segunda-feira, 16 de setembro de 2013

PEREGRINO E HOSPEDE SOBRE A TERRA (Ruy Belo)

 RUY BELO
         
         
PEREGRINO E HÓSPEDE SOBRE A TERRA

Meu único país é sempre onde estou bem

é onde pago o bem com sofrimento
é onde num momento tudo tenho
O meu país agora são os mesmos campos verdes
que no outono vi tristes e desolados
e onde nem me pedem passaporte
pois neles nasci e morro a cada instante
que a paz não é palavra para mim
O malmequer a erva o pessegueiro em flor
asseguram o mínimo de dor indispensável
a quem na felicidade que tivesse
veria uma reforma e um insulto
A vida recomeça e o sol brilha
a tudo isto chamam primavera
mas nada disto cabe numa só palavra
abstrata quando tudo é tão concreto e vário
O meu país são todos os amigos
que conquisto e que perco a cada instante
Os meus amigos são os mais recentes
os dos demais países os que mal conheço e
tenho de abandonar porque me vou embora
pois eu nunca estou bem aonde estou
nem mesmo estou sequer aonde estou
Eu não sou muito grande nasci numa aldeia
mas o país que tinha já de si pequeno
fizeram-no pequeno para mim
os donos das pessoas e das terras
os vendilhões das almas no templo do mundo
Sou donde estou e só sou português
por ter em portugal olhado a luz pela primeira vez
            
Ruy Belo, Transporte no Tempo (1973)
       
           
QUESTIONÁRIO SOBRE O POEMA «PEREGRINO E HOSPEDE SOBRE A TERRA»
         
1. Vocábulos tão contraditórios entre si como «sofrimento», «dor», «paz», «felicidade»,que significado têm na vida do sujeito poético?

2. As mágoas pessoais não fecham o coração ao mundo real.

2.1. Desse mundo real, há aspetos conotados com o «estar bem». Refira-os.

2.2. Como se revela o carácter transitório desses aspetos propícios ao «estar bem»?

3. O que o poeta sente como sendo o seu «país» é necessariamente algo também transitório. Porquê?

4. Esta conceção de «país» conduz a duas afirmações que se complementam: «só sou português / por ter em portugal olhada a luz pela primeira vez» e «peregrino e hóspede sobre a terra». Justifique esta observação.
             


             
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
           
 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                          

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/16/peregrino.e.hospede.sobre.a.terra.aspx]

domingo, 15 de setembro de 2013

CANÇÃO DO MALTÊS (Manuel da Fonseca)


 MANUEL DA FONSECA
            
       
MALTÊS
I
Em Cerromaior nasci.

Depois, quando as forças deram
para andar, desci ao largo.
Depois, tomei os caminhos
que havia e mais outros que
depois desses eu sabia.

E tanto já me afastei
dos caminhos que fizeram,
que de vós todos perdido
vou descobrindo esses outros
caminhos que só eu sei.
         
II
Veio a guarda com a lei
no cano das carabinas.

Cercaram-me num montado;
puseram joelho em terra;
gritaram que me rendesse
à lei dos caminhos feitos.
Mas eu olhei-os de longe,
tão distante e tão de longe,
o rosto apenas virado,
que só vi em meu redor
dez pobres ajoelhados
perante mim, seu senhor.
          
III
Chegou gente às janelas,
saíram homens à rua:
‑ as mães chamaram os filhos,
bateram portas fechadas!

E eu, o desconhecido,
o vagabundo rasgado,
entrei o largo da vila
entre dez guardas armados;
‑ mais temido e mais amado
que o deus a que todos rezam.

‑ Que nunca mulher alguma
se rendeu mais a um homem
que a moça do rosto claro
ao cruzar os olhos pretos
com o meu olhar de rei!
          
IV
... E, vendo que eu lhes fugia
assim de altiva maneira
à sua lei decorada,
lá,
longe do sol e da vida,
no fundo duma cadeia,
cheios de raiva me bateram.
Inanimado,
tombei por fim a um canto.

E enquanto eles redobravam
sobre o meu corpo tombado,
adormecido
eu descansava
de tão longa caminhada!...
          
