terça-feira, 27 de agosto de 2013

SÉTIMA CANÇÃO DA VIDA (Manuel da Fonseca)


   MANUEL DA FONSECA
             
                   
SETE CANÇÕES DA VIDA
SÉTIMA
          
Entontecido 
como asa que se abre para o azul
abarco a Vida toda
e parto
para os longes mais longes das distâncias mais longas
sei lá de que destinos ignorados!
Como pirata à hora da abordagem
grito e estremeço
liberto!
Grito e estremeço
perdido o sentido das pátrias
e a cor das raças,
livre para todos os caminhos dos homens!
Inebriado de posse
vou contigo, Vida,
como se fosses a minha namorada
e eu te levasse inteira nos meus braços!
Vida!
agora que comecei o poema que andava nos meus gestos
me arrepiava a carne e me tocava nos ouvidos como um eco,
tudo em mim grita a ânsia da largada: 
‑ os músculos, retesados nos braços prontos a todas as audácias,
os olhos jogados para a frente, jogados para a frente, 
e nas veias esta lava escaldante que corre e se dispersa 
com o rumor de mil milhões de abelhas saindo de mil cortiços 
para o sol!
             
Manuel da Fonseca, Rosa dos Ventos, 1940.
                  
                      
QUESTIONÁRIO SOBRE O POEMA
           
1. De entre as afirmações seguintes, identifique, através da alínea respetiva, a que melhor corresponde ao sentido do texto.
1.1. Ao longo do poema, o sujeito poético exprime:
a) O sonho da omnipotência
b) A euforia da liberdade
c) A partida para um destino concreto
1.2. A palavra “Vida” está com letra maiúscula porque:
a) É um substantivo comum
b) É um valor supremo para o poeta
c) Não se refere à vida terrena
1.3. Através da pontuação utilizada, o poeta revela:
a) Emoção
b) Revolta
c) Euforia
d) Indiferença
e) Desânimo
2. Retire do texto palavras do campo lexical de “totalidade”.
3. Escreva o sinónimo mais adequado para substituir cada um dos seguintes vocábulos do poema:
·         “entontecido” (v.1)
·         “abarco” (v.3)
·         “Ignorados” (v.6)
·         “inebriado” (v.14)
4. Refira antónimos de:
·         “abarco” (v.3)
·         “parto” (v.4)
·         “ignorados” (v.6)
·         “liberto” (v.9)
5. Estabeleça a correspondência entre as expressões e os recursos estilísticos:

·         Comparação

·         Apóstrofe

·         Personificação

·         Hipérbole

·         “como asa que se abre” (v.2)

·         “abarco a Vida toda” (v.3)

·         “vou contigo, Vida” (v.15)

·         “como se fosses a minha namorada” (v.16)
           
                  

