terça-feira, 3 de setembro de 2013

RENDIMENTO (Jorge de Sena)


             
             
RENDIMENTO

Estava sentado no degrau da porta.
encostado à ombreira,
numa rua de ligação, sem montras,
onde só passam carros e as pessoas a encurtar caminho.

A face pálida, boca entreaberta,
barba por fazer e o cabelo em repas desoladas.

Dificilmente respirava, nada seguia com os olhos,
era muito abertos, ora piscando muito.

No regaço, e protegido pelos joelhos agudos,
tinha um boné no qual
esmolavam os transeuntes.

Da lapela, preso por um alfinete,
pendia amarrotado e sujo um boletim
da Assistência Nacional aos Tuberculosos.

Era o cartão de visita, o bilhete
de identidade, a certidão, a carta
de curso, a apólice de seguro,
o título do Estado.
E, no boné, como se vê, caía o juro.
               
Jorge de Sena, 25 de junho de 1946.
             
             
LEITURA ORIENTADA DO POEMA «RENDIMENTO»
             
forma: como em geral a poesia do autor, o poema não obedece à métrica, nem à rima e as estrofes variam conforme a sua sensibilidade artística e o seu pensamento entende construí-Ias.
Este poema é constituído por seis estrofes com um número de versos variável – duas são dísticos – as mais curtas – o primeiro dos quais sem predicado como convém às linhas sóbrias do quadro que apresenta. A medida dos versos também é variável; não há estrofes isométricas. Os versos mais curtos têm seis sílabas, o mais longo tem dezassete: «Dificilmente respirava, nada seguia com os olhos.» Predominam os versos de dez sílabas; mas há-os de seis, oito, nove, onze, doze, catorze, quinze e dezasseis. Os versos são brancos e terminam predominantemente com palavras graves, com exceção de qual... boletim – o que alonga o quadro que o poeta nos apresenta.
O tempo verbal predominante é o imperfeito – um quadro, a sua descrição e, daí, o tempo: estava, respirava, tinha, esmolavam, pendia, era, caía. É uma pequena poesia de natureza descritiva e isso justifica a relativa abundância de adjetivos e desubstantivos concretos:

adjetivos:

substantivos:

pálida

entreaberta

desoladas

abertos

agudos

amarrotado

sujo

           

          

degrau

porta

ombreira

rua

ligação

montras

carros

pessoas

caminho

face

boca

barba

cabelo

olhos

regaço

joelhos

boné

tuberculosos

cartão-de-visita

bilhete de identidade

certidão

carta de curso

apólice de seguro

título do Estado

juro

            

                
                