Manuel da Fonseca, in Planície, 1941
          
           
AUDIÇÃO DO POEMA
     
 

        

Título do cd áudio:

Os malteses

Título da faixa 6


Autor(es):

Vitorino (canto); Manuel da Fonseca (texto e dicção)

Publicação:

Portugal: Movieplay, p. 1999
          
              
O MALTÊS E A ERRÂNCIA
                
maltês é aquele que desafia esse sistema e que por isso se pode deslocar. A personagem recolhe do espaço novos modos de existência, ou seja, manipula o espaço porque se lança na conquista dos seus mistérios e nos mistérios de si próprio: "Depois, tomei os caminhos / que havia e mais outros que / depois desses eu sabia. / E tanto já me afastei / dos caminhos que fizeram, / que de vos todos perdido / vou descobrindo esses outros / caminhos que só eu sei." (Maltês:108). Aqui se encontra essa dupla tensão entre o interior e o exterior: aquele que se abre ao mundo (através da errância, por exemplo) desafia o tempo e a morte porque questiona a sua posição no mundo: o que faço aqui? Através desta questão procura a singularidade do espaço que ocupa (o aqui) e cria uma simpatia entre a geografia e a interioridade porque ao questionar-se sobre o aqui opõe-no a um além (Laumonier, 1997). Será através do caminho que se procura o sentido para o seu lugar no mundo, dai o lugar também se encontrar na errância. Este, constituirá, neste contexto, uma unidade, ou seja, um entendimento entre o sujeito e o mundo que pode não estar num espaço determinado, porque não se encontra nem no aqui nem no além, mas na passagem do aqui para o além, ou seja, no caminho que traça com o seu próprio corpo, numa geografia que cria dentro de si.
É entre o ficar e o partir que o sujeito dá um sentido ao ato de viver (Dubois, 1968: 106) porque ao distanciar-se do aqui, cria a possibilidade de agir contra "os caminhos feitos" e a procurar esses "outros caminhos" que só ele conhece. É através da errância que o maltês ou o vagabundo encontram uma identidade e, consequentemente, a possibilidade de comunicar e de descobrir outros caminhos e outras formas de ver o mundo: "E quando notaram que eu parecia um homem, / pois tinha / ouvidos para ouvir / e olhos para ver, / em todas as estradas do mundo me gritaram: / ‑ Mendigo, vai ver o fim das estradas todas do mundo!"1). Ao contrário das outras personagens, o vagabundo não está na "ignorância de si", consegue ouvir e ver. Assim, para o errante abre-se a possibilidade de ver as estradas todas do mundo porque não está "implicado"2 naquela sociedade. É um ser que tem acesso à liberdade uma vez que tem mobilidade e, consequentemente, ‑ apesar de ser um marginalizado, a um nível diferente das outras personagens ‑, pode comunicar mesmo a nível social: "‑ Eu falava por mim ‑ ia dizendo o Maltês. ‑ Eu falava por mim, esquecido de ti e dos que têm família. Sou o culpado. Vocês não podem ter opiniões... São como um rebanho: pedrada nos cornos, e boca calada."3
A relação do errante com o espaço é diferente porque nasce de um movimento físico e psicológico que consegue criar à sua volta. Através da relação imaginária com o espaço exterior e interior, consegue «tocar-se, tocando» (Merleau-Ponty, 1997). É pelo movimento que toma consciência das suas angústias, mas também é através desse movimento que consegue ultrapassar as suas incertezas, os perigos do real e assegurar o domínio sobre as coisas4 (Matorés, 1976: 174) aprendendo a conhecer-se e a conhecer o seu lugar no mundo: "Ele não era da raça de gente da Fonte Velha, aquilo eram sobreiros a quem todos os anos arrancam a pele. E, no Inverno, alapardavam-se, torcidos, junto do lume, com os filhos em volta, como bolotas apodrecerem pelo chão. Ele era de outra raça."5. O movimento é também uma forma de lutar contra o finito do corpo, contra o apodrecer pelo chão, como se pelo movimento no espaço exterior se desse simultaneamente um movimento de criação no espaço interior. No movimento infinito do espaço interior, a imaginação espacializa-se no espaço exterior porque é esse movimento que projeta o sujeito nesse espaço, tomando-se autor de uma geografia imaginária que o liberta e o faz compreender o mundo. Diríamos, como José Gil (1997: 170) que "É a geografia das forças e dos afetos que se exprime em traços da paisagem que são traços de rosto. Inversamente, o interior do rosto torna-se paisagem porque o olhar capta o exterior em que ele próprio se encontra espelhado, disperso, investido [...] e absorve-o para o interior.". A descrição do Maltês em Cerromaior é reveladora de toda essa geografia "Devia andar pelos cinquenta anos, mas toda a sua figura, alta e seca, apesar do aspeto devastado, era cheia de serenidade. O rosto, de testa ampla, tinha qualquer coisa de áspero e de inteligente. Naquele momento, o brilho frio dos olhos levantados para a vila ainda aumentava mais a dureza das feições." (p.43). O ser errante consegue, assim, humanizar o espaço porque lhe arranca sentidos que o seu corpo transportará. Ao transportar esses sentidos (do mundo), para o mundo, e para os outros (em Cerromaior, Maltês partilha as suas forças, os seus afetos através das quadras que compõe e que correm de boca em boca; no conto Sempre é uma Companhia, o velho Rata partilha o que retém das suas viagens com o Batola), faz do movimento um ato de comunicação. O Maltês ou o Vagabundo são aqueles que transportam sentidos do mundo e os comunicam aos outros, ou seja, ao mundo. Esta forma de estar é uma abertura ao mundo, aos outros e a si próprio.
