Busco un lugar inocente
donde este lobo que me habita
no abrigue sombras de miedo
sobre la tierra desnuda -y deje de ser
extranjero. Donde la meta
nunca consista en volverse atrás. Donde
ya no me sangre el desangrado cuerpo -en memoria
de nocturna voz, cuando la luz
más alta. Y cantar luego
sosegado en busca de cualquier certeza:
Pero la tierra siempre
tiene dueño -solo vuela
libre la inocencia, lugar ignoto
que nadie es capaz de descubrir.
A velha casa, onde eu morei outrora
E que há muito está desabitada,
Silenciosa envolveu-me, ao ver-me agora,
Num triste olhar de amante abandonada.
Com que amargor no íntimo lhe chora
Uma alma sensitiva e ignorada,
Que não tem voz para queixar-se, embora
Se veja só, de todos olvidada!
Casa deserta e fria, que envelheces
Ao desamparo, sem uma afeição,
Bem sinto que me vês, que me conheces
E relembras os dias que lá vão…
Eu esqueci-te, amiga, e tu pareces
Toda magoada dessa ingratidão.
Roberto de Mesquita (1871-1923), Almas
Cativas e Poemas Dispersos
MESQUITA, ROBERTO DE
(1871-1923).
Verbete do Dicionário de Literatura Portuguesa, Brasileira, Galega e
Estilística Literária. Porto, Figueirinhas, 1989 (4ª edição) (1ª edição,
volume único, 1960; 2ª edição, tomo 1, letras A-M, 1969).
Escrivão de fazenda na Ilha das Flores,
onde nasceu e morreu, publicou em jornais e revistas açorianas e continentais
os versos postumamente reunidos no seu único livro: Almas Cativas, 1931 ‑
obra que, apesar da sua delgadeza, tem, de direito, um lugar, pela qualidade
estética e mais ainda pelo acento autóctone, no nosso florilégio simbolista.
Vagas preocupações metafísicas – herança de Antero de Quental, autor do verso «Almas irmãs da minha,
almas cativas!» ‑ nela se diluem num descritivismo realista, ainda
baudelairiano e filtrado por Cesário Verde, que monotonamente se imprecisa em angustiosa
solidão, própria do carácter insular e conforme, em sua música e cambiantes,
com·o magistério de Verlaine. O vento lastimoso, dias pluviosos, horas cendradas,
saudades avulsas, sem causa, a penumbra que empana as formas compõem a atmosfera
em que o poeta confessa a sua «maré de tédio». Discretos processos simbolistas
(«dia hiemal», «tarde macerada», etc.) podem-se facilmente reconhecer no estilo
de Roberto de Mesquita, artífice abertamente confesso, que não rejeita o
pontificado de Eugénio de Castro. Mas o que sobretudo importa destacar do seu
espólio lírico é decerto, como acentua Vitorino Nemésio, «a imagem da
sonolência da vida nos Açores [...] um perfil difuso e abúlico da
açorianidade». Foi o
introvertido autor das Almas Cativas (segundo este lúcido crítico) o
primeiro poeta a exprimir «alguma coisa de essencial na condição humana» tal
como ela se apresenta naquele arquipélago.
Urbano Tavares Rodrigues
Bibliografia:
Vitorino Nemésio, «Poeta e o Isolamento: Roberto de
Mesquita», in Revista de Portugal, n.º
6, 1939.
Pedro da Silveira, «A propósito duma homenagem e dum
projecto», in Diário Ilustrado de
25II-1958.
Jacinto do Prado Coelho, «Pensamento e estesia em Roberto de Mesquita», in Problemática da História Literária, Lisboa, 1961, pp. 249-255.
Lívido
amanhecer, lufadas agressivas
Batem os canaviais e os álamos da estrada.
Que bilioso o acordar das perspectivas
Por essa macilenta e gélida alvorada!
A paisagem, que empana um véu cinzento e baço,
Ressuma na manhã irregelada e má
O fastio da vida, o mórbido cansaço
Dum velho coração que nada espera já.
De quando em quando ulula no próximo pinhal,
Sob a nortada agreste, a lamentosa reza
Em que se aflige a desesp´rança universal…
Dir-se-á senil e enferma a alma da natureza,
Por este amargo abrir de fusco dia hiemal, Duma desconsolada e anémica tristeza.
Roberto de Mesquita, Almas Cativas e Poemas Dispersos
ROBERTO DE MESQUITA [N. Santa Cruz das Flores, 19.6.1871 ? m. ibid.,
31.12.1923] Poeta.
Verbete da Enciclopédia Açoriana. Base de dados disponível no portal culturacores.azores.gov.pt. Centro de
Conhecimentos dos Açores - Direção
Regional da Cultura, 2011.
Se na
obra de muitos escritores se sente o desfasamento entre o tempo e o mundo que
lhes é dado viver e as características pessoais, Roberto Mesquita foi um poeta
que nasceu no ambiente e na época literária certos. Com efeito, características
pessoais, culturais e psicológicas, fazem que na poesia de Roberto Mesquita se
interpenetrem, com aguda sensibilidade e rara felicidade, as circunstâncias da
vida, e o espírito e temas do decadentismo e simbolismo da época literária.
Depois
de ter feito a escola primária em Santa Cruz das Flores, o segundo filho de
António Fernandes de Mesquita Henriques e de D. Maria Amélia de Freitas
Henriques, Roberto Mesquita, segue os passos de seu irmão Carlos, um ano mais
velho, e, como ele, depois de uma primeira tentativa frustrada em Angra do
Heroísmo, faz estudos liceais na Horta. Vem depois a ingressar na carreira da
Fazenda Pública, enquanto seu irmão, dado também, ainda que com menos
felicidade, à criação literária, prossegue estudos em Coimbra.
Em
1890, Roberto de Mesquita, que, na companhia deste irmão frequentara já algumas
tertúlias literárias e recebera estímulo de professores na Horta, faz a sua
estreia literária, publicando n’O Amigo do Povo de Santa Cruz das
Flores um soneto sob o pseudónimo Raul Montanha. A partir daí, vai dando a
conhecer dispersamente os seus poemas: e se publica a maioria em páginas da
imprensa regional (O Açoriano, A Ilha das Flores, Revista
Faialense, O Arauto, A Actualidade), outros vêem a
letra de forma em algumas das páginas nacionais de maior representatividade da
época, como sejam a Ave Azul ou Os Novos, a
revista que deu expressão mais significativa à geração simbolista portuguesa.
