não fúria; quer acordes de hino, não blasfémias de malditos. Em sonetos como estes estamos perante Antero apolíneo, olímpico.
          
Literatura Prática (sécs. XIX-XX) 11º Ano, Lilaz Carriço, Porto Ed., 1986 (4ª ed.), pp. 194-195.
          
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Antero exprime, mais uma vez, a lição hegeliana, denunciada até na terminologia ‑Tese e Antítese ‑ e no tema fundamental: o Ser passa como espetáculo divino a um Deus distante. Mas, talvez contraditoriamente, exprime-se no segundo soneto o otimismo social, confiança na felicidade futura, num mundo novo: influência do pensamento utópico de Proudhon que defende a teoria do aperfeiçoamento autónomo e inevitável da sociedade. ‑Cf. Feliciano Ramos (Antero de Quental na Poesia Filosófica, Vila do Conde, 1936, pág. 67): «A crença robusta num sistema de «Ideias» de paz, de fraternidade e de justiça, e a confiança no seu triunfo progressivo e indiscutível, anima calorosamente o apostolado social de Proudhon e inspira o idealismo anteriano referente ao acabamento da opressão, da miséria e do crime.»
Repare-se que Antero designa por Ideia «as crenças metafisicas que aspiravam a influir decisivamente na marcha social». (Cf. Joaquim de Carvalho, ob. cit., pág. 26). ‑Atente-se ainda como, no primeiro soneto, Antero repele toda a imagem de violência, para reafirmar a sua adesão ao mundo inalterável da Ideia, identificado religiosamente ao cristalino Céu. Para António Sérgio (Antero de Quental, Sonetos, Lisboa [1967], pág. 63), é o seguinte o problema destes dois sonetos: «Competirá ao apóstolo o ser também político?» ‑ Para Sant'Anna Dionísio (Antero ‑ Algumas Notas sobre o seu Drama e a sua Cultura, Lisboa, 1934, pág. 174), «a intenção do segundo soneto (Antítese) é (...) mostrar que as lutas que no primeiro (Tese) pareciam torpes, não são, de facto, inúteis; que são mesmo necessárias, porque, embora o pensamento não seja fogo, mas luz, ele só pode realizar-se e inserir-se na "terra árida e bruta", encarnando no peito fremente dos homens».
vv. 2-8. Notar o processo retórico: a personificação da «nova ideia» por meio da comparação com figuras mitológicas.
vv. 9-11. Notar a oposição com os vs. 12-13.
vv. 13-14. Notar que o soneto conclui por uma afirmação que se opõe à dúvida inicial e que é intensificada pelo paralelismo fónico e semântico.
v. 15 e segs. Notar que o soneto se define pela oposição: «Num céu» / «na terra», ou «espetáculo divino» / «espetáculo humano».
vv. 21-28. O espetáculo humano caracteriza-se pela «luta», que é vida e morte gloriosa, não já do indivíduo mas de todos os que combatem pela Ideia.
          
[Note-se que] no Livro Segundo, inclui o poeta as poesias combativas, de sátira às instituições, de protesto contra a sociedade, e de previsão das catástrofes necessárias «ante o altar encoberto do Futuro».
          
Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária Comentada. Século XIX. Do Romantismo ao Realismo. Poesia, Lisboa, Editora Ulisseia, 1985, 2ª edição.
          
          
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Ainda sobre a ideia de Tese e Antítese e sua combinação na respetiva Síntese, lembremos que nos últimos dos seus escritos em prosa Antero apresenta a doutrina que esboça como síntese de dois termos antitéticos: materialismo e idealismo. A filosofia da natureza dos naturalistas tem este período: "Matéria e espírito, determinismo e liberdade não são ideias contraditórias senão na aparência: de facto, são só duas esferas diferentes de compreensão, tese e antítese, cuja síntese é a Razão"; e termina pelo seguinte: "se a conclusão final das ciências tem de ser, como creio, o mecanismo universal a conclusão final do pensamento metafisico tem por seu lado de ser o universal idealismo. Mas já hoje se começa a compreender que entre estes dois termos não há contradição essencial, e que esta tese e antítese é redutível a uma síntese, que satisfaça plenamente tanto a ciência como a especulação. Essa síntese, em que o idealismo aparecerá como complemento necessário do mecanismo, já hoje se deixa antever; e creio que nem a todos parecerá temeridade e paradoxo concebê-la, como eu a concebo nem idealista nem materialista no antigo e mais usual sentido das palavras, mas, num sentido novo e mais profundo, como materialista e idealista.
          