O Maltês nunca se encontra nem completamente fechado nem completamente aberto porque está em constante movimento: há uma parte de si que se abre mas também há uma parte de si que se fecha porque como ser de aventura «est dedans-dehors, mais quelquefois plus dedans que dehors, quelquefois plus dehors que dedans, et quelquefois l'un autant que l'autre inextricablement.» (Jankélévitch, 1963: 16). Nessa abertura, não se dá a ninguém, partilha a sua intimidade com todos os lugares do mundo e com nenhum simultaneamente: "Aí [na planície], era a sua casa e o céu o seu telhado."6. Assim, toma-se ele próprio um espaço intermédio, um espaço de fronteira onde tenta reconciliar a intimidade com os lugares do mundo (Laumonier, 1997: 25).
O espaço de fronteira será então aquele que se encontra entre o interior e o exterior, entre a luz e sombra, entre o sol e noite, entre a vida e morte. Aquele que se encontra na fronteira liberta-se da escuridão. Pelo contrário, aquele que não consegue partir, que fica preso à monotonia dos "passos de cada dia", à desgraça humana de um espaço finito onde se repetem as mesmas paisagens, fica também preso na noite, na sombra e num tempo finito "Ai, mas a vida nunca espera por ninguém... "7; a personagem Campaniça, tem consciência da finitude do tempo ao aperceber-se de que vai envelhecer e morrer naquele espaço finito que é a aldeia de Valgato. Para Zé Gaio, que Maria Campaniça admira, o caminho da errância será a luta contra a finitude do espaço (a prisão, as paisagens iguais, a repetição dos mesmos gestos) e a finitude (a morte).
O caminhar, o passo é também contra o tempo porque se opõe àquele que fica e que vê passar o tempo. Caminhar é agir sobre o tempo porque se cria, com o corpo (a sua voz), uma história no espaço: ''Lenta, a canção dos ganhões ia-se modulando: / Nasce o sol, torna a nascer, / pra mim é sempre sol-posto... Dessa quadra tinha ele composto quatro décimas, no Inverno passado, enquanto esperava que a chuva acabasse, abrigado numa choupana de pastores. Agora, gente da feira cantava a quadra e a ceifa havia terminado. Tinha que ir-se embora... Estava velho, mas não podia parar. Nunca poderia parar."8
Através das quadras que compõe, o Maltês consegue criar um prolongamento do seu corpo e da sua vida, porque aquilo que viu pelas estradas do mundo e que constitui a sua história, vai ser cantado pelos outros e fazendo, também, parte da história de cada um.
O caminho seria assim uma das metáforas da vida na obra de Manuel da Fonseca se o entendermos como um dos símbolos da vida humana " 'como un camino vital y el hombre como viajero a pie sobre este camino, como Homo Viator' "9. A vida que se procura a cada momento na obra de Manuel da Fonseca realiza-se no movimento da partida e, por essa razão, o maltês, sendo aquele que o consegue concretizar, descobre os seus mistérios porque a partir do que vai conhecendo vai traçando outra geografia (como contador de histórias), outros caminhos que só ele conhece: ''E tanto já me afastei / dos caminhos que fizeram, / que de vos todos perdido / vou descobrindo esses outros / caminhos que só eu sei."10
O lugar é assim uma geografia de afetos que nasce da própria ficção do espaço para o Maltês, e da ficção do espaço para o autor através da sua obra, porque há uma relação entre a figura do maltês e a do autor: "O 'eu' que no discurso se manifesta é, decerto, o de uma figura típica que (como na "canção do Maltês") se sente fascinada pelo estatuto de contador da sua história; mas ele representa também, mediatamente, o 'eu' lírico do poeta. Tipo e sujeito lírico encontram-se assim fundidos, como resultado de uma dialética entre o temático (social, económico, etc.) e o discursivo, dialética a que obviamente não é alheio um testemunho de solidariedade de nítido recorte ideológico." (Reis, 1983: 462).
O contador de histórias procura uma unidade através dos textos para falar de uma história comum: a do Alentejo. Por isso, existe uma estrada que sai de Cerromaior para Valgato,11 e em Valgato Maria Campaniça sonha em ir viver para Cerromaior,12encontramos, ainda, as mesmas personagens nos contos e nos romances em diferentes momentos da sua vida.
O vazio e o silêncio, que caracterizam a vida das personagens, parecem estar ausentes do movimento que liga os textos: as personagens não estão distantes umas das outras, nem geograficamente nem a nível de vivências. Existe como que um caminho a ligar os textos num mesmo propósito: o de falar dessa experiência humana do espaço e do tempo. O espaço do silêncio e da solidão serve, igualmente, para que a personagem encontre o sonho, é através dele que se desdobra; é aí que a personagem vai encontrar o poder das palavras. Primeiro, as palavras do texto surgem para quebrar o vazio, a ausência de diálogo, do silêncio, depois, as palavras da personagem, aquelas que consegue descobrir nesse silêncio para se libertar. As palavras e o que une os textos entre si dizem-nos que as personagens estão perto umas das outras num mundo comum. Como diz Poulet (1963: 96), «Les lieux ne sont done plus irrémédiablement isolés; [...]. Les lieux se tiennent. Leurs côtés se touchent. Le mouvement permet de passer des uns aux autres. Nous ne sommes plus dans un univers ou dominent l'incommunieabilité et la distance.». O movimento (a construção do lugar, onde quer que ela se realize) muda as "leis" daquele universo porque abre um espaço de liberdade, de mudança: os homens não estão irremediavelmente sós nem irremediavelmente distantes.
                