Roberto
de Mesquita, que era leitor assíduo da poesia portuguesa e francesa (marcam-no
sobretudo Verlaine e Rimbaud, mas também Baudelaire está presente em muitos dos
seus poemas), nunca deixou de ter informação da vida literária do continente e,
aquando da única viagem que realizou para fora dos Açores (1904), encontrou-se
com Eugénio de Castro e Manuel da Silva Gaio. A estes contactos não era
estranha a intervenção de Carlos de Mesquita, homem culto e de fina intuição
crítica, que foi professor no liceu de Viseu e, depois, na Universidade de
Coimbra (morre em 1916).
A
edição em livro dos seus poemas foi projecto acalentado por Roberto Mesquita,
que o organizou e colocou sob a égide expressa de Antero, intitulando-o, a
partir do verso anteriano «almas irmãs da minha, almas cativas», Almas
Cativas. Morreu no entanto sem realizar o projecto, e só em 1931, por
iniciativa familiar, apoiada por Marcelino Lima, a obra surgiu em Famalicão. Já
em 1989, Pedro da Silveira leva a cabo nova edição, enriquecida com poemas
dispersos e o registo de variantes, e prefaciada por Jacinto do Prado Coelho.
Por outro lado, no final da década de 30, Vitorino Nemésio considerou Roberto
Mesquita «o primeiro poeta que exprime alguma coisa de essencial na condição
humana tal como ela se apresenta na ilhas dos Açores», encontrando nos seus
poemas a expressão perfeita das características que reúne no seu conceito de
açorianidade. Pôde assim sublinhar no livro do florense «a melhor imagem da
dispersão e sonolência da vida nos Açores, um perfil difuso e abúlico da
açorianidade».
Pertencem
a Almas Cativas alguns dos mais belos e expressivos poemas
marítimos da poesia portuguesa. Neles, o peso opressivo da solidão concentra-se
na sugestão de um ambiente fechado, de céus cinzentos e pesados, que se estende
ao poeta de uma forma calma e difusa. As casas ancestrais e as ruínas humanizam-se,
a noite, pelo seu «místico cismar», impõe um «terror sagrado» enquanto o luar
transfigura a natureza, enfim, o poeta descobre a «alma de tudo a orar» e vê a
sua sensibilidade exacerbada pelo pôr-do-sol, pelo vento agreste, por ruínas
que se desenham em ambientes de decadência.
Invadido
por um vago misticismo, que ultrapassa em muito o spleen evocado
em algumas composições, o poeta irmana-se com as «Almas cativas» do universo e
toma para si a missão de revelar o sentido da natureza e das coisas, a sua
«alma». Ao fazê-lo, tem consciência de ser superior aos outros homens,
confinados às aparências simples do universo; mas, «poeta maldito», no seu dom
encontra também o seu infortúnio. Como Filodemo, o pastor a quem as asas
impedem o amor, sabe que a sua condição de poeta o impede de desfrutar as
alegrias simples e ingénuas dos homens comuns.
Precisamente
porque poeta, sabe-se superior aos seus contemporâneos; e a sua alma
«omnicoeva», «alma fim de raça, / intransigente com o Hoje estiolante», sente o
apelo do Outrora. Interessam-no então os ambientes fantasiados de um passado
que, festivo e irreal, parece suspender-se nos objectos arruinados que os
animaram e que se tornaram símbolos, ou as efabulações de ambiência histórica
ou bíblica, tão do agrado da época literária.
No
entanto, não é um apelo ao passado que perpassa no olhar que confunde o tempo e
o espaço na consideração da paisagem distante: nele manifesta-se o mesmo
estado anímico que se exterioriza na contemplação da natureza e que percorre os
versos de Roberto Mesquita.
Quando
o mar e o horizonte fechado da ilha são evocados, não são no entanto, a causa
direta do tédio e do sentimento de tristeza vaga, da «viuvez desamparada» que
une o poeta e a natureza. A noite, o vento aflitivo do nordeste ou o «macerado
fechar de tarde» outonal estimulam certamente a meditação, mas os seus poemas
não se detêm na simples busca de uma compreensão psicológica para o seu estado.
É antes um movimento religioso, um movimento puro de abolição da separação
entre os mundos humano e físico, que encontra a sua expressão na Poesia.
Ao
mesmo tempo que se isola dos outros homens, o poeta irmana-se com o mundo. A
um vós/eu que condensa a oposição com aqueles que na aparência lhe são
semelhantes, sucede-se um vós/nós, em que o poeta sente a proximidade da «alma
das coisas». E como que a mostrar que a comunhão entre o mundo e o poeta é
total, o ritmo das descrições da paisagem, em que soam tanto uma cultura e uma
sensibilidade literariamente modeladas, como a melancolia da açorianidade, não
se quebra quando se manifesta a perplexidade: «Paisagem vesperal que palpitante
espia / a estrela do pastor, que já no azul flutua? / A saudade sem causa, a
vaga nostalgia / Que enche como um perfume este apagar do dia, / Gerou-se na
minha alma ou acordou na tua?».
A
inquietação renasce continuamente de uma saudade sem alvo definido, nem causa
ocasional. O poeta procura, em vão, compreender pela análise a sua natureza,
que não é simplesmente psicológica: ela é, afinal, fruto da saudade do ideal
(«Minha alma, donde nasce a mágoa que te invade? / Que éden sentes perdido? /
Oh! esta cheia poderosa de saudade / Sem alvo definido!»). A cada passo que o
poeta dá à procura das promessas de absoluto inscritas no horizonte, o
horizonte alarga-se, a sua linha foge para o mais longínquo. A realização de
qualquer sonho redunda na desilusão, superável apenas no fantasiar de novo
Além.
Reiterado
com melancolia decadentista, este estado anímico cava-se sobretudo na inquieta
certeza do desencanto final do poeta que não pode deixar de procurar «A beleza
essencial, para sempre vedada / À nossa alma que geme à terra agrilhoada».
Em
alguns momentos, assola-o a solidão da criatura face ao Criador: pressentindo
embora a Sua presença na muda imensidão do mundo, não consegue explicação para
a «fria mudez» que responde às súplicas dos homens, «abandonados num caminho
incerto». Mas afirma a sua crença num sentido que não cessa de procurar, para o
exílio terreno que Deus inflige aos seus «filhinhos», mesmo se lhe pesa ter de
aceitar «a Vida fragmentada/ Em vidas dum momento».