Estes substantivos agrupam-se de acordo com o esquema da composição. Os nove primeiros situam-nos no espaço. Os outros nove apontam-nos a personagem que nele se integra. Todos os restantes colocam-nos perante a crítica irónica e mordaz do poeta. Temos, assim, o esquema significativo de um texto: a apresentação do lugar, aexplicação do que nele ocorre (a chamar a atenção dos transeuntes, entre estes, a do autor) e a conclusão.
À simplicidade do quadro, naturalmente pobre, quer pela figura nele situada, quer por se tratar de uma rua de ligação, sem montras que despertassem a atenção dos transeuntes, corresponde uma construção sintática igualmente simples. Apenas duas orações relativas: onde só passam... e no qual esmolavam, e uma comparativa – comose vê. Todas as mais frases se ligam, em geral, de uma forma assindética, a copulativa só aparece quatro vezes e a disjuntiva ora... ora – o que permite ao autor vincar melhor as pinceladas do quadro que nos oferece.
Estamos, pois, perante uma poesia que faz de Jorge de Sena um poeta engagéa oferecer-nos uma imagem que, alguns bons anos atrás, era muito frequente na cidade do Porto, à porta das ilhas, onde a tuberculose grassava assustadoramente, atingindo, em especial, os que viviam em condições precárias de higiene, eram mal alimentados e trabalhavam duramente. Todas as linhas de que o poeta se serve para nos apresentar este quadro, infelizmente tão prolífero, como dissemos, estão marcadas por uma visão profundamente realista. Tudo nele denuncia:
– doença: a face pálida, a boca entreaberta (sinal de respiração difícil como diz mais em baixo), os olhos a nada se prendiam e viam-se ora muito abertos, ora piscando muito, os joelhos agudos – descarnados, portanto.
 A miséria: barba por fazer, o cabelo em repas desoladas (aqui o poeta transpõe para as repas, por hipálage, o estado psicológico do doente – desolado pela doença e pela necessidade de pedir para continuar a sobreviver); no regaço um boné no qualesmolavam os transeuntes (fazemos uma chamada de atenção para o emprego do verbo esmolar que carrega as tintas do quadro); da lapela, preso por um alfinete pendiaamarrotado sujo.
A sexta estrofe com a função metalinguística em ação ao serviço da ironia do poeta é a interpretação mordaz que este sugere do boletim do Assistência Nacional aosTuberculosos ao qual o poeta atribui vários significantes: cartão-de-visita, bilhete de identidade, certidão, carta de curso, apólice de seguro, título do Estado. O poema termina com um verso que justifica o seu título – Rendimento que, já por si, poderia ser positivo, mas que num poeta como Jorge de Sena só pode ser de sinal negativo, o qual ironicamente se afirma ao longo dos vários momentos que desdobrámos eprincipalmente no laconismo da conclusão: «E no boné, como se vê, caía o juro.»
O poeta coloca-nos perante um certo estaticismo quer quanto ao espaço, quer quanto à personagem que nele deteta: estava sentadoencostado, nada seguia – a qual transmitia a sua mensagem de pedinte no boné situado entre os joelhos e no boletim – espécie de ferrete que incomodava muita gente. O pobre não emite mensagens orais. A contrastar com este estaticismo, pelo contrário, um dinamismo evidente nas breves pinceladas do quadro que traça o poeta e na catadupa de significantes que desbobina na última estrofe, na qual, depois das várias tentativas de explicação que procura dar do boletim, com substantivos apenas separados por vírgulas, é posto em evidência o último verso, introduzido pela copulativa, martelado com as três pausas – «E, no boné, como se vê, caia o juro.» – para pôr em evidência o terceiro e o último dos significantes do boletim e, desta forma, transmitir a sua crítica servindo-se da conotação hiperbólica.
Preferimos o comentário deste simples poema, quer pelo que a nós nos diz o quadro nele oferecido, quer por nos parecer de fácil apreensão para os alunos. Valeria a pena perdermo-nos na tentativa de explicar poemas que não só não constituem realidades para todos, que são como que um labirinto de Creta cuja saída muitas vezes não se descobre? Ou um poema rico de sentido como Advertência (Perseguição) mas demasiado curto: «Ah meu Deus! Se toda esta tristeza, Se toda esta consciênciaamarga do desprezo alheio, Se toda esta raiva contra mim, / Se toda a melancolia que essa raiva me deixa, / são unicamente para que saia um poema... // Podes ter a certeza que o esmago.»? Como vemos, também neste pequeno poema estão contidas algumas linhas de força da poesia de Jorge de Sena.
Literatura Prática (sécs. XIX-XX) 11º Ano, Lilaz Carriço, Porto Ed., 1986 (4ª ed.), pp. 504-505.
                    
         
JORGE DE SENA
                    
                              
JORGE DE SENA  (1919-1978)
perfil literário
            
Jorge de Sena nasceu em Lisboa, em 2 de novembro de 1919. Formou-se primeiro em Engenharia e em 1964 doutorou-se em Letras exercendo a sua carreira nos Estados Unidos.
Foi ensaísta, dramaturgo, conferencista e historiador da cultura, crítico, tradutor de poetas, contista e poeta, sua faceta mais valiosa. Participou como editor dosCadernos de Poesia. É uma personalidade de mérito que se afirma pela sua vasta cultura, pela sua criatividade.
Segundo declarou numa revista, a sua poesia «se representa alguma coisa, representa: um desejo de independência partidária da poesia social; um desejo de comprometimento humano da poesia pura; um desejo de expressão lapidar, clássica, da libertação surrealista; um desejo de destruir pelo tumulto insólito das imagens qualquer disciplina ultrapassada (e assim: a lógica hegeliana deve sobrepor-se à aristotélica; uma moral sociologicamente esclarecida à moral das proibições legalistas): e sobretudo um desejo de exprimir o que entende ser a dignidade humana – uma fidelidade integral à responsabilidade de estarmos no mundo».
Por isso, oferece-nos uma poesia muito original quanto à estrutura e com um vasto leque de motivações: a arte nas suas múltiplas facetas ­ música, artes plásticas... Rejeita o lirismo «(d)as canções azuis / dos pássaros moribundos» como diz José Gomes Ferreira em poemas «pouco agradáveis, ou não agradáveis de entender para quem deseja que a poesia lhe não abale as confortadoras e confortadas seguranças estéticas ou outras.»; como diz no prefácio de Trinta Anos de Poesia e dá-nos antes um lirismo rico de conceitos a tal ponto que exige do leitor uma leitura muito atenta e intensiva para se poder entender. É certamente esta apetência conceitual que faz dos seus ensaios algo de interessante pela coragem e independência com que se revela perante a «dura verdade» que não teme dizer, sobressaindo, pois, neles como na sua poesia, a sua grande capacidade crítica, mesmo presente nas escassas tentativas da novela.
No estudo da poesia de Jorge de Sena, tão aprofundado quanto nos foi possível, pudemos descobrir a personalidade de certo modo curiosa que se nos oferece. Ora nos leva até aos meandros mais sinuosos do seu pensamento em construções de frases que tornam herméticas muitas das suas poesias, ora nos revela o homem, homem, em que o sexo e o corpo se sobrepõem ao espírito (Denúncia  Perseguição); ou o homem marcado por um certo desencanto e, por isso, com momentos abundantes e significativos do seu negativismo, «Eu ouço a minha voz» (Pedra Filosofal): «Eu ouço a minha voz com desencanto. / Foi antes dela o meu encantamento, / Não é já meu o encantamento dela. / Qual a vida tão triste numa distância de amor, / Se ilumina mais tarde para uma noite de ausência, / e é como se amanhã estivesse à minha espera / alguém que eu tenha esperado inutilmente.»; Não sei, meus versos: «Não sei, meus versos, que dizeis de mim. / Calou-se o tempo em que dizer só era / Nossa alegria, vossa esperança ingénua / de a minha vida vos servir de amor.»; última palavra  «Quiserade outra morte conhecer-me inteiro, / que não fosse de outrora esta ciência densa / de já saber sem nome tudo o que acontece.»; «És como um grande silêncio...»; ou o homem que pensa e ultrapassa, desmonta uma religião que nada lhe diz, brincando, até, com ela (relativo a Deus em Declaração) (em Perseguição, em Unidade, emPurificação da Unidade, Caverna, Pentecostes), e com outras que têm existido no mundo; ou o homem que vive e exprime a angústia da morte por vezes escondendo-a num pseudo-humorismo; ou o homem intelecto (em Conquista – Perseguição) que foge ao convencional, ao comum e se transmite em voos de pensamento labirínticos «Que importa que todos me esqueçam mesmo sem querer? / … / … se eu sou tão desgraçado, tão ímpar, tão mental / que tenho voluntariamente / desejar amá-los.» (Perseguição – Contrição.); ou o homem que sente na carne a amargura do seu destino de exilado e desabafa em versos que são, umas vezes, os versos do frustrado, do desencantado num mundo que não é o seu, outras vezes, verdadeiras vergastadas com a língua, em versos mordazes, contundentes, onde a ironia é uma arma terrível; ou é o homem poeta tal como diz Manuel da Fonseca: «Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório / sai uma estrela voando nas trevas, / Tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes. / E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.» – o qual também se empenha em denunciar muitas das inúmeras situações de injustiça que sofrem e suportam os não favorecidos pelo destino e que são a grande maioria da humanidade: Em Sem Data – (Perseguição) confessa o remorso de só ter gritado às vezes.
Ora, esta atitude é aquela que, a nosso ver, mais vincadamente transparece na poesia de Jorge de Sena. Citamos, entre as que fomos indicando: Os Paraísos Artificiais, «Quem a tem...», Camões dirige-se aos seus contemporâneos, Tentações do Apocalipse, Natal de 1971«Estão podres as palavras»; – e o poema Rendimento do qual vamos apresentar alguns aspetos que nos pareceram mais significativos. […]
Literatura Prática (sécs. XIX-XX) 11º Ano, Lilaz Carriço, Porto Ed., 1986 (4ª ed.), pp. 502-504.
            
