segunda-feira, 15 de setembro de 2014

O BARCO VAI DE SAÍDA (Fausto)





O barco vai de saída
Adeus ó cais de Alfama
Se agora vou de partida
Levo-te comigo ó cana verde
Lembra-te de mim ó meu amor
Lembra-te de mim nesta aventura
P’ra lá da loucura
P´ra lá do equador

Ah! mas que ingrata ventura bem me posso queixar
Da pátria a pouca fartura
Cheia de mágoas ai quebra mar
Com tantos perigos ai minha vida
Com tantos medos e sobressaltos
Que eu já vou aos saltos
Que eu vou de fugida

Sem contar essa história escondida
Por servir de criado a essa senhora
Serviu-se ela também tão sedutora
Foi pecado.
Foi pecado!
E foi pecado sim senhor!
Que vida boa era a de Lisboa!

Gingão de roda batida
Corsário sem cruzado
Ao som do baile mandado
Em terras de pimenta e maravilha
Com sonhos de prata e fantasia
Com sonhos da cor do arco-íris
Desvairas se os vires
Desvairas magia

Já tenho a vela enfunada
Marrano sem vergonha
Judeu sem coisa sem fronha
Vou de viagem ai que largada
Só vejo cores ai que alegria
Só vejo piratas e tesouros

São pratas são ouros
São noites são dias

Vou no espantoso trono das águas
Vou no tremendo assopro dos ventos
Vou por cima dos meus pensamentos
Arrepia
Arrepia
E arrepia sim senhor
Que vida boa era a de Lisboa

O mar das águas ardendo
O delírio dos céus
A fúria do barlavento
Arreia a vela e vai marujo ao leme
Vira o barco e cai marujo ao mar
Vira o barco na curva da morte
Olha a minha sorte
Olha o meu azar

E depois do barco virado
Grandes urros e gritos
Na salvação dos aflitos
Esfola, mata, agarra
Ai quem me ajuda
Reza, implora, escapa
Ai que pagode
Reza tremem heróis e eunucos
São mouros são turcos
São mouros acode

Aquilo é uma tempestade medonha
Aquilo vai p´ra lá do que é eterno
Aquilo era o retrato do inferno
Vai ao fundo
Vai ao fundo
E vai ao fundo sim senhor
Que vida boa era a de Lisboa.
      
Letra e música de Fausto Bordalo Dias, in Por este rio acima, 1982

Por este rio acima é o sexto álbum de Fausto, editado em 1982. É o primeiro disco da trilogia inacabada "Lusitana Diáspora", que inclui ainda o álbum Crónicas da Terra Ardente (1994). Baseia-se nas viagens de Fernão Mendes Pinto, relatadas na sua Peregrinação. É considerado geralmente pela crítica um dos álbuns mais marcantes da música de intervenção portuguesa das últimas décadas.

               

Ficha de abordagem sobre o tema “O barco vai de saída” (Fausto)




I

COMPREENSÃO DO ORAL

Escute a canção “O barco vai de saída”, de Fausto.

Relacione as expressões da coluna A com os tópicos da coluna B, de forma a indicar os factos relatados na canção.

Coluna A

Coluna B
A.    “O barco vai de saída”
B.    “P’ra lá do equador”
C.    “bem me posso queixar / Da Pátria a pouca fartura”
D.   “Sem contar essa história escondida / Por servir de criado a essa senhora”
E.    “Em terras de pimenta e maravilha / Com sonhos de prata e fantasia”
F.    “O mar das águas ardendo / O delírio dos céus / A fúria do barlavento”
G.   “Vira o barco e cai marujo ao mar / Vira o barco na curva da morte”

1.      Razão da partida.
2.     Índia como terra de riqueza e beleza.
3.     História de amor antiga.
4.    Destino da viagem marítima.
5.     O naufrágio.
6.    Partida de Lisboa.
7.     Os perigos da viagem marítima.

Chave de resposta: A-6; B-4; C-1; D-3; E-2; F-7; G-5. (in Letras & Companhia 9, C. Marques e I. Silva, ASA, 2013) 

II
Classifique o tema musical de acordo com:
a) o ritmo
b) a melodia
c) a harmonia
III
1. Como é que o autor nos descreve a pátria?
2. A quarta estrofe caracteriza o marinheiro que personifica a mundividência, o espírito português da época. Elabore um comentário.
3. O poema surge marcado pelas antíteses. Aponte duas salientando a sua importância.
4. Saliente o realismo expresso na 8ª estrofe. Destaca a linguagem irónica aí presente.
5. Comente a perspetiva apresentada pelo poeta relativamente à mentalidade do marinheiro português que, por extensão, personifica o povo.     

José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, p. 171.

         
IV
Leia o seguinte trecho tirado da obra Peregrinação e que serviu de inspiração à canção “O barco vai de saída”. Responda depois às perguntas abaixo:
“Ainda muito jovem vim para Lisboa onde um tio meu me pôs ao serviço de uma senhora de geração nobre e de parentes ilustres. Sucedeu-me então um caso que me pôs a vida em tanto risco que para a poder salvar me vi forçado a sair naquela mesma hora de casa, fugindo com a maior pressa que pude. Indo assim tão desatinado, entre outros medos, e sem trabalho que bastasse para minha sustentação, decidi embarcar-me para a Índia, ainda que com poucas ilusões. Já disposto a toda a ventura, ou má ou boa, que me sucedesse”.
       
1. Relacione o texto de Fernão Mendes Pinto com a canção. Destaque os versos que mencionam as razões que levaram o narrador a embarcar para a Índia.
2. Como antevisão da viagem, o narrador apresenta o que o espera ao longo da viagem: não só as expectativas, mas também os perigos. Quais são as expectativas de quem parte e quais os perigos que pode correr?
3. O verso “Que vida boa era a de Lisboa” aparece três vezes ao longo da canção. Tente explicar porquê.
4. Porque é que uma viagem à Índia ou ao Oriente em geral era considerada no século XVI uma “aventura / P’ra lá da loucura”?
5. Selecione algumas figuras de estilo (epítetos, metáforas etc.) que revelam o carácter medonho de uma tempestade no mar.
6. Qual é o tema da canção? Que sentimentos domina o narrador? Apoie a sua resposta nos versos da canção.
7. Repare que (quase) todos os verbos da canção são utilizados no Presente do Indicativo. Explique porquê.    


                   

Texto de apoio
       

A Simbiose Sinestésica Intertextual da Poesia Musicada em Sala de Aula: “O barco vai de saída” de Fausto.
Ritmo ‑ Quaternário, popular, emotivo, mesmo esfusiante, marcado pelo bombo, pelo cavaquinho ao estilo da música tradicional portuguesa.

Melodia ‑ Muito rica, com a voz principal e as do coro com variações em tom menor nas quadras e maior no refrão.

Harmonia ‑ A conjugação de instrumentos tão diversos mas populares propiciam um conjunto de sons agradáveis.

Análise Semântica  Este tema é também considerado de intervenção, porquanto Fausto Bordalo Dias se preocupa em divulgar um espaço da nossa História Portuguesa menos conhecido, ao qual urge dar voz. Segundo ele, há que repor a justiça, no reconhecimento dos mais indefesos, dos mais desprotegidos e geralmente dos mais sacrificados. A este propósito, apraz refletir sobre o que argumenta Barata-Moura (1977:138),

Se é certo que as revoluções não se fazem com canções no sentido de serem estas a determinarem-nas principalmente na ordem da causalidade, também é certo que se não fazem com palavras ou com escritos. No entanto, importa não esquecer o lugar das canções, das palavras, dos escritos, no duro combate ideológico que não só acompanha as revoluções mas toda a luta de classes em geral.
Trata-se de uma ação que não pode deixar ser encarada dialeticamente, já que não é apenas das cabeças de quem pensa, escreve ou canta que estas produções ideológicas saem. Elas mergulham as suas raízes no viver quotidiano dos homens e das mulheres ao serviço de quem procuram estar. É da sua vivência, da sua auscultação, da sua compreensão, da participação numa luta que é comum, que podem recolher, enquanto elaborações da consciência que são a força, a justiça, a razão de ser, de que se encontram animadas.

Este trabalho pretende realçar a capacidade poética do cantautor. Efetivamente, a sua intervenção é considerada como de excelente inspiração musical bem como de irreprimível execução técnica tanto do cantor principal como dos restantes músicos casos de Júlio Pereira, Pedro Caldeira Cabral e Rui Júnior, entre outros, considerados dos melhores instrumentistas nacionais. Um trabalho poético tal como iremos analisar, conjugado com uma criatividade musical de referência, surgiu naturalmente uma simbiose sonora peculiar. De acrescentar a utilização criteriosa dos sons dos nossos instrumentos tradicionais tais como da guitarra portuguesa, cavaquinho, viola braguesa, acordeão, adufes, ferrinhos, flautas, bombo, palmas e vozes que imprimem um cariz puramente popular e simultaneamente uma dimensão contemporânea, inovadora. A identidade musical de Fausto B. Dias, a sua patente em termos de estilo gerou este tema que integra o álbum “Por este rio acima”‑ uma obra-prima que alargou e ajudou a solidificar o panorama da História da Música Portuguesa.

O poema “O Barco Vai de Saída”, pela sua importância, pelo valor emblemático que alcança, merece especial destaque porquanto aborda, de uma forma sintética, todos os momentos gerados pelos Descobrimentos.

Este poema assume-se, por isso, como paradigma dos descobrimentos. É o que se pode comprovar, desde logo, na primeira estrofe, na qual o leitor experimenta as sensações de entusiasmo, de euforia, por parte dos marinheiros em busca de uma prometida vida melhor:

O barco vai de saída / Adeus ó cais de Alfama
Se agora vou de partida /Levo-te comigo ó cana verde
Lembra-te de mim ó meu amor/ Lembra-te de mim nesta aventura
P’ra lá da loucura /P’ra lá do Equador.
(…) Só vejo cores ai que alegria …
O marinheiro, “outrando-se“ já de pirata, sem escrúpulos, refere a sua ambição:
Corsário sem cruzado /em terras de pimenta e maravilha
(…) Com sonhos de prata e fantasia /Com sonhos da cor do arco-íris

O delírio esfusiante, contudo, efémero, contrastava com a pouca fartura, as fracas condições de vida que a Pátria lhe oferecia. É aliás, também por esse facto que o marinheiro – entenda-se, por sinédoque, ‑ o povo português, ‑ se sente impelido a defrontar-se contra os previsíveis e imprevisíveis perigos - quer do Mar numa primeira fase, quer do Desconhecido, numa fase posterior. O poeta refere ainda a história secreta dos amores correspondidos com uma senhora que se serviu dele de uma forma amorosa mas furtiva, pecado que assumiu com toda a frontalidade, sem qualquer espécie de preconceitos, apoiado inclusive pelo coro. Era o que ele considera uma excelente recordação da vida boa que se levava em Lisboa:

Ah mas que grata ventura/bem me posso queixar /
Da Pátria a pouca fartura/Cheia de mágoas ai quebra – mar
(…) Que eu vou de fugida sem contar essa história escondida
Por servir de criado essa senhora /serviu-se também tão sedutora
Foi pecado, foi pecado /E foi pecado sim senhor
Que vida boa era a de Lisboa.


Esta passagem, segundo Reis (1978:131), evoca o “Auto da Índia, em termos de “intertextualidade de grau mínimo”. Gil Vicente, à semelhança deste tema musical, aborda de uma forma também satírica, a vida de algumas pessoas de costumes dissolutos, aprazíveis. Esta vida, considerada depravada, fácil “de Lisboa”, pretende contrastar dramaticamente com a dureza, a crueldade das situações vividas durante as viagens, que serão múltiplas e complexas.

Fausto, de seguida, identifica-se como corsário sem cruzado, sem dinheiro. Esta nova personalidade, um heterónimo resultante desta situação de marinheiro, irá reiterar a nova identidade do marinheiro português. Esta perspetiva de se considerar pirata contrasta com os habituais cânones do Classicismo. A noção de herói converte-se em anti-herói, em herói pícaro. Poder-se-á referir que o marinheiro está pronto, “ao som do baile mandado” por um qualquer capitão português, em terras maravilhosas e de fartura, a roubar e a matar para concretizar o seu sonho da cor da sedução e da fantasia; ele não terá escrúpulos, não olhará a meios para atingir os fins – o odor da pimenta e a beleza da prata endoidece qualquer um:

Gingão de rota batida /Corsário sem cruzado/
Ao som do baile mandado /Em terras de pimenta e maravilha
Com sonhos de prata e fantasia /Com sonhos da cor do arco-íris
Desvairas se os vires /desvairas magia

Na estrofe seguinte, o júbilo do pirata, o esplendor do início da viagem, vai-se esmorecendo sobre o menosprezo que recai nos seus companheiros de viagem, apelidados de marranos (porcos, sujos) e judeus sem carácter. De acrescentar, segundo Cruz (1989:84), que a tripulação era também constituída por degredados – condenados à morte, mas com comutação de pena – e os arrenegados soldados que iam trabalhar para outros exércitos. Quando alguns destes regressavam ao país eram integrados nas expedições.

Esta caracterização dos companheiros reflete-se na sua reputação de corsário.

Ele sente-se rodeado de corsários, considerando-se obviamente um elemento integrante do grupo.

A terceira estrofe termina com a alusão ao medo provocado pelos fortíssimos ventos que contrastam, uma vez mais ironicamente, com a deleitosa vida em Lisboa:

Marrano sem vergonha /Judeu sem coisa nem fronha (…)
Só vejo piratas e tesouros / São pratas são ouros (…)
Vou no tremendo assopro dos ventos /(…)arrepia
E arrepia sim senhor/Que vida boa era a de Lisboa

Perante este novo desafio de atravessar os mares, surgem fenómenos como o descrito “Fogo-de-santelmo” que origina o espanto, o receio, o pavor. De seguida, são referidos de novo, os ventos tão inesperados como fortíssimos que provocam um naufrágio que é simultaneamente o seu destino (sorte) do marinheiro. É o seu azar que será a sua mais que provável morte …. O poeta, através deste jogo de palavras, ironiza com o fado, com o destino dos marinheiros portugueses:

O mar das águas ardendo/O delírio dos céus
A fúria do barlavento (…) / vira o barco e vai marