quarta-feira, 10 de julho de 2013

ILHA DE MOÇAMBIQUE

                 
Pode-se considerar o tema da Ilha, nomeadamente da Ilha de Moçambique, no contexto da literatura moçambicana, como uma forma particular de regionalismo literário, e tal regionalismo insular ganha a expressão metonímica de um dos espaços míticos de fundação da nação, enquanto espaço cultural, ou seja estrutura de moçambicanidade…
Francisco José Viegas, Ilha de todos. Ilha de Moçambique ‑ Revista Oceanos nº 25
Lisboa, CNCDP, Janeiro/Março 1996
            
Ilha de Moçambique, Rodolfo De Carvalho, 2021


            
            
A ILHA DE MOÇAMBIQUE PELA VOZ DOS POETAS
            
No fim dos anos 1980 e início dos 1990, com o enfraquecimento das utopias revolucionárias, poetas e escritores, ao verem o continente aviltado pelos longos períodos de guerra, buscaram os espaços menos atingidos por esta. Voltaram-se, então, para o imaginário do mar e das ilhas, à procura de Eros, do Amor e das origens. Essa é uma das tendências da poesia dessa época, constatada a partir de levantamentos feitos em poemas de Luís Carlos Patraquim, Mia CoutoNelson Saúte e Eduardo White.
As ilhas, entretanto, foram cantadas também por outras vozes anteriores, dentre as quais: as de Rui KnopfliOrlando Mendes, Glória de Sant’Anna, Virgílio de Lemos, os dois últimos conhecidos como os poetas do mar do norte de Moçambique.
Rui Knopfli, por exemplo, conseguiu captar as múltiplas religiosidades presentes na Ilha de Moçambique, chamando a atenção para alguns traços característicos do Oriente [«Muipíti», A Ilha de Próspero, 1972]:
Mas retomo devagarinho às tuas ruas vagarosas,
caminhos sempre abertos para o mar,
brancos e amarelos filigranados
de tempo e sal, uma lentura
brâmane (ou muçulmana?) durando no ar...
             
Carmen Lucia Tindó Secco, «O imaginário das ilhas em alguns poetas moçambicanos», 
Revista Camoniana, Série Web – vol. 1, São Paulo, 2006.
            
             
Ilha de Moçambiaque, Esmeralda Clara Azevedo, 2022


            
             
ILHA DOURADA

A fortaleza mergulha no mar
os cansados flancos
e sonha com impossíveis
naves moiras.
Tudo mais são ruas prisioneiras
e casas velhas a mirar o tédio.
As gentes calam na voz
uma vontade antiga de lágrimas
e um riquexó de sono
desce a Travessa da Amizade
Em pleno dia claro
vejo-te adormecer na distância,
Ilha de Moçambique,
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento.
Rui Knopfli, País dos Outros, 1959
           
Rui Knopfli apresenta-se como um «sujeito que, sendo anticolonial solidário a Caliban, e pós-colonial na autorrepresentação de si, se sabe no entanto racial e culturalmente descendente de Próspero.» (in O país dos outros. A poesia de Rui Knopfli, Fátima Monteiro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. Coleção: “Escritores dos países de língua portuguesa”, nº 32, p. 58.)
         
  
Ilha de Moçambique, Rodolfo De Carvalho, 2021


         
         
         
ILHA DE IBO


Pequena borboleta 
com asas de corais vermelhos
a nossa ilha
não foi criada para cela
onde morrem os meus irmãos

o nosso mar
não foi feito para grades
onde se ensombram os olhos,
os olhos negros dos meus irmãos.
[…]
‑ assim me contaram
os que sobreviveram.

E enquanto os olhos dos peixes
guardavam a luz e levavam
o dia para o fundo do mar
as mãos assassinas dos carrascos
vasculhavam segredos
rasgando na carne dos prisioneiros
a incurável ferida de serem homens,
companheiros firmes e leais.

Dizem ainda que eram os pescadores
que remando entre a fome
e a ilha da fortaleza
traziam a lua perto das marimbas
cujo canto se espalhava
sobre as ondas inquietas
e sossegava o peito cansado
dos meus irmãos.

