quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

SONETO DE GELO (Camilo Pessanha)


Edvard Munch, Melancolia, 1894
  


SONETO DE GELO

Ingénuo sonhador — as crenças d'oiro 
Não as vás derruir, deixa o destino 
Levar-te no teu berço de bambino, 
Porque podes perder esse tesoiro.

Tens na crença um farol. Nem o procuras, 
Mas bem o vês luzir sobre o infinito!... 
E o homem que pensou, — foi um precito, 
Buscando a luz em vão —sempre às escuras.

Eu mesmo quero a fé, e não a tenho...
— Um resto de batel — quisera um lenho, 
Para não afundir na treva imensa,

O Deus, o mesmo Deus que te fez crente... 
Nem saibas que esse Deus omnipotente 
Foi quem arrebatou a minha crença.
  
Camilo Pessanha
  
  
autógrafo de «SONETO DE GELO»   
Transcrição da Gazeta de Coimbra, feita por José Campos H Figueiredo .
Publicações anteriores à terceira edição de Clepsidra:
  Gazeta de Coimbra, de 2 de Setembro de 1887.
  
  
TEXTOS DE APOIO
O naufrágio em Camilo Pessanha, Ângela Carvalho (2006-2008)
Florescem as rosas bravas simbolistas, Antônio Donizeti Pires (2009)
A melancolia e os seus objetos. João Paulo Barros de Almeida (2009)
O materialismo trágico em Camilo Pessanha. Giuseppe Freitas da Cunha Varaschin (2011)
   
   

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Tommy Ingberg, Still Standing, 2012-09-08 
   
   
O NAUFRÁGIO EM CAMILO PESSANHA
  
A morte figurada como indesejada está patente no “Soneto de Gelo”, onde o sujeito poético declara abertamente querer um “resto de batel”, um “lenho” que lhe permita não se “afundir”. Estas tábuas de salvação aparecem-nos como metáfora da fé, ausente porque desejada, inatingida porque procurada:
Ingénuo sonhador – as crenças d’oiro
Não as vás derruir, deixa o destino
Levar-te no teu berço de bambino,
Porque podes perder esse tesoiro.
Tens na crença um farol. Nem o procuras,
Mas bem o vês luzir sobre o infinito!...
E o homem que pensou, – foi um precito,
Buscando a luz em vão – sempre às escuras.
  (Pessanha, 1887: 94-5, vv. 1-8)
  
Este poema apresenta uma dicotomia entre a busca ativa da fé e a quietude dos que já a possuem. No que diz respeito à primeira, conduzirá à perda de valiosas crenças, no caso de estas já existirem, ou à condenação ao não alcance das mesmas, no caso de estas ainda não existirem. A ação amaldiçoa também o homem que ousou pensar,“buscando a luz em vão – sempre às escuras”. Este sujeito, que deseja a fé que não tem, está condenado a naufragar, embora faça tudo para o evitar. A quietude dos que já possuem a fé é apresentada como única solução para não “perder esse tesoiro”. O “ingénuo sonhador” deverá unicamente deixar-se levar pelo destino, vida fora, se não quiser perder o farol que luz sobre o infinito. O “ingénuo sonhador” não procura essa luz e é por isso mesmo que a vê luzir.
O naufrágio em Camilo Pessanha”, Ângela Carvalho. 
Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], pp. 224-225.
   
   
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Tommy Ingberg, Anchored (2012-12-05)
   
   

FLORESCEM AS ROSAS BRAVAS SIMBOLISTAS
  
[…] convém frisar que os temas do inverno e das rosas (aqui poetizados conjuntamente) aparecem de modo persistente na obra do poeta. Assim temos, numa recolha não exaustiva: os poemas “Soneto de gelo” e “Rosas de inverno” (não aproveitados, ambos, na primeira edição de Clepsidra), ou os dois sonetos de “Paisagens de inverno”.
No primeiro citado, “Soneto de gelo”, a atmosfera é metafórica, pois “gelo” equivale à descrença (ou à falta de crença) do eu-lírico, que se dirige a um tu: “[...] O Deus, o mesmo Deus que te fez crente... / Nem saibas que esse Deus omnipotente / Foi quem arrebatou a minha crença.” (PESSANHA, 1992, p.94). Aqui, o eu-lírico dirige-se claramente a um “tu humano”; porém, na obra madura talvez se possa afirmar que este foi substituído por um “tu reificado”, como dá a ver, em alguns poemas, o sutil uso da prosopopeia: esta (cujas características principais são a animização, a personificação, a dotação de voz e viva presença – inclusive pela apóstrofe, tão cara a Pessanha – a coisas inanimadas e/ou ausentes e/ou mortas), cumpriria duas funções básicas na poesia camiliana: a mais óbvia, de humanizar/dar vida aos objetos (da natureza, do quotidiano, do mundo, da cultura); a outra, de revelar exatamente por este meio a solidão, a angústia melancólica, o abandono e o exílio do poeta.
Antônio Donizeti Pires (UNESP/Araraquara). Texto Poético
Revista do GT Teoria do Texto Poético (ANPOLL) (ISSN: 2808-5385), Vol. 6. 2009– 1.º Sem.
   
   
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Tommy Ingberg, "Torn" (2011-01-23)
   
   
A MELANCOLIA E OS SEUS OBJETOS
  
Em tempos bem mais recentes, Eduardo Lourenço, falando de Pessoa, equaciona simbolismo e depressão (nome moderno para a melancolia): «No sentido mais cru do termo, Fernando Pessoa e o poeta da Depressão ‑ histórica, psicológica, metafísica e psiquiátrica ‑ que teve no Simbolismo de que e, em última análise com Mallarmé e Pessanha, a única expressão genial, a sua versão poética»55. Já Baudelaire punha ominosamente toda a poesia moderna sob um céu melancólico («Ciel mélancolique de la poésie moderne»56). À luz da frase de Eduardo Lourenço, também em Pessanha se poderiam escavar os diversos níveis da depressão/ melancolia.
Se as raízes psicopsiquiátricas e históricas da sua melancolia são facilmente reconhecíveis (abulia, «inibição psíquica endógena», absinto e ópio, o «país perdido», Portugal), já a expressão depressão metafísica lançada por Lourenço é mais enigmática. Talvez o termo se adequasse melhor a um Antero de Quental57, associando naturalmente a busca metafísica com o problema de Deus, porque na sua obra não palpita uma clara ânsia de Transcendência, como na do pensador açoriano, que instaure um drama existencial. A crença religiosa é vista como uma ingenuidade de infância, que o despontar do pensamento arruína, em «Soneto de Gelo»58. Curiosamente, o seu publicista João de Castro Osório fala da desorientação e da desolação de uma alma sem Deus.
Partindo da definição de Les Fleurs du Mal, cunhada pelo próprio Baudelaire (o grande precursor do Simbolismo) numa primeira versão, como um «misérable dictionnaire de mélancolie», Pierre Dufour propõese ler essa obra como um texto melancólico por hipótese, cruzando abordagens da psiquiatria moderna, da psicanálise, da história da cultura, e das obras poéticas melancólicas por elas mesmas enquanto discursoespelho, isto é, discurso melancólico sobre a melancolia. Entre as diversas «démarches» que a argumentação do crítico aciona, interessa reter a afirmada função cognitiva do imaginário melancólico, alcançada pela via aberta de uma semântica cognitiva (teoria de extração americana) cujo objetivo é o de reconstruir a unidade da dinâmica do discurso para além das clivagens entre semântica, sintaxe e pragmática. A dimensão figural, imaginária do sentido nasce de uma conceptualização, fortemente estruturada, de tipo arcaico, metafóricoanalógico, que subsiste sob o sentido lógico-sintático. A manifestação dessa conceptualização analógica, parcialmente não proposicional, está nas metáforas mortas, lexicalizadas, estereotipadas, que promanam de um sistema cognitivo inconsciente que estrutura não só a nossa linguagem, mas também os nossos conceitos, afetos, valores, o próprio vivido. O específico do «modelo cognitivo» próprio do imaginário melancólico está numa espécie de extremitas, de desmesura de que provêm o gosto pelo excessivo e a retórica da hipérbole…sendo os objetos melancólicos mais densos, implicados nesse modelo cognitivo, o espelho, a máscara, o labirinto, o mar, particularmente arcaicos, e por isso semanticamente mais pregnantes. É interessante verificar como este tipo de análise, estribada em princípios e orientações da «semântica cognitiva», vem ao fim e ao cabo reunirse, em muitos pontos, com uma leitura simbolista (nomeadamente, o papel central que aquela confere à analogia livre ou forçada, «contrainte»).
  
Sentimento e Conhecimento na Poesia de Camilo PessanhaJoão Paulo Barros de Almeida, 
Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2009, pp. 105-107.
  
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(55) Cit. in Rubim, Inscrição Espectral..., p. 4.
(56) Cit. in Pierre Dufour, “«Les Fleurs du Mal», Dictionnaire de Mélancolie”, in Littérature, nº 72, 1988, p. 32.
(57) O qual no mesmo ano da publicação das revolucionárias Odes Modernas escreveu a Alberto Sampaio que se ia «fazer padre», veleidade que testemunharia o pulsar de uma alma religiosa que no misticismo teísta teria encontrado realização pessoal, mas que, encontrando a porta fechada, se abisma em «desespero metafísico». Daí que o Cardeal Cerejeira tenha retirado do seu destino trágico uma ilustração de apologética. Antero teria podido fazer sua a famosa frase de um personagem de Os Demónios de Dostoiéwski: «Deus atormentoume toda a minha vida», mas é duvidoso que pudesse ser perfilhada por Pessanha.
(58) «As crenças de oiro» são encaradas como um embalo que adormece o bambino no seu berço e que um destino benigno manteria pela vida fora («Ingénuo sonhador – as crenças d’oiro/ Não as vás derruir…Deixa o destino/ Levarte no teu berço de bambino,/ Porque podes perder esse tesoiro.»). Porém, o último terceto parece dirigirse a alguém crente, provavelmente ele próprio, («O Deus, o mesmo Deus que te fez crente…»), responsabilizando a omnipotência de Deus pela perda da crença do sujeito («Nem saibas que esse Deus omnipotente/ Foi quem arrebatou a minha crença.»), que quisera «um resto», «um lenho» de fé para não soçobrar nas trevas. O farol da fé, a luz que lança sobre o infinito apenas irradiam na condição de o sujeito não procurar, não pensar, manter uma ingenuidade précrítica.
   
