sábado, 25 de outubro de 2014

LUGAR (Miguel Veyrat)



LUGAR

Busco un lugar inocente
donde este lobo que me habita
no abrigue sombras de miedo
sobre la tierra desnuda -y deje de ser
extranjero. Donde la meta
nunca consista en volverse atrás. Donde
ya no me sangre el desangrado cuerpo -en memoria
de nocturna voz, cuando la luz
más alta. Y cantar luego
sosegado en busca de cualquier certeza:
Pero la tierra siempre
tiene dueño -solo vuela
libre la inocencia, lugar ignoto
que nadie es capaz de descubrir.

Miguel Veyrat
En “Sobre la tierra desnuda”       
Incluido en “Razón del mirlo”
Edit. Renacimiento, 2009©
ISBN 13: 9788484724612





Outros poemas de Miguel Veyrat no blogue http://trianarts.com:


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

JOVEM REBELDE (Luís Silva)


Cover art




JOVEM REBELDE

Eu sei que não sou alguém especial
Sou apenas um jovem
À procura do seu lugar
Traço o meu caminho
Sigo sempre o meu coração
Não tenho o meu destino
Traçado na palma da minha mão
Faço coisas por instinto
Que nascem dentro do meu ser
Quero viver esta vida
Do modo que gosto e sei fazer
Dizes coisas que não faço
Mil e um nome me dás
Mas sou apenas isso
Sou um jovem rebelde, sou
Sou alguém como tu
Ser assim é ser livre
É como voar nas asas de um açor
Mas sei amar como tu·
Ser assim é dar tudo o que tens
É dar tudo o que tens por amor
É assim que eu sou
Eu sei que não sou alguém especial
Sou apenas um jovem
Perdido no teu olhar
Ser jovem não é pecado
Ser assim não é defeito
Sou apenas como um rio
Que corre no seu leito
Dizes coisas que não sou
Mas sou aquilo que não dizes
Mil e um nome me dás
Mas sou apenas isso
Sou um jovem rebelde, sou
Sou alguém como tu
Ser assim é ser livre
É como voar nas asas de um açor
Sou um jovem rebelde, sou
Mas sei amar como tu
Ser assim é dar tudo o que tens


Letra, música e voz: Luís Silva
Grupo: Art & Soul
Álbum: Moment of Clearness,
Data de lançamento: 2011-07-22





         

[Publicação simultânea em http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/10/23/jovem-rebelde.aspx]

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

ABANDONADA (Roberto Mesquita)


Fotografia de José Carreiro, Pico, 2014-08-17


    
ABANDONADA

A velha casa, onde eu morei outrora
E que há muito está desabitada,
Silenciosa envolveu-me, ao ver-me agora,
Num triste olhar de amante abandonada.

Com que amargor no íntimo lhe chora
Uma alma sensitiva e ignorada,
Que não tem voz para queixar-se, embora
Se veja só, de todos olvidada!

Casa deserta e fria, que envelheces
Ao desamparo, sem uma afeição,
Bem sinto que me vês, que me conheces

E relembras os dias que lá vão…
Eu esqueci-te, amiga, e tu pareces
Toda magoada dessa ingratidão.

Roberto de Mesquita (1871-1923), Almas Cativas e Poemas Dispersos








         MESQUITA, ROBERTO DE (1871-1923).
Verbete do Dicionário de Literatura Portuguesa, Brasileira, Galega e Estilística Literária. Porto, Figueirinhas, 1989 (4ª edição) (1ª edição, volume único, 1960; 2ª edição, tomo 1, letras A-M, 1969).

Escrivão de fazenda na Ilha das Flores, onde nasceu e morreu, publicou em jornais e revistas açorianas e continentais os versos postumamente reunidos no seu único livro: Almas Cativas, 1931 ‑ obra que, apesar da sua delgadeza, tem, de direito, um lugar, pela qualidade estética e mais ainda pelo acento autóctone, no nosso florilégio simbolista. Vagas preocupações metafísicas – herança de Antero de Quental, autor do verso «Almas irmãs da minha, almas cativas!» ‑ nela se diluem num descritivismo realista, ainda baudelairiano e filtrado por Cesário Verde, que monotonamente se imprecisa em angustiosa solidão, própria do carácter insular e conforme, em sua música e cambiantes, com·o magistério de Verlaine. O vento lastimoso, dias pluviosos, horas cendradas, saudades avulsas, sem causa, a penumbra que empana as formas compõem a atmosfera em que o poeta confessa a sua «maré de tédio». Discretos processos simbolistas («dia hiemal», «tarde macerada», etc.) podem-se facilmente reconhecer no estilo de Roberto de Mesquita, artífice abertamente confesso, que não rejeita o pontificado de Eugénio de Castro. Mas o que sobretudo importa destacar do seu espólio lírico é decerto, como acentua Vitorino Nemésio, «a imagem da sonolência da vida nos Açores [...] um perfil difuso e abúlico da açorianidade». Foi o introvertido autor das Almas Cativas (segundo este lúcido crítico) o primeiro poeta a exprimir «alguma coisa de essencial na condição humana» tal como ela se apresenta naquele arquipélago.

Urbano Tavares Rodrigues
Bibliografia:
Vitorino Nemésio, «Poeta e o Isolamento: Roberto de Mesquita», in Revista de Portugal, n.º 6, 1939.
Pedro da Silveira, «A propósito duma homenagem e dum projecto», in Diário Ilustrado de 25II-1958.
Jacinto do Prado Coelho, «Pensamento e estesia em Roberto de Mesquita», in Problemática da História Literária, Lisboa, 1961, pp. 249-255.



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Lívido amanhecer, lufadas agressivas
Batem os canaviais e os álamos da estrada.
Que bilioso o acordar das perspectivas
Por essa macilenta e gélida alvorada!

A paisagem, que empana um véu cinzento e baço,
Ressuma na manhã irregelada e má
O fastio da vida, o mórbido cansaço
Dum velho coração que nada espera já.

De quando em quando ulula no próximo pinhal,
Sob a nortada agreste, a lamentosa reza
Em que se aflige a desesp´rança universal…

Dir-se-á senil e enferma a alma da natureza,
Por este amargo abrir de fusco dia hiemal,
Duma desconsolada e anémica tristeza.

Roberto de Mesquita, Almas Cativas e Poemas Dispersos





         ROBERTO DE MESQUITA
         [N. Santa Cruz das Flores, 19.6.1871 ? m. ibid., 31.12.1923] Poeta.
Verbete da Enciclopédia Açoriana. Base de dados disponível no portal culturacores.azores.gov.pt. Centro de Conhecimentos dos Açores - Direção Regional da Cultura, 2011.