E por
isso, apesar de os seus versos não atingirem sistematicamente a fundura
filosófica, a saudade que expressam não se confina à emotividade. É antes a
saudade de uma unidade primordial que o poeta procura decifrar na natureza e
nas coisas, buscando-lhes uma alma e um sentido que não se oferecem nem à
Ciência nem ao homem comum.
Roberto
de Mesquita impõe o reinvestimento simbólico das imagens do viver ilhéu, do
isolamento e do «céu fechado», ou do fantasiar de «belas regiões perdidas / na
extensão do mar» que animam alguns dos mais belos poemas de Almas
Cativas. E esse entendimento impõe-se de tal forma que se torna impossível
dar à análise introspetiva e ao sentimento da natureza outro significado que
não o da universalidade. Mesmo a originalidade suave de um estilo que se apoia
em recursos literariamente típicos na época, mas surpreende o leitor pela tensão
e poder sugestivo do ritmo ou da aproximação de realidades díspares, de
sinestesias ou metáforas inesperadas, vem acentuar o sentimento de indefinição,
de vago, e propicia a oscilação dramática entre o particular e o universal que
caracteriza uma obra que, sem ser muito extensa, dá a Roberto de Mesquita lugar
entre os grandes poetas do simbolismo.
Bibliografia:
Na
edição de Almas Cativas de que é responsável (Lisboa, Ática,
1989), Pedro da Silveira apresenta, a par de uma cronologia do poeta, uma
extensa bibliografia com os títulos publicados até à época. Entre esses
títulos, justo é realçar:
Vitorino
Nemésio, «O Poeta e o isolamento: Roberto de Mesquita», in Revista de
Portugal, nº6, 1939 (recentemente republicado em nova edição de Conhecimento
de Poesia, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1997); Jacinto do Prado
Coelho, «Pensamento e estesia em Roberto Mesquita»; Problemática da
História Literária, Lisboa, Ática, 1961, pp. 205-209.
Entretanto,
acrescentem-se: José Carlos Seabra Pereira, Decadentismo e Simbolismo
na Poesia Portuguesa, Coimbra, Centro de Estudos Românicos, 1975, José
Martins Garcia, O cárcere e o infinito: sobre a poesia de Roberto de
Mesquita, separata de ArquipélagoLínguas
e Literaturas, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1986; Luís de
Miranda Rocha, Para uma Introdução a Roberto Mesquita, Angra do
Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1981.
Um poeta como Roberto de Mesquita (1871-1923) pode, muito naturalmente e
sem sobressaltos, ser estudado sob uma perspetiva açoriana, que nele detete as
marcas e as representações subjetivas do mundo insular, e ao mesmo tempo sob um
ponto de vista nacional, integrando-o no simbolismo português, que, por sua
vez, é subsidiário do simbolismo europeu. Essas perspetivas não se excluem e foi mesmo por esse
ângulo que Jacinto do Prado Coelho comentou a obra do poeta florentino:
Pertence-lhe um lugar no
panorama da poesia portuguesa, pela qualidade estética de Almas Cativas;
mais restritamente, situa-se no quadro da literatura açoriana pela expressão
admirável da condição vivencial de ilhéu exilado no Atlântico (…), e no quadro
do parnasianismo e sobretudo do simbolismo português, de que é um dos mais
altos expoentes logo a seguir a Camilo Pessanha… (Jacinto
do Pado Coelho, «Roberto de Mesquita e o simbolismo», prefácio de Almas
cativas. Lisboa, Edições Ática, 1973, p. 9).
O
texto de Jacinto do Prado Coelho refere e cita o ensaio de Vitorino Nemésio
sobre Mesquita, o primeiro que de forma extensa se ocupa do poeta e o dá a
conhecer ao público português. Nesse ensaio, Nemésio chama justamente a atenção
para a filiação literária de Roberto de Mesquita, que vai de Leconte de Lisle a
Baudelaire, a Verlaine, a Antero e a Eugénio de Castro; mas ocupa-se
principalmente do modo como os preceitos de escola se integram no discurso
poético e se acomodam à expressão de uma «experiência» pessoal inseparável da
condição insular.6E Jorge de Sena, ao incluir Mesquita nas Líricas Portuguesas,
chama igualmente a atenção para aquilo que «de autóctone de uma parte de
Portugal – os Açores – [aflora] no seu lirismo.» (Jorge de Sena, Líricas
Portuguesas, 3.ª série, vol. I. Lisboa, Edições 70, 1984: LXVIII).
PRA A HABANA! V Este vaise i aquel vaise, E todos, todos se van, Galicia, sin homes quedas que te poidan traballar. Tés, en cambio, orfos e orfas E campos de soledad. E nais que non teñen fillos E fillos que non tén pais. E tés corazóns que sufren Longas ausencias mortás, Viudas de vivos e mortos Que ninguén consolará.
A
Simbiose Sinestésica Intertextual da Poesia Musicada em Sala de Aula: “Cantar
de Emigração” (de Rosália de Castro. Interpretada por Adriano Correia de
Oliveira)
Ritmo
– Quaternário
ao estilo de balada.
Melodia
– predomínio
de dedilhado da viola, tendo como resposta cristalina a flauta transversal em
jogo dialógico – pergunta resposta. Numa segunda fase, a flauta estabelece um
jogo com a voz num adágio suave mas pesaroso em agradável melopeia. Torna-se a
malha de uma canção que evoca o sofrimento de quem se encontra isolado na
solidão.
Harmonia
– A
combinação de sons entre a viola a voz e a flauta evoca o ambiente pastoril.
Análise
Semântica ‑ Esta
composição musical deixa antever de uma forma suave e cantante o êxodo de
muitos portugueses que, vivendo em Portugal em condições de extremas
dificuldades financeiras, abandonam o país e rumam em direção a um outro com
todas as condicionantes previsíveis e imprevisíveis que ofereça melhores
condições de vida. As pessoas vão em busca de uma sobrevivência que seja menos
penosa, mais promissora.