Espaços de sentido: a construção do lugar na ficção de Manuel da FonsecaMaria da Glória Alhinho dos Santos,
Lisboa, Instituto Superior de Psicologia Aplicada, 2002, pp. 122-129.
                
____________________
  1. "O Vagabundo" in Obra Poética, p.64.
  2. Dizemos "implicado" porque as outras personagens, apesar de marginalizadas ‑ no sentido em que não têm um lugar naquela sociedade ‑, tal como o Maltês, estão, de certa forma, implicadas naquela sociedade porque contribuem mais que não seja com o seu trabalho e alienação para que ela perdure.
  3. Cerromaior, p. 213.
  4. "Cercaram-me num montado; / puseram joelho em terra; / gritaram que me rendesse / à lei dos caminhos feitos. / Mas eu olhei-os de longe, / tão distante e tão de longe, / o rosto apenas virado, / que só vi em meu redor / dez pobres ajoelhados / perante mim, seu senhor”. "Maltês" in Obra Poética, p. 109.
  5. Cerromaior, p.229.
  6. Cerromaior, p.131; cfr., ainda, com o poema "O Vagabundo" in Obra Poética, p.64.
  7. ''Partir!...” in Obra Poética, pp. 56-57.
  8. Cerromaior, p.228.
  9. Friedrich Bollnow citado por Ricardo Gullón in op.cit., p.133.
  10. "Maltês" in Obra Poética, p. 108.
  11. Cerromaior, p.65.
  12. "Campaniça" in Aldeia Nova, p.12