               
Apesar de esta tendência, que aqui designamos como poesia de intervenção, não existir enquanto movimento literário autónomo (e, em rigor, com ela possamos relacionar autores das mais distintas profissões de fé estético-literárias), adotamos a proposta terminológica sugerida por Óscar Lopes: «Em termos de poesia de qualidade, não é possível isolar uma tendência de intervenção política ou de intenção realista, pois ela manifesta-se, e por vezes de modo bem vivo, em obras de sensibilidade tão diferente como as de Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner, Alexandre O’Neill […] Vamos no entanto agrupar um conjunto de poetas cuja fase de consagração se liga a uma clara atitude de polémica ou de crítica social (Lopes e Saraiva, 1996:1069)
Sílvia Marisa dos Santos Almeida Cunha
Universidade de Aveiro- Departamento de Línguas e Culturas, 2008, p.47
            
            
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 Ler Jorge de Sena (® 2010 Universidade Federal do Rio de Janeiro)
 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro
   
                        

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/03/rendimento.aspx]

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

PAR DEUS, COITADA VIVO (CANTIGA DE AMIGO)

                
                  
A ausência do amigo (possivelmente por estar de serviço ao rei) desespera a menina que ameaça soltar os cabelos e largar as ofertas dele como forma de mostrar que está desimpedida.
              
            

                    
                
          
Par Deus, coitada vivo,
pois non ven meu amigo;
pois non vem, que farei?
meus cabelos, con sirgo
eu non vos liarei.

Pois non ven de Castela,
non é viv’, ai mesela,
ou mi-o detem el-rei:
mias toucas da Estela,
eu non vos tragerei.

Pero m’eu leda semelho,
non me sei dar conselho;
amigas, que farei?
en vós, ai meu espelho,
eu non me veerei.

Estas doas mui belas
el mi-as deu, ai donzelas,
non vo-las negarei:
mias cintas das fivelas,
eu non vos cingerei.
            
Pêro Gonçalvez Portocarreiro
          
Fontes manuscritas:
BN 918 / V 505
          
Versões musicais:

Composição/Recriação moderna


Cancioneiro medieval 

Versão de Tomás Borba


Por Deus coitada vivo (Cantigas Jazz Suite - amores de adorar e dores de amor)      versão audio disponível

Versão de Abé Rabade


Por Deus, coitada vivo      versão audio disponível

Versão de Carlos Villanueva, In Itinere: Grupo Universitário de Câmara de Compostela