Mas os carrascos não sabiam
(talvez porque fossem
ainda mais prisioneiros que os meus irmãos)
que uma fortaleza
cheia de crimes incontáveis
pesa demasiado
para uma pequena borboleta vermelha
com asas de corais vermelhos

e a ilha-prisão submergiu
levando consigo
um tempo manchado de sangue
de sangue dos meus irmãos
        
Mia Couto, Antologia da nova poesia moçambicanaMaputo, AEMO, 1993.
           
             
                      

           
             
[DO LIVRO JANELA PARA ORIENTE]
Tenho uma janela amarela virada para Oriente. Docemente e sem assombro. Todos os dias me sento defronte dela para a olhar. E o vento que a bate faz-me um incêndio para escrever, desce devagar a rampa por onde a vou saltar. Minha e sem fim esta natureza fresca dos seus vidros, a luz que por ela é uma magia tão puríssima. Tenho a janela num quarto que amo, unido como o sangue verde do vale que dela eu vejo, dos livros fechados em seus destinos, dos jornais aos montes e sem notícias. O ar deste quarto está de sorrisos e de surpresas, de desgostos que irão viver, cheio de lugares que ainda não sou. Oiço músicas dentro dele, caladas e brancas de repente, oiço cores incessantes e um poeta que pressinto esteja a morrer. Leio as palavras que o são. Frias. Concretas. Óbvias e desertas. E a morte é um murmúrio por detrás de tudo o que gritam sem dizer. Um sibilar envenenado e arrepiante, um voar rasante e precipitante. A morte desenha-lhe as mãos que daqui posso ver a tremerem. E, por isso, fica o quarto mais cinzento, mais frio, severo como a pedra num deus.
Eduardo White, Janela para oriente, Lisboa, Editorial Caminho, 1999, pp.13-14
             
         
schoolhouse-island-of-mozambique_LUCA LOCATELLI


         
         
OS BARCOS ELEMENTARES
Minha ilha/vulva de fogo e pedra no Índico esquecida. Circum-navego-te, dos crespos cabelos da rocha ao ventre arfante e esculturo-te de azul e sol. Tu, solto colmo o oriente, para sempre de ti exilada.
Foste uma vez a sumptuosidade mercantil, cortesão impossível roçagando-se nas paredes altas dos palácios. Sobre a flor árabe e excisão esboçada com nomes de longe. São Paulo. Fadário quinhentista de “armas e varões assinalados”. São Paulo e rastilho do evangelho nas bombardas dos galeões. São Paulo rosa, ébano, sangue, tinir de cristais, gibões e espadas, arfar de vozes nas alcovas efémeras. Nas ranhuras deste empedrado com torre a escandir lamentos dormirão os fantasmas? Almas minhas de panos e missangas gentis, quem vos partiu o parto em tijolo ficado e envelhecido?
Luís Carlos Patraquim
Vinte e tal Novas Formulações e uma Elegia Carnívora, 1991.
          
          
villa-sands-island-of-mozambique_LUCA LOCATELLI


         
         
[DO LIVRO MESMOS BARCOS]


fechada
toda de agrura

alguma 
amargura
em si trancada

todo o amor 
e mar

é sal e lágrima
no poema.
Sangare Okapi, Mesmos Barcos, 2007
            
          
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
       
             
► Ilha de todos. Ilha de Moçambique | Revista Oceanos nº 25, Lisboa, CNCDP, Janeiro/Março 1996