António Sérgio, in Sonetos de Antero de Quental, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1984 (7ª ed.)
          
          
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A dialética tem uma extensa tradição que vai até Platão. Mas no caso de Hegel a dialética é tão importante que dá nome à sua filosofia: a filosofia dialética.
A dialética expressa, pela sua parte, a contradição do mundo existente e, por outra, a necessidade de superar os limites presentes com o propósito de uma realização total e efetiva da liberdade e da infinidade.
A realidade, enquanto dialética, está submetida a um processo, é regida e movida pela contradição, encontra-se internamente relacionada (é inter-relacional) e é constituída como oposição de contrários.
Assim, cada realidade remete para a totalidade, para o todo, e só pode ser compreendida e explicada em relação ao todo. Por isso Hegel expressa isto de modo breve e preciso na seguinte frase: "O verdadeiro é o todo."
Devido a esta redução do ser ao pensar, a filosofia de Hegel, já idealista, converte-se num idealismo absoluto. No fim de contas não se trata tanto da redução do ser ao pensar como da interpretação do real, do ser, como ideia ou razão. "Todo o real é racional", é outra frase de Hegel."
[…]
O sistema filosófico de Hegel pode dividir-se em três partes: lógica, filosofia da natureza e filosofia do espírito.
A lógica estuda o 'desenvolvimento das noções universais das determinações do pensamento, que são o fundamento de toda a existência natural e espiritual e que constituem a evolução lógica do absoluto. […] Hegel identifica o real e o racional, o ser e o pensamento, que se apoiam num princípio único e universal: a ideia.
Do desenvolvimento da ideia resultam todas as determinações do ser. A ciência estuda este desenvolvimento e a lógica determina as suas leis, que são a contradição e a conciliação dos contrários. Toda a ideia tem três momentos: primeiro apresenta-se (a tese); opõe-se a si mesma (a antítese); e, finalmente, regressa a si mesma conciliando tese e antítese (a síntese). O objeto da filosofia da natureza é continuar este desenvolvimento do mundo real exterior à ideia.
          
Didacta, Enciclopédia temática ilustrada, Vol. Arte e Filosofia, F. G. P. Editor, 1997.
          
         
 
          
          
QUESTIONÁRIO INTERPRETATIVO
         
1. Estes dois sonetos opõem-se, mas completam-se também. De que modo é que os títulos contribuem para esse duplo efeito?
2. "Tese" e "antítese" são dois termos que lembram de imediato as filosofias de Kant e Hegel. Mas a contraposição ou antinomia que implicam não será também afim do diálogo teatral entre personagens que ocupam posições distintas?
3. A religião e a revolução são campos de sentido que os sonetos atravessam. De que modos?
4. A "ideia" parece ser o símbolo central a ambos os poemas, sob duas formas distintas. Há ou não sugestão de uma tomada de partido por parte do "eu" que os assina?  
Cadernos de Literatura. Português A. 12º Ano. Caderno do Aluno
 
Cristina Duarte, Fátima Rodrigues e Mª de Sousa Tavares, Amadora, Raiz Editora, 1995
             
5. O questionário que se segue diz respeito ao segundo soneto de «Tese e Antítese» de Antero de Quental.
5.1. Pronuncie-se acerca da relação Homem/Deus, tal como a entende o sujeito poético.
5.2. Divida o soneto em duas partes lógicas, justificando a divisão efetuada.
5.3. Caracterize o destinatário da mensagem poética, comprovando a resposta com citações.
5.4. "O seu pulsar são chamas que crepitam,/Paixões ardentes como vivos sóis".
‑ Comente a expressividade das metáforas e da comparação.
5.5. Explicite a relação sujeito poético/destinatário da mensagem poética.
5.6. Indique dois recursos linguísticos e/ou estilísticos de que se serve o sujeito poético para enfatizar a sua mensagem, exemplificando-os.
5.7. Tendo em conta a divisão proposta por António Sérgio, identifique a faceta em que se incluirá este soneto, explicando-a.