   
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Tommy Ingberg,  Think, 2012-10-24 
   
   
O MATERIALISMO TRÁGICO EM CAMILO PESSANHA
  
[…] este traço parece-me tão absolutamente gritante na poesia de Camilo que seria, de certo modo, imprudente não o dedicar uma boa dose de atenção e uma investigação mais aprofundada até mesmo acerca de suas possíveis origens históricas.
Trata-se do fenômeno que dominarei doravante de materialismo trágico. Não considero o materialismo trágico propriamente uma doutrina ou uma filosofia no sentido estrito da palavra; ele é mais uma reação emocional ao materialismo. Contudo, é também difícil dizer precisamente o que é o materialismo, é difícil considera-lo, por si, uma corrente filosófica unívoca, porque o conceito de matéria não foi ainda filosoficamente esclarecido. Desde Demócrito, que diria que a matéria é um aglomerado de átomos indivisíveis movendo-se aleatoriamente, passando por Epicuro, que associaria ao movimento atômico a necessidade de cumprimento da vontade de prazer, até Marx, que a definiria a partir da sua relação com o homem que a manipula de acordo com a ideologia, e os físicos modernos, que diriam algo provavelmente incompreensível para mim, mero estudante de letras; o facto unânime é que nada a respeito do materialismo é unânime, que a tradição dita materialista não possui a unidade de um conceito, e sim a mera unidade arbitrária de um significante. Como então reconhecer esse materialismo na poesia de Camilo Pessanha? Não é possível, como vimos, defini-lo positivamente, busquemos então uma delimitação semânticanegativa – tentemos reconhecê-lo a partir do que ele nega. O materialismo de Camilo Pessanha é uma negação da transcendência, de entidades metafísicas – até mesmo do Eu metafísico - o que pode justificar a admiração que Fernando Pessoa expressara por ele e sua obra, qualificando-o de mestre, haja vista que o próprio Pessoa exercera a anti-metafísica, ou seja, o que qualificamos aqui como materialismo, com o heterônimo de Alberto Caeiro. É um materialismo da negação de Deus, ou da morte de Deusnietzschiana, da total transitoriedade (e materialidade) da vida e da irrevogabilidade do tempo – e por isso a imagem da Clepsidra, duplamente remetente ao tempo, tanto pelo símbolo da água cuja relação simbólica com o tempo vai desde os tempos de Heráclito até Guimarães Rosa, quanto pelo instrumento do relógio. É um materialismo, portanto, que não busca mais o absoluto e a certeza no transcendente e sim no que é imanente, nas substâncias e sensações sensíveis e no tempo – pode-se dizer que a perda do significado de uma infinitude metafísica, ou vertical, foi abalançada pela descoberta das duas dimensões horizontais: o tempo (ou a história, seu menos abstrato correspondente na esfera cultural humana) e o espaço quantificável.
A origem desse deslocamento, ou rebaixamento – num sentido analogicamentelocal – dá-se, como já mencionei, em alguns filósofos pré-socráticos gregos, fica dormente durante o período medieval para “renascer no renascimento” com figuras da baixa escolástica como Nicolau de Cusa e Guilherme de Occam. Aquele operou algo que poderíamos chamar de divinização do espaço, aplicando ao espaço raciocínios e paradoxos que anteriormente eram “monopólios” do Deus transcendente, por exemplo: uma curva que se estende infinitamente é uma reta; um ponto que se move a uma velocidade infinita está parado em todos os lugares ao mesmo tempo.... Vê-se aí uma atribuição ao imanente de caracteres anteriormente exclusivos ao transcendente, entre eles a ininteligibilidade incapacidade de apreensão de essência que antecipa, de certa maneira, o agnosticismo Kantiano e o irracionalismo de que falaremos posteriormente. Já Guilherme de Occam prenuncia muito do ateísmo moderno com sua chamada navalha: “as entidades explicativas de um fenômeno não devem ser multiplicadas sem necessidade”. Daí advêm certos argumentos como o do bule de cháde Bertrand Russel e o do monstro do espaguete voador dos neo-ateus.
Essas são apenas algumas origens históricas ou justificativas filosóficas possíveis para a defesa de uma posição materialista tal qual a de Camilo Pessanha. Contudo, estamos, por enquanto, apenas na esfera filosófica de Camilo Pessanha – ignoramos até agora o fato de que qualquer elemento externo, seja ele um objeto, como uma faca ou uma cadeira, ou um ente de razão, como um sentimento ou uma idéia, quando inserido numa obra de arte adquire uma coerência e uma significação antes estética do que qualquer outra. O que dá à Camilo o ímpeto poético ao seu materialismo é justamente sua faceta artística, a tragicidade.
O aspecto trágico, que chamei de reação emocional a esse materialismo vem do fato de os compromissos filosóficos dele – que era, aliás, professor de filosofia elementar no Liceu de Macau -, não corresponderem às suas necessidades emocionais ou expectativas de sentido transcendente à fria estrutura material do cosmos. Pode-se dizer que ele sustenta uma cosmovisão que para ele parece insuficiente, mas algo só é insuficiente em oposição a algo que seria suficiente; a cosmovisão materialista de Camilo adquire para ele certo tom de insuficiência, creio eu, em oposição à cosmovisão tradicional religiosa – seja ela cristã como a com quem ele convivera em Portugal ou até mesmo taoísta ou budista, com as quais ele conviveu em seu exílio voluntário em Macau.
Todas as tradições religiosas se baseiam no pressuposto de que a realidade não frustra, de que há nela tudo o que o homem precisa, de que para cada inclinação natural de um ente há um fim próprio que é real e existente; pois, para elas, caso o contrário a natureza desse ente seria incongruente com a realidade e ele não existiria, por exemplo: um coelho come cenoura; se não houver cenoura não pode haver coelho. Do mesmo modo, analogicamente, o homem teria essa necessidade de transcendência - como “provam” as existências de religiões em todas as civilizações conhecidas – e se essa transcendência não existisse de fato, a natureza humana seria inconsistente com a realidade e o homem não existiria, da mesma maneira que não existem as zebras douradas que comem quadrados redondos. Por isso o materialismo trágico pode ser considerado uma espécie de precursor do existencialismo ateu do início do século XX – há o reconhecimento da propensão humana para Deus, mas não se deduz disso a existência de tal entidade, gerando assim, uma espécie de frustração inerente ao processo do conhecimento da realidade.