Se na obra de muitos escritores se sente o desfasamento entre o tempo e o mundo que lhes é dado viver e as características pessoais, Roberto Mesquita foi um poeta que nasceu no ambiente e na época literária certos. Com efeito, características pessoais, culturais e psicológicas, fazem que na poesia de Roberto Mesquita se interpenetrem, com aguda sensibilidade e rara felicidade, as circunstâncias da vida, e o espírito e temas do decadentismo e simbolismo da época literária.
Depois de ter feito a escola primária em Santa Cruz das Flores, o segundo filho de António Fernandes de Mesquita Henriques e de D. Maria Amélia de Freitas Henriques, Roberto Mesquita, segue os passos de seu irmão Carlos, um ano mais velho, e, como ele, depois de uma primeira tentativa frustrada em Angra do Heroísmo, faz estudos liceais na Horta. Vem depois a ingressar na carreira da Fazenda Pública, enquanto seu irmão, dado também, ainda que com menos felicidade, à criação literária, prossegue estudos em Coimbra.
Em 1890, Roberto de Mesquita, que, na companhia deste irmão frequentara já algumas tertúlias literárias e recebera estímulo de professores na Horta, faz a sua estreia literária, publicando n’O Amigo do Povo de Santa Cruz das Flores um soneto sob o pseudónimo Raul Montanha. A partir daí, vai dando a conhecer dispersamente os seus poemas: e se publica a maioria em páginas da imprensa regional (O AçorianoA Ilha das Flores, Revista FaialenseO Arauto, A Actualidade), outros vêem a letra de forma em algumas das páginas nacionais de maior representatividade da época, como sejam a Ave Azul ou Os Novos, a revista que deu expressão mais significativa à geração simbolista portuguesa.
Roberto de Mesquita, que era leitor assíduo da poesia portuguesa e francesa (marcam­-no sobretudo Verlaine e Rimbaud, mas também Baudelaire está presente em muitos dos seus poemas), nunca deixou de ter informação da vida literária do continente e, aquando da única viagem que realizou para fora dos Açores (1904), encontrou­-se com Eugénio de Castro e Manuel da Silva Gaio. A estes contactos não era estranha a intervenção de Carlos de Mesquita, homem culto e de fina intuição crítica, que foi professor no liceu de Viseu e, depois, na Universidade de Coimbra (morre em 1916).
A edição em livro dos seus poemas foi projecto acalentado por Roberto Mesquita, que o organizou e colocou sob a égide expressa de Antero, intitulando-o, a partir do verso anteriano «almas irmãs da minha, almas cativas», Almas Cativas. Morreu no entanto sem realizar o projecto, e só em 1931, por iniciativa familiar, apoiada por Marcelino Lima, a obra surgiu em Famalicão. Já em 1989, Pedro da Silveira leva a cabo nova edição, enriquecida com poemas dispersos e o registo de variantes, e prefaciada por Jacinto do Prado Coelho. Por outro lado, no final da década de 30, Vitorino Nemésio considerou Roberto Mesquita «o primeiro poeta que exprime alguma coisa de essencial na condição humana tal como ela se apresenta na ilhas dos Açores», encontrando nos seus poemas a expressão perfeita das características que reúne no seu conceito de açorianidade. Pôde assim sublinhar no livro do florense «a melhor imagem da dispersão e sonolência da vida nos Açores, um perfil difuso e abúlico da açorianidade».
Pertencem a Almas Cativas alguns dos mais belos e expressivos poemas marítimos da poesia portuguesa. Neles, o peso opressivo da solidão concentra-se na sugestão de um ambiente fechado, de céus cinzentos e pesados, que se estende ao poeta de uma forma calma e difusa. As casas ancestrais e as ruínas humanizam-se, a noite, pelo seu «místico cismar», impõe um «terror sagrado» enquanto o luar transfigura a natureza, enfim, o poeta descobre a «alma de tudo a orar» e vê a sua sensibilidade exacerbada pelo pôr-do-sol, pelo vento agreste, por ruínas que se desenham em ambientes de decadência.
Invadido por um vago misticismo, que ultrapassa em muito o spleen evocado em algumas composições, o poeta irmana­-se com as «Almas cativas» do universo e toma para si a missão de revelar o sentido da natureza e das coisas, a sua «alma». Ao fazê-lo, tem consciência de ser superior aos outros homens, confinados às aparências simples do universo; mas, «poeta maldito», no seu dom encontra também o seu infortúnio. Como Filodemo, o pastor a quem as asas impedem o amor, sabe que a sua condição de poeta o impede de desfrutar as alegrias simples e ingénuas dos homens comuns.
Precisamente porque poeta, sabe­-se superior aos seus contemporâneos; e a sua alma «omnicoeva», «alma fim de raça, / intransigente com o Hoje estiolante», sente o apelo do Outrora. Interessam­-no então os ambientes fantasiados de um passado que, festivo e irreal, parece suspender­-se nos objectos arruinados que os animaram e que se tornaram símbolos, ou as efabulações de ambiência histórica ou bíblica, tão do agrado da época literária.
No entanto, não é um apelo ao passado que perpassa no olhar que confunde o tempo e o espaço na consideração da paisagem distante: nele manifesta­-se o mesmo estado anímico que se exterioriza na contemplação da natureza e que percorre os versos de Roberto Mesquita.
Quando o mar e o horizonte fechado da ilha são evocados, não são no entanto, a causa direta do tédio e do sentimento de tristeza vaga, da «viuvez desamparada» que une o poeta e a natureza. A noite, o vento aflitivo do nordeste ou o «macerado fechar de tarde» outonal estimulam certamente a meditação, mas os seus poemas não se detêm na simples busca de uma compreensão psicológica para o seu estado. É antes um movimento religioso, um movimento puro de abolição da separação entre os mundos humano e físico, que encontra a sua expressão na Poesia.
Ao mesmo tempo que se isola dos outros homens, o poeta irmana­-se com o mundo. A um vós/eu que condensa a oposição com aqueles que na aparência lhe são semelhantes, sucede­-se um vós/nós, em que o poeta sente a proximidade da «alma das coisas». E como que a mostrar que a comunhão entre o mundo e o poeta é total, o ritmo das descrições da paisagem, em que soam tanto uma cultura e uma sensibilidade literariamente modeladas, como a melancolia da açorianidade, não se quebra quando se manifesta a perplexidade: «Paisagem vesperal que palpitante espia / a estrela do pastor, que já no azul flutua? / A saudade sem causa, a vaga nostalgia / Que enche como um perfume este apagar do dia, / Gerou­-se na minha alma ou acordou na tua?».
A inquietação renasce continuamente de uma saudade sem alvo definido, nem causa ocasional. O poeta procura, em vão, compreender pela análise a sua natureza, que não é simplesmente psicológica: ela é, afinal, fruto da saudade do ideal («Minha alma, donde nasce a mágoa que te invade? / Que éden sentes perdido? / Oh! esta cheia poderosa de saudade / Sem alvo definido!»). A cada passo que o poeta dá à procura das promessas de absoluto inscritas no horizonte, o horizonte alarga­-se, a sua linha foge para o mais longínquo. A realização de qualquer sonho redunda na desilusão, superável apenas no fantasiar de novo Além.
Reiterado com melancolia decadentista, este estado anímico cava­-se sobretudo na inquieta certeza do desencanto final do poeta que não pode deixar de procurar «A beleza essencial, para sempre vedada / À nossa alma que geme à terra agrilhoada».
Em alguns momentos, assola-o a solidão da criatura face ao Criador: pressentindo embora a Sua presença na muda imensidão do mundo, não consegue explicação para a «fria mudez» que responde às súplicas dos homens, «abandonados num caminho incerto». Mas afirma a sua crença num sentido que não cessa de procurar, para o exílio terreno que Deus inflige aos seus «filhinhos», mesmo se lhe pesa ter de aceitar «a Vida fragmentada/ Em vidas dum momento».
E por isso, apesar de os seus versos não atingirem sistematicamente a fundura filosófica, a saudade que expressam não se confina à emotividade. É antes a saudade de uma unidade primordial que o poeta procura decifrar na natureza e nas coisas, buscando­-lhes uma alma e um sentido que não se oferecem nem à Ciência nem ao homem comum.
Roberto de Mesquita impõe o reinvestimento simbólico das imagens do viver ilhéu, do isolamento e do «céu fechado», ou do fantasiar de «belas regiões perdidas / na extensão do mar» que animam alguns dos mais belos poemas de Almas Cativas. E esse entendimento impõe­-se de tal forma que se torna impossível dar à análise introspetiva e ao sentimento da natureza outro significado que não o da universalidade. Mesmo a originalidade suave de um estilo que se apoia em recursos literariamente típicos na época, mas surpreende o leitor pela tensão e poder sugestivo do ritmo ou da aproximação de realidades díspares, de sinestesias ou metáforas inesperadas, vem acentuar o sentimento de indefinição, de vago, e propicia a oscilação dramática entre o particular e o universal que caracteriza uma obra que, sem ser muito extensa, dá a Roberto de Mesquita lugar entre os grandes poetas do simbolismo.