OS MALTESES (VITORINO)                
                
PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:
           
 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html


 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

   
                    

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/15/maltes.aspx]

sábado, 14 de setembro de 2013

O VAGABUNDO (Manuel da Fonseca)

“ Enrico Natali, Subway
”
NYC Subway, 1960 by Enrico Natali

  
                        
O VAGABUNDO

Das casas que ninguém construiu
me deram esta para morar:
ficou-me o céu como tecto
e o vento como lençóis...
Dos trapos que atiram fora
me permitiram um para eu vestir.
Das chuvas que caem do tecto do meu lar
me consentiram abafos para as quatro estações.
(Ah, se não fosse às vezes fazer sol...)
Das mulheres que ninguém quer
me negaram a última de todas,
a última de todas as mulheres!
E quando notaram que eu parecia um homem,
pois tinha
ouvidos para ouvir
e olhos para ver,
em todas as estradas do mundo
me gritaram:
‑ Mendigo, vai ver o fim das estradas todas do mundo!
                
Manuel da Fonseca, série «O vagabundo e outros motivos alentejanos»
in Rosa dos Ventos, 1940
                
                

LEITURA ORIENTADA DO POEMA «O VAGABUNDO»
               
O uso repetitivo das preposições (das, dos) no poema foi utilizado para enumerar todas as privações que o vagabundo passa, ou seja, não ter uma casa para se abrigar, roupas adequadas para vestir, proteção contra mudanças atmosféricas ou alguém para amar. As privações do personagem do poema apresentam um realce maior através da descrição feita da “casa” que o vagabundo habita que tem “o céu como tecto e o vento como lençóis...”. Essa descrição encerra em si uma imagem extremamente lírica e que leva o leitor a visualizar essa “casa” e esse personagem.
Também a repetição do pronome oblíquo (me) em conjunto com os verbos (deram, permitiram, consentiram, negaram e gritaram) reforça as atitudes de desprezo da sociedade em relação ao vagabundo, que mesmo quando as pessoas notam que ele “parece um homem”, o comportamento continua sendo o mesmo, isto é, de indiferença e descaso sobre a situação desumana em que se encontra.
Essa indiferença é enfatizada pela expressiva pontuação do poema e pela presença do pronome “todas” ao remeter ao substantivo “estradas” que primeiramente vem precedido do substantivo (todas as estradas), ou seja em uma posição de realce com a finalidade de destacar que em “todas as estradas do mundo” as pessoas tem a mesma atitude em relação ao vagabundo e por isso o querem longe delas e o mandam “ver o fim das estradas todas do mundo”.
Assim, a vida do vagabundo, do mendigo, do maltês é de um andarilho que por nada possuir, não tem para onde ir, nem hora para chegar. O seu viver é em liberdade, sob o leito imensurável do descampado, tendo como teto o céu e o vento como lençóis, porém, sem direito a um abrigo contra as chuvas, nem uma mulher como companhia e tendo que vestir os trapos que os outros jogam fora. Ou seja, uma vida destituída de direitos, de confortos, de dignidade e cercada pelo desprezo e pela indiferença social. Desse modo, se percebe que a intenção do poeta não é simplesmente denunciar a miséria do corpo, mas também da alma. Afinal, o vagabundo representa uma figura não só privada de bens materiais como também da sua dignidade como ser humano em decorrência do abandono e do desdém de que é vítima socialmente.
               
Dissertação de mestrado de Rosilda de Moraes Bergamasco, 
Universidade Estadual de Maringá, 2012, pp. 115-116.
             