Por outro lado, essa concepção de uma materialidade insuficiente é um traço típico de uma cultura cristã. A tragicidade do materialismo de Camilo deriva justamente do ato de confrontar sua cosmovisão materialista com um fundo moral, doutrinal e ideológico muito arraigado em sua bagagem cultural: o cristianismo. O cristianismo baseia-se num senso de privação, de que este mundo, o mundo dos homens não é o bastante e de que todos os valores aqui presentes não são senão versões diminutas do fundamento de todo e qualquer valor possível, que é Deus. Estamos, portanto, para o Cristianismo, privados, por conta do pecado original, da plenitude da existência. Os ritos e símbolos cristãos são, justamente, meios de perceber esta privação. No entanto, não é correto dizer que o cristianismo é a religião da privação – como afirmam muitos pensadores modernos, inclusive Frederico Nietzsche, que guarda muitas semelhanças com Camilo Pessanha -; pois a insuficiência do mundo material, no cristianismo, é completada, ou saciada, pela suficiência da contemplação Divina, como diz Santa Teresa de Ávila: só Deus é suficiente. A privação é somente o ponto de partida, o sentimento originário da religiosidade cristã, porque é só na medida em que percebemos a privação que nos podemos abrir para a redenção.
Ocorre porém que Camilo Pessanha, ao abolir a transcendência com o seumaterialismo fica apenas com o aspecto puramente negativo do cristianismo. Seu desgosto perante a realidade totalmente imanente e material é uma espécie de rastro subconsciente de uma influência que ele ainda não conseguiu apagar por completo. Se temos de buscar uma coerência psicológica em algo é porque já não mais é possível encontrar uma coerência lógica, que caracterizaria um pensamento filosófico autêntico. Por isso defendo que o materialismo trágico de Camilo é um traço de sua poética, e não necessariamente sua filosofia. É uma visão ilógica e irracional, pois não há como um materialista considerar racionalmente a matéria insuficiente, justamente pelo motivo já explicado: insuficiente é um conceito, ou um polo dialético que só faz sentido em oposição ao outro polo, ou conceito – o de suficiente – de modo que não pode haver insuficiência se não há também, na mesma medida e na mesma realidade, suficiência. O materialista lamentar a materialidade do mundo é tão absurdo quanto um astrônomo lastimar a existência dos astros, ou um matemático praguejar sobre a existência dos números. Ou existe a transcendência que redimirá a experiência de sofrimento e privação no mundo material, ou ela não existe e reclamar de sua inexistência é lamentar-se perante uma fatalidade. Mas Camilo não consegue se livrar de comparar sua “filosofia” materialista com o cristianismo e pensar, saudosistamente: como era melhor... Vemos um bom exemplo disso no seguinte soneto: “E eis quanto resta do idílio acabado”. […]
Um outro exemplo de como o materialismo trágico de Camilo é uma antes poética do que ideológica – devido às suas gritantes contradições, que, aliás, são um traço típico do simbolismo, movimento ao qual Camilo é geralmente associado – é o seu famoso “Soneto de Gelo”.
Novamente há aí a atribuição de ingenuidade àqueles que creem, que pode ser, como já mostrei, traçada em suas origens desde os Evangelhos. O biólogo britânico e militante ateísta Richard Dawkings cita em uma entrevista o trecho da epístola paulina aos Coríntios (“Quando era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Depois que me tornei homem, fiz desaparecer o que era próprio de criança.”) querendo transmitir semelhante mensagem. Mas a pretensa maturidade, que carregaria a racionalidade, que se oporia a essa crença infantil não parece aí ser retratada de maneira muito racional. Na mesma estrofe em que Camilo admite que o farol da crença luze sobre o infinito ele diz que aquele que busca a luz, fá-lo em vão, pois vai sempre às escuras. Depois, novamente aludindo à imagem da treva, propõe um lenho como possibilidade de salvação. É curioso que a palavra lenho tem uma dupla acepção: pode significar tanto madeira, que serviria literalmente para impedi-lo de afogar-se como na água, quanto uma cruz, possivelmente a de Cristo. Por isso considero este o soneto-síntese do que chamei de materialismo trágico: Camilo admite a fé em Cristo (“esse tesoiro”) como uma possível fonte de salvação, mas não o alcança, ou não o quer alcançar por acha-lo ingênuo, ou coisa de bambino. A última estrofe é extremamente significativa: o Deus em que ele não crê é o agente do seu processo de descrença. É como se Camilo dissesse – “Ele existe, mas eu não acredito”. E, com tamanhas contradições acumuladas, vê-se também um dos mais claros exemplos do anti-racionalismo ou irracionalismo da poesia de Camilo Pessanha. Se o instrumento da razão o trouxe a tantas certezas deprimentes não seria melhor descartá-lo? Até que ponto o conhecimento traz a felicidade? Por isso ele diz que o homem que pensou foi um precito.
O irracionalismo é um traço comum disto que chamei de materialismo trágico, até mesmo em Nietzsche, que talvez seja no ramo da filosofia – ou devemos incluí-lo também na poesia? - o maior representante desta condição. Eugen Fink, talvez o melhor intérprete deste filósofo, ao tentar sistematizar de forma coerente a filosofia de Nietzsche deparou-se com, não somente um, mas cinco sistemas mutuamente contraditórios. Por isso Nietzsche, bem como Camilo, tende para uma expressão poética, polissêmica, alusiva e simbólica da realidade, uma explicação aberta, não redutível às categorias exigidas pela razão.
Vimos então que o que era negação da transcendência, passou a ser, também, negação da razão mesma que a nega. A adesão racional a uma comovisão torna-se, assim, um assentimento emocional e irracional a um desgosto. Por isso o “cessais de cogitar, o abismo não sondeis” do último poema, indício forte desse irracionalismo. O ato de cogitar é aí igualado ao ato de sondar, de contemplar o abismo. Associo essa alusão imediatamente ao famoso aforismo 146 da obra Além do bem e do mal de Nietzsche: “E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você.” É a razão – o sondar – que leva à descoberta não de uma substância plenamente cognoscível, de uma realidade logocêntrica, e, portanto, inteligível2, e sim de um abismo – frio, aleatório e sem sentido. Desse modo, o que era supostamente a obra de um professor-filósofo, em quem deveríamos buscar sabedoria e racionalidade, torna-se uma apologia ao nada, o materialismo trágico se converte num delicioso convite à inexistência àqueles que nem sequer chegaram a existir – “Adormecei. Não suspireis. Não respireis.
O materialismo trágico em Camilo Pessanha”, Giuseppe Freitas da Cunha Varaschin. Trabalho académico para a cadeira de Literatura Portuguesa II, Universidade Federal de Santa Catarina - Centro de Comunicação e Expressão, 2011.
  
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(2) Há aí algo mais em comum com a cosmovisão religiosa. Há um argumento em favor da existência de Deus que na teologia se chama argumento da inteligibilidade. Esse argumento pode ser resumido da seguinte maneira: Se tudo é inteligível - leia-se compreensível – há então um princípio geral e fixo de possibilidades ao qual o cosmos obedece. Esse princípio de possibilidades realizáveis preexiste, necessariamente, ao cosmos e chama-se Logos Divino. Deus é, aí, a misteriosa fonte da inteligibilidade cósmica. Há várias versões desse argumento, desde a proposta pelo filósofo escolástico medieval Duns Escoto, passando pelo escritor e pensador G.K. Chesterton, até a descrita pelo então cardeal Jospeh Ratzinger em sua obra Introduction to Christianity. Negar a existência de Deus dentro de uma perspectiva ainda cristã – que é, em certa medida, o que Camilo faz – é ser incapaz de ver no universo qualquer sentido.
  
ilustração de Señor Salme para «Is It Time You Stopped Thinking About Living Longer?», endpoints.elysiumhealth.com, 2017


PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE:

 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/15/soneto.de.gelo.aspx]

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

VOZ DÉBIL QUE PASSAS (Camilo Pessanha)

  
      
Voz débil que passas, 
Que humílima gemes 
Não sei que desgraças...

Dir-se-ia que pedes. 
Dir-se-ia que tremes, 
Unida às paredes,

Se vens, às escuras, 
Confiar-me ao ouvido 
Não sei que amarguras

Suspiras ou falas? 
Porque é o gemido, 
O sopro que exalas?

Dir-se-ia que rezas. 
Murmuras baixinho 
Não sei que tristezas...

— Ser teu companheiro? —
Não sei o caminho. 
Eu sou estrangeiro.

— Passados amores? —
Animas-te, dizes
Não sei que terrores...

Fraquinha, deliras.
— Projetos felizes? — 
Suspiras. Expiras.
Camilo Pessanha
          
          
Autógrafo de 1916, que se conserva no espólio da Biblioteca Nacional de Lisboa.
          

          
TEXTOS DE APOIO
  
O pensamento da morte na poesia de Camilo Pessanha, Maria Alzira Seixo (1989)
Pseudoápice, Gilda Santos e Izabela Leal (2007)
Amor, companheirismo e conhecimento intersubjetivo. João Paulo Barros de Almeida (2009)
Recortes grotescos na história da literatura portuguesa: o discurso anticanónico de Camilo Pessanha. José Horácio de Almeida Nascimento Costa (2012)
                   
                    

"Invisível, Visível", por Vhils. Mural sobre Camilo Pessanha, no Jardim do Consulado de Portugal em Macau, 2016-12-09.
          
                   
O PENSAMENTO DA MORTE NA POESIA DE CAMILO PESSANHA
"Voz débil que passas" ‑ voz que geme, que confidencia ou murmura tristezas, e cuja companhia se recusa em nome do caminho ignorado, ou preterido, e da singularidade que se detém. O diálogo chega a travar-se, segundo o processo da intersecção de planos que diz normalmente de uma cisão na subjetividade manifesta, que aqui se cinde explicitamente na última estrofe, entre a impotência da fragilidade anímica e o excesso insustentável da felicidade entrevista: "Fraquinha, deliras. / ‑ Projetos felizes? ‑ / Suspiras. Expiras". O suspiro, manifestação indecisa de uma positividade negativa, equivale, na lógica do texto, à expiração, que o diz literalmente, acrescentando-lhe o matiz impercetível mas claro da ambiguidade Vida/Morte, com inclinação nítida para a vertente Morte, a da finalização e do esvaziamento. Curiosamente, é perante o enunciado da hipótese de felicidade que a figura da morte intervém, como antes, no I soneto de "Caminho", as saudades referenciadas ao presente são as saudades da dor ‑ que se repele, mas que deixará em seu lugar um "véu escuro" no "coração" ‑, "luz desgrenhada que alumia/ as almas doidamente".
As noções de incerteza e de singularidade decorrem em parte desta flutuação dual que não recusa o outro mas que sempre o ultrapassa numa busca de sentido que acaba por anulá-lo. […]
  
Maria Alzira Seixo, “O pensamento da morte na poesia de Camilo Pessanha”, Análise n.º 13, 1989.
 Apud Outros erros, Porto, Edições Asa, 2001, pp. 108-109.
          
          
          
*
          
          
          
PSEUDOÁPICE
O poema nos revela um tu, anónimo, assexual, que existe só enquanto voz, a aproximar-se ainda que debilmente, humilimamente, do sujeito lírico. Mas este interpõe ao contacto (que já à partida se mostra frágil, pois a voz, além de débil, passa) uma série de “não sei que”, devida, possivelmente, a qualquer ruído na comunicação oral que torna a mensagem incompreensível, ou a alguma dificuldade auditiva do interlocutor, ou ao facto de este, hesitante ou cético, não querer envolver-se com quem o procura, ou ao excesso de tibieza dessa voz, ou... Certo é que não sabemos exatamente qual é o discurso desse tu, uma vez que é filtrado pelas dúvidas do eu. Do diálogo esboçado nas três estrofes finais, a certeza apenas da recusa, por parte daquele que ouve, em aceitar confidências ou companheirismo: — Ser teu companheiro?—/ Não sei o caminho./ Eu sou estrangeiro. E, talvez por conta dessa recusa, ou pela desistência diante da intransponível incomunicabilidade, dá-se a morte dessa voz: Fraquinha, deliras / — Projetos felizes? — / Suspiras. Expiras.
É extremamente significativa essa autoclassifìcação como estrangeiro; o emissor confessa-se deslocado não apenas num tempo e num espaço determinados, mas deslocado ainda em relação à comunicação com o outro, o que implica dizer em relação à própria vida, deixando por isso escapar todas as possibilidades.
Pelas dúvidas que revestem o contato com outrem, leia-se também o poema
Camilo Pessanha em dois tempos, Gilda Santos e Izabela Leal, Rio de Janeiro, 7Letras, 2007, p. 47.





          
          
          
          
AMOR, COMPANHEIRISMO E CONHECIMENTO INTERSUBJETIVO
A proposta de camaradagem promanada da voz (sexto terceto de «Voz débil») não é acolhida pelo sujeito que alega desconhecer o caminho por ser estrangeiro. […]
O verbo final «Expiras» como que está anunciado no primeiro verso: a voz, além de débil, passa (é transitória, está destinada a passar, não a ficar – passamento, morte). A debilidade da voz escorre em quase todo o léxico desdobrado. A sua intenção comunicativa é vaga, indecisa, conjetural, até ao antepenúltimo terceto: «não sei…», «Dirseia», «gemes», «pedes», «tremes», «Suspiras ou falas?», «rezas», «murmuras». Voz que soa não em dia claro, exposta, mas de esconso, «unida às paredes», «às escuras». Voz débil, de facto, lembrando o «gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados», «o queixume brando» do expirar no vento das doces almas penando de «Poema Final». É a voz da dor, da caravana da dor do género humano, de «Branco e Vermelho».
Os travessões dos tercetos finais de «Voz débil» constituem, evidentemente, o eco de locuções articuladas pela voz. E é no primeiro terceto que vemos uma certa contraposição aos companheiros de estrada do outro poema. Se foi o sujeito quem tomou a iniciativa na saudação («Bomdia, companheiro»), volveuse agora no destinatário do convite ao companheirismo. Invertemse os papéis. Mas o sujeito recusa, alegando ser estrangeiro e não saber o caminho. Curiosamente, aquele que se tornou companheiro de jornada até à encruzilhada da separação («cada um por seu lado!...») também não sabia o que procurava, o que não o impediu, ou talvez por isso mesmo, de se juntar ao sujeito. Como interpretar as razões que dá para não corresponder ao pedido?
Poderia ser uma resposta anódina, do tipo «não sou de cá, pergunta a outro». Mas não carregará esse adjetivo, «estrangeiro», todo o peso do exílio, de quem o seu reino não é deste mundo, que por cá caiu, mas que não pertence aqui? E o não saber o caminho não significará uma desorientação radical, a derrelição, o tal pessimismo derrotista e desistente?
E estas perguntas retóricas abrem a via para a (re)consideração do tonus emotivo dominante na poesia do autor: o tom desistente, abúlico, derrotista51, numa palavra, melancólico.
 Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2009, pp. 101, 103.
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(51) Considerese que a evocação de «passados amores» por parte da voz é rececionada pelo sujeito envolta em vagos «terrores» (a expressão «não sei que» atesta, simultaneamente, da debilidade da voz e da atenção do sujeito) e que é justamente quando a voz sopra futuros «projetos felizes» que ela expira.
          
                    
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RECORTES DO GROTESCO NA HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA: O DISCURSO ANTICANÓNICO DE CAMILO PESSANHA.
          
POEMA 38

Voz debil que passas, 
Que humilima gemes 
Não sei que desgraças...

Dir-se-hia que pedes. 
Dir-se-hia que tremes, 
Unida ás paredes,

— Passados amores? —
Animas-te, dizes
Não sei que terrores...

Fraquinha, deliras.
— Projectos felizes? — 
Suspiras. Expiras.

Se vens, às escuras, 
Confiar-me ao ouvido 
Não sei que amarguras…

Suspiras ou fallas? 
Porque é o gemido, 
O sopro que exhalas?

Dir-se-hia que rezas. 
Murmuras baixinho 
Não sei que tristezas...

— Ser teu companheiro? 
Não sei o caminho. 
Eu sou estrangeiro.
PESSANHA, Camilo. Clepsidra. Notas e comentários de Paulo Franchetti.
 Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.
          