  • HESPANHA, António Manuel, “Editorial”, p. 5.
  • LOBATO, Manuel, “A Ilha de Moçambique antes de 1800. Algumas Notas Sobre a História e o Património de uma Capital Colonial”, pp. 10 – 26.
  • RITA-FERREIRA, António, “Ilha de Moçambique. Cidade de um Oceano”, pp. 30 – 44.
  • SOPA, António, “Alguns aspectos culturais da Ilha de Moçambique na segunda metade do século XIX”, pp. 48 – 58.
  • LEMOS, Manuel Jorge Correia de, “Reviver a Ilha, na Mafalala”, pp. 60 – 64.
  • CAPÃO, José, “Ilha de Moçambique: Sem desenvolvimento não há conservação”, pp. 67 – 74.
  • LISBOA, Eugénio, “Camões, a Ilha de Moçambique e Nós”, pp. 76 – 80.
  • PATRAQUIM, Luís Carlos, “Mapeamento Onírico para a Descoberta da «Rua de Fogo»”, pp. 82 – 86.
  • COUTO, Mia, “Quinze dias na Ilha de Moçambique”, pp. 88 – 92.
  • PITTA, Eduardo, “Fragmentos de uma memória clandestina”, pp. 95 – 97.
  • VIEGAS, Francisco José, “Diário encontrado entre os papéis da Ilha”, pp. 98 – 104.
  • KNOPFLI, Rui, “Muipiti”, p. 109.
  • PATRAQUIM, Luís Carlos, “Muhipiti”, p. 111.
  • LACERDA, Alberto de, “L’Isle joyeuse”, p. 113.
  • MENDES, Orlando, “Minha Ilha”, p. 115.
  • KNOPFLI, Rui, “Mesquita grande”, p. 117.
  • LOBO, Manuela Sousa, “Austrolírica”, p. 119.
  • SENA, Jorge de, “Camões na Ilha de Moçambique”, p. 121.
  • SAÚTE, Nelson, “A ilha dos poetas”, p. 123.
  • CAMÕES, Luís de, “Esta ilha pequena, que habitamos…”, p. 125.
  • SAÚTE, Nelson e SOPA, António, “De longe esta ilha parece pequena”, p. 127.
  • “En’hipiti nawehaka onira yankani”, p. 127.
      

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/10/muipiti.aspx]

terça-feira, 9 de julho de 2013

A ILHA DE PRÓSPERO (Rui Knopfli)


                
A Ilha de Moçambique é vista como o espaço onde se dá «o primeiro encontro historicamente significativo entre Próspero e Caliban no espaço colonial moçambicano.» (MONTEIRO: 2003, p. 67)
                
Publicado em 1972, supostamente em comemoração dos quatrocentos anos da primeira edição de Os Lusíadas, diríamos que A Ilha de Próspero é uma réplica antiépica a Camões, particularmente, e Pessoa, mais perifericamente, onde o triunfalismo heroico de Os Lusíadas se vê substituído por um heroísmo temperado de humilde perseverança na afirmação da diferença, e onde pauta a resistência discreta mas implacável de «heróis e heroínas humildes» a qualquer pretensão de linearidade, unicidade, e hegemonia narrativas. (MONTEIRO: 2003, p. 136)
           
sao-sebastiao-fort-island-of-mozambique_LUCA LOCATELLI


           
           
ILHA DOURADA

A fortaleza mergulha no mar
os cansados flancos
e sonha com impossíveis
naves moiras.
Tudo mais são ruas prisioneiras
e casas velhas a mirar o tédio.
As gentes calam na voz
uma vontade antiga de lágrimas
e um riquexó de sono
desce a Travessa da Amizade
Em pleno dia claro
vejo-te adormecer na distância,
Ilha de Moçambique,
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento.
Rui Knopfli, País dos Outros, 1959
         
              

LINHAS DE LEITURA DO POEMA «ILHA DOURADA»

Adaptação de O país dos outros. A poesia de Rui Knopfli.
           