INTERTEXTUALIDADE
         
Quando Jorge de Sena falava do «tom desataviado» da poesia de Manuel da Fonseca e do que nele terá desenvolvido «notavelmente as virtualidades humanísticas da liberdade expressiva criada por Álvaro de Campos e Alberto Caeiro» (in Líricas Portuguesas, 3ª série, Lisboa, Portugália Editora, 1958, p. 175), teria, segundo cremos, sobretudo em mente alguns textos de Rosa dos Ventos, de 1940, v. g., a última das «Sete Canções da Vida», em que é possível distinguir ecos da «Ode Marítima» («Como pirata à hora da abordagem / grito e estremeço / liberto! / Grito e estremeço / perdido o sentido das pátrias / e a cor das raças, / livre para todos os caminhos dos homens!», cuja presença se faz igualmente sentir em «Canção da Beira-Mar» (Rosa dos Ventos, 1940), (Compare-se, por exemplo, a segunda estrofe, «Que triste a nossa vida, / tudo temos: / barcos, remos e tripulação, / só nos falta partir…», com esta passagem da ode de Campos: «Ah, seja como for, seja para onde for, partir! / Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar, / Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstracta […»], ou ainda «Domingo» (idem), atrás do qual se desenha como intertexto «Adiamento» (O. P., pp. 368, 369), também de Campos, e de que Manuel da Fonseca poderá ter tido conhecimento através do nº 1 de Solução Editora, de 1929, sendo, todavia, impossível que do poema que começa «Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros», incluído pela primeira vez nas Poesias de Álvaro de Campos, de 1944, lhe tenha vindo qualquer sugestão inspiradora. De resto, o «domingo» também está presente em «Adiamento» («Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana. / Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…»), e é o programa que o sujeito aí, amarga e ironicamente, delineia («Depois de amanhã serei outro, / A minha vida triunfar-se-á») que se projeta, diluída, no entanto, a ironia, na «tenção» que anima o eu poético no texto de Rosa dos Ventos («Quando chega domingo, / faço tenção de todas as coisas mais belas / que um homem pode fazer na vida»; «Domingo que vem, / eu vou fazer as coisas mais belas / que um homem pode fazer na vida!»). Mas, pegando numa expressão que Maria de Lourdes Belchior utilizou a propósito de Joaquim Namorado, podemos dizer que a «sombra bruxa» que ronda os versos de Manuel da Fonseca, e muito especialmente os de Planície, o livro com que colabora no Novo Cancioneiro, é, não a de Caeiro ou Campos, mas, soberanamente, a do verbo bruxo e envolvente de Federico García Lorca (Cf. Manuel Simões, Garcia Lorca e Manuel da Fonseca – Dois Poetas em Confronto, Milão, Cisalpina-Goliardica, 1979).
               
Fernando J. B. Martinho, Pessoa e a Moderna Poesia Portuguesa (Do Orpheu a 1960)
Lisboa, ICLP, Coleção Biblioteca Breve, vol. 82, 1983, pp. 82-83.
                
                
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 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html

 

 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                  

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/27/setima.cancao.da.vida.manuel.fonseca.aspx]

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

PRIMEIRA CANÇÃO DA VIDA (Manuel da Fonseca)


 
              
              
SETE CANÇÕES DA VIDA
PRIMEIRA
          
Vida:
sensualíssima mulher de carnes maravilhosas
cujos passos são horas
cadenciadas
rítmicas
fatais.
A cada movimento do teu corpo
dispersam asas de desejos
que me roçam a pele
e encrespam os nervos na alucinação do “nunca mais”.
Vou seguindo teus passos
lutando e sofrendo
cantando e chorando
e ficam abertos meus braços:
nunca te alcanço!
Meu suplício de Tântalo.
Envelheço...
E tu, Vida, cada vez mais viçosa
na oscilação nervosa
das tuas ancas fecundas e sempre virgens!
À punhalada dilacero a folhagem
e abro clareiras
na floresta milenária do meu caminho.
Humildemente se rasga e avilta
no roçar dos espinhos
minha carne dorida.
E quando julgo chegada a hora
meu abraço de posse fica escancarado no ar!
Olímpica
firme
gloriosa
tu passas e não te alcanço, Vida.
Caio suado de borco
no lodo...
O vento da noite badala os ramos
sarcasmos canalhas.
Não avisto a vida!
Tenho medo, grito.
Creio em Deus e nos fantásticos ecos
do meu grito
que vêm de longe e de perto
do sul e do norte
que me envolvem
e esmagam:
‑ maldita selva, maldita selva,
antes o deserto, a sede e a morte!
                  
Manuel da Fonseca, Rosa dos Ventos, 1940.
                  