O poema é construído em redondilha menor, verso tão utilizado pelos medievais e considerado de fácil construção por ser curto. O poeta opera com uma cesura perfeita na segunda sílaba, o que permite uma leitura sincopada e quebrada, além de remeter aos poemas de Pe. José de Anchieta, por exemplo, e a tantos outros. Num dos mais famosos poemas do jesuíta, À Santa Inês, a cesura da redondilha menor ocorre na terceira sílaba métrica, o que permite ao texto uma leitura mais dinâmica e até juntar dois versos, na velocidade da leitura, para formar um hendecassílabo com cesura na quinta sílaba.
Já o poema de Pessanha, com a quebra na segunda sílaba métrica, torna os versos segmentados. A subpartição não possibilita uma leitura dinâmica, nem a junção de versos na leitura. Apesar de ser um poema de versos curtos, a leitura é lenta, e se estende a um prosaísmo, que culmina na última estrofe: três versos com três marcas de pausa. A repetição anafórica da segunda estrofe, que dá um caráter de laude católica ao poema, se desconstrói na estrofe subsequente iniciada por um travessão que marca um interlocutor e/ou um outro eu.
O trabalho sonoro feito pelo poeta divide o poema em duas partes: as quatro primeiras estrofes possuem um predomínio de sons oclusivos, à exceção da primeira estrofe, que intensifica uma espécie de sonoridade de rutura de Pessanha em versos curtos. As últimas estrofes, com uma sonoridade que mescla o fricativo e o nasalisado, são, portanto, menos duras que as primeiras. Assim, temos uma contradição sonora no poema: o trecho que marca uma reza possui uma sonoridade dura; a parte que acentua um tom dialogal é mais livre.
Além da sonoridade fragmentária que identificamos, o que a crítica costuma analisar na poesia de Pessanha é a construção de imagens desfeitas, ou a desconstrução de um todo imagético.
A perceção (...) carece de sentido e se esgota em si mesma porque não pode ser situada contra um quadro mais amplo, em que ganhe uma função. Por falta desse quadro, permanecem as várias perceções como fragmentos, como imagens desintegradas, sem transcendência que as redima numa unidade maior, e por isso a própria perceção é percebida como inútil e no limite acaba por cessar, como um longo esforço que não chegasse nunca a dar origem a um produto. (Nostalgia, exílio e melancolia: leituras de Camilo Pessanha, Paulo Elias Allane Franchetti, São Paulo, Edusp, 2001, p. 69)
O poema se inicia com uma metonímia, recurso retórico de partição do ser, ao adotar uma “voz passante”, que se mostra com alguma debilidade, ou seja, o fragmento do todo; a voz, também ela fragmento, não está inteira, mas ainda assim geme suas desgraças. O último verso da primeira estrofe carrega marcas de oralidade que lembram o ritmo do verso romântico e o substantivo “desgraças” conota não apenas uma imprecação e maledicência na sonoridade, mas também na semântica, o que se caracteriza como inovador e marca uma heterogeneidade da forma que só se possibilita num universo grotesco.
O tom formal da segunda estrofe é marcado pelo futuro do pretérito e pela mesóclise do pronome, mas destoa do tom informal adotado antes, então a próprialinguagem não nos fornece uma uniformidade no discurso, ela se pulveriza como todoem múltiplas variações. As estrofes seguintes estão carregadas de figuras retóricas quesubvertem a lógica do idioma: a quebra do sequenciamento lógico através do anacolutoé uma constante no poema, seja através de elipses como em “fraquinha, deliras”, ou noaposto de “se vens, às escuras” e ainda na quebra radical do encadeamento em “animas-te, dizes! não sei que terrores”.
Se o discurso quebrado marca o grotesco, não menos interessante é notar que o texto também está recheado de antíteses e paradoxos, figuras que contribuem para a quebra do discurso e para a construção de uma tensão: “animar-se diante do terror”; “amores X amarguras”; “suspiras X expiras”; “delirar projetos felizes”, e “gemido é um sopro que exalas” marcam muito bem o estranhamento que caracteriza a obra. Outro aspeto da linguagem que nos chama a atenção diz respeito à poética de Pessanha e do que se convencionou chamar de escola simbolista, é a “grafia rara” das palavras. Tanto gera estranhamento ao leitor, que das edições consultadas das obras de Camilo Pessanha e António Nobre, algumas edições optaram por modificar as escolhas raras de ortografia feita pelos autores.
No que diz respeito à pontuação do texto, os três versos marcados com travessão marcam um diálogo do eu poemático. Este ocorre consigo mesmo, uma espécie de alter-ego, ou com um interlocutor, uma segunda pessoa? O poema não responde, mas o conjunto da obra de Pessanha possui uma profunda fissura do indivíduo, o que nos leva a interpretar o poema de maneira equivalente. Paulo Franchetti indica que o poema “Imagens que passaes...” é um dos mais conhecidos do poeta. Entendemos que é também um poema central de sua exígua obra. A rutura do eu que ocorre naquele poema, também se manifesta no que analisamos aqui e o uso do travessão, entre outros expedientes semelhantes, é um recurso de ambos.
A partir da metonímia que fragmenta o eu, e dos travessões que apontam para uma cisão entre o eu e o próprio eu, é percetível um sujeito poético dialogando com uma segunda pessoa, e todos os verbos estão na segunda pessoa, que pode ser ele mesmo. O diálogo do eu com uma espécie de outro eu, que marca a poesia de vários poetas modernos portugueses, é grotesco. Seja na imagem do louco que dialoga consigo mesmo, com o homem ensimesmado que não se relaciona com o mundo, ou ainda com o esquizofrénico, temos um desvio, um estranhamento, um homem grotesco que muitas vezes se aliena de si. Parece-nos algo similar à rutura moderna, e sua deformidade:
A prática recomendada por Rimbaud estava não só de acordo com o ideal de artificialismo, que todos os decadentes tinham em mente como ideal supremo, mas já continha um novo elemento, a saber, o de deformidade e esgar como meio de expressão, que iria tomar-se tão importante para a moderna arte expressionista. Baseava-se essencialmente na perceção de que as atitudes espirituais normais e espontâneas são estéreis, do ponto de vista artístico, e de que o poeta deve superar o homem natural que existe nele próprio a fim de descobrir o significado oculto das coisas. (HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São paulo, Martins Fontes, 2000, p. 926. ‑ Grifo nosso)
É certo que a deformidade do eu neste poema de Pessanha é, à primeira vista, singela. No que tange ao conteúdo, o poema é simples. Trata-se de um eu lírico que descreve a passagem de uma voz débil e, em alguns momentos, provoca-a, mas a ambiguidade produzida na construção de alguns versos, mais especificamente nos que possuem travessões, impossibilita, como afirmamos acima, a certeza de haver uma resposta de outrem ou de um alter-ego e até de um eu que é outro eu. Os adjetivos que se referem ao interlocutor, seja ele particionado em voz, seja uma totalidade, são apenas três: “débil”, “humílima” e “fraquinha”. Outras expressões que de alguma forma caracterizam o outro são: “gemes”, com uma conotação desesperada, assim como nos verbos “pedir” e “tremer”.
Na terceira estrofe o próprio eu poemático pede que essa voz-sujeito, talvez emanada de dentro dele, manifeste terrores desconhecidos. O ser multifacetado não se reconhece em si, nem se conhece completamente. Por outro lado, sendo outro ser o interlocutor, ele se caracteriza por um pseudossilêncio que deixa a voz poemática em uma zona desconfortável, muito afim ao grotesco, de dialogar sozinho. A resposta, independendo do sujeito a que pertence, vem, primeiro, como delírio, depois em forma de respiração: “projetos felizes?”; “Suspirar” e “expirar” aparecem despidos de conotações alegóricas, mas a ação (as ações) semelha(m)-se à pausa para respirar meditativa, com um profundo sentido de esvaziamento.
A seguir, há a hipótese de uma confissão que não vem, ou sai em forma de um gemido de retomada do início do poema. Antes disso, a expressão adverbial “às escuras” possui uma ambiguidade: o ser vem à noite, na escuridão, ou, também à moda decadentista, sorrateiramente confiar-lhe algo. O poema transita entre a metafísica e o psiquismo de um diálogo. Lopes e Saraiva veem:
[...] a metafísica das realidades materiais e psíquicas implícita no senso comum liquefaz-se, e, por exemplo (e esquematizando), uma esperança frustrada pode fruir o doce ocaso da realização que não teve; a substancialidade dos fenómenos objetivos e a unidade pessoal são interrogados; o próprio poema tende para uma música de palavras reduzidas a motivos visuais e auditivos. (LOPES, Óscar e SARAIVA, António José. História da literatura portuguesa. Rio de Janeiro: Cia Brasileira de publicações, 1969. p. 1000-1001)
Com a afirmação de Lopes e Saraiva, fica-nos a questão: será que existe algo além do poema e sua sonoridade? As letras são substâncias e se materializam realmente em poema? Ou tudo inexiste e fica o som? Com a repetição anafórica de uma estrutura verbal em tom de queixa, “Não sei que...”, que lembra uma reza, parece que o poeta nos dá sua resposta: o som existe. Se esse questionamento da materialidade de seres e objetos é próprio do grotesco, a “reza” se manifesta. Contudo, tal qual antes, o futuro do pretérito não nos dá a certeza de nada além da “reza” que se faz signo.
Pessanha vai além. A sexta e a sétima estrofes questionam a própria significação das palavras. Não temos um antagonismo entre elas. No entanto, em sua poética de sugestão, há uma confusão, um fusionismo à barroca: os sons diferentes dos signos “Suspirar”, “falar”, “gemer”, “rezar”, “murmurar”, são, ao mesmo tempo,complementares. O significado dessas palavras parece ser o mesmo ao eu poemático.Novamente a quebra da semântica se dá no discurso de Pessanha; agora, no entanto, opoeta parece formar uma subversão lúdica dos signos, significantes e significados.
Além de se aproximar de brincadeiras linguísticas muito próximas da linguagem da praça pública, esse jogo gera um estranhamento: a língua é intangível ao recetor da mensagem. É ela que causa vertigem. Com isso, cria-se um efeito de estranhamento, ligado ao grotesco de Wolfgang Kayser. A estrofe que encerra o poema dá um indício de que a voz, o pseudosser, deseja o eu lírico como parceiro, e o sentido desse último substantivo é absolutamente indefinível, tanto quanto os dois últimos versos proferidos pelo sujeito lírico: “— Ser teu companheiro?/ Não sei o caminho./ Eu sou estrangeiro.”
Numa outra perspetiva de leitura, os três versos marcados pelo travessão poderiam indicar até uma possibilidade de trajetória amorosa, mas a voz poemática, através das ferramentas estilísticas apontadas acima, não deixa que o tema do pseudodiálogo seja realmente expresso. O dizer é indizível. Obviamente que não é por isso que identificamos uma presença marcante do grotesco no poema, mas esse elemento unido ao trabalho que é feito com a linguagem possibilita um texto sobre uma voz-que-não diz. O oximoro produzido pelo pseudodiálogo construído no poema é uma espécie de tropo da modernidade. O paradoxo intelectual, que remete ao Barroco e ao seu complexo Concetismo, é tipicamente grotesco e está alinhavado ao que a modernidade experimenta constantemente. A temática grotesca só se faz enquanto linguagem.
A (des)construção sonora, semântica e sintática do texto em nosso ponto de vista é uma subversão da linguagem, permitida pela própria gramática e pela lógica interna do idioma, portanto grotesca. Além disso, no entanto, a poesia de Pessanha possui uma coerência na sua fragmentação formal que não demonstra um grotesco óbvio na linguagem. O texto possui marcas grotescas, mas na superfície elas não aparecem. A construção de linguagem e de imagens grotescas se amarra numa coesão absoluta do todo textual. O dito é o não-dito, uma lacuna, no máximo um interdito. O dizer se manifesta através do silêncio e este se torna uma forma moderna de ser marginal e grotesco.
          
           
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 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/14/voz.debil.que.passas.aspx]