quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

OCEANO NOX (Antero de Quental)


José Carreiro, Ribeira Grande, ilha de São Miguel, Açores, 2011-10-16
             





OCEANO NOX 
A A. de Azevedo Castelo Branco
   
Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais... 

Antero de Quental
        




          
Antero indaga o Céu em busca de resposta, e só encontra o Nada. Ao sentimento dilacerante de que o equilíbrio é já impossível, soma-se agora o duma catastrófica solidão íntima ecoando a profunda mudez cósmica, como se pode ver no "Oceano Nox".
Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa, São Paulo, Editora Cultrix, 1985 (21.ª ed.)
        
*
          
[…] a falta de resposta, isto é, de sentido (do mundo), que se patenteia no último terceto de "Oceano Nox", tem também um perfeito paralelo em Camões:
OCEANO NOX:
Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...
  
CAMÕES:
Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
  
São topoi muito gerais da ordem lírica, do estado de consciência poético, são a enunciação da própria situação poética no seu status nascendi, são ordenação estética do caos silencioso para que o homem encontrou uma falaciosa arrumação semântica. E por isso este discurso poético não é niilista, apenas questiona o sentido do sentido trivial, e quem lê nele niilismo lê apenas a falta do seu querido sentido trivial pré-estabelecido.
Fariam bem os autores destas interpretações em procurar nesta poesia todos os elementos que não só não vieram reduzir o mundo a nada, nem torná-lo mera abstração, mas, pelo contrário, vieram acrescentá-lo com a sua presença. Algo que não existia passou a existir.
Num artigo de 1861, Antero tematiza tudo isto, fala dum "sentimento confuso" que vem do "fundo da alma" e se eleva até tornar-se ideia, "ideia de sentimento": é um modo de descrever o processo de seleção e organização dos elementos do caos, não dentro da sua semantização pré-estabelecida, mas numa unidade superior a que Antero chama "Forma", e a qual para ele tem a sua manifestação mais pura no soneto. […]
Antero de Quental: Método paradoxal, pontual”, Alberto Pimenta. 
Revista de Guimarães, n.º 102, 1992, pp. 249-266.
        