Bibliografia:
 Na edição de Almas Cativas de que é responsável (Lisboa, Ática, 1989), Pedro da Silveira apresenta, a par de uma cronologia do poeta, uma extensa bibliografia com os títulos publicados até à época. Entre esses títulos, justo é realçar:
Vitorino Nemésio, «O Poeta e o isolamento: Roberto de Mesquita», in Revista de Portugal, nº6, 1939 (recentemente republicado em nova edição de Conhecimento de Poesia, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1997); Jacinto do Prado Coelho, «Pensamento e estesia em Roberto Mesquita»; Problemática da História Literária, Lisboa, Ática, 1961, pp. 205­-209.
Entretanto, acrescentem­-se: José Carlos Seabra Pereira, Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1975, José Martins Garcia, O cárcere e o infinito: sobre a poesia de Roberto de Mesquita, separata  de Arquipélago­Línguas e Literaturas, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1986; Luís de Miranda Rocha, Para uma Introdução a Roberto Mesquita, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1981.



O poeta Roberto de Mesquita (após 1908).




Um poeta como Roberto de Mesquita (1871-1923) pode, muito naturalmente e sem sobressaltos, ser estudado sob uma perspetiva açoriana, que nele detete as marcas e as representações subjetivas do mundo insular, e ao mesmo tempo sob um ponto de vista nacional, integrando-o no simbolismo português, que, por sua vez, é subsidiário do simbolismo europeu. Essas perspetivas não se excluem e foi mesmo por esse ângulo que Jacinto do Prado Coelho comentou a obra do poeta florentino:

Pertence-lhe um lugar no panorama da poesia portuguesa, pela qualidade estética de Almas Cativas; mais restritamente, situa-se no quadro da literatura açoriana pela expressão admirável da condição vivencial de ilhéu exilado no Atlântico (…), e no quadro do parnasianismo e sobretudo do simbolismo português, de que é um dos mais altos expoentes logo a seguir a Camilo Pessanha… (Jacinto do Pado Coelho, «Roberto de Mesquita e o simbolismo», prefácio de Almas cativas. Lisboa, Edições Ática, 1973, p. 9).
O texto de Jacinto do Prado Coelho refere e cita o ensaio de Vitorino Nemésio sobre Mesquita, o primeiro que de forma extensa se ocupa do poeta e o dá a conhecer ao público português. Nesse ensaio, Nemésio chama justamente a atenção para a filiação literária de Roberto de Mesquita, que vai de Leconte de Lisle a Baudelaire, a Verlaine, a Antero e a Eugénio de Castro; mas ocupa-se principalmente do modo como os preceitos de escola se integram no discurso poético e se acomodam à expressão de uma «experiência» pessoal inseparável da condição insular.6 E Jorge de Sena, ao incluir Mesquita nas Líricas Portuguesas, chama igualmente a atenção para aquilo que «de autóctone de uma parte de Portugal – os Açores – [aflora] no seu lirismo.» (Jorge de Sena, Líricas Portuguesas, 3.ª série, vol. I. Lisboa, Edições 70, 1984: LXVIII).

Bettencourt, Urbano. Inquietação insular e figuração satírica em José Martins Garcia. 2014. (Tese de Doutoramento em Estudos Portugueses.) Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 2013.

___________________
(6) O ensaio, publicado inicialmente no n.º 6 da Revista de Portugal (janeiro de 1939), foi posteriormente incluído em Conhecimento de Poesia (1970).



Poderá também gostar de ler:

·         Verbete “Roberto de Mesquita”, Wikipédia.





    

[Publicação simultânea em: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/10/22/abandonada-roberto-mesquita.aspx]

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

PRA A HABANA! / CANTAR DE EMIGRAÇÃO



ROSALIA DE CASTRO


PRA A HABANA!

V

Este vaise i aquel vaise,
E todos, todos se van,
Galicia, sin homes quedas
que te poidan traballar.
Tés, en cambio, orfos e orfas
E campos de soledad.
E nais que non teñen fillos
E fillos que non tén pais.
E tés corazóns que sufren
Longas ausencias mortás,
Viudas de vivos e mortos
Que ninguén consolará.