Na
primeira quadra a poetisa galega Rosália de Castro alerta para o perigo de
todos os homens abandonarem as terras – Galiza. Aproveitando os seus versos,
também Adriano, com a sua voz melodiosa, pressentia o despovoamento das zonas
agrícolas do lado de cá da fronteira. Esse desequilíbrio social iria provocar
consequências no tecido social das regiões abandonadas. Deixaria de haver a
força dos trabalhadores para cortar o trigo, o pão de que a população
necessitava.
A
quadra seguinte ouve-se uma flauta em contra-canto com a voz, num jogo de
perfeita harmonia suavizando as palavras dolorosas: “órfãos, órfãs, solidão,
mães sem filhos, filhos sem mães”. O que resta da emigração condensa-se no
simbolismo na expressão metafórica: campos de solidão. Esta espelha o
consequente desmembramento da família por força de uma sociedade espartilhada
com deficiências a nível dos tecidos: económico, social, político e cultural.
Este
canto de intervenção pretende sensibilizar as pessoas pelo sentimento evocado
na apóstrofe “coração”, para, de seguida, imbuí-lo de sofrimento
resultante das longas ausências mortais. Surgem, nesta quadra, as viúvas
angustiadas pelas ausências dos maridos ou em trabalho no estrangeiro ou na
guerra colonial. “Quando os homens não vão para África combater pela pátria,
vão para França lutar pela vida.Com a guerra a emigração é outro elemento da
radical mudança da paisagem humana operada em Portugal nos anos sessenta.”.
A
repetição da primeira quadra atenua a angústia das famílias destroçadas por um
país sem condições quer económicas quer políticas. Resta deste poema musicado,
a alusão ao mitologema português aqui presente: a vocação nostálgica do
impossível. (“O Imaginário português e as aspirações do ocidente cavaleiresco”,
Gilbert Durand. In: Cavalaria espiritual
e conquista do mundo. Lisboa, Instituto nacional de investigação
científica, 1986, p.15). O poema gera uma reação nostálgica de uma “esperança
desesperada”, sendo este o significado da habitual expressão “saudade”
tão característica dos portugueses.
[Este
poema musicado encontra-se também explorado durante a abordagem da obra de
Adriano Correia de Oliveira que se apresenta a seguir]
O Cantautor Adriano Correia de Oliveira (1942-1982)
Paralelamente
à obra de José Afonso, surge o cantor Adriano Correia de Oliveira, cuja voz
celebrizou o poema de Manuel Alegre “Trova do Vento que Passa” musicado por
António de Portugal – considerada a primeira trova típica de Coimbra.Com
evidente influência do fado, tornou-se o símbolo da inquietação
patriótica que serviu de hino às lutas académicas: Pergunto ao vento que
passa /notícias do meu país /e o vento cala a desgraça / e o vento nada me diz /
(…) O poeta Manuel Alegre escreveu este tema num momento de superior
inspiração. O silêncio da desgraça é simbolizado pelo vento que reprime, que
abafa o sofrimento de alguém que vive um sentimento nostálgico. Contudo, o
poeta assume-se como uma candeia, o porta-voz dos homens que, pelo seu
simbolismo, no seio das agruras de um país, ilumina, irradia sons harmoniosos
de esperança. Desse facto, resulta a tenaz resistência às adversidades tornando
o poeta o herói de todos quantos contestam a situação política vivida na época
da ditadura de Salazar: Mesmo na noite mais triste/em tempo de servidão /há
sempre alguém que resiste /há sempre alguém que diz não! Quem disse: “não”!
foi a voz eclética do cantor.
As
mensagens, os poemas cantados por Adriano assumem uma autonomia tal que se
tornam essenciais para a consciencialização dos cidadãos.
Não
obstante, destaquemos uma vez mais a inequívoca importância das canções.
Para
além de José Afonso, Adriano teve um papel fundamental no panorama musical
português. A sua persistência, os seus demais valores, a sua coragem em
defrontar as forças do regime, a sua aversão ao consumismo cultural fizeram
dele uma personalidade incontornável no canto de intervenção. A propósito,
refere-nos Manuel Alegre citado por Raposo (2000:20),
(…) A voz de Adriano era uma voz alegre
e triste, solidária e solitária, havia nele ternura e mágoa, esperança e
desesperança, amparo e desamparo, festa e luto, amor e luta. E também saudade e
fraternidade (…) voz de fado e de destino herança talvez do mouro e do celta
que nos habitam, a voz de Adriano tinha também o masculino apelo do rebate e do
combate.
Adriano
intervém como intérprete, compositor e participante em iniciativas de carácter
estudantil. A sua coragem extravasou toda a sua vida académica e prosseguiu com
a interpretação de temas que desafiavam a força da repressão tais como: a falta
de liberdade e a consequente prisão dos opositores ao regime, a denúncia da
guerra colonial e injustiças resultantes de uma realidade adversa. A “Canção
Terceira” argumenta:
(…) quando desembarcarmos no Rossio/Vão
vestir-te com grades /que é um vestido para todas as idades /na pátria dos
poetas em Rossio triste.
Esta
necessidade de apelidar o país de pátria dos poetas constitui-se como um
apelo à pátria de pessoas livres. Tal como se encontrava o país, o poeta
considerava-o um triste destino, o destino da gente do meu país,
“como alude na canção “Pátria”. O lamento persiste sobre todos aqueles que
pereceram em luta com “uma Lisboa”, sinédoque de Portugal, tão longínqua de um
canto alegre, promissor, “Eu canto um mês com lágrimas /…em que os mortos
amados batem à porta do poema …”. Apesar da morte de um amigo que tanto
desejava estar em Lisboa expresso na “Canção com Lágrimas”, o cantautor revela
um sentimento de esperança relativamente ao país:
Com Lisboa tão longe ó meu irmão tão
breve /que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro /eu canto para ti Lisboa à
tua espera.”
A
denúncia, a frontalidade sem restrições são apresentadas com a voz imbuída de
coragem sob a forma de poema “em Porque” de Florbela Espanca. Apresentado numa
estrutura antitética na qual os outros por oposição a um tu são
considerados “hipócritas, cobardes e fracos”. Sofia de Mello Breyner de uma
forma sub-reptícia pretendeu qualificar todos aqueles que se serviam do velho
Regime desses defeitos, contrapondo as virtudes das vítimas inocentes que eram
objeto de medidas persecutórias. É na voz de Adriano que este poema adquire uma
maior projeção, um novo dinamismo:
Porque os outros se mascaram mas tu não
/ Porque os outros são os túmulos caiados /Onde germina calada a podridão
/Porque os outros se calam mas tu não/ Porque os outros se compram e se vendem
/E os seus gestos dão sempre dividendos…/Porque os outros vão à sombra dos
abrigos /E tu vais de mãos dadas com os perigos/Porque os outros calculam mas
tu não.”