SUGESTÕES DE LEITURA
        
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/10/07/tese.antitese.aspx]

sábado, 6 de outubro de 2012

MORS-AMOR (Antero de Quental)

  
Dürer, CAVALEIRO E A MORTE (1513, gravura a cobre, col. particular)



         
         
      MORS-AMOR
       
      A Luís de Magalhães.
      
     Esse negro corcel, cujas passadas
     Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
     E, passando a galope, me aparece
     Da noite nas fantásticas estradas,
     
     Donde vem ele? Que regiões sagradas
     E terríveis cruzou, que assim parece
     Tenebroso e sublime, e lhe estremece
     Não sei que horror nas crinas agitadas?
     
     Um cavaleiro de expressão potente,
     Formidável, mas plácido, no porte, 
     Vestido de armadura reluzente,
     
     Cavalga a fera estranha sem temor:
     E o corcel negro diz: "Eu sou a Morte!"
     Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"
        
Antero de Quental
            


           
TEXTOS DE APOIO
         
Este soneto é uma breve composição dramática, de personagens alegóricas. – Segundo o «otimismo lúgubre e paradoxal» de Antero, com que superava a crise pessimista, a Morte identifica-se com o Amor, porque ambos exprimem o anseio vão de realizar a perfeição do género humano através do indivíduo (segundo Hegel).
           
Maria Ema Tarracha Ferreira, Antologia Literária Comentada. Século XIX. Do Romantismo ao Realismo. Poesia, Lisboa, Editora Ulisseia, 1985, 2ª edição.
      
         
*
         
         
A errância em que Antero se demorou ao longo de muito da sua vida é um facto que talvez oculte a realidade de alguém que gostaria de se estabilizar - e que o conseguiu no interregno, próximo do fim, de Vila do Conde. Muitas das imagens da sua poesia transportam a ideia desse ser viajante, instável, para cujo movimento a única explicação possível será a de uma condenação. A terra é um lugar em que o poeta terá de expiar uma pena que ele não aceita ‑ pela simples razão de que não sabe o motivo dessa condenação. É certo que, num plano imediato, temos em Antero a condição do ilhéu que não se satisfaz com os limites que a Natureza lhe impõe - indo procurar no continente uma satisfação pessoal e intelectual que o solo natal não oferece. Esse afastamento (regressamos ao tema do exílio) que não é imposto, talvez tenha determinado o sentimento inconsciente de culpa que se irá refletir neste aspeto da sua poesia, em termos inconscientes. Aquilo que mais obviamente vem dar testemunho desta situação é a conflitualidade que se projeta nas oposições, nos duplos contrários, que por vezes se deixam ver materializados: o «Mors-Amor» sendo a figuração mais explícita desses espectros que constantemente se atravessam no seu caminho, obrigando-o a olhar-se no espelho de visões que o forçam à constante deceção de si próprio.”
        
Nuno Júdice, O Processo Poético ‑ Estudos da Teoria e Crítica Literárias, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1992. ISBN: 9789722705202
         
          



         
          