*
          
Direi algo obscuro: o mar, na experiência do poeta, é — em razão da força organizadora dos advérbios de modo, soando a tristeza conexa entre a criatura e a criação — projeção de uma perda dramática. A situação do poeta, sentei-me, busca ouvir tal dano no lamento que saía das coisas, vagamente. Nessa audição, Antero de Quental requer do ato poético um sacrifício. Explico: a palavra “nox”, qualificando o substantivo “Oceano”, está ali a anunciar onde a morte dorme, enquanto as palavras como ondas esfacelam na praia o inquieto desejo.
As perguntas estão no poema a promover um ethos de alienação, capaz de dar ao poeta a alegação de que o fracasso em entender o que murmura tem um significado superior. Ou seja: a alienação da audição está na poesia como colapso das relações significativas; quer dizer, o algo que está constantemente para acontecer, a fala do Inconsciente imortal, é o queixume do homem uno em si mesmo que, por conseguinte, deve considerar a estória que se conta, à beira das ondas, pelo que sabe estar além da história.
Melhor: o tipo de alienação existencial que Antero de Quental cria possui tal sanção teológica que é difícil percebê-lo como ideologia; antes, a derradeira ficção da sublimidade do ego em se identificar com aquela vastidão significante, o mar, requer instrução e repouso na fé. Contudo, o espectro do conhecimento que parece adquirir pronúncia a cada estalo das águas, sendo adquirido pela perda do poder do eu, assedia a ética para que ela persiga a sua maturidade até o ponto de não-retorno à identificação — que sempre é possível.
O ato poético de Antero de Quental, que da desordem espiritual de uma paisagem originária retira, por seus sons, o Inconsciente imortal — como ética de qualquer natureza, incluindo aí o caos torpe da história humana — apresenta o saber que diz que as melhores coisas são tremendamente sigilosas. Ou seja: se a relação entre o poeta e o expansivo significante for abstraída, fica o primeiro com a independência que, surpreendentemente, coincide com o puro conceito da liberdade ética.
Nesse sentido, quando a razão do poeta se põe em escura, postula a própria frustração de maneira que a imaginação descubra-se, inusitadamente, numa atitude de admiração. Se os murmúrios deixam registros do Inconsciente imortal que na natureza há de queixar-se e nada mais, o ato de contemplação do oceano ilimitado, onde dorme a morte, permite ao poeta sentir que tudo está simultaneamente ali, coexistindo com ele; num domínio de existência no qual o homem é incapaz de conhecer.
Assim sendo, o ato poético da compreensão de Antero de Quental, seu puro conceito de liberdade ética, toma aquilo que insiste como desconhecimento —Inconsciente imortal —, a partir da alienação existencial; que aponta para o íntimo destino antológico do homem; manifesto somente quanto ao aspeto ou condição de sua inatingibilidade. Ou seja: só na grandeza da derrota o ritmo da visão é quebrado na conjuntura que se anuncia, e nada mais...; que, não obstante, leva o poeta para além da segurança da audição.
O abismo do idealismo da escuta, “Oceano Nox”, está no nome do soneto como se fosse a forma daquele mistério; melhor: a poesia é que se torna ameaça quando se debruça sobre a audição do nada mais; pois comporta-se profeticamente, reivindicando o direito de preencher literalmente o silêncio que ainda perdura no lamento que sai datrágica voz rouca. Desse lamento, sentado tristemente, Antero de Quental contempla a face da eternidade; falantes, as ondas pronunciam vagamente sua linguagem cuja significação não pode ser lida em termos fenomenológicos.
Por não poder ler dessa forma, Antero de Quental abre os ouvidos para se perceber mais distante de si, mantendo ainda o silêncio do nada mais preenchido pela impossibilidade de atribuir um sentido positivo à existência. A ação do mar que o fez deter-se na escuta é absorvida no soneto como momento contingente do destino; o que significa dizer que não é construído a partir de uma ideia; pois a impossibilidade da objetividade do sentido faz a poética cumprir a tarefa de tornar o eu gramatical do soneto um eu espiritual da escuta supra-sensível.
Ou seja: o soneto “Oceano Nox”, mediante a sua participação imediata na linguagem dos murmúrios que as ondas ressoam, da qual não se liberta, refere-se a um “nós”, envolto num processo de completa subjetivação; cujo estado histórico de impossível objetividade de sentido é juízo ético sobre a improcedência do próprio ato de conhecer o contínuo nada mais que o Inconsciente imortal pronuncia derradeiramente. Dessa maneira, o “nós” se instala na medida em que qualquer homem tende à escuta das palavras pronunciadas nos estalos das águas; mais, quando os respingos sugerem discursos que só o íntimo de cada um encontra ao traduzir toda e qualquer justiça para a humanidade.