  • O poema «Ilha dourada» foi incluído originalmente em País dos Outros (1959) e posteriormente na segunda edição de A Ilha de Próspero (1989).
  • «A fortaleza mergulha no mar / os cansados flancos/ e sonha com impossíveis naves moiras.»  «imagens dum passado de glorificação épica, conquista e dominação colonial, por oposição a um presente marcado pelo declínio.
  • No poema há a animização da paisagem urbana e de um Tu poético (Ilha de Moçambique). 
  • «Em pleno dia claro/ vejo-te adormecer na distância/ Ilha de Moçambique.»  a Ilha de Moçambique é a sinédoque do objeto amoroso.
  • A «fortaleza» representa o colonizador (Próspero).
  • O sujeito poético personifica Próspero, ou seu descendente.
  • «vejo-te adormecer na distância»  o sujeito poético mantém-se na exterioridade, na inevitável separação do objeto de posse colonial.
  • Há no poema um lamento mútuo, compartilhado se quisermos entre sujeito poético («faço-te estes versos/de sal e esquecimento») e o sujeito colonizado nele representado por «as gentes».
  • Será que se transforma o amador na cousa amada? Isto é: haverá uma identificação entre o seu sujeito poético e Caliban?
Na interpretação de Fátima Monteiro «o lamento, do sujeito poético em particular, deverá ser lido principalmente como entendimento pelo mesmo sujeito da sua condição trágica dum Caliban exilado na pátria. Uma condição que lhe permite o amargo prazer de, diferentemente de Próspero, sentir-se a si próprio, como as «ruas e velhas casas» a que alude o poema, «umprisioneiro» da história. Então, o sujeito poético de «Ilha dourada» é, finalmente, aquele que recebe de Próspero, ou do colonizador, um legado de expropriação que o converte, por ironia da mesma história, num sujeito, também ele, expropriado de naturalidade, melhor dizendo, de nacionalidade. (O país dos outros. A poesia de Rui Knopfli. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. Coleção: “Escritores dos países de língua portuguesa”, nº 32, p. 63)
           
             
           
          
MUIPÍTI

Ilha, velha ilha, metal remanchado,
minha paixão adolescente,
que doloridas lembranças do tempo
em que, do alto do minarete,
Alá  o grande sacana! – sorria
aos tímidos versos bem comportados
que eu te fazia.

Eis-te, cartaz, convertida em p uta histórica,
minha pachacha pseudo-oriental
a rescender a canela e açafrão,
maquilhada de espesso m'siro
e a mimar, prò turismo labrego,
trejeitos torpes de cortesã decrépita.

Meu Sitting Bull de carapinha e cofió,
têm-te de cócoras na sopa melancólica
de uma arena limosa e marinha,
gaivota tonta a adejar inutilmente
ao lume de água contra a amarra
que te cinge para sempre
ao bojo ventrudo do continente.

De teu, cultivam-te a vénia e a submissão
solícitas, trazidas nos pangaios
lá do distante Katiavar,
expondo-te apenas no que tens de vil,
razão talvez para que ao longe, de troça,
pisquem mortiças as luzes do Mossuril
ou sangre no meu peito esta mágoa incurável.

Mas retomo devagarinho as tuas ruas vagarosas,
caminhos sempre abertos para o mar,
brancos e amarelos filigranados
de tempo e sal, uma lentura
brâmane (ou muçulmana?) durando no ar,
no sangue, ou no modo oblíquo como o sol
tomba sobre as coisas ferindo-as de mansinho
com a luz da eternidade.

Primeiro a ternura da mão que modulou
esta parede emprestando-lhe a curva hesitante
de uma carícia tosca mas porfiada,
logo o cheiro do sândalo, o madeiramento
corroído da porta súbito entreaberta,
o refulgir da prata na sombra mais densa:
assim descubro subtil e cúmplice,
que a dura linha do teu perfil autêntico
te vai, aos poucos, fissurando a máscara.
               
Rui Knopfli, A Ilha de Próspero, 1972
          
            
VOCABULÁRIO:
Muipíti, Muhípitinome local da Ilha de Moçambique.
Remanchado: demoradoque fez borda com o maço no fundo de utensílios de metal.
Pachacha: partes pudendas da mulher.
M'siro: creme pastoso, de raiz de árvore, para o rosto das mulheres.
Cofió: barrete, fez (usado pelas tropas indígenas).
Katiavar: península indiana onde se situa a fortaleza de Diu.
Mossuril: vila moçambicana. Distrito da província de Nampula. Tem limite, a norte com o distrito de Nacala-a-Velha e com o município de Nacala Porto, a oeste com o distrito de Monapo, a sul e sudoeste com o distrito de Mogincual e a leste com o Oceano Índico e com o município da Ilha de Moçambique.
Bramanismo ou Brahmanismo: antiga filosofia religiosa indiana que formou a espinha dorsal da cultura daquela civilização por milénios. Estende-se de meados do segundo milénio a.C. até o início da era cristã. Persiste de forma modificada, sendo atualmente chamada de Hinduísmo.
          