             
Glossário e notas (©2011-2012 Littera – FCSH) :
v.4: sirgo - fio de seda
v.5: liar - ligar, atar
v.7: mesela - miserável, desgraçada
v.9: Estela - Povoação de Navarra, a oeste de Pamplona, e em pleno coração do reino navarro (aqui indicará um tecido aí fabricado)
v.11: Ainda que eu pareça alegre
v.12: conselho - remédio, solução
v.16: doa - dádiva, presente
v.18: negar – esconder
v.19: As cintas (faixas ou cintos) eram presentes habituais entre namorados (bem como as toucas, antes referidas)
           
Descrição dos processos formais de versificação:
Cantiga de Amigo
Mestria
4 estrofes singulares quanto à rima e uníssonas quanto à rima b: 6’a   6’a   6b   6’a   6b
Todas as estrofes são capdenals (v. 5)
Palavra-rima: «que farei»
              
Leitura:
            
Na cantiga “Par Deus, coitada vivo”, a menina espera por seu amigo (namorado), queixando-se às confidentes por ele não voltar. Num dos versos percebe-se o motivo da sua ausência: “ou mi-o detem el-rei”.
A menina, apesar de ter recebido presentes (dõas) que indicam compromisso ‑ o sirgo (fita) e a touca ‑, perante a demora do seu amigo, fica indecisa, colocando a possibilidade de romper com a relação caso ele não apareça, nomeadamente quando diz que não se enfeitará com os presentes que dele recebeu, dando, assim, a entender que está desimpedida.
Para continuar a leitura desta cantiga, consulte a orientação didática que consta em professoraelianatedesco.blogspot.pt.
                
Questionário:

Apresenta, de forma bem estruturada, as tuas respostas aos itens que se seguem.
1. Classifica a composição poética quanto ao género literário, justificando.
2. Identifica dois traços do perfil psicológico do sujeito poético, exemplificando a tua resposta com elementos textuais.
3. Comenta o valor expressivo da anáfora ao longo da composição poética.
4. Mostra de que forma a confidência amorosa está presente na composição poética.
5. Explicita o valor simbólico que as “doas” adquirem nesta composição poética.
                Encontros • Português, 10.º ano • Caderno do Professor


Ilustração de Marta Madureira para a cantiga de amigo
«Estava eu na ermida de São-Simeão», in P8, Texto Editora, 2012