A febre ética de Antero de Quental desfralda o puro poder do indizível que, por não se revelar, mostra as palavras do soneto a manter uma proximidade radical entre a natureza cm excessivo significante e o precário real de seu significado. Já que isso concerne ao acontecimento primeiro do soneto — passava como o voo dum pensamento que busca e hesita, inquieto e intermitente — a febre ética toma o intermitente para expor o que ocorre enquanto sucede.
Mas o que tal quer dizer, se faço existir a presença de um “nós”? Ninguém pode se negar a admitir que na proximidade de uma vastidão contemplada, a adivinhação apareça como o único caminho da mente entre o íntimo abismo que se abre enquanto os olhos buscam pontos de fuga na imensidade; ao mesmo tempo em que ela, na audição, se põe ao ouvir um nada mais. Assim, adivinhação consubstancia a poética de Antero na medida em que funda a sua ética — a justiça pretendida responde ao enigma do futuro como se fosse por ele interpelado.
Sendo, o soneto de Antero de Quental imprime através de um eu espiritual, que escuta supra-sensivelmente, algo que deve escapar à necessidade de sentido para afirmar o fatal ético de qualquer sentido em suas poesias. Nesse ato, o “nós” envolto num processo de completa subjetivação afirma a medida da humanidade, que, ao ser pensada, encontra nos ruídos da natureza a pronúncia de uma linguagem desejada e inexecutável de ser conhecida. Sem ela, porém, o eu poético não escuta o silêncio que a justiça almeja.
Se assim pode ser, recuo e postulo uma treliça para separar e, mentirosamente, concluir. Se no início do texto admiti um corte, devo agora retomá-lo. Há algo que não se realiza quando se pretende observar as ações do ego poético na cultura portuguesa — segundo a presença do romantismo, sem lhe dar momento temporal. A sua demonização ao falar, conforme o deslocamento que difunde o seu poder à medida em que subverte os parâmetros poéticos, parece sempre encontrar um particularismo que corresponde à presença, algo utilitária, da Natureza (mesmo urbana, e no sentido de uma paisagem que lhe dá possibilidade de abstração).
Esse fato de cultura cunha o sublime egotista, romântico e para além dele, através da estrutura da alienação que, dos colapsos das relações significativas, regentes da expectativa poética, faz da alma uma lacuna; cuja extensão é descoberta à medida que é preenchida por escape comum à viagem de um eu; golfos, praias, enseadas e cabos para um pouso da subjetividade — o que chamo de particularismo português, ou, então, cordato risco lusitano. Explico: os três poetas, cada qual na singularidade que os revela, têm o espaço interior, expressão da infinitude do espírito romântico, nascido sem a marca de um vazio maciço e mais ou menos inconsciente, segundo a forma da poesia moderna; o que significa que a sublimidade centrada nas emoções do sujeito é objeto — o que é o mesmo que dizer que a primitiva psicologia associacionista tem ainda lastro.
Ou seja: num ou noutro, a consciência poética ativa-se na medida em que a essência da alma do poeta expressa um tipo de reflexão capaz de erguer sensações em tom familiar, consigo mesma e conhecendo as suas faculdades. Assim, objetos vastos provocam sensações vastas; e estas dão ao espírito do poema uma ideia superior dos próprios limites. Logo, a alma do poeta é ainda o espaço em que as sublimações ocorrem, mas sem qualquer efeito constitutivo do problema da relação entre sensação e reflexão na poesia.
Essa relação é motivada por um apego naturalista, como se fosse um ato moral da metáfora; o que é o mesmo que dizer: não há associação que seja capaz de, mesmo em tom ínfimo, enfraquecer a garantia que a linguagem corrobora ao reiterar a relação entre sensação e reflexão. A consciência poética, então, é disposta sobre e contra qualquer ordem formal — no sentido de concreta abstração, como um fato plástico —; antes, afirma-se espectadora que não tem nenhuma ação e não pode interferir e, ao mesmo tempo, não possui autoconhecimento fora dessa ordem. Se as sensações são retiradas, a consciência só percebe a reiteração da linguagem.
É isto que torna possível uma convenção não examinada na cultura portuguesa; o significado das palavras está unicamente na maneira como são usadas, pois em princípio um apelo à Natureza além da linguagem não tem fundamento familiar no particularismo de um eu português. E é dessa forma que o voo da liberdade de Camilo Pessanha pressupõe o deserto e clama a morte como um personagem íntimo ao facto poético; e é assim que o corpo de Cesário Verde se oferece como contraponto à paisagem onde ele deposita sua tristeza, recolhendo num eu-recetáculo as sensações naturalizadas nas próprias reflexões de paisagem; como também, é assim em Antero de Quental, ao ouvir e medir a mística, a razoável intimidade entre a justiça e o que desconhece ao se pôr palavras como se colocasse velas nas sensações, para de imediato evitar o risco da viagem e encontrar, rapidamente, um canto para profetizar o quanto de justiça o esperava se o navegar tivesse delírios em remos.
Desempenho da leitura: sete ensaios de literatura portuguesa,
Marcus Alexandre Motta. Editora 7Letras, 2004
        
