Senhor, eu vivo coitada vida des quando vos nom vi; mais pois vós queredes assi, por Deus, senhor bem talhada, querede-vos de mim doer ou ar leixade-m’ir morrer.
Vós sodes tam poderosa de mim que meu mal e meu bem em vós é todo; [ e ] por em, por Deus, mia senhor fremosa, querede-vos de mim doer ou ar leixade-m’ir morrer.
Eu vivo por vós tal vida que nunca estes olhos meus dormem, mia senhor; e por Deus, que vos fez de bem comprida, querede-vos de mim doer ou ar leixade-m’ir morrer.
Ca, senhor, todo m’é prazer quant’i vós quiserdes fazer.
D. Dinis – Cancioneiro, edição de Nuno Júdice, Lisboa, Teorema, 1998
Glossário e notas
ar (versos 6, 12 e 18) – então.Ca (verso 19) – porque.de bem comprida (verso 16) – com muitas virtudes.des (verso 2) – desde.doer (versos 5, 11 e 17) – ter dó; condoer.mais (verso 3) – mas.por em (verso 9) – por isso.sodes tam poderosa / de mim (versos 7-8) – tendes tanto poder sobre mim.
Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.
1. Identifique, neste poema, três características do género das cantigas de amor.
2. Transcreva as expressões que se referem aos atributos da dama, indicando as qualidades que o trovador realça em cada uma delas.
3. Explicite duas das razões que motivam a súplica do «eu», contida no refrão.
4. Analise o dístico final (versos 19-20), referindo-se a dois dos sentidos nele presentes.
Cenários de resposta
1. Algumas das características são, por exemplo: − a voz masculina do sujeito poético; − o amor tratado segundo o ideal de amor cortês; − a acentuação dos aspetos contraditórios do sentimento amoroso; − a invocação da «senhor», numa atitude de súplica e de submissão; − o elogio reiterado dos poderes e da beleza da dama, de acordo com o código da lírica provençal.
2.A «senhor» é descrita como tendo os seguintes atributos e qualidades: − «bem talhada» (v. 4), isto é, esbelta, revelando um corpo bonito; − «tam poderosa / de mim» (vv. 7-8), ou seja, idolatrada e, portanto, exercendo poder sobre o «eu»;− «fremosa» (v. 10), com bela figura, graciosa;− «de bem comprida» (v. 16), ou seja, dotada de muitos dons.
3. A súplica, contida no refrão, dirigida à «senhor» pelo sujeito poético assenta nas razões seguintes:− a infelicidade («coitada / vida» – vv. 1-2) que sente, desde que, por decisão da dama, deixou de a ver;− a dificuldade de viver sem a amada, dado o amor absoluto que sente por ela («meu mal e meu bem / em vós é todo» – vv. 8-9);− a vivência de um intenso sofrimento amoroso que provoca um estado de vigília constante («Eu vivo por vós tal vida / que nunca estes olhos meus / dormem» – vv. 13-15).
4.No dístico final (vv. 19-20), o sujeito revela a causa da sua infelicidade e da reiterada súplica à dama, nomeadamente:− a total submissão à vontade da dama («quant’i vós quiserdes fazer» – v. 20);− a devoção amorosa, presente no comprazimento sentido perante a decisão da «senhor», qualquer que ela seja («Ca, senhor, todo m’é prazer / quant’i vós quiserdes fazer» – vv. 19-20);− a afirmação de que a expressão do amor está totalmente dependente da sua dama;− a esperança de que a súplica seja ouvida.
Exame Nacional do Ensino Secundário, Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho, Prova Escrita de Literatura Portuguesa, 10.º e 11.º Anos de Escolaridade, Prova 734/1.ª Fase, Lisboa, Gabinete de Avaliação Educacional, 2013
Cai um pássaro do ar, devagar, muito devagar. E as árvores soturnas não se mexem. Estio! Não se vêem bulir as árvores, em bloco, ou aos arcos, estampadas…
Elegante Lapa! Sol fosco, paisagem da manhã. A gente do sítio, pobreza e riqueza, ainda recolhida. Aqui uma janela discreta que se abre, preta, cega. Ali outra fechada. E esta alternância, bastante irregular, vai-se repetindo, repete-se…
E eu, ai eu! prisioneira, sempre prisioneira; tão enfadada!