            
LINHAS DE LEITURA DO POEMA «MUIPÍTI»
         
[…] O poema não patenteia a autoconsciência do contexto híbrido poetizado, mas expõe de forma veladamente desconstrutiva uma hibridização cultural em processo. A Ilha - Muipíti de seu nome africano - evocada pelo poeta é um espaço onde as fronteiras entre o Ocidente e o Oriente se diluem, onde Norte (Europa) e Sul (África) se fundem, onde a fronteira entre hinduísmo, cristianismo, islamismo ou animismo se confunde: «Mas retomo as tuas ruas vagarosas, / caminhos sempre abertos para o mar, / brancos e amarelos filigranados / de tempo e sal, uma lentura / brâmane (ou muçulmana?) durando no ar.» O sujeito poético estabelece no poema uma relação dia lógica entre si e o espaço de evocação, reconstituindo-se ao mesmo tempo uma outra relação, de cumplicidade, com esse espaço. Trata-se essa duma «relação amorosa» que, pelo caráter juvenil que lhe é atribuído, constitui depreensivelmente também uma relação amorosa marcante e definitiva para o sujeito poético.
[…] A simbologia da representação pela máscara surge evocativamente através de imagens sensoriais visuais («a dura linha do teu perfil autêntico»), tácteis («a ternura da mão que modulou / esta parede emprestando-lhe a curva hesitante / de uma carícia […] porfiada»), ou olfáticas («o cheiro de sândalo, o madeiramento / corroído»), correspondendo a cada uma destas imagens no sistema simbólico uma face distinta do seu perfil euro-afro-asiático. E, por detrás das máscaras que a pouco e pouco se fissuram pela desconstrução poética, a identidade múltipla da metonímica Ilha vai emergindo.
[…] Logo, enquanto parece enveredar pela apologia da hibridização, o sujeito poético de «Muipíti» envereda ao mesmo tempo por uma apologia da condição de «pureza» perdida por cada um dos elementos constitutivos da mesma entidade híbrida, particularmente a nativa africana. É desta apologia dum passado pré-colonial que emerge a crítica à dominação presente, refletindo o poema o verso e o reverso da experiência colonial. | Fátima Monteiro, O país dos outros. A poesia de Rui Knopfli. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. Coleção: “Escritores dos países de língua portuguesa”, nº 32, pp. 114-118.
               
            
 
church-of-san-antonio-island-of-mozambique_LUCA LOCATELLI

            

PRÓSPERO E CALIBAN
         
«No que foi talvez sua última peça, A Tempestade, escrita em 1610 ou 1611, aproximadamente trinta anos após o ensaio de Montaigne sobre os canibais, Shakespeare apresentou o personagem Caliban. Seu nome é um acróstico de canibal. Meio homem, meio animal, o único nativo da ilha, Caliban vive em um buraco na terra. Próspero assim o descreve: Um demónio, um demónio de nascença, sobre cuja natureza jamais pôde atuar a educação…» (Adam Kuper, A reinvenção da sociedade primitiva. Transformações de um mitoRecife, Ed. Universitária da UFPE, 2008.)
            
*
              
«Calibán es el nombre de un personaje de La tempestad, de William Shakespeare. En dicha obra, Calibán es un salvaje primitivo, esclavizado por el protagonista, Próspero, y representa los aspectos más materiales e instintivos del ser humano, frente al otro sirviente de Próspero, Ariel, que representa lo elevado y lo espiritual.
Este personaje ha sido reutilizado por la literatura posterior, reinterpretándolo como un símbolo del "hombre natural" de Rousseau, del materialismo frente al idealismo, de las clases sociales oprimidas por el capitalismo o de los pueblos colonizados.» («Calibán» Fontehttp://es.wikipedia.org/w/index.php?oldid=65277202Contribuições: Gallowolf, Garber, Kauderwelsch, Laura Fiorucci, Mutari, Netito777, Petronas, Raiz, Santiperez,VanKleinen, 30 edições anónimas. Consultado em 2013-07-07)
           