*
          
Para Antero de Quental, acreditar num Deus supremo foi o alicerce onde firmou todo o seu projeto de vida. A perda desse fundamento transformou o poeta num ser angustiado, pessimista e cheio de dúvidas. Esses sentimentos permaneceram ao longo de toda a sua trajetória de vida, levando-o à busca de Deus pelos caminhos da Filosofia. Percorrendo-os, foi atribuindo novos nomes a Deus - Bem, Justiça, Verdade, Absoluto, Ideia, Ignotus, Inconsciente -, na tentativa de conciliação entre o seu novo ser e o que fora em sua juventude. Nesta busca de um impossível, conseguiu apenas um simulacro de solução: a evasão pela morte. Como um romântico - que, no fundo, sempre foi - matou-se na sua Ilha de São Miguel, sentado em um banco de praça, diante de um muro onde se lia a palavra cujo sentido perdera: Esperança.
Antero de Quental: Uma trajetória com DeusHelen Araujo Mehl. 
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, setembro 2003.
   

   SUGESTÃO DE LEITURA:

Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Antero de Quental, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição) <https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/antero-de-quental>


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/02/06/oceano.nox.aspx]

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

ILHAS DE BRUMA

  
Fotografia de José Carreiro. Ribeira Grande, 2014-01-04

      
Ainda sinto os pés no terreiro,
Que os meus avós bailavam o pezinho
É que nas veias corre-me basalto negro
E na lembrança vulcões e terramotos.

Por isso é que sou das ilhas de bruma,
Onde as gaivotas vão beijar a terra

Se no falar trago a dolência das ondas
O olhar é a doçura das lagoas
É que trago a ternura das hortênsias
E no coração a ardência das caldeiras.

Por isso é que sou das ilhas de bruma,
Onde as gaivotas vão beijar a terra 

Trago o roxo a saudade esta amargura
E só o vento me ecoa na lonjura
Mas trago o mar imenso no meu peito
E tanto verde a indicar-me a esperança. 

Por isso é que eu sou das ilhas de bruma,
Onde as gaivotas vão beijar a terra 

É que nas veias corre-me basalto negro
No coração a ardência das caldeiras.
O mar imenso me enche a alma,
E tenho verde, tanto verde a indicar-me a esperança. 

Por isso é que sou das ilhas de bruma
Onde as gaivotas vão beijar a terra
  
Manuel Medeiros Ferreira
(Ilha de São Miguel, 1950-2014)     
                                  
    

  
 
                                  
Esta melodia, que espelha o lirismo açoriano, embala-nos numa tocante sensação marítimo-maternal.
José Maria de Aguiar Carreiro
       
A canção "Ilhas de Bruma", escrita nos anos oitenta do século XX por Manuel Medeiros Ferreira, transformou-se num "hino não institucional" da açorianidade e da autonomia, um tema que "também serviu para contestar" e continua a ser recreado.
  
  
Lagoa do Fogo, 12-05-2016. Foto: Manuel-Oliveira

      
      
       PETIÇÃO PÚBLICA: MUDAR O HINO OFICIAL DOS AÇORES
  
      Mudar o hino oficial dos Açores.
       PETIÇÃO PÚBLICA dirigida ao Governo Regional dos Açores
        e Assembleia Legislativa dos Açores.
Ilhas De Bruma, um verdadeiro Hino aos Açores.
Quantos Açorianos conhecem o Hino dos Açores e quantos conhecem a Letra que Natália Correia tentou adaptar à melodia? Julgamos que poucos, mas muitos não só conhecem como gostam e trauteiam as “Ilhas De Bruma” de Manuel Medeiros Ferreira (falecido em 3/1/2014). Quer a melodia quer a letra retratam com fidelidade as Nove Ilhas do Arquipélago e, no momento do padecimento do Autor de Ilhas de Bruma, a melhor homenagem que lhe podemos prestar é propor que a sua criação musical e literária seja assumida como Hino Dos Açores. Eu voto e quem vota mais?
Ao longo dos anos nos Colóquios da Lusofonia constatei um total desconhecimento do hino oficial quando este era tocado por motivos institucionais (Brasil, Macau e Galiza). Por outro lado em todos os colóquios onde a nossa pianista residente (Ana Paula Andrade, diretora do Conservatório Regional de Ponta Delgada) tocava as Ilhas de Bruma a maior parte das pessoas sabia cantarolar fosse em que país fosse... De facto a suave melodia, quase uma melopeia entranha-se no ouvido dos forasteiros e faz sentir saudades aos açorianos e seus descendentes. Esta composição de M M Ferreira é das mais tocadas nas rádios da diáspora e decerto simboliza melhor do que qualquer outra esse sentimento que todos partilhamos da AÇORIANIDADE.
Não é uma marcha militar como aquele que ficou como hino oficial com um poema forçado da Natália Correia para se fazer encaixar numa música mais apropriada ao dealbar do século XX do que ao seu findar… A ideia original pode ter parecido boa na altura mas não vingou e raros se identificam com esse hino oficial.
Nestes dias após a morte de M M Ferreira lançamos este repto nas redes sociais pois pretendíamos saber se haveria força e expressão popular para tal. Até agora, nessas redes, duas pessoas mostraram-se contra com a maioria a perguntar onde se assina a petição. Ora bem, em menos de 24 horas, centenas e centenas de pessoas nos fóruns da internet dedicados aos Açores (Info Açores, Açores Global, Ilhas de Brumas, e tantos tantos outros) manifestaram-se afirmativamente a esta proposta. Aliás esta constatação já a vínhamos fazendo na sessão de abertura dos Colóquios da Lusofonia desde 2006 em que todos conheciam a letra e música de As Ilhas de Bruma e todos ficavam calados quando institucionalmente tínhamos de tocar o hino oficial…. Assim, sugerimos, a quem de direito a coragem de assumir o verdadeiro hino dos Açores em substituição do hino oficial que nada nem ninguém representa. Talvez mereça algum estudo e melhoramento pelos entendidos mas como está, foi bem aceite por todos e vibra na alma dos açorianos de cá e na diáspora. Sendo uma composição simples, popular, que bem retrata e espelha a alma açoriana merecia ser tocado como hino representante da Região. Esta é a opinião da Direção da AICL ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DOS COLÓQUIOS DA LUSOFONIA)  
  


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/22/ilhas.de.bruma.aspx]

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

PORQUE O MELHOR, ENFIM. (Camilo Pessanha)


Cimetière du Père-Lachaise (foto de José Carreiro, 07-06-2014)

               
  
  
Porque o melhor, enfim, 
É não ouvir nem ver... 
Passarem sobre mim 
E nada me doer!

— Sorrindo interiormente, 
Côas pálpebras cerradas, 
Às águas da torrente 
Já tão longe passadas. —

Rixas, tumultos, lutas, 
Não me fazerem dano... 
Alheio às vãs labutas, 
Às estações do ano.

Passar o estio, o Outono,
A poda, a cava, e a redra, 
E eu dormindo um sono 
Debaixo duma pedra.

Melhor até se o acaso 
O leito me reserva 
No prado extenso e raso 
Apenas sob a erva

Que Abril copioso ensope... 
E, esvelto, a intervalos 
Fustigue-me o galope 
De bandos de cavalos.

Ou no serrano mato, 
A brigas tão propício, 
Onde o viver ingrato 
Dispõe ao sacrifício

Das vidas, mortes duras 
Ruam pelas quebradas, 
Com choques de armaduras 
E tinidos de espadas...

Ou sob o piso, até, 
Infame e vil da rua, 
Onde a torva ralé 
Irrompe, tumultua,

Se estorce, vocifera, 
Selvagem nos conflitos, 
Com ímpetos de fera 
Nos olhos, saltos, gritos...

Roubos, assassinatos! 
Horas jamais tranquilas, 
Em brutos pugilatos 
Fracturam-se as maxilas...

E eu sob a terra firme, 
Compacta, recalcada, 
Muito quietinho. A rir-me 
De não me doer nada.
  
Camilo Pessanha
  


  
Nota bibliográfica coligida por J.G. Elzenga:
Autógrafo pertencente a Carlos Amaro, atualmente perdido.
Publicações anteriores à segunda edição de Clepsidra:
Seara Nova, (de 24 de Agosto de 1940), com a indicação "Um inédito de Camilo Pessanha".
  