O
sofrimento do povo português persiste e é denunciado de forma metafórica,
todavia, não menos objetiva. No tema de Manuel da Fonseca “Tejo que lavas as
águas” o rio assume-se como a fonte regeneradora dos vícios de uma sociedade
conspurcada de injustiças, de exploração dos mais poderosos sobre os
miseráveis, os mais necessitados, uns nos palácios, outros nos bairros de lata:
Tejo que lavas as águas …/lava bancos e
empresas/dos comedores de dinheiro/que dos salários de tristeza/arrecadam lucro
inteiro/lava palácios vivendas/casebres bairros de lata/leva negócios e rendas
/que a uns farta e a outros mata.
O
poeta solicita ao Tejo que lave a cidade – entenda-se país - dos vícios, dos
favores, do poder dos ricos e finalmente das grades, de tudo o que impeça a
liberdade dos resistentes. E prossegue:
Lava avenidas de vícios /vielas de
amores venais /lava albergues e hospícios /cadeias e hospitais /afoga empenhos
favores/vãs glórias ocas palmas /leva o poder dos senhores/que compram corpos e
almas /leva nas águas as grades …
Por
seu turno, a liberdade é uma bandeira que Adriano nunca deixou de brandir, de
desejar, desde o tempo da capa negra que se assemelhava a uma rosa negra,
símbolo do desejo de liberdade, das lutas travadas com as forças da opressão.
Tal é notório na composição “Capa negra rosa negra” ‑ capa negra, rosa negra
sem roseira…/vira costas à saudade /bandeira da liberdade.”
Confessa-se,
de seguida, livre cantador como as aves, que não pode viver na repressão.
O
tema popular “Lira” confere a Adriano o estatuto de um verdadeiro poeta que na
impossibilidade de sobrevivência da lira, símbolo da liberdade musical e
poética, solicita, por analogia ao mito de Orfeu, a sua própria morte. Uma
questão se impõe: como poderá o poeta exercer a sua missão se acaso não puder
usufruir da sua própria liberdade?
Perante
a morte da lira, ícone do encantamento quer da linguagem poética quer da
linguagem musical, o poeta deixou de ter importância, de ter valor numa atitude
de desafio, de coragem. Propõe-se morrer com o objetivo de se tornar mártir,
apelando, deste modo, para a nobreza do ato poético. Pretende o poeta apelar à
consciência e sucessiva mobilização das demais pessoas para o seu sofrimento:
Morte que mataste lira /mata-me a mim
que sou teu /Morte que mataste lira /mata-me a mim que sou teu /mata-me com os
mesmos ferros /com que a lira morreu …/o que mais sofre sou eu.”
O
Tema do Ultramar foi motivado pelo forte descontentamento, não só dos homens mobilizados
para combate como dos seus familiares e uma grande maioria dos portugueses da
época. Vários foram os motivos evocativos da referida guerra, caso da canção
“Pedro Soldado” que indica o caminho de tantos jovens que interromperam as suas
aspirações para, segundo os preceitos da ditadura, defender “os interesses da
nossa pátria”. Assim partiram com o nome bordado num saco cheio de ilusões,
como refere a composição de Adriano:
Triste vai Pedro soldado numa rota de
barcos que vai para a guerra,/ Já lá vai Pedro soldado/Num barco da nossa
armada /…e leva o nome bordado num saco cheio de nada.
Outro
dos temas musicais é a” Menina dos olhos tristes” de Reinaldo Ferreira que, à
semelhança das nossas cantigas de amigo, lamenta-se, chorando, a ausência de um
soldado, ente querido, que jamais regressará do Ultramar. A mensagem recebida
pela Lua, sempre companheira, confidente em momentos de profundo sofrimento,
informa que ele, afinal, virá defunto, num caixão eufemisticamente referido
como caixa de pinho:
“Menina dos olhos tristes/O que tanto a
faz chorar /O soldadinho não volta /do outro lado do mar / Anda tão triste um
amigo /uma carta o fez chorar/O soldadinho não volta /do outro lado do mar/O
soldadinho já volta /está mesmo quase a chegar/vem numa caixa de pinho/do outro
lado do mar/desta vez o soldadinho nunca mais se fez ao mar/.
Este
tema, sinédoque de um problema sociológico que perpassou transversalmente toda
a sociedade portuguesa entre 1961 e 1974, infligiu milhares de vítimas mortais
e feridos com marcas físicas e traumáticas que perduram até nossos dias, aliás
como já foi referido no capítulo referente ao tema.
O
argumento é repetido na canção: “As balas”. Adriano e Manuel da Fonseca
estabelecem uma dicotomia entre a vida e a morte. Em todos os três primeiros
versos de cada quadra, à exceção da última, os poetas tecem um elogio à vida
por oposição ao último verso de cada quadra onde alertam para o sofrimento das
balas que derramam sangue. De destacar a última quadra que reforçam as razões e
as consequências da utilização das balas:
“Dá o Outono, as uvas e o vinho, /Dos
olivais, azeite nos é dado. /Dá a cama e a mesa o verde pinho, /As balas deram
sangue derramado. (…) Essas balas deram sangue derramado, /Só roubo e fome e o
sangue derramado. /Só ruína e peste e o sangue derramado, /Só crime e morte e o
sangue derramado.”
A
“Canção do Soldado” satiriza, recorrendo a uma metáfora cabalística – das
sete balas, sete flores de limão p’ra lutar até morrer. Desta afirmação
subjaz a violência atroz de uma luta fratricida. O conceito de guerra é
satirizado por uma pretensão absurda de lutar até vencer como se a guerra se
vencesse, única e exclusivamente, através das armas. Para contestar essa ideia,
os poetas, numa atitude pacifista, entregam o estandarte como renúncia à
guerra:
Sete
balas só na mão/ Já começa amanhecer. /Sete flores de limão/P’ra lutar até
vencer. / Sete flores de limão/P´ra lutar até morrer. /Já o rouxinol
cantou/Tomai o nosso estandarte. / No seu sangue misturado/Já não há
desigualdade. /No seu sangue misturado/Já não há desigualdade.