Rosalía de Castro










CANTAR DE EMIGRAÇÃO

Este parte, aquele parte
e todos, todos se vão
Galiza ficas sem homens
que possam cortar teu pão

Tens em troca órfãos e órfãs
tens campos de solidão
tens mães que não têm filhos
filhos que não têm pai

Coração que tens e sofre
longas ausências mortais
viúvas de vivos mortos
que ninguém consolará



Repete 1ª quadra
Tradução: José Niza
Interpretação: Adriano Correia de Oliveira 

Album: Cantaremos, 1970



Ficha de abordagem sobre o tema “Cantar de emigração”




1. Caracteriza a canção:
a) Quanto ao ritmo.
b) Quanto à melodia.

2. Estabelece uma relação entre a mensagem e a melodia.

3. Identifica a figura de estilo presente no verso: “Galiza ficas sem homens”. Salienta a sua expressividade.

4. Indica o verso que melhor exprime a problemática essencial da peça em estudo. Justifica.

5. Estabelece um paralelismo entre o tema desta canção e a obra Frei Luís de Sousa.

A Poesia Musicada de Intervenção em Portugal (1960-1974): a sua aplicabilidade no Ensino SecundárioJosé Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, p. 173.



Textos de apoio

A Simbiose Sinestésica Intertextual da Poesia Musicada em Sala de Aula: “Cantar de Emigração” (de Rosália de Castro. Interpretada por Adriano Correia de Oliveira)

Ritmo – Quaternário ao estilo de balada.

Melodia – predomínio de dedilhado da viola, tendo como resposta cristalina a flauta transversal em jogo dialógico – pergunta resposta. Numa segunda fase, a flauta estabelece um jogo com a voz num adágio suave mas pesaroso em agradável melopeia. Torna-se a malha de uma canção que evoca o sofrimento de quem se encontra isolado na solidão.

Harmonia – A combinação de sons entre a viola a voz e a flauta evoca o ambiente pastoril.

Análise Semântica ‑ Esta composição musical deixa antever de uma forma suave e cantante o êxodo de muitos portugueses que, vivendo em Portugal em condições de extremas dificuldades financeiras, abandonam o país e rumam em direção a um outro com todas as condicionantes previsíveis e imprevisíveis que ofereça melhores condições de vida. As pessoas vão em busca de uma sobrevivência que seja menos penosa, mais promissora.

Na primeira quadra a poetisa galega Rosália de Castro alerta para o perigo de todos os homens abandonarem as terras – Galiza. Aproveitando os seus versos, também Adriano, com a sua voz melodiosa, pressentia o despovoamento das zonas agrícolas do lado de cá da fronteira. Esse desequilíbrio social iria provocar consequências no tecido social das regiões abandonadas. Deixaria de haver a força dos trabalhadores para cortar o trigo, o pão de que a população necessitava.

A quadra seguinte ouve-se uma flauta em contra-canto com a voz, num jogo de perfeita harmonia suavizando as palavras dolorosas: “órfãos, órfãs, solidão, mães sem filhos, filhos sem mães”. O que resta da emigração condensa-se no simbolismo na expressão metafórica: campos de solidão. Esta espelha o consequente desmembramento da família por força de uma sociedade espartilhada com deficiências a nível dos tecidos: económico, social, político e cultural.

Este canto de intervenção pretende sensibilizar as pessoas pelo sentimento evocado na apóstrofe “coração”, para, de seguida, imbuí-lo de sofrimento resultante das longas ausências mortais. Surgem, nesta quadra, as viúvas angustiadas pelas ausências dos maridos ou em trabalho no estrangeiro ou na guerra colonial. “Quando os homens não vão para África combater pela pátria, vão para França lutar pela vida.Com a guerra a emigração é outro elemento da radical mudança da paisagem humana operada em Portugal nos anos sessenta.”.

A repetição da primeira quadra atenua a angústia das famílias destroçadas por um país sem condições quer económicas quer políticas. Resta deste poema musicado, a alusão ao mitologema português aqui presente: a vocação nostálgica do impossível. (“O Imaginário português e as aspirações do ocidente cavaleiresco”, Gilbert Durand. In: Cavalaria espiritual e conquista do mundo. Lisboa, Instituto nacional de investigação científica, 1986, p.15). O poema gera uma reação nostálgica de uma “esperança desesperada”, sendo este o significado da habitual expressão “saudade” tão característica dos portugueses.

[Este poema musicado encontra-se também explorado durante a abordagem da obra de Adriano Correia de Oliveira que se apresenta a seguir]
  
A Poesia Musicada de Intervenção em Portugal (1960-1974): a sua aplicabilidade no Ensino SecundárioJosé Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, pp. 126-127.





O Cantautor Adriano Correia de Oliveira (1942-1982)

Paralelamente à obra de José Afonso, surge o cantor Adriano Correia de Oliveira, cuja voz celebrizou o poema de Manuel Alegre “Trova do Vento que Passa” musicado por António de Portugal – considerada a primeira trova típica de Coimbra.Com evidente influência do fado, tornou-se o símbolo da inquietação patriótica que serviu de hino às lutas académicas: Pergunto ao vento que passa /notícias do meu país /e o vento cala a desgraça / e o vento nada me diz / (…) O poeta Manuel Alegre escreveu este tema num momento de superior inspiração. O silêncio da desgraça é simbolizado pelo vento que reprime, que abafa o sofrimento de alguém que vive um sentimento nostálgico. Contudo, o poeta assume-se como uma candeia, o porta-voz dos homens que, pelo seu simbolismo, no seio das agruras de um país, ilumina, irradia sons harmoniosos de esperança. Desse facto, resulta a tenaz resistência às adversidades tornando o poeta o herói de todos quantos contestam a situação política vivida na época da ditadura de Salazar: Mesmo na noite mais triste/em tempo de servidão /há sempre alguém que resiste /há sempre alguém que diz não! Quem disse: “não”! foi a voz eclética do cantor.

As mensagens, os poemas cantados por Adriano assumem uma autonomia tal que se tornam essenciais para a consciencialização dos cidadãos.

Não obstante, destaquemos uma vez mais a inequívoca importância das canções.

Para além de José Afonso, Adriano teve um papel fundamental no panorama musical português. A sua persistência, os seus demais valores, a sua coragem em defrontar as forças do regime, a sua aversão ao consumismo cultural fizeram dele uma personalidade incontornável no canto de intervenção. A propósito, refere-nos Manuel Alegre citado por Raposo (2000:20),

(…) A voz de Adriano era uma voz alegre e triste, solidária e solitária, havia nele ternura e mágoa, esperança e desesperança, amparo e desamparo, festa e luto, amor e luta. E também saudade e fraternidade (…) voz de fado e de destino herança talvez do mouro e do celta que nos habitam, a voz de Adriano tinha também o masculino apelo do rebate e do combate.

Adriano intervém como intérprete, compositor e participante em iniciativas de carácter estudantil. A sua coragem extravasou toda a sua vida académica e prosseguiu com a interpretação de temas que desafiavam a força da repressão tais como: a falta de liberdade e a consequente prisão dos opositores ao regime, a denúncia da guerra colonial e injustiças resultantes de uma realidade adversa. A “Canção Terceira” argumenta:

(…) quando desembarcarmos no Rossio/Vão vestir-te com grades /que é um vestido para todas as idades /na pátria dos poetas em Rossio triste.

Esta necessidade de apelidar o país de pátria dos poetas constitui-se como um apelo à pátria de pessoas livres. Tal como se encontrava o país, o poeta considerava-o um triste destino, o destino da gente do meu país, “como alude na canção “Pátria”. O lamento persiste sobre todos aqueles que pereceram em luta com “uma Lisboa”, sinédoque de Portugal, tão longínqua de um canto alegre, promissor, “Eu canto um mês com lágrimas /…em que os mortos amados batem à porta do poema …”. Apesar da morte de um amigo que tanto desejava estar em Lisboa expresso na “Canção com Lágrimas”, o cantautor revela um sentimento de esperança relativamente ao país:

Com Lisboa tão longe ó meu irmão tão breve /que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro /eu canto para ti Lisboa à tua espera.”

A denúncia, a frontalidade sem restrições são apresentadas com a voz imbuída de coragem sob a forma de poema “em Porque” de Florbela Espanca. Apresentado numa estrutura antitética na qual os outros por oposição a um tu são considerados “hipócritas, cobardes e fracos”. Sofia de Mello Breyner de uma forma sub-reptícia pretendeu qualificar todos aqueles que se serviam do velho Regime desses defeitos, contrapondo as virtudes das vítimas inocentes que eram objeto de medidas persecutórias. É na voz de Adriano que este poema adquire uma maior projeção, um novo dinamismo:
Porque os outros se mascaram mas tu não / Porque os outros são os túmulos caiados /Onde germina calada a podridão /Porque os outros se calam mas tu não/ Porque os outros se compram e se vendem /E os seus gestos dão sempre dividendos…/Porque os outros vão à sombra dos abrigos /E tu vais de mãos dadas com os perigos/Porque os outros calculam mas tu não.”

O sofrimento do povo português persiste e é denunciado de forma metafórica, todavia, não menos objetiva. No tema de Manuel da Fonseca “Tejo que lavas as águas” o rio assume-se como a fonte regeneradora dos vícios de uma sociedade conspurcada de injustiças, de exploração dos mais poderosos sobre os miseráveis, os mais necessitados, uns nos palácios, outros nos bairros de lata:

Tejo que lavas as águas …/lava bancos e empresas/dos comedores de dinheiro/que dos salários de tristeza/arrecadam lucro inteiro/lava palácios vivendas/casebres bairros de lata/leva negócios e rendas /que a uns farta e a outros mata.

O poeta solicita ao Tejo que lave a cidade – entenda-se país - dos vícios, dos favores, do poder dos ricos e finalmente das grades, de tudo o que impeça a liberdade dos resistentes. E prossegue:

Lava avenidas de vícios /vielas de amores venais /lava albergues e hospícios /cadeias e hospitais /afoga empenhos favores/vãs glórias ocas palmas /leva o poder dos senhores/que compram corpos e almas /leva nas águas as grades …

Por seu turno, a liberdade é uma bandeira que Adriano nunca deixou de brandir, de desejar, desde o tempo da capa negra que se assemelhava a uma rosa negra, símbolo do desejo de liberdade, das lutas travadas com as forças da opressão. Tal é notório na composição “Capa negra rosa negra” ‑ capa negra, rosa negra sem roseira…/vira costas à saudade /bandeira da liberdade.”

Confessa-se, de seguida, livre cantador como as aves, que não pode viver na repressão.

O tema popular “Lira” confere a Adriano o estatuto de um verdadeiro poeta que na impossibilidade de sobrevivência da lira, símbolo da liberdade musical e poética, solicita, por analogia ao mito de Orfeu, a sua própria morte. Uma questão se impõe: como poderá o poeta exercer a sua missão se acaso não puder usufruir da sua própria liberdade?

Perante a morte da lira, ícone do encantamento quer da linguagem poética quer da linguagem musical, o poeta deixou de ter importância, de ter valor numa atitude de desafio, de coragem. Propõe-se morrer com o objetivo de se tornar mártir, apelando, deste modo, para a nobreza do ato poético. Pretende o poeta apelar à consciência e sucessiva mobilização das demais pessoas para o seu sofrimento:

Morte que mataste lira /mata-me a mim que sou teu /Morte que mataste lira /mata-me a mim que sou teu /mata-me com os mesmos ferros /com que a lira morreu …/o que mais sofre sou eu.”

O Tema do Ultramar foi motivado pelo forte descontentamento, não só dos homens mobilizados para combate como dos seus familiares e uma grande maioria dos portugueses da época. Vários foram os motivos evocativos da referida guerra, caso da canção “Pedro Soldado” que indica o caminho de tantos jovens que interromperam as suas aspirações para, segundo os preceitos da ditadura, defender “os interesses da nossa pátria”. Assim partiram com o nome bordado num saco cheio de ilusões, como refere a composição de Adriano:

Triste vai Pedro soldado numa rota de barcos que vai para a guerra,/ Já lá vai Pedro soldado/Num barco da nossa armada /…e leva o nome bordado num saco cheio de nada.

Outro dos temas musicais é a” Menina dos olhos tristes” de Reinaldo Ferreira que, à semelhança das nossas cantigas de amigo, lamenta-se, chorando, a ausência de um soldado, ente querido, que jamais regressará do Ultramar. A mensagem recebida pela Lua, sempre companheira, confidente em momentos de profundo sofrimento, informa que ele, afinal, virá defunto, num caixão eufemisticamente referido como caixa de pinho:

“Menina dos olhos tristes/O que tanto a faz chorar /O soldadinho não volta /do outro lado do mar / Anda tão triste um amigo /uma carta o fez chorar/O soldadinho não volta /do outro lado do mar/O soldadinho já volta /está mesmo quase a chegar/vem numa caixa de pinho/do outro lado do mar/desta vez o soldadinho nunca mais se fez ao mar/.

Este tema, sinédoque de um problema sociológico que perpassou transversalmente toda a sociedade portuguesa entre 1961 e 1974, infligiu milhares de vítimas mortais e feridos com marcas físicas e traumáticas que perduram até nossos dias, aliás como já foi referido no capítulo referente ao tema.

O argumento é repetido na canção: “As balas”. Adriano e Manuel da Fonseca estabelecem uma dicotomia entre a vida e a morte. Em todos os três primeiros versos de cada quadra, à exceção da última, os poetas tecem um elogio à vida por oposição ao último verso de cada quadra onde alertam para o sofrimento das balas que derramam sangue. De destacar a última quadra que reforçam as razões e as consequências da utilização das balas:

“Dá o Outono, as uvas e o vinho, /Dos olivais, azeite nos é dado. /Dá a cama e a mesa o verde pinho, /As balas deram sangue derramado. (…) Essas balas deram sangue derramado, /Só roubo e fome e o sangue derramado. /Só ruína e peste e o sangue derramado, /Só crime e morte e o sangue derramado.”

A “Canção do Soldado” satiriza, recorrendo a uma metáfora cabalística – das sete balas, sete flores de limão p’ra lutar até morrer. Desta afirmação subjaz a violência atroz de uma luta fratricida. O conceito de guerra é satirizado por uma pretensão absurda de lutar até vencer como se a guerra se vencesse, única e exclusivamente, através das armas. Para contestar essa ideia, os poetas, numa atitude pacifista, entregam o estandarte como renúncia à guerra:

Sete balas só na mão/ Já começa amanhecer. /Sete flores de limão/P’ra lutar até vencer. / Sete flores de limão/P´ra lutar até morrer. /Já o rouxinol cantou/Tomai o nosso estandarte. / No seu sangue misturado/Já não há desigualdade. /No seu sangue misturado/Já não há desigualdade.
Sete balas só na mão/ Já começamos a amanhecer. /Sete flores de limão/Para lutar até vencer.

Um outro grande tema de Adriano, e simultaneamente de carácter relevante para a nossa identidade como povo, é a Emigração. O papel de Adriano foi fundamental para que as pessoas se interrogassem sobre as causas do êxodo de muitos portugueses. Para tal, interpretou um poema da galega Rosália de Castro: “Cantar de Emigração”. Neste poema, a poetisa referindo-se à sua região da Galiza tece um panorama, que na perspetiva de Adriano Correia de Oliveira, se repete em Portugal. Na impossibilidade de o poder referir livremente por razões políticas, Adriano recorre a este tema musical com o objetivo de confirmar mais um estigma da sociedade portuguesa para além do referente à guerra do ultramar – a saga da emigração. É estabelecido um paralelismo entre as regiões da Galiza e a do Norte de Portugal pelas suas afinidades socioculturais e geográficas.

Esta composição musical deixa antever, de uma forma suave e cantante, o êxodo de muitos patriotas que, vivendo em Portugal em condições de extremas dificuldades económicas, abandonam o país e rumam em direção a um outro, com todas as condicionantes previsíveis e imprevisíveis, que ofereça melhores condições de vida. As pessoas vão em busca de uma sobrevivência que seja menos penosa, mais promissora.

Na primeira quadra, a poetisa alerta para o perigo de todos os homens abandonarem a terra – os desvalorizados espaços rurais, deixando de haver a força humana para cortar o trigo, o pão de que as populações necessitam. Para Vieira (2000:25)

(…) os campos despovoam-se ainda mais e cava-se um grande fosso estrutural entre o litoral e o interior do país. A agricultura estagna, com uma taxa de um por cento ao longo da década …a população ativa nos campos decresce, entre 1960 e 1970 de 44% para 32% do total. Este é o momento em que Portugal, contrariando a vontade mais íntima de Salazar, perde a identidade rústica assumindo um perfil de país industrial.

Na quadra seguinte ecoam as palavras dolorosas: órfãos, órfãs, solidão, mães sem filhos, filhos sem mães. O que resta da emigração condensa-se no simbolismo da expressão metafórica ‑ campos de solidão. Esta espelha o consequente desmembramento da família por força de uma sociedade espartilhada com deficiências a nível dos tecidos económico, social, político e cultural.
Este canto de intervenção pretende despertar nas pessoas o sentimento evocado na apóstrofe: “coração” para, de seguida, imbuí-lo de sofrimento resultante das longas ausências mortais. Surgem, nesta quadra, as viúvas angustiadas pelas ausências dos maridos ou em trabalho no estrangeiro ou na guerra colonial. A este propósito, Vieira (2000:25) explica:

(…) quando os homens não vão para África combater pela pátria, vão para França lutar pela vida.Com a guerra a emigração é outro elemento da radical mudança da paisagem humana operada em Portugal nos anos sessenta.

A repetição da primeira quadra atenua a angústia das famílias destroçadas por um país sem condições quer económicas quer políticas. De acrescentar neste poema musicado, a alusão ao mitologema português aqui presente: a vocação nostálgica do impossível como refere Durand (1986:15). O poema gera uma reação nostálgica de uma esperança desesperada, sendo este o significado da habitual expressão “saudade” tão característica dos portugueses.(1) A resignação, o sofrimento de “longas ausências até mortais que transparecem da composição, ao estilo de balada, evoca as autóctones cantigas de amigo:

Este parte, aquele parte /e todos, todos se vão
Galiza ficas sem homens /que possam cortar teu pão
Tens em troca /órfãos e órfãs
Tens campos de solidão /tens mães que não têm filhos
Filhos que não têm pai
Coração /que tens e sofre
Longas ausências mortais /viúvas de vivos mortos
Que ninguém consolará

Por sua vez, na canção de Rosália “Emigração” interpretada por Adriano, assistimos a uma réplica de situação real. Na verdade, a poetisa apresenta a sua mãe em discurso direto. Esta suplica a Deus a proteção para a filha. A cantora prossegue, enfatizando a infelicidade de um outro homem ter nascido e não dispor das mínimas condições para se realizar tanto profissional como economicamente.

Finalmente, a compreensão da poetisa por quem abandona a sua terra “coitado”. Ela considera que terá razões plausíveis para trocar a sua vida de aparente bem-estar na sua terra, por uma situação desconhecida, diferente, contudo, mais promissora em termos financeiros. Salientamos o epíteto de “coitado”, de alguém que não se conforma com um possível destino que lhe estaria “predestinado”. Deste modo, aventura-se numa luta, num esforço que lhe poderá suscitar uma vida melhor quer a nível económico, quer social, quer político.”(2) Esse sofrimento nostálgico, de separação relativamente à família e ao país está vincado, uma vez mais, no tema cantado por Adriano ”Quando no Silêncio das noites de luar”(3)

Quando no silêncio das noites de luar, /Ia uma estrela pelos céus a correr, /
Dizia minha mãe de mãos erguidas. /Dizia minha mãe de mãos erguidas.
Deus, te guie por bem. /Deus, te guie por bem.
Desde então quando vejo que um homem, /Deixa a terra onde infeliz nasceu, /
E fortuna busca noutras praias, digo. /E fortuna busca noutras praias, digo
Deus, te guie por bem. /Deus, te guie por bem.
Desde então quando vejo que um homem, / Deixa a terra onde infeliz nasceu,
E fortuna busca noutras praias, digo. / E fortuna busca noutras praias, digo.
Não o culpo coitado não o culpo, / Nem lhe rogo pragas nem castigos,
Nem de que é dono de escolher, me esqueço. Nem de que é dono de escolher, me esqueço
Porque quem deixa o seu torrão natal, / E fora dos seus caminhos põe os pés,
Quando troca o certo pelo incerto. /Quando troca o certo pelo incerto.
Motivos há-de ter. / Motivos há-de ter. / Motivos há-de ter.”