            

             
            
O VAGABUNDO NA ESPLANADA
           
A surpresa, de mistura com um indefinido receio e o imediato desejo de mais acautelada perspetiva de observação, levava os transeuntes1 a afastarem-se de esguelha2 para os lados do passeio.
Pela clareira que se abria, o vagabundo, de mãos nos bolsos das calças, vinha, despreocupadamente, avenida abaixo.
Cerca de cinquenta anos, atarracado3, magro, tudo nele era limpo, mas velho e cheio de remendos. Sobre a esburacada camisola interior, o casaco, puído4 nos cotovelos e demasiado grande, caía-lhe dos ombros em largas pregas, que ondulavam atrás das costas ao ritmo lento da passada. Desfiadas nos joelhos, muito curtas, as calças deixavam à mostra as canelas, nuas, finas de osso e nervo, saídas como duas ripas5 dos sapatos cambados. Caído para a nuca, copa achatada, aba6 às ondas, o chapéu semelhava uma auréola alvacenta7.
Apesar de tudo isso, o rosto largo e anguloso8 do homem, de onde os olhos azuis-claros irradiavam como que um sorriso de luminosa ironia e compreensivo perdão, erguia-se, intacto e distante, numa serena dignidade.
Era assim, ao que se via, o seu natural comportamento de caminhar pela cidade.
Alheado9, mas condescendente10, seguia pelo centro do passeio com a distraída segurança de um milionário que obviamente se está nas tintas para quem passa. Não só por educação mas também pelo simples motivo de ter mais e melhor em que pensar.
O que não sucedia aos transeuntes. Os quais, incrédulos ao primeiro relance, se desviavam, oblíquos11, da deambulante12causa do seu espanto. E à vista do que lhes parecia um homem livre de sujeições, senhor de si próprio em qualquer circunstância e lugar, logo, por contraste, lhes ocorriam todos os problemas, todos os compadrios13, todas as obrigações que os enrodilhavam. E sempre submersos14 de prepotências15, sempre humilhados e sempre a fingir que nada disso lhes acontecia.
Num instante, embora se desconhecessem, aliava-os a unânime má vontade contra quem tão vincadamente os afrontava em plena rua. Pronta, a vingança surgia. Falavam dos sapatos cambados, do fato de remendos, do ridículo chapéu. Consolava-os imaginar os frios, as chuvas e as fomes que o homem havia de sofrer. No entanto, alguém disse:
– Devia ser proibido que indivíduos destes andassem pela cidade.
E assim, resmungando, se dispersavam, cada um às suas obrigações, aos seus problemas.
Sem dar por tal, o homem seguia adiante.
Junto dos Restauradores, a esplanada atraiu-lhe a atenção. De cabeça inclinada para trás, pálpebras baixas, catou pelos bolsos umas tantas moedas, que pôs na palma da mão. Com o dedo esticado, separou-as, contando-as conscienciosamente. Aguardou o sinal de passagem, e saiu da sombra dos prédios para o Sol da tarde quente de Verão.
A meio da esplanada havia uma mesa livre. Com o à-vontade de um frequentador habitual, o homem sentou-se.
Após acomodar-se o melhor que o feitio da cadeira de ferro consentia, tirou os pés dos sapatos, espalmou-os contra a frescura do empedrado, sob o toldo. As rugas abriram-lhe no rosto curtido pelas soalheiras16 um sorriso de bem-estar.
Mas o fato e os modos da sua chegada haviam despertado nos ocupantes da esplanada, mulheres e homens, uma turbulência de expressões desaprovadoras. Ao desassossego de semelhante atrevimento sucedera a indignação.
Ausente, o homem entregava-se ao prazer de refrescar os pés cansados, quando um inesperado golpe de vento ergueu do chão a folha inteira de um jornal e enrolou-lha nas canelas. O homem apanhou-a, abriu-a. Céptico17, mas curioso, pôs-se a ler.
O facto, de si tão discreto, pareceu constituir a máxima ofensa para os presentes. Franzidos, empertigaram-se18, circunvagando19os olhos, como se gritassem: “Pois não há um empregado que venha expulsar daqui este tipo!” Nas caras, descompostas pelo desorbitado20melindre21, havia o que quer que fosse de recalcada, hedionda22 raiva contra o homem mal vestido e tranquilo, que lia o jornal na esplanada.
Um rapaz aproximou-se. Casaco branco, bandeja sob o braço, muito senhor do seu dever. Mas, ao reparar no rosto do homem, tartamudeou:
– Não pode…
E calou-se. O homem olhava-o com tanta benevolência.
– Disse?
– É reservado o direito de admissão – tornou o rapaz, hesitando. - Está além escrito.
Depois de ler o dístico23, o homem, com a placidez24 de quem, por mera distração, se dispõe a aprender mais um dos confusos costumes da cidade, perguntou:
– Que direito vem a ser esse?
– Bem… – volveu o empregado. – A gerência não admite… Não podem vir aqui certas pessoas.
– E é a mim que vem dizer isso?
O homem estava deveras surpreendido. Encolhendo os ombros, como quem se presta a um sacrifício, deu uma mirada pelas caras dos circunstantes25. O azul-claro dos olhos embaciou-se-lhe.
– Talvez que a gerência tenha razão – concluiu ele, em tom baixo e magoado. –Aqui para nós, também não me parecem lá grande coisa.
O empregado nem podia falar.
Conciliador, já a preparar-se para continuar a leitura do jornal, o homem colocou as moedas sobre a mesa, e pediu, delicadamente:
– Traga-me uma cerveja fresca, se faz favor. E diga à gerência que os deixe ficar. Por mim, não me importo.
             