                      
Vida! Essa é a palavra que pode ser considerada a temática central da produção poética de Manuel da Fonseca. Uma vida que o tempo todo é buscada e desejada com grande ansiedade, mas que escapa por entre os dedos e não permite que seja vivida. De acordo com Mário Dionísio (in “Prefácio” a Obra Poética, Manuel da Fonseca, 1984, 7ª ed. Revista pelo autor, p. 37),
Toda a temática de Manuel da Fonseca se reduz a dois motivos, intimamente solidários, que, em vários tons e andamentos, sem cessar se repetem: uma ansiedade de viver em conflito com uma realidade social que torna essa vida impossível de ser plenamente vivida e uma decisão de intervir nos destinos do mundo, o que, optando por um ato de desespero, acaba por esbarrar com a sua própria ineficácia que, entretanto, se não reconhece como tal e torna, assim, possível o constante recomeço. Do primeiro ao último dos poemas de Fonseca, incluindo tudo o que na sua prosa é ainda poesia, esses dois motivos maiores, desdobrados, ou reduzidos a pequenas sínteses, se entrecruzam e repetem.
              
A ânsia de viver do eu-lírico se revela no primeiro poema – Primeira – da primeira parte intitulada Sete canções da vidado livro Rosa dos Ventos. Este poema é praticamente um hino à vida.
Neste poema, o eu-lírico compara a vida à mulher, uma bela mulher com movimentos sensuais que despertam o seu desejo de vivê-la em plenitude. Para caracterizá-la, o poeta se utiliza de expressiva adjetivação, qualificando-a como “sensualíssima”, de “carnes maravilhosas”, cujos passos são como as “horas”: “cadenciadas”, “rítmicas”, “fatais”. E a cada movimento do “corpo” dessa mulher, da vida “dispersam asas de desejos” que “roçam a pele” do eu-lírico e fazem seus “nervos” se encresparem em uma alucinação de que “nunca mais” conseguirá captar aquele momento, aquele movimento, aquela sensação. O desejo, a obsessão por “possuir” essa mulher, essa vida são ressaltados pelas ações que o eu-lírico empreende com essa finalidade:
Vou seguindo teus passos
lutando sofrendo
cantando 
chorandoe ficam abertos meus braços:
nunca te alcanço!
                
O encadeamento das ações através do uso dos verbos no gerúndio dá a ideia de uma continuidade indefinida das ações empreendidas pelo eu-lírico para prender em seus braços essa mulher, essa vida tão desejada. No entanto, apesar de todos os seus esforços, ele não consegue alcançá-la e essa impossibilidade, essa frustração é enfatizada pelo uso do advérbio “nunca”. Considerando tal contradição, o eu-lírico pensa estar vivendo o suplício de Tântalo, figura da mitologia grega, filho de Zeus, que após cometer muitas maldades foi castigado pelos deuses com o suplício de fome e sede eternas. Roque Schneider (in A fascinante Grécia: seus jogos olímpicos, seus heróis e sua mitologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 76) descreve o suplício de Tântalo desse modo:
               
Um rio roçava seu pescoço, mas quando se inclinava para beber, as águas retrocediam, baixavam.
Esplêndidos galhos, carregados de suculentas frutas, balançavam-se à sua frente. Quando alongava os trêmulos braços para colhê-las, o galho se afastava, escapando do seu alcance.
Desespero maior ainda: um enorme rochedo pendia sobre sua cabeça indefesa, ameaçando desabar a qualquer momento. E o medo da morte passou a atormentá-lo, a tirar-lhe o sono, dia e noite.
Faminto, sedento e mortalmente atormentado, Tântalo gemia inconsolável: - Ingrato e cruel destino... Infeliz o dia em que nasci!
             
Essa alusão ao suplício de Tântalo no poema é bastante coerente. Afinal, assim como o personagem mitológico que sente fome e sede e não consegue se alimentar, pois apesar de a comida e a bebida “parecerem” estar ao seu alcance elas escapam ao toque das suas mãos, o eu-lírico do poema se sente, do mesmo modo, em relação à vida. Ele tenta ardentemente alcançá-la, mas não consegue e a vida assim passa pelo eu-lírico, deixando-o marcado pelo tempo. Por outro lado, a vida continua cada vez mais bela, mais fértil e intacta:
Envelheço...
E tu, Vida, cada vez mais viçosa
na oscilação nervosa
das tuas ancas fecundas e sempre virgens!
              