Para finalizar, Manuel Alegre, citado por Barroso (2000:169), conclui sobre a importância dos dois cantautores no canto de intervenção, destacando o valor da interpretação musical na divulgação dos textos poéticos,

Importa salientar a importância que tiveram as trovas do Adriano e as baladas do Zeca como estímulo e fatores de mobilização da luta estudantil. Importa ainda sublinhar que essa junção da poesia e da música constituiu na altura o verdadeiro vanguardismo estético português (…) Pela voz de Adriano Correia de Oliveira os poemas chegavam ao povo e ao país inteiro, a tal ponto que alguns desses poemas deixaram de ter autor para passarem a fazer parte da nossa memória comum e do nosso canto coletivo. Eu já não sinto como meus alguns poemas que Adriano cantou”.
  
   
________________
(1) A consciencialização conseguida através das canções de intervenção foi reconhecidamente eficaz como destaca Sá Viana, Ministro da Defesa citado por Raposo (2000:21) “os efeitos demolidores no moral das tropas que certas canções produziam.”
(2) Adriano confessa in Raposo (2000:21) que a canção antes do 25 de Abril, desempenhou um papel importante, um papel complementar da outra luta, a luta política junto das massas populares e da classe operária. Ela foi o estímulo, o grito de alerta, a denúncia da ausência de liberdade, da exploração na terra e na fábrica, de guerra e da emigração. Pela minha parte insisti muitas vezes em fazer canções que pudessem tocar de certo modo, as pessoas naquilo que elas pudessem compreender mais facilmente”.
(3) Poema de Curros Henriquez, musicado por José Niza .
  
José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, pp. 66-74.


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CANTAR DE EMIGRAÇÃO

Análise de Ludmila Arruda

 

Esta canção faz parte de um poema composto pela escritora galega Rosalía de Castro (1837 - 1885), que faz referência à emigração ocorrida em Santiago de Compostela em tomo de 1880. Inicialmente em galego, Adriano Correia de Oliveira interpretou e lançou a canção em 1970, no álbum Cantaremos. Adriano, juntamente com Zeca Afonso, é um dos grandes nomes da Canção de Intervenção, e também sempre gravou letras de sucesso. "Adriano foi responsável pela divulgação de muita da melhor poesia portuguesa" (RAPOSO, 2014, p. 30), e nas palavras de Manuel Alegre, ele possuía uma voz "alegre e triste, solidária e solitária, havia ternura e mágoa, esperança e desesperança, amparo e desamparo, festa e luto, amor e luta" (ALEGRE apud RAPOSO, 2014, p. 26).

 

A canção "Cantar de Emigração" em português está totalmente fiel à letra em galego, também fazendo alusão à emigração em massa ocorrida especialmente a partir de 1960 em Portugal para outras terras da Europa, especialmente França. O poema retrata os desafios que a emigração traz ao país, que além de perder homens trabalhadores, perdiam também suas famílias, que ficavam desamparadas, sem a figura paterna para dar o suporte à esposa e aos filhos. Esta canção foi lembrada pelo professor Pedro Calafate como uma das canções que marcaram o período da Guerra Colonial, período de uma das maiores emigrações ocorridas em Portugal - e o professor recorda que o período atual também tem sofrido com as mesmas questões. Em galego, o poema contém cinco partes, e o trecho utilizado na interpretação de Adriano Correia de Oliveira foi apenas a quinta e última parte do poema original, como segue:

 

Pra Habana (v)87

 

Cantar da Emigração

 

Este vaise i aquel vaise,

E todos, todos se van,

Galicia, sin homes quedas

Que te poidan traballar

 

Este parte, aquele parte,

E todos, todos se vão

Galiza ficas sem homens,

Que possam cortar teu pão

 

Tésen cambio, orfos e arfas

E campos de soledad.

E nais que non tenen fillos

E fillos que non tén pais

 

Tens em troca, órfãos e órfãs

Tens campos de solidão

Tens mães que não têm filhos

Filhos que não têm pai

 

E tés corazóns que sufren

Longas ausências mortás

Viudas de vivos e mortos

Que ninguén consolará.

 

Coração, que tens e sofre

Longas ausências mortais

Viúvas de vivos mortos

Que ninguém consolará

 

 

A versão em português cantada pelo Adriano Correia de Oliveira tem o acompanhamento de uma flauta transversal e uma viola, que são bem marcados durante toda a canção, e especialmente a flauta, nessa canção, dá uma impressão de passar o sofrimento das pessoas que se encontram sós, como descritos nas estrofes. A relação entre a viola e a flauta está bem sincronizada, e ambos os instrumentos são tocados algumas vezes sem o acompanhamento um do outro, havendo uma intercalação, dando a ideia de diálogo entre eles.

 

Os versos são todos classificados como redondilha maior, e as rimas não seguem uma sequência lógica, mas há muitas repetições presentes no poema que ajudam a manter uma sonoridade regular. Se destacarmos apenas as rimas veremos "vão, pão, solidão e coração" (em vermelho), que aparecem no segundo verso das duas primeiras estrofes, no quarto verso da segunda estrofe, e ainda no primeiro verso da terceira estrofe. Já a sequência "pai, mortais" segue a mesma sonoridade encontrada no quarto verso da segunda estrofe e no segundo verso da terceira estrofe. O restante das palavras se repete, mantendo a sonoridade estabelecida pelo poema como podemos ver em alguns dos seguintes vocábulos, marcados no texto em azul: "parte'', "todos'', "órfãos e órfãs'', "filhos", "que não têm" "viúvas e vivos" "mortos - mortais". Mesmo algumas das palavras não sendo totalmente iguais, elas apresentam sons semelhantes.