Manuel da Fonseca, Tempo de Solidão, 1973
               
_________________________
1.      transeunte: caminhante; peão.
2.      esguelha (de): de lado; de soslaio.
3.      atarracado: baixo e grosso.
4.      puído: gasto pelo uso.
5.      Ripas: tiras de madeira.
6.      Aba: friso, borda.
7.      alvacenta: esbranquiçada.
8.      anguloso: ossudo.
9.      alheado: distraído.
10.    condescendente: bondoso.
11.    Oblíquos: na diagonal.
12.    deambulante: que passeia ao acaso.
13.    Compadrios: favoritismos
14.    submersos: cobertos; invadidos.
15.    prepotentes: autoritários; poderosos.
16.    soalheira: exposição ao sol.
17.    céptico: em atitude de dúvida, incrédulo.
18.    empertigar-se: encher-se de vaidade; ensoberbecer-se.
19.    circunvagando os olhos: olhando em volta
20.    desorbitado: excessivo; exagerado.
21.    melindre: ofensa
22.    hedionda: horrível
23.    dístico: letreiro
24.    placidez: calma
25.    circunstantes: pessoas presentes



© Diário de Notícias
               
                
LEITURA ORIENTADA DO CONTO «O VAGABUNDO NA ESPLANADA»
               
1 - O ESPAÇO
Ao contrário de muitas narrativas de Manuel da Fonseca (cfr. O Fogo e as Cinzas),O Vagabundo na Esplanada decorre em espaço urbano, lisboeta: primeiro acompanhamos o protagonista na avenida (atual Avenida da Liberdade) e depois nos Restauradores. Tal implica naturalmente a consequência de ela se passar num espaço social muito distinto do das narrativas alentejanas do mesmo autor.
               
2 - AÇÃO
O começo ex-abrupto
Qualquer um de nós, se fosse contar esta história perante a turma, poderia começar assim: Eu vou contar a história de um vagabundo que há dias vi aqui em Lisboa e que era uma figura muito original… Etc. Depois prosseguiria mais ou menos ao modo de Manuel da Fonseca.
Mas na história, falta esta entrada, pois ela inicia-se ex-abrupto, abruptamente, sem preparação, mergulhando o leitor logo na ação ‑ o que é muito vulgar em narrativas modernas.
Duas sequências
O conto é constituído por duas sequências: a primeira, quando o protagonista desce a avenida, e a segunda, quando ele se encontra na esplanada do café dos Restauradores. Nos dois casos, manifesta-se uma profunda oposição circunstantes-vagabundo.
quiproquó, a ironia
A expressão latina qui pro quo significa equívoco, confusão de quem toma uma pessoa por outra. Nitidamente, o conto acaba com um quiproquó, que o leitor assume como irónico: um vagabundo maltrapilho, por equívoco, considera-se o cliente mais merecedor de ocupar a esplanada (destinada a pessoas de um estatuto económico acima dos limites da subsistência elementar, o que não era o caso dele).
         