ANTERO DE QUENTAL, PERSONALIDADE PATOLÓGICA OU CONFLITO EXISTENCIAL?
A pureza de sentimentos, a justeza dos princípios, o idealismo do seu humanismo, na senda de uma vida melhor e mais justa para todos, é a marca deste homem que acreditava «na espiritualização permanente do Universo, numa cadeia universal das existências e numa prodigiosa espiral em que a ascensão dos seres à liberdade é a causa final de tudo, que a santidade é o termo de toda a evolução, que o Universo não existe nem se move senão para chegar a esse supremo resultado, que o drama do ser termina na libertação final pelo bem».
Para si próprio muito pouco conseguiu para além de um sucessivo acumular de desilusões, do sentimento de total inutilidade e do desejo de morrer contente, se conseguir, ao menos, viver seis meses a verdadeira vida de homem que é a da ação por uma grande causa».
Personalidade extremamente cativante, foi um destacado pensador da Geração de 70 pelo fascínio que em todos exercia devido à sinceridade e generosidade das suas ideias, bem patente nestas duas citações de Eça: «Antero que desembarcara em Lisboa como um apóstolo do socialismo, a trazer a palavra dos gentílicos, em breve nos converteu a uma vida mais alta e fecunda; ...; e do Cenáculo, de onde, antes da vinda de Antero nada poderia ter nascido além da chalaça, versos satânicos, noitadas curtidas a vinho de Torres, e farrapos de filosofia fácil, nasceram, mirabile dictu, as Conferências do Casino, maio e junho de 71, aurora de um mundo novo, mundo puro e novo que depois, oh dor! creio que envelheceu e apodreceu…» ou ainda «em Coimbra, uma noite, ..., avistei sobre as escadas da Sé Nova, …, um homem, de pé, improvisava...; deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou, por entre os lábios abertos de gosto pasmo: ‑ É o Antero!... ‑ E, sentados nos degraus da igreja, outros homens, …, escutavam, em silêncio e enlevo, como discípulos, …, então, …, destracei a capa, também me sentei num degrau, ..., a escutar no enlevo, como um discípulo. E para sempre assim me conservei na vida» (Eça de Queirós, in «Um génio que era santo»).
Os numerosos estudos da obra e da vida de Antero são bem significativos do fascínio que este «místico sem Deus» (Leonardo Coimbra) exercia sobre todos pelo amor à virtude, ao bem e à justiça. Personalidade marcada pelos contrastes, o Antero luminoso e o Antero noturno (António Sérgio), a luz e as trevas, o ideal e o desalento são facetas de uma mesma personalidade que tragicamente transporta em si ‑ corcel e cavaleiro-a morte e o amor, («Mors-Amor»):
MORS-AMOR
Esse negro corcel, cujas passadas 
Escuto em sonhos, quando a sombra desce, 
…………………………………………....
Donde vem ele? ………………………….
…………………………………………….
Um cavaleiro de expressão potente,
…………………………………………….
Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: «Eu sou a Morte!» 
Responde o cavaleiro: «Eu sou o Amor!»
Antero de Quental (1874-80)

Este poema ilustra particularmente bem a sua tragédia íntima de conter em si a aspiração ao amor mais puro e o desalento mais desesperado ou, em outros termos, a luta que sempre travou entre a Razão e a sua «natureza conservadora» traduzida no seu desejo de regresso à paz do Nirvana infantil e materno. Esta mesma questão pode ser entendida como a dialética freudiana entre o instinto de morte e o instinto de vida, motor de todo o investimento afetivo, profissional, social, político.
O homem que a si próprio se considerava um pessimista debatendo-se, sobretudo a partir dos 32 anos (1874), quase em permanência, com a ideia de morte, não era para Eça considerado um doente mas «um génio que era um santo».
Algumas questões se levantam:
‑ Tratava-se de uma doença mental ou, tão-somente, da acentuação de traços da personalidade definida por Oliveira Martins como «quimérica, estoica, mística, misantropa» neste homem possuído de um verdadeiro espírito de missão, oscilando entre a crença no bem e o desalento mais pessimista?
‑ Qual a influência, no pessimismo doentio do Poeta, da «sociedade néscia, acanhada, sufocadora» em que vivia e de uma época em que dominava o pensamento de Schopenhauer, o niilismo de Leconte de Lisle e o «romantismo piegas» ?
‑ Qual o peso do romantismo filosófico e social (Hegel, Quinet, Michelet, Proudhon, Victor Hugo e vários outros)?
‑ Podemos aceitar a opinião de Oliveira Martins que «os sonetos são a refração das agonias morais do nosso tempo vividas na imaginação de um poeta»?
Vejamos o que nos diz António Sérgio:
«Mas não nos esqueçamos, sem embargo de tudo, de que o pessimismo doentio do nosso poeta se ajustava com o ambiente intelectual da época, ‑ que foi aquela em que Schopenhauer esteve em plena voga; em que dominou o niilismo de um Leconte de Lisle e o satanismo do autor de «La mort des pauvres»:
C'est la Mort qui console, hélas; et qui fait vivre; 
C'est le  but de la vie, et c'est le seul espoir 
Qui, comme un elixir, nous monte et nous enivre, 
Et nous donne le coeur de marcher jusqu'au soir... 

O Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l'ancre! 
Ce pays nous ennuie, ô mort! Appareillons! 
Si le ciel et la mer sont noirs comme de l'encre. 
Nos coeurs, que tu connois sant remplis de rayons!
(Baudelaire).
No ficcionismo romanesco avultava então um Flaubert, que aos 13 anos havia escrito: 'Si je n'avais dans la tête et au bout de ma plume une reine de France au quinzième siècle, je serais totalement dégouté de la vie et il y aurait longtemps qu'une balle m'aurait délivré de cette plaisanterie buffonne qu'on appele la vie'».
(A. Sérgio)

Embora pareça evidente que o ambiente português e europeu influenciou fortemente Antero, não nos parece legítimo considerá-lo um fator relevante para a sua morte, Com efeito, muitos outros, nacionais ou estrangeiros, por vezes igualmente pessimistas, como Baudelaire, Flaubert, etc., lidaram diferentemente com a realidade pessimista retrógrada e sobreviveram a ela.
No que diz respeito à personalidade, António Sérgio não hesita em considerar a face luminosa expressa nas poesias das odes modernas e a face noturna de grande parte dossonetos, como uma acentuação de características humanas que todos possuímos. Sérgio explica a dualidade de Antero por «uma mente iluminada, hospeda de um corpo infinitamente afligido, vítima de uma tortura ininterrupta e diabólica em que o eu superior espiritual racional e ético luta permanentemente contra o eu inferior biológica e sensível». Nesta discutível visão cartesiana do homem corpo e do homem espírito, a mente, o pensamento, a razão, são apresentadas como fonte da luz e do bem-estar enquanto que o corpo e os instintos seriam a origem de todos os males e de todas as trevas satânicas do homem. O próprio Antero daria argumentos a favor desta análise, ao explicar o insucesso do seu trabalho em Paris como tipógrafo por só o seu espírito ser revolucionário, por natureza ser conservador.
Deste conflito interno entre a razão e a parte «desgrenhada», «sanguinolenta» e de «fumo e fogo embriagada», nos fala o próprio Antero na «Tese e Antítese I», (1862-74).
       
Ler mais: “Antero de Quental, personalidade patológica ou conflito existencial?”, José Dias Cordeiro, Congresso Anteriano Internacional – Actas [14-18 outubro 1991]. Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1993.
        
              
COMENTÁRIO DE TEXTO
        
Analise e comente o texto, focando os seguintes aspetos:
• o caráter alegórico
• as marcas de narratividade
• o conceito de amor
• a expressividade do titulo a nível fónico e semântico
• inserção no universo poético anteriano
          

        
CENÁRIO DE RESPOSTA
            
No seu comentário você deve reconhecer, quer na temática desenvolvida, quer nos processos discursivos, as marcas do universo poético de Antero de Quental.
A alegoria, patente na caminhada do cavalo e do cavaleiro, traduz a inquietação do eu poético dividido entre o poder do amor e da morte. Se a morte é remédio para nos libertar da dor existencial, o amor é capaz de vencer o receio da morte. Este conceito de amor radica na ideia de um sentimento puro e sempiterno que corresponde ao anseio de realização da perfeição.
As marcas de narratividade presentes (v.d. personagens, tempo, espaço, ação, narrador homodiegético, discurso direto) tornam expressiva a mensagem, na medida em que se volve em conto o que releva da interioridade do eu.
O título em latim, em que as duas palavras aparecem separadas por um travessão, poderá querer significar a correlação existente entre os dois significados (já referida na abordagem do primeiro item); deverá também salientar-se a similitude das palavras a nível fónico, constituídas quase pelos mesmos fonemas.
Este soneto poderá considerar-se representativo de uma fase anteriana em que, apesar do fascínio pela ideia da morte, se sente ainda um laivo de otimismo, crendo que o amor é capaz de dominar essa mesma morte.

           
Manuela Cabral, Lurdes Alarcão e Maria Graciete Vilela, Português A – 12º Ano. 
Preparar os Exames Nacionais, Porto, Areal Editores, 2002.
        

A angústia existencial. Figurações do poeta. Diferentes configurações do Ideal.
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 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/10/06/MORS.AMOR.aspx]