  

                 

  
Cimetière du Père-Lachaise (foto de José Carreiro, 07-06-2014)


Em «Porque o melhor, enfim, / É não ouvir nem ver... / Passarem sobre mim / E nada me doer! / ‑ Sorrindo interiormente, / Co'as pálpebras cerradas, / As águas da torrente / Já tão longe passadas.» ‑ é bem evidente o seu desencanto e até desespero face à vida que ama e que lhe foge, que o reduzirá ao nada, traduzido com despeito, realçando o negativismo dessa mesma vida que já o não atinge «Debaixo de uma pedra», mas que, mesmo assim, lhe dói o tê-la perdido e por isso o sentir-se morto antes de o ser, por um lado é o grito do inconformismo com o seu destino de mortal, por outro, um prenúncio de esperança no otimismo mais ou menos verdadeiro, nessa etapa desconhecida.
Lilás Carriço, Literatura Prática 11º Ano. Porto, Porto Editora1986 (4ª ed.) (1ª ed. 1977), p. 348
  
  
Cimetière du Père-Lachaise (foto de José Carreiro, 07-06-2014)

  
  
Se há tensão entre a transitoriedade do mundo e o desejo de fixação, a morte despontará também, nos versos de Pessanha, como o único modo de manter-se fora da ação corrosiva do tempo, uma vez que ela é a própria anulação do tempo. Mas a morte não poderá jamais ser um lugar de chegada efetiva, ela é uma promessa que não se cumpre, um horizonte imaginado e almejado, mas não verdadeiramente atingido. A famosa (e impossível) síntese que Pessoa tão bem expressou nos versos da Ceifeira – “ter a tua alegre inconsciência / e a consciência disso” (PESSOA, 1986, p. 144) – é como um sonho de morte também revelado por Pessanha:
Porque o melhor, enfim, 
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim 
E nada me doer! [...] 

Roubos, assassinatos! 
Horas jamais tranqüilas, 
Em brutos pugilatos 
Fracturam-se as maxilas... 

E eu sob a terra firme, 
Compacta, recalcada, 
Muito quietinho. A rir-me 
De não me doer nada.”
  
O que causa estranheza nesses versos é que o espaço da morte é por demais familiar, e não uma pura ausência de sensações; donde se conclui que não é possível dizer a morte, já que ela vem contaminada com algo da vida. Por isso a morte não pode libertar-se de seu estatuto de promessa; ela é, paradoxalmente (ao menos nos versos de Pessanha), o lugar da própria eternidade, mas de uma eternidade impossível de atingir. A poesia de Pessanha inscreve-se, portanto, nessa tensão entre um desejo de apagamento e a constatação de sua impossibilidade, o que evidencia que a linguagem é incapaz de uma auto-anulação, ela sempre fala demais, fala além do desejado. Ou melhor, a linguagem fala sempre demais ou de menos; por um lado é excessiva, por outro, insuficiente.
É esse caráter sempre falhado que remete a uma compreensão da linguagem enquanto alegoria que procuro assinalar aqui, isto é, uma forma de significação sempre marcada pela arbitrariedade, incapaz de alcançar um sentido último e verdadeiro, ao contrário do símbolo, que revelaria um ideal de plenitude e totalidade.
  
O Naufrágio das Caravelas”, Izabela Guimarães Guerra Leal. 
In: O MARRARE - Periódico do Setor de Literatura Portuguesa da UERJ, Número 7 (2006) - ISSN 1981-870X
  
  
Cimetière du Père-Lachaise (foto de José Carreiro, 07-06-2014)

  
  
 [Em] “Porque o melhor, enfim,/ É não ouvir nem ver…”, […] o anseio maior do poeta é por estar morto e enterrado, sem sentir nada, indiferente ao que se passa do lado de fora da tumba. O ideal de felicidade é […] negativo: "
E eu sob a terra firme,
[...]
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.
Como podemos perceber, […] a felicidade provém da supressão dos motivos da dor, da eliminação da vulnerabilidade do sujeito. Não é algo positivo, que se obtenha pelo esforço ou pela sorte. Não é satisfação. Pelo contrário, é uma condição negativa.
Mapa da língua, Paulo Franchetti, 2009-04-05.
  

Cimetière du Père-Lachaise (foto de José Carreiro, 07-06-2014)


  
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 Vida e obra de Camilo Pessanha: apresentação crítica, seleção, notas e linhas de leitura / análise literária de Clepsidra e outros poemas, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo, 2021 (3.ª edição).



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/01/21/porque.o.melhor.enfim.aspx]