*
           
É certo que Caliban é descrito como um «escravo selvagem e disforme». Mas é mesmo assim, ou sobretudo porque assim, uma figura que fascina. Fascina porque viola a ordem estabelecida por Próspero, paradigma do civilizador. Mas também Próspero exige a nossa atenção, e um ponto de vista alternativo: serve-se da magia para controlar a ilha; só no fim abdica dos seus livros, da sua arte, e deixa seguir o curso natural das coisas. «Próspero representa a hierarquia europeia e o primado da linguagem. Caliban aprendeu esta linguagem mas só para amaldiçoar o que ela significa. Caliban apela aos instintos de rebelião porque desafia uma cultura dominante. Como força de oposição, o outro sobre o qual a cultura dominante projecta os seus medos da desordem, Caliban transforma-se num poderoso símbolo de resistência e transgressão». Cito aqui a obra de Alden T. Vaughan e Virginia W. Vaughan, Shakespeare's Caliban, A cultural history.(Cambridge University Press, 1991, pp. IX-X). (Apud «Shakespeare: Caliban ou as fulgurações da linguagem», Y. K. Centeno, HVMANITAS ‑vol. XLVII, 1995.)
       
*
       
Semelhantemente ao protagonista de A Tempestade (a que Rui Knopfli atribui o «título de propriedade» da Ilha de Moçambique), a obra de Rui Knopfli não deixa de refletir a opção do autor em permanecer numa linha de fronteira que lhe permitisse flexibilidade discursiva, a linha de uma media res ou «mediocridade» genérico-discursiva. Enquanto ao nível temático a obra de Knopfli se centra num mesmo tipo de relações de poder ‑ a relação entre colonizador e colonizado ‑ que vamos encontrar entre o Próspero e o Caliban de A Tempestade, sugere-se ainda consistentemente ao longo da mesma obra que cabe «responsabilidade» na protagonização do seu desenlace trágico à voz poética que nela se identifica com a de Próspero.
Até chegarmos a A Ilha de Prósperomais precisamente, Knopfli antecipa, pela voz do seu sujeito poético através da visão premonitória nele veiculada, que a «retirada» do colonizador no desenlace da história colonial lhe fora «fatalmente» determinada tanto pela opção pessoal de migração extraterritorial como pelo «sonho» de expansão imperial do Renascimento. Também como acontece em A Tempestade, a existência dum meio-termo discursivo-genérico adequa-se ao carácter intrinsecamente híbrido, e por isso também ambíguo e ambivalente do sujeito poético knopfliano, em particular aquele que representará a voz de Próspero na sua obra. Do Próspero de Shakespeare tem sido dito ser uma personagem ambígua, «complexa, errática e contraditória».
Como tem sido dito de Knopfli, assim também se tem dito de Próspero serem as suas «alianças» particularmente intrigantes, tendo em diferentes períodos a visão crítica, tanto de Próspero como de Caliban, variado de forma polarizada, ao longo dum espectro interpretativo que traz ressonâncias familiares no que respeita às leituras críticas de Knopfli. Mas, se por um lado pode ser feita uma aproximação da obra de Knopfli a partir da temática, bem como da ambiguidade e ambivalência do protagonista de Tempestade, é também apropriada a aproximação da obra do autor a partir da tragédia shakespeariana em geral, e, em particular, a partir das peças que lidam com as consequências trágicas da usurpação de poder.
Desnecessário será afirmar, por demasiado evidente, que a obra de Knopfli se presta a leituras e abordagens múltiplas e que a sua poesia se apresenta como um dos casos poéticos mais desafiadores no contexto das literaturas de língua portuguesa.(Fátima Monteiro, O país dos outros. A poesia de Rui Knopfli. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. Coleção: “Escritores dos países de língua portuguesa”, nº 32, pp. 169-170.)
               
            
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/07/09/ilha.de.prospero.aspx]