3 - PERSONAGENS
O vagabundo
Não oferece dúvida que o vagabundo (com minúscula, pois ele é anónimo) seja o protagonista do conto. É-o um pouco passivamente, em particular na primeira sequência. O resto, que é o principal, são a sua postura, o seu modo de caminhar, os seus ares, e isso provoca grande perturbação quer nos transeuntes da avenida quer nos utentes da esplanada do café dos Restauradores.
O narrador idealiza-o muito; a gente duvida mesmo da possibilidade da existência dum “vagabundo” assim.
Releia-se o retrato desta original personagem e repare-se que primeiro o leitor apenas o “vê”, depois aprecia-o externamente (e já lhe descobre singularidades inesperadas) e por fim apercebe-se de alguns traços psicológico-morais seus, também eles singulares.
A partir do final da primeira sequência o vagabundo passa a ser referido como homem, até à exaustão – dez vezes. Falha de redação? Intencional?
Os transeuntes e os clientes da esplanada
Se a descrição do vagabundo parece beneficiá-lo, a dos transeuntes e dos clientes da esplanada (personagens coletivas) parece dar deles uma ideia excessivamente negativa, mesmo cruel: do espanto inicial passam à inveja e rejeição quase racista, sem fundamento nos hábitos comuns dos portugueses.
Há paralelismo nas reações dos transeuntes e dos clientes da esplanada.
Na perspetiva do conto, o marginal protagonista revela-se muito mais simpático ao leitor que as pessoas comuns, o que é verdadeiramente o mundo às avessas. Afinal as pessoas comuns são quem mantém os marginais, é a elas que eles recorrem nas mais variadas circunstâncias, pois eles não assumem a responsabilidade básica de garantir a sua subsistência.
Além disso, o café não é uma instituição de caridade ou domínio público, como a avenida, mas uma casa onde tem de haver regras que garantam a sua sobrevivência económica.
O empregado do café é um figurante.
O narrador é heterodiegético, não participante, e utiliza uma focalização externa, a de alguém, como que a de um dos circunstantes, particularmente atento ao que se passou e compreensivo para com o protagonista.
               
4 – O TEMPO
tempo da história é reduzido a dois breves momentos, com um intervalo (elipse) de permeio. A sucessão das duas sequências segue a ordem linear do tempo.
tempo cronológico leva-nos talvez para antes de 1974.
                
5 – CONTO NEORREALISTA
A narrativa neorrealista, que surge com o início da II Guerra Mundial, tem inspiração marxista e consequentemente intenta transformar as sociedades capitalistas no sentido do mundo utópico do socialismo (utópico, pois até hoje falharam todas as tentativas para o concretizar).
Situando frequentemente a ação em meios populares, onde as ideias comunistas não tinham implantação, esta narrativa recorre a um processo de oposição, de contraste entre uma personagem ou um grupo de personagens que, por quaisquer razões, questionam o meio ambiente e se aproximam das posições ideológicas do autor, e os circunstantes. É com certeza sobre este processo que assentam os exageros desta história – que intentam denunciar pretensos males do mundo capitalista.
Repare-se no desenlace: ele parece sugerir que afinal, se o vagabundo tem dinheiro para pagar a despesa, cessam as objecções à sua presença no café.
               
6 - APRECIAÇÃO
Há três aspetos marcantes no conto: as singularidades do vagabundo, as violentas reações dos circunstantes e o quiproquó do desenlace. Eles condicionam a adesão, conforme se aceitarem ou se recusarem.
A rejeição do vagabundo pelos circunstantes parece-nos exagerada e isso afeta o sentido da ironia final.
Manuel da Fonseca, que também foi poeta, na descrição do vagabundo recorre a expressões particularmente delicadas.               
Sobre O vagabundo na esplanada" in Português 10º Ano Página Pessoal de José Ferreira, 2011-06-04.
               

7 – FICHAS DE TRABALHO


                
                



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 Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Manuel da Fonseca, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-04, disponível em https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/manuel-da-fonseca.html


 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2013/09/14/o.vagabundo.aspx]