 

Essa canção contém algumas figuras de linguagem que contribuem para destacar a grave questão da emigração, e assim chamar a atenção do ouvinte para a escolha das expressões que acentuam o problema. No segundo verso da primeira estrofe, ao dizer "todos, todos", além da a/iteração, causada pela repetição da palavra, há uma hipérbole, ao exagerar que "todos" os homens emigrariam. Galiza, nesse caso, seria uma comparação metonímica de Portugal, já que estaria enfrentando o mesmo problema que já foi enfrentado pela região galega. No último verso, o "pão" seria uma relação metonímica com "alimento", ou ainda "sustento" - já que aqueles homens que produzem o alimento e, consequentemente, o sustento para os outros não estarão mais presentes.

 

Na segunda quadra, há uma anáfora, ao repetir, no início de cada verso a palavra "tens", para enfatizar o que ficaria nas terras vazias, ainda, há a omissão da palavra "tens" no último verso, causando um zeugma, o que não prejudica no sentido, pois o verbo já tinha sido utilizado três vezes anteriormente. Ainda pode-se dizer que há uma assonância, ao conter muitas palavras com sons vocálicos parecidos - o "ã" ou "anasalado", mesmo entre aquelas que que não contribuem para a rima da canção: "órfãos", "órfãs", "campos", "solidão" "não", e "mães".

 

Na última estrofe, ocorre uma prosopopeia ao personificar o órgão "coração'', comumente utilizado para mostrar o sentimento da pessoa em relação a alguma situação, como podemos ver no verso "coração que [tens e] sofre longas ausências mortais". No terceiro verso, em "viúvas de vivos mortos" há urna aliteração, com a presença de mesmos sons consonantais que chamam a atenção para o verso - no caso "viúvas de vivos" - e anteriormente "mortais" com "mortos". Ainda, há um paradoxo, ao chamar "vivos" de "mortos'', pelo fato de os maridos não estarem presentes fisicamente.

 

Tantas repetições enfatizam a ameaça do problema da emigração, mostrando uma ação corriqueira, e avisa a necessidade de se fazer algo para amenizar o problema. O poema mostra a emigração forçada dos homens por questões da Guerra Colonial ou financeiras, o que geraria maior problema para o país. Veremos estrofe a estrofe, como a escolha das palavras, seja em galego ou em português, ajudam a desvendar desafios enfrentados pela população.

 

CENÁRIO

 

Essa época a agricultura ainda é a principal atividade econômica em Portugal, e a essa altura muitos estão deixando seus trabalhos no campo para tentar vida mais rentável em outro país, e assim tais trabalhos têm um risco de ficarem defasados com poucas vendas de produtos:

 

 

1.ª ESTROFE

 

Pouco a pouco os homens vão partindo até que - se as autoridades não se atentarem para esse problema- todos irão sair. (A palavra "todos" se repete, para confirmar essa ameaça).

 

A palavra " Galiza" faz parte do poema original, e não houve a mudança com a tradução. Galiza se refere a Portugal, que está sofrendo nessa altura o que a Galícia sofreu em tomo de oitenta anos antes.

 

Os trabalhadores homens que fazem serviço em agricultura são os responsáveis pelo movimento financeiro do país, e são eles que cultivando a alimentação, garantem a produção necessária para a população portuguesa. Sem a presença deles, a produção se tomará escassa, e logo, não haverá nenhum homem que possa fazer esse serviço da agricultura, e, assim, a movimentação financeira também deverá baixar. Sem eles, quem irá garantir o pão para o povo português?

 

"Galiza ficas sem homens que possam cortar teu pão"

 

 

2.ª ESTROFE

 

A segunda estrofe atenta para outro grande problema da emigração: o desfalque das famílias. Com os chefes de família procurando outro meio para o sustento ao viajar para fora do país, ele abdica de sua família, seu conforto e seus sonhos e parte para o incerto. O que o país tem em troca com a saída desses homens, é, além da falta de mão de obra, a quantidade de mulheres sós e filhos sem a presença do pai. Os campos que seriam para o cultivo da agricultura, agora, sem os homens, seriam "campos de solidão'', onde as mulheres chorariam a falta do marido e não haveria mais plantação.

 

 

3.ª ESTROFE

 

A terceira estrofe prolonga as consequências ditas na segunda estrofe, apelando para o lado emocional do "coração" das pessoas que sofrem a ausência do homem. A saudade se toma "mortal", pois o fato de o homem não estar presente fisicamente com a esposa, e sem saber por onde ele anda e o seu desfecho, muitas mulheres tomaram-se "viúvas" mesmo sem estar. Para elas, era como se os maridos já estivessem mortos, por causa da longa ausência, e o longo tempo sem notícias. Ninguém seria capaz de consolar uma dor como essa.

 

 

1.ª ESTROFE - REPETIÇÃO

 

O cantor volta a cantar a primeira estrofe, revelando ainda o grave problema de muitos partirem. Mais uma vez a repetição se atenta para uma ação que não para de ocorrer e eles precisam de medidas urgentes para conter a emigração. A única saída para uma melhora seria a mudança política e económica para que o país voltasse a prosperar, e atualmente não há esperança de isso ocorrer.

 

 

Este poema também revela uma característica marcante da música e literatura portuguesa de modo geral, a saudade. Uma definição já marcante do povo português (CRISTÓVÃO, 2007), o poema mostra aspetos que revelam essa sensibilidade, especialmente em toda a última estrofe: o sofrimento da mulher com a ausência do marido, e sua condição de "viúva de vivo", que nunca será aliviada. No poema o sofrimento das mulheres também tem relação com a inexistência de soluções que poderiam ter evitado a partida de muitos homens: a falta de uma boa vida, de trabalho, de alimento, e as consequências que essa dificuldade financeira vivida no país trouxe para a vida das pessoas. Essa nostalgia era um aspeto muito comum no decorrer dos anos sessenta e setenta: as mulheres eram as que mais sofriam com esse panorama uma vez que maridos e filhos poderiam ser chamados à Guerra Colonial, ou, em outros casos, a emigração forçada era a solução tomada para fugir não apenas dessa convocação para a guerra, mas também para fugir de uma vida instável que pairava sobre o país.

 

Canto de intervenção em Portugal: "O povo é quem mais ordena", Ludmila Arruda.

São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2016

 

______________

Nota:

87 Retirado do website da Fundação Calouste Gulbenkian. Disponível em:

http ://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n= 13 9&p=3 8&o=r




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 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro

                
“El tema de la emigración en la poesía de Rosalía de Castro y su proyección en dos poetas gallegos”, María del Carmen Porrúa. Actas do Congreso Internacional de estudios sobre Rosalía de Castro e o seu tempo (III). Santiago de Compostela: Consello da cultura Galega / Universidade de Santiago de Compostela, 403-411. Reedición en poesia-galega.org. Arquivo de poéticas contemporáneas na cultura. http://www.poesiagalega.org/arquivo/ficha/f/2342, 2012 [1986].





[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/09/19/cantar-de-emigracao.aspx]