Sete balas só na mão/ Já começamos a amanhecer. /Sete flores de limão/Para
lutar até vencer.
Um
outro grande tema de Adriano, e simultaneamente de carácter relevante para a
nossa identidade como povo, é a Emigração. O papel de Adriano foi fundamental
para que as pessoas se interrogassem sobre as causas do êxodo de muitos
portugueses. Para tal, interpretou um poema da galega Rosália de Castro:
“Cantar de Emigração”. Neste poema, a
poetisa referindo-se à sua região da Galiza tece um panorama, que na perspetiva
de Adriano Correia de Oliveira, se repete em Portugal. Na impossibilidade de o
poder referir livremente por razões políticas, Adriano recorre a este tema
musical com o objetivo de confirmar mais um estigma da sociedade portuguesa
para além do referente à guerra do ultramar – a saga da emigração. É
estabelecido um paralelismo entre as regiões da Galiza e a do Norte de Portugal
pelas suas afinidades socioculturais e geográficas.
Esta
composição musical deixa antever, de uma forma suave e cantante, o êxodo de
muitos patriotas que, vivendo em Portugal em condições de extremas dificuldades
económicas, abandonam o país e rumam em direção a um outro, com todas as
condicionantes previsíveis e imprevisíveis, que ofereça melhores condições de
vida. As pessoas vão em busca de uma sobrevivência que seja menos penosa, mais
promissora.
Na
primeira quadra, a poetisa alerta para o perigo de todos os homens abandonarem
a terra – os desvalorizados espaços rurais, deixando de haver a força humana
para cortar o trigo, o pão de que as populações necessitam. Para Vieira
(2000:25)
(…) os campos despovoam-se ainda mais e cava-se
um grande fosso estrutural entre o litoral e o interior do país. A agricultura
estagna, com uma taxa de um por cento ao longo da década …a população ativa nos
campos decresce, entre 1960 e 1970 de 44% para 32% do total. Este é o momento
em que Portugal, contrariando a vontade mais íntima de Salazar, perde a
identidade rústica assumindo um perfil de país industrial.
Na
quadra seguinte ecoam as palavras dolorosas: órfãos, órfãs, solidão, mães
sem filhos, filhos sem mães. O que resta da emigração condensa-se no
simbolismo da expressão metafórica ‑ campos de solidão. Esta espelha o
consequente desmembramento da família por força de uma sociedade espartilhada
com deficiências a nível dos tecidos económico, social, político e cultural.
Este canto de
intervenção pretende despertar nas pessoas o sentimento evocado na apóstrofe: “coração”
para, de seguida, imbuí-lo de sofrimento resultante das longas ausências
mortais. Surgem, nesta quadra, as viúvas angustiadas pelas ausências dos
maridos ou em trabalho no estrangeiro ou na guerra colonial. A este propósito,
Vieira (2000:25) explica:
(…) quando os homens não vão para África
combater pela pátria, vão para França lutar pela vida.Com a guerra a emigração
é outro elemento da radical mudança da paisagem humana operada em Portugal nos
anos sessenta”.
A
repetição da primeira quadra atenua a angústia das famílias destroçadas por um
país sem condições quer económicas quer políticas. De acrescentar neste poema
musicado, a alusão ao mitologema português aqui presente: a vocação
nostálgica do impossível como refere Durand (1986:15). O poema gera uma
reação nostálgica de uma esperança desesperada, sendo este o significado
da habitual expressão “saudade” tão característica dos portugueses.(1)
A resignação, o sofrimento de “longas ausências até mortais que transparecem da
composição, ao estilo de balada, evoca as autóctones cantigas de amigo:
Este
parte, aquele parte /e todos, todos se vão
Galiza ficas sem homens /que possam cortar teu pão
Tens em troca /órfãos e órfãs
Tens campos de solidão /tens mães que não têm filhos
Filhos que não têm pai
Coração /que tens e sofre
Longas ausências mortais /viúvas de vivos mortos
Que ninguém consolará
Por sua vez, na
canção de Rosália “Emigração” interpretada por Adriano, assistimos a uma
réplica de situação real. Na verdade, a poetisa apresenta a sua mãe em discurso
direto. Esta suplica a Deus a proteção para a filha. A cantora prossegue,
enfatizando a infelicidade de um outro homem ter nascido e não dispor das
mínimas condições para se realizar tanto profissional como economicamente.
Finalmente,
a compreensão da poetisa por quem abandona a sua terra “coitado”. Ela considera
que terá razões plausíveis para trocar a sua vida de aparente bem-estar na sua
terra, por uma situação desconhecida, diferente, contudo, mais promissora em
termos financeiros. Salientamos o epíteto de “coitado”, de alguém que não se
conforma com um possível destino que lhe estaria “predestinado”. Deste modo,
aventura-se numa luta, num esforço que lhe poderá suscitar uma vida melhor quer
a nível económico, quer social, quer político.”(2) Esse sofrimento
nostálgico, de separação relativamente à família e ao país está vincado, uma
vez mais, no tema cantado por Adriano ”Quando no Silêncio das noites de luar”(3)
Quando
no silêncio das noites de luar, /Ia uma estrela pelos céus a correr, /
Dizia minha mãe de mãos erguidas. /Dizia minha mãe de mãos erguidas.
Deus, te guie por bem. /Deus, te guie por bem.
Desde então quando vejo que um homem, /Deixa a terra onde infeliz nasceu, /
E fortuna busca noutras praias, digo. /E fortuna busca noutras praias, digo
Deus, te guie por bem. /Deus, te guie por bem.
Desde então quando vejo que um homem, / Deixa a terra onde infeliz nasceu,
E fortuna busca noutras praias, digo. / E fortuna busca noutras praias, digo.
Não o culpo coitado não o culpo, / Nem lhe rogo pragas nem castigos,
Nem de que é dono de escolher, me esqueço. Nem de que é dono de escolher, me esqueço
Porque quem deixa o seu torrão natal, / E fora dos seus caminhos põe os pés,
Quando troca o certo pelo incerto. /Quando troca o certo pelo incerto.
Motivos há-de ter. / Motivos há-de ter. / Motivos há-de ter.”
Para
finalizar, Manuel Alegre, citado por Barroso (2000:169), conclui sobre a
importância dos dois cantautores no canto de intervenção, destacando o valor da
interpretação musical na divulgação dos textos poéticos,
Importa salientar a importância que
tiveram as trovas do Adriano e as baladas do Zeca como estímulo e fatores de
mobilização da luta estudantil. Importa ainda sublinhar que essa junção da
poesia e da música constituiu na altura o verdadeiro vanguardismo estético
português (…) Pela voz de Adriano Correia de Oliveira os poemas chegavam ao
povo e ao país inteiro, a tal ponto que alguns desses poemas deixaram de ter
autor para passarem a fazer parte da nossa memória comum e do nosso canto
coletivo. Eu já não sinto como meus alguns poemas que Adriano cantou”.
________________
(1) A consciencialização
conseguida através das canções de intervenção foi reconhecidamente eficaz como
destaca Sá Viana, Ministro da Defesa citado por Raposo (2000:21) “os efeitos
demolidores no moral das tropas que certas canções produziam.”
(2) Adriano
confessa in Raposo (2000:21) que a canção antes do 25 de Abril, desempenhou um
papel importante, um papel complementar da outra luta, a luta política junto
das massas populares e da classe operária. Ela foi o estímulo, o grito de
alerta, a denúncia da ausência de liberdade, da exploração na terra e na
fábrica, de guerra e da emigração. Pela minha parte insisti muitas vezes em
fazer canções que pudessem tocar de certo modo, as pessoas naquilo que elas
pudessem compreender mais facilmente”.
(3) Poema de Curros Henriquez, musicado por
José Niza .
José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes
e Alto Douro, 2010, pp. 66-74.
***
CANTAR
DE EMIGRAÇÃO
Análise de Ludmila Arruda
Esta
canção faz parte de um poema composto pela escritora galega Rosalía de Castro
(1837 - 1885), que faz referência
à emigração ocorrida em Santiago de Compostela em tomo de 1880. Inicialmente em
galego, Adriano Correia de Oliveira interpretou e lançou a canção em 1970, no
álbum Cantaremos. Adriano, juntamente com Zeca Afonso, é um dos grandes nomes da Canção de
Intervenção, e também sempre
gravou letras de sucesso. "Adriano foi responsável pela
divulgação de muita da melhor poesia portuguesa" (RAPOSO, 2014, p. 30), e
nas palavras de Manuel Alegre, ele possuía uma voz "alegre e triste, solidária e solitária, havia ternura e mágoa,
esperança e desesperança, amparo e desamparo, festa e luto, amor e luta"
(ALEGRE apud RAPOSO, 2014, p. 26).
A canção "Cantar de Emigração" em
português está totalmente fiel à letra em
galego, também fazendo alusão à
emigração em massa ocorrida especialmente a partir de 1960 em Portugal para
outras terras da Europa, especialmente França. O poema retrata os desafios que
a emigração traz ao país, que além de perder homens trabalhadores, perdiam também
suas famílias, que ficavam desamparadas, sem a figura paterna para
dar o suporte à esposa e aos filhos. Esta canção foi lembrada pelo professor
Pedro Calafate como uma das canções que marcaram o período da Guerra Colonial,
período de uma das maiores emigrações ocorridas em Portugal - e o professor recorda que
o período atual também tem sofrido com as mesmas questões. Em galego, o poema
contém cinco partes, e o trecho utilizado na interpretação de Adriano Correia
de Oliveira foi apenas a quinta e última parte do poema original, como segue:
Pra Habana (v)87
Cantar da Emigração
Este
vaise i aquel vaise,
E
todos, todos se van,
Galicia,
sin homes quedas
Que
te poidan traballar
Este
parte, aquele
parte,
E todos, todos
se vão
Galiza
ficas sem homens,
Que
possam cortar teu pão
Tésen
cambio, orfos e arfas
E campos
de soledad.
E
nais que non tenen fillos
E
fillos que non tén pais
Tens
em troca, órfãos
e órfãs
Tens
campos de solidão
Tens
mães que não têm filhos
Filhos
que não têm pai
E
tés corazóns que sufren
Longas
ausências mortás
Viudas
de vivos e mortos
Que
ninguén consolará.
Coração,
que tens e sofre
Longas
ausências mortais
Viúvas
de vivos mortos
Que
ninguém consolará
A versão
em português cantada pelo Adriano Correia de Oliveira tem o acompanhamento de
uma flauta transversal e uma viola, que são bem marcados durante toda a canção,
e especialmente a flauta, nessa canção, dá uma impressão
de passar o sofrimento
das pessoas que se encontram sós, como descritos nas estrofes. A relação entre a viola e a flauta está bem
sincronizada, e ambos os instrumentos são tocados algumas vezes sem o
acompanhamento um do outro, havendo uma intercalação, dando a ideia de diálogo
entre eles.
Os versos
são todos classificados como redondilha maior, e as rimas não seguem uma
sequência lógica, mas há muitas repetições presentes no poema que ajudam a
manter uma sonoridade regular. Se destacarmos apenas as rimas veremos
"vão, pão, solidão e coração" (em vermelho), que aparecem no segundo verso das duas primeiras estrofes, no quarto
verso da segunda estrofe, e
ainda no primeiro verso
da terceira estrofe. Já a
sequência "pai,
mortais" segue a
mesma sonoridade encontrada no quarto verso da segunda estrofe e no segundo verso da
terceira estrofe. O restante das palavras se repete, mantendo a sonoridade
estabelecida pelo poema como podemos ver em alguns dos seguintes vocábulos,
marcados no texto em azul: "parte'', "todos'', "órfãos e
órfãs'', "filhos",
"que não
têm" "viúvas
e vivos"
"mortos - mortais". Mesmo
algumas das palavras não sendo totalmente iguais, elas apresentam sons
semelhantes.
Essa
canção contém algumas figuras de linguagem que contribuem para destacar a grave
questão da emigração, e assim chamar a atenção do ouvinte para a escolha das expressões
que acentuam o problema. No segundo verso da primeira estrofe, ao dizer "todos, todos", além da a/iteração,
causada pela repetição da palavra, há uma hipérbole, ao exagerar que
"todos" os homens emigrariam. Galiza, nesse caso, seria uma comparação
metonímica de Portugal, já que estaria enfrentando o mesmo problema que já foi
enfrentado pela região galega. No último verso, o "pão" seria uma
relação metonímica com "alimento", ou ainda "sustento" - já
que aqueles homens que produzem o alimento e, consequentemente, o
sustento para os outros não estarão mais presentes.
Na
segunda quadra, há uma anáfora, ao repetir, no início de cada verso a palavra
"tens", para enfatizar o que ficaria nas terras vazias, ainda,
há a omissão da palavra "tens" no último verso, causando um zeugma, o que não prejudica no
sentido, pois o verbo já tinha sido utilizado três vezes anteriormente. Ainda
pode-se dizer que há uma assonância, ao conter muitas palavras com sons
vocálicos parecidos - o "ã"
ou "anasalado", mesmo entre aquelas que
que não contribuem para a rima da canção: "órfãos", "órfãs", "campos", "solidão"
"não", e "mães".
Na última
estrofe, ocorre uma prosopopeia ao personificar o órgão "coração'',
comumente utilizado para mostrar o sentimento da pessoa em relação a alguma
situação, como podemos ver no verso "coração que [tens e] sofre longas
ausências mortais". No terceiro verso, em "viúvas de vivos mortos" há urna aliteração, com a presença de mesmos
sons consonantais que chamam a atenção para o verso - no caso "viúvas de vivos"
- e anteriormente
"mortais" com "mortos". Ainda,
há um paradoxo, ao chamar "vivos" de "mortos'', pelo fato
de os maridos não estarem presentes fisicamente.
Tantas
repetições enfatizam a ameaça do problema da emigração, mostrando uma ação
corriqueira, e avisa a necessidade de se fazer algo para amenizar o problema. O poema mostra a
emigração forçada dos homens por questões da Guerra Colonial ou financeiras, o
que geraria maior problema para o país. Veremos estrofe a estrofe, como a escolha
das palavras, seja em galego ou em
português, ajudam a desvendar desafios enfrentados pela população.
CENÁRIO
Essa época a agricultura
ainda é a principal atividade econômica em Portugal, e a essa altura muitos
estão deixando seus trabalhos no campo para tentar vida mais rentável em outro
país, e assim tais trabalhos
têm um risco de ficarem defasados com poucas vendas de produtos:
1.ª ESTROFE
Pouco a pouco os homens
vão partindo até que -
se as autoridades não se atentarem
para esse problema- todos irão sair. (A palavra "todos" se repete, para confirmar essa
ameaça).
A palavra " Galiza" faz parte do poema
original, e não houve a mudança com
a tradução. Galiza se refere a Portugal, que
está sofrendo nessa altura o que a Galícia sofreu em tomo de oitenta anos
antes.
Os trabalhadores homens que
fazem serviço em agricultura são os responsáveis pelo movimento financeiro do
país, e são eles que cultivando
a alimentação, garantem a produção
necessária para a população portuguesa. Sem a presença deles, a produção se tomará
escassa, e logo, não haverá nenhum homem
que possa fazer esse serviço da agricultura, e, assim, a movimentação financeira
também deverá baixar. Sem eles, quem
irá garantir o pão para o povo português?
"Galiza ficas sem
homens que possam cortar teu pão"
2.ª ESTROFE
A segunda estrofe atenta
para outro grande problema da emigração: o
desfalque das famílias.
Com os chefes de família
procurando outro meio para o sustento ao viajar para fora do país, ele abdica de sua família, seu conforto e seus
sonhos e parte para o incerto. O
que o país tem em troca com a saída desses homens, é, além da falta de mão de
obra, a quantidade de mulheres sós e filhos sem a presença do pai. Os campos
que seriam para o cultivo da agricultura, agora, sem os homens, seriam "campos de
solidão'', onde as mulheres
chorariam a falta do marido e não haveria mais plantação.
3.ª ESTROFE
A terceira estrofe
prolonga as consequências ditas na
segunda estrofe, apelando para o lado emocional do "coração" das pessoas que sofrem a
ausência do homem. A saudade se toma "mortal", pois o fato de o homem
não estar presente fisicamente com a esposa, e
sem saber por onde ele anda e o seu desfecho, muitas
mulheres tomaram-se "viúvas" mesmo sem estar. Para
elas, era como se os maridos já
estivessem mortos,
por causa da longa
ausência, e o longo tempo sem
notícias. Ninguém seria capaz de consolar uma dor como essa.
1.ª ESTROFE - REPETIÇÃO
O cantor volta a cantar a
primeira estrofe,
revelando ainda o grave
problema de muitos partirem. Mais uma vez a repetição se atenta para uma ação
que não para de ocorrer e eles precisam de medidas urgentes para conter a
emigração. A única saída para uma
melhora seria a mudança política e económica para que o país voltasse a
prosperar, e atualmente não há
esperança de isso ocorrer.
Este
poema também revela uma característica marcante da música e literatura
portuguesa de modo geral, a saudade. Uma definição já marcante do povo
português (CRISTÓVÃO, 2007), o poema mostra aspetos que revelam essa
sensibilidade, especialmente em toda a última estrofe: o sofrimento da mulher
com a ausência do marido, e sua condição de "viúva de vivo", que nunca será aliviada.
No poema o sofrimento das mulheres também tem relação com a inexistência de
soluções que poderiam ter evitado a partida de muitos homens: a falta de uma boa vida,
de trabalho, de alimento, e as consequências que essa dificuldade financeira
vivida no país trouxe para a vida das pessoas. Essa nostalgia era um aspeto
muito comum no decorrer dos anos sessenta e setenta: as mulheres eram as que
mais sofriam com esse panorama uma vez que maridos e filhos poderiam ser
chamados à Guerra Colonial, ou, em
outros casos, a emigração forçada era a solução tomada para fugir não apenas
dessa convocação para a guerra, mas também para fugir de uma vida instável que
pairava sobre o país.
►“El tema de
la emigración en la poesía de Rosalía de Castro y su proyección en dos poetas
gallegos”, María del Carmen Porrúa. Actas do
Congreso Internacional de estudios sobre Rosalía de Castro e o seu tempo (III).
Santiago de Compostela: Consello da cultura Galega / Universidade de Santiago
de Compostela, 403-411. Reedición en poesia-galega.org.
Arquivo de poéticas contemporáneas na cultura. http://www.poesiagalega.org/arquivo/ficha/f/2342,
2012 [1986].