Irene Lisboa Revista de Portugal nº 3, 1938
No poema de Irene Lisboa é feita a descrição de um bairro de Lisboa, a Lapa. No entanto, não se trata de uma descrição precisa, pormenorizada, como fazendo parte de textos narrativos. Aqui o que assume maior importância não é o lugar, o espaço exterior, mas as impressões que alguns aspetos particulares desse espaço provocam no sujeito lírico; a forma pessoal, única, como este os vê – «Cai um pássaro do ar, devagar, muito devagar». Essa visão subjetiva, original, da realidade traduz-se na seleção de vocabulário e na criação de associações de palavras pouco usuais – o verbo «cair» no 1º verso, em vez de «voar»; as «árvores soturnas» (personificação); «uma janela discreta». Está igualmente nas exclamações, expressivas apesar de sintéticas. – «Estio!», «Elegante Lapa!». O sujeito vai-nos transmitindo a sugestão desse lugar como se fosse acumulando «pinceladas» – «Aqui uma janela / Ali outra recolhida».
E, por fim, o que ressalta deste esboço de descrição é a expressão de um sentimento individual – «E eu, ai eu! prisioneira, sempre prisioneira; tão enfadada!»
Guia de aprendizagem. Disciplina de Português. Unidade 4. Ensino Secundário Recorrente,
Lisboa, Ministério da Educação – Departamento do Ensino Secundário, 1997. Nº de Depósito Legal – 115 892/97
Todos os dias, depois do almoço, era o das duas e quinze Ermesinde S. Bento, a porta aberta manualmente e a sedução do aviso: partir em caso de emergência. Todos os dias era esse horror vacui cheio de parêntesis, prédios, subúrbios, gente que saía a correr na pressa de chegar à rua para repartir talvez com um ou outro vagabundo a mesma indiferença pela vida.
Carlos Bessa, Em partes iguais Lisboa, Assírio e Alvim, 2004
LISBOA ANTIGA
Lisboa, velha cidade, Cheia de encanto e beleza! Sempre a sorrir tão formosa, E no vestir sempre airosa. O branco véu da saudade Cobre o teu rosto linda princesa!
Olhai, senhores, esta Lisboa d'outras eras, Dos cinco réis, das esperas e das toiradas reais! Das festas, das seculares procissões, Dos populares pregões matinais que já não voltam mais!
Lisboa, velha cidade, Cheia de encanto e beleza! Sempre a sorrir tão formosa, E no vestir sempre airosa. O branco véu da saudade Cobre o teu rosto linda princesa!
Olhai, senhores, esta Lisboa d'outras eras, Dos cinco réis, das esperas e das toiradas reais! Das festas, das seculares procissões, Dos populares pregões matinais que já não voltam mais!
José Galhardo e Amadeu do Vale
"Lisboa Antiga", por Riko Dorilêo
LISBOA-94
Descri do tempo: a vida arrependeu-se se de todas as promessas, dia a dia irrompendo e rompendo o infinito do que chamamos febre, labareda acesa desde sempre. Neste corpo há um princípio de alma a respirar como fogo roubado a outro fogo que mais ninguém conhece — ergueu-se a chama e ondula ainda em cada gesto meu a decompor-se ao longo de mil gestos das pessoas autómatas, varrendo a atmosfera das ruas, o prazer de repetir retratos entre as curvas da pálida cidade boquiaberta em fim de quarta-feira. De improviso a memória atravessa essa uma abertura pelo meio de portas mal fechadas, caleidoscópio histérico de encontros em bares e restaurantes sob as luzes cada vez mais à deriva. O pensamento dilui-se ao ritmo dos lugares-comuns no quase inútil mapa dos sorrisos agora sobrepostos — engrenagens nocturnas, reticências prolongando as falas sempre vás dos vãos amigos, poeira de mil sonhos dissipados, melodia espectral, oásis mudo, palácio em ruínas, coração.
“Nas nossas ruas, ao anoitecer”, abre-se num olhar a pena errante de quem se ilude em passos vagarosos, em mais um jogo incerto de cem luzes sob este céu tão baço. Como sempre, os mudos automóveis sobem, descem ruas e ruas rumo a outras ruas polvilhadas de gente que regressa sem ter partido- insectos ondulando ao som das lentas horas fatigadas, rostos esfarrapados de trabalhos inúteis como a tarde que se entrega às doces mãos secretas do crepúsculo vibrante no declive dos telhados em degraus sobre o Tejo. Devagar cola-se ao espírito a membrana escura dos sonhos que perdi ou que pedi há tantos anos à eternidade e agora se dispersam na colmeia das pequenas janelas reacesas, no bafo das famílias indiferentes no seu “tinir de loiças e talheres”, suspensas de ecrãzinhos onde vêem outras famílias e outras indiferenças até ao infinito. As sombras crescem quando a lua aparece e pouco a pouco a solidão retoma os seus direitos, devora o que ainda resta do azul e eu vou descendo a pé, já transformado num perverso turista acidental e condenado a “combater em vão o velho tédio” ocidental, em bares onde reagem faces conhecidas em acenos voláteis que se cruzam com esse aroma surdo e espesso e dócil das vozes que por vezes me esvaziam qualquer recordação. Bairro nocturno confundo os teus caminhos-labirinto, os nomes das vielas inconstantes e ao percorrê-las «temo que me avives uma paixão» recente, a esvoaçar ainda não defunta, mas talvez moribunda por entre a marabunta que vai enchendo, enxameando as caves onde se compra e vende cada rosto e onde mergulho cego e surdo e fico senhor da sua imagem, de repente unida às gargalhadas tão ingénuas das viciosas bocas florescendo na treva, procurando novas bocas algures. Cá fora, a verde camioneta recolhe as sensações de mais um dia exausto. Recomeço o meu circuito, arranco e desço mais um pouco, até à zona antigamente industrial, aos pálidos felizes contentores sob a penumbra imensa dos guindastes quase irreais. Alguns amigos entram em armazéns de espuma onde exercito os fúteis bocejantes sentimentos, a mais falsa alegria, a peregrina febrícula do espírito embrulhado em whisky ou nas falas transparentes de alguém que por acaso eu poderia talvez amar- “ I´m so crazy for you!”-, mas não há “ nunca nada de ninguém”, só esta bílis negra que me espera á saída dos últimos lugares acompanhando agora o rio que alastra e se mistura à crónica euforia de uns “ tristes bebedores” que mal trauteiam frágeis franjas de música boiando no seu vazio que é também o meu quando parto agarrado a um volante e na aragem dos vidros entreabertos saboreio um cigarro que se evola só para ti, Lisboa. Sempre quis pulsar ao mesmo ritmo que tu, transpor este deserto e conseguir em golfadas de versos libertar o encarcerado sopro do teu peito- - cidade atravessadade armadilhas traindo e atraindo cada gesto das poucas silhuetas ainda vivas sob os pilares da ponte. Ò vã Lisboa, cai sobre mim o peso dos teus sonhos, “quimera azul” da minha dor sem pátria, e entre dois semáforos suplico-te: apaga do meu corpo o sobressalto dos seres de carne e osso, dessa estranha realidade apenas virtual que me despe de todos os fantasmas e fica projectada no silêncio das cinco e meia, enquanto vou seguindo a “correnteza augusta das fachadas,” as pombalinas rectas, um cortejo de iluminadas cinzas. Uma estrela parece ter sorrido para mim como se finalmente esta cidade me confiasse a rota imperceptível das suas ondas a perder de vista- -“ marés de fel, como um sinistro mar,” caudal por onde singro e me despeço do sangue de quem solta, solitário, algum suspiro em quarto derradeiro até ser minha a cor da tua voz, ó morte a que abandono luz e sombra, o grito do meu nada ainda em fuga, mas de súbito em paz entre os teus braços.
Fernando Pinto do Amaral, A cinza do último cigarro, 2000
Outros que critiquem o planeamento do território, os crimes urbanos, a droga que pacifica os estados aparando sedições virtuais. Apetecia-me comer, agora, mas os poemas só têm valor real (isto é, monetário) na lua de Bergerac. No Martim Moniz, em perpétua demolição,nem cheques aceitam — quanto mais versos que não rimam com nada.
Tenho à minha frente o futuro, um futuro de três cervejas e talvez de um charro, se encontrar alguém. Um futuro breve (a redimir ou não nas ruas mais altas), nenhuma vontade de amor e os pés acentuadamente azuis — fétidos, sem dúvida alguma.
Já me propus, em dias de tédio maior, escrever um poema vário, curar-me destas ladainhas pouco edificantes. Não deu, paciência. Consola-me ao menos a irrefutável pobreza do quotidiano. Estamos bem um para o outro (mas uns trocos davam jeito, com real ou sem ele — e eu não sei arrumar carros).
A noite lá faz o que pode.
Manuel de Freitas, Os Infernos Artificiais, 2001
Estátua do Marquês de Pombal, Lisboa, 1930.
ULISSES – OLISIPO
Desenham-se no céu os números da solidão por onde James Joyce conseguiu escrever o romance Ulisses há-de sê-lo bem o meu coração eu, a minha solidão, o meu transe
A chaminé na cidade deita o fumo da minha angústia o meu desespero projecta a minha intoxicação Ulisses, cidade de Dublin, eu, Lisboa, minha cidade eu, Lisboa, a chaminé, o meu coração
O fumo sobe que sobe sobe que sobe e enche o ar cidade de Dublin, Lisboa também eu te vou a cantar. Grande a nostalgia do teu néon luminoso a sentir-se dentro de mim e a dizer-se que já não posso
Aqui a enorme cidade aqui a tentacular o meu crime é de estudar o céu que me invade e onde arranha o arranha-céu.
António Gancho, O Ar da Manhã Lisboa, Assírio & Alvim, 1995
LISBOA
Do rio Lis, boa, Lisboa diz «Eu sou do rio Lis, boa». Lisboa é, Lisboa tem ralé, gente bem, gentio da Guiné, ladrões de quem, a Sé, o dia mais o Tejo e finalmente Lisboa é tudo o que vejo. Fé em tudo o que tem a verdade de ela ser de todas e entre todas a maior cidade de ela ser entre todas a mais bela cidade e à janela Lisboa poisa triste olhando além o cais e a tudo quanto existe diz «Mais, mais, mais». Lisboa, sempre, quente no Verão, mais álvida no Inverno, Lisboa, desce, então, do rio Lis, boa, eterna parábola do que no seu nome soa. E Lisboa vem para baixo desce faz-se mais baixo, acho e cresce que Lisboa desde o Lis para boa ou para flor diz e sempre diz e mil vezes diz. «Sim, eu sou Lisboa por favor».
Há uma glória neste lugar solar por sobre a sombra, o desabrigo, ladeando ventos, passos, vozes, pássaros de água
Há sob o sol antigo (sol alheio, de sobranceria) um acolhimento, como se ele apenas contigo houvesse agora entendimento e no princípio da praia, solitário, te esperasse.
Para trás ficou a cidade — a cidade-estuário, a cidade azul levantada pelo rio, a cidade olhada, percorrida, no bater do coração de tanto Verão —.
amarga e amada e na tarde da terra o trabalho avança, contigo para o sem-nome da distância, solitária e azul
Maria Andresen, Livro das Passagens Lisboa, Relógio d’Água, 2006
LISBOA, INVERNO DE 2006
Pelo grande azul que ao sol se mistura e a leve toldação de névoa esta é uma manhã em que está ela
E com ela assim passamos e tocamos não no mistério mas nesta face clara
Aqui no grande Terreiro da cidade não há o contínuo coro das cigarras, metálico, estridente e sem monotonia, canto da terra encarnada
Solo que do solo sobe como se eco do sol fosse Sobe como estrídulo louvor em lugares deificados
Aqui não há isso, mas modulações ventosas vindas na linha de água ao fundo da manhã
Por isso aqui em manhãs de sol e sob o frio a alma sobe e podes procurá-la – ela estará
Colada ao sítio das cigarras, ao sol agradecida desadornada e alvíssima como se não houvesse havido ida
Maria Andresen, Livro das Passagens, 2006
AVENIDA ALMIRANTE REIS
Os corpos encostados à parede talvez recordem paisagens brancas, uni inverno ucraniano com árvores perdidas na neve. Que outros olhos viram estes olhos? Eu passo por eles, eles não me vêem. Partilham a garrafa de vinho, um pente. E a montra do café, apagada e triste, serve-lhes de espelho.
José Mário Silva, revista Relâmpagonº12, Abril 2003
CIDADE
Imensa, troglodita, ambiciosa, vai a cidade até à praia; perdeu no campo as rochas cor-de-rosa, e o mar, se a busca, evita-a, não desmaia, antes se ergue negro contra o desconforto.
O rio leva casas debruçadas que já, com o tempo, foi cavando em arcos de perfil sem cal, inclinado e morto... e leva também barcos.
No céu, as nuvens correm desviadas, enquanto o Sol, em dardos, sobre o mar as crava.