Mas o eu-lírico não desiste de tomar posse dessa mulher, dessa vida tão desejada e por isso luta ferozmente para atingir tal objetivo:
À punhalada dilacero a folhagem
e abro clareiras
na floresta milenária do meu caminho.
Humildemente se rasga e avilta
no roçar dos espinhos
minha carne dorida.
              
A ferocidade com que o eu-lírico explora a “floresta” é notada através dos vocábulos utilizados pelo poeta para descrever a exploração: “à punhalada dilacero a folhagem” “e abro clareiras”, chegando até a sua “carne” se rasgar e aviltar ao “roçar os espinhos”. Mas, quando o eu-lírico supõe que enfim conseguirá apreender a vida, o seu “suplício de Tântalo” persiste. A vida, por outro lado, mantêm-se intocável e vigorosa, como é ressaltada pelo uso dos adjetivos “olímpica”, “firme” e “gloriosa” para caracterizá-la:
E quando julgo chegada a hora
meu abraço de posse fica escancarado no ar!
Olímpica
firme
gloriosa
tu passas e não te alcanço, Vida.
              
Diante desse conflito existente entre a ânsia de viver e a impossibilidade de vivê-la em decorrência da realidade social adversa, o eu-lírico se cansa: “Caio suado de borco / no lodo...”, perde-se da vida: “Não avisto a vida!” e é tomado pelo desespero. E assim como o personagem mitológico Tântalo que diante do seu suplício maldiz o dia em que nasceu, o eu lírico do poema também acaba preferindo a morte, já que não consegue viver intensamente.
Tenho medo, grito.
Creio em Deus e nos fantásticos ecos
do meu grito
que vêm de longe e de perto
do sul e do norte
que me envolvem
e esmagam:
‑ maldita selva, maldita selva,
antes o deserto, a sede e a morte!
             
Essa ânsia de viver e a sua impossibilidade fazem com que o poeta sinta necessidade de agir para que essa vida tão intensamente desejada torne-se realidade e não somente uma idealização.
                 
Dissertação de mestrado de Rosilda de Moraes Bergamasco, 
Universidade Estadual de Maringá, 2012, pp. 77-80.
               
                
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 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html

   
                 
[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/26/primeira.cancao.da.vida.manuel.da.fonseca.aspx]

domingo, 25 de agosto de 2013

ISTO VAI MEUS AMIGOS ISTO VAI (Ary dos Santos)


                
           
O FUTURO

Isto vai meus amigos isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente 

Isto vai meus amigos isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente

Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.

O que é preciso é termos confiança
se fizermos de maio a nossa lança
isto vai meus amigos isto vai.
                   
José Carlos Ary dos SantosO Sangue das Palavras, 1978
                


               
                   
QUESTIONÁRIO
            
1. Atente na globalidade da mensagem do poema.
1.1. Indique razões para o privilégio dado ao tempo Futuro no poema.
2. Atente no primeiro verso: "Isto vai meus amigos isto vai".
2.1. Sugira um referente para o pronome demonstrativo, tendo em conta o contexto de produção do poema.
2.2. Identifique o destinatário do poema, apoiando-se em elementos textuais.
2.3. Explique o que se sugere com a repetição deste verso.
3. Considere o título do soneto e as referências temporais presentes no texto.
3.1. Relacione-os com os tempos verbais predominantemente utilizados no soneto.
3.2. Explique a simbologia dos meses "Abril" e "Maio" para essa ideia de futuro.
4. Retome a abordagem global do poema.
4.1. Avalie a adequação da forma estrófica ao conteúdo.
4.2. Demonstre a expressividade de recursos estilísticos para a mensagem transmitida.
             
(Das Palavras aos Actos. Ensino Secundário. 10.º Ano, 
Ana Mª Cardoso, Célia Fonseca, Mª José Peixoto, Mª Manuela Seufert, Porto, Edições Asa, 2007)
                
               
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 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                 

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/08/25/o.futuro.ary.dos.santos.aspx]