CENA DE AMOR NA IDADE MÍDIA
                
Sinto uma paixão extrema por esta cantiga de amigo de Pero Gonçalves. Penso um dia dedicar-lhe todo um ensaio. Ou, talvez, tudo acabe como agora em considerações motivadas por interesses afins.
Há, no poema de Echevarría, um tempo futuro em que congelados, feito imagens, havemos de ficar olhando a barra do horizonte. Um tempo sem expectativas? Espectadores sem futuro? Não, se a figura da morte presente no poema não for reduzida à ideia de fim. Alguém, como quem mexe um botão ou abre um livro, pode vir a nos ligar, mantendo o "espaço aberto".
No fundo, é isto que me encanta há muito nesta cantiga medieval.
Idade Média, tempo em que amar seguia os rigorosos padrões da "arte de trobar", segundo sobretudo os preceitos da cantiga de amor, em que ele, o amador, mesmo que coitado, era o autor da sua própria dor de amor, o senhor da sua "coita". Amar à maneira de amigo era ele fazer uma cantiga para ela, a amiga, que ora era a filha "velida" a driblar a censura da mãe ou o olhar cúmplice da ama; ora, uma pobre coitada a carregar sobre o próprio corpo as leis de um Estado em que Deus e El-Rei eram os senhores absolutos da lei e da grei.
E é esta última, a coitada, a que fala às amigas na cantiga de Pero Gonçalves.
O que, afinal, me encanta nessa cantiga?
Simplesmente isto: um corpo de mulher que se desnuda dos excessos das convenções do amor.
Mas esse corpo é ele mesmo um objeto extraordinário, já que dá a ver para muito além da sua nudez. "Fremosa e não segura". Feliz ou desgraçada? Pouco importa. A resposta mais justa tem de levar os dois estados em conta. É toda ela um corpo acumulativo, pois quanto mais se despoja dos objetos de adorno - as "dõas", ou seja, as prendas do enxoval que asseguram a promessa de casamento do soldado-cavaleiro a serviço da pátria - mais se cobre dum vestido de talho mais justo e rigoroso, como se fosse um estranho adereço, o avesso da liberdade nua e crua. E, nesse sentido, apresenta-se a hipótese do trabalho interpretativo desta comunicação: "Dõas mui belas", significam, em suma, que, desde o princípio da literatura, a qualidade do amor é um valor quantitativo.
Sim, é isto, sendo mais que isto. Pois, quanto mais se afasta do recato que guarda a "prez" impulsionadora do cantar de amor, mais a amiga se fará objeto de escárnio e maldizer, o que significa, no âmbito do poético, um sujeito digno de deslouvor, ou mais tragicamente ainda, no nível da censura imposta à ordem social, poder vir a ser a imagem da bela jovem que pelo amor-paixão vai-se transformando até chegar, louca de amor, morta por amor, à figura horrenda de si, a metamorfose limite: a feiticeira.
Optando por não se reconhecer no espelho - numa atualíssima dualidade em que o leitor não sabe se se trata do espelho ele mesmo ou das outras donzelas, reflexo especular da virgindade - a jovem põe a nu, interpelando-o, "o aparato verbal e a sociedade a que serve" (L. C. Mímesis Lima, Desafio ao Pensamento. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 334).
Preferimos lê-la assim, "espaço aberto": um corpo generosamente fraturado que se projeta para o futuro; uma referência não abolida, mas fortemente abalada nas suas formas sociais e culturais. Ao fim e ao cabo, mesmo que o que mude seja o "género" de composição em que ela venha a ser cantada ou, à força, contra a sua vontade de potência, lhe seja reservada a fogueira da Santa Inquisição, essa mulher está a caminho de uma outra idade. Uma alteridade.
Toda a beleza será louvada assim como toda a nudez será castigada? (Tempo houvesse, seria interessante uma comparação entre a cantiga de amigo de Pero Gonçalves, a "Balada apócrifa" de Luiza Neto Jorge e a "Inês de manto" de Fiama Hasse Pais Brandão: "Olhai os lírios do campo/meninas de saia rodada/íris de teias de aranha/desvendam o mar nas searas [...] // Os soldados em manobras/têm noite por espingarda/Colhei os lírios do corpo/meninas de saia travada" (Jorge, 1993:46); "Teceram-lhe o manto/para ser de morta/assim como o pranto/se tece na roca [...] // O vestido dado/como a choravam/era de brocado/não era escarlata//Também de pranto/a vestiram toda/era como um manto/mais fino que roupa", F. H. P. Brandão, Obra Breve. Lisboa, Teorema, [1991], p. 31-2).
Não sei. Sei que vem se aproximando uma outra imagem no espelho. Descabelada, destoucada, desagrilhoada, logo, sem rosto. Nua em pêlo, portanto? Melhor, em cabelo. Essa pode ser a expressão movente da imagem dessa donzela como representação-efeito de um sujeito fraturado em trânsito na literatura portuguesa. Seja o exemplo das mães desesperadas pela partida dos filhos no início da conquista das Índias, n'Os Lusíadas ("Qual em cabelo: 'Ó doce e amado esposo'", IV, 91,1), seja o exemplo dos desempregados do fim das Índias, os comerciantes aborrecidos, em "O sentimento dum ocidental" de Cesário Verde ("Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!", J. F. Silveira, Cesário Verde: Todos os Poemas. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995, p. 117). Cesário, um poeta que está na zona de turbulência desse roteiro e que tem tudo a ver com a questão proposta por este Seminário. Cenas da vida moderna e mundialização da cultura: "Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, o mundo".
O mundo? "Que mundo! Coitadinha!" (Silveira, 1995:95). Talvez o poeta de "Contrariedades" respondesse assim à questão, ele, que meditando sobre a Idade Média e a sociedade mercantilista, revelou-se um exacerbado analista de corpos mortificados pelo trabalho no espaço aberto pela modernidade, em que assistia ao declínio da aura e do sentido do belo. ("Eu que medito um livro que exacerbe,/Quisera que o real e a análise mo dessem" são versos hoje célebres de "O sentimento dum ocidental".)
                
Ler mais: Jorge Fernandes da Silveira, Revista SEMEAR 6, Rio De Janeiro, 21 de novembro de 2000
                
                
INTERTEXTUALIDADE
                
Um exemplo de uma tendência de retoma intertextual […] é constituído pelo poema «Desalento» de João de Deus, que ostenta o sintomático subtítulo de «Retoque da lírica DV do Cancioneiro da Vaticana». O autor de Campo de Flores reescreve o poema de Pêro Gonçalvez de Portocarreiro, atualizando a sua linguagem e aproximando-o transitivamente dos leitores. Esta reelaboração poética reativa semanticamente a composição multissecular, abrindo-lhe novos horizontes interpretativos:
                
DESALENTO

Trago uma cisma comigo:
Não torna o meu terno amigo!
Triste de mim, que farei!
Cabelo, já não te ligo…
Nunca mais te ligarei!

Lá se finou em Castela…
Vede que desgraça aquela!
Ou lá mo detém el-rei!
Toucas da serra da Estrela,
Já nunca mais vos porei!

Se um ar alegre assemelho,
Ai amigas, sem conselho
Nem juízo, que farei!
Já me não assomo ao espelho…
Nem jamais me assomarei!

Ricas prendas! Todas elas
Me deu ele: sim, donzelas,
Que não vo-lo negarei!
Ah meu cinto de fivelas,
Nunca mais te cingirei!
                
João de Deus, Campo de Flores, 1893
                
Como vemos, João de Deus, através da paráfrase, manteve-se muito próximo do arquétipo de Portocarreiro, conservando a estrutura estrófica e rimática e preservando, ao nível sémico e temático, o seu conteúdo, atualizando apenas alguns vocábulos (mesela/desgraça; leda/alegre; doas/prendas;).
                 
Un Chant Novel: A inspiração (neo)trovadoresca na poética de Jorge de Sena, Sílvia Marisa dos Santos Almeida CunhaUniversidade de Aveiro- Departamento de Línguas e Culturas, 2008, pp.
                 
                 
João de Deus de Nogueira Ramos nasceu em São Bartolomeu de Messines, Algarve, no dia 8 de março de 1830 e faleceu em Lisboa no dia 11 de Janeiro de 1896. Frequentou o curso de Direito na Universidade de Coimbra e, acabado o curso, dedicou-se ao jornalismo e à advocacia em Coimbra, Beja, Évora e Lisboa. Ligado inicialmente ao ultra-romantismo, depressa o abandonou seguindo uma estética muito própria. As suas poesias foram reunidas na colectânea Campo de Flores, publicada em 1893, incluindo-se nesta duas obras anteriores: Flores do Campo e Folhas Soltas. Dedicou-se à pedagogia, resultando daí a Cartilha Maternal, publicada em 1876 e tendo como fim o ensino da leitura às crianças.
                 
                 
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 Poesia trovadoresca galego-portuguesa: síntese didática

 Cantigas medievais galego-portuguesas – projeto Littera: a presente base de dados disponibiliza, aos investigadores e ao público em geral, a totalidade das cantigas medievais presentes nos cancioneiros galego-portugueses, as respetivas imagens dos manuscritos e ainda a música (quer a medieval, quer as versões ou composições originais contemporâneas que tomam como ponto de partida os textos das cantigas medievais).
               

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/02/par.deus.coitada.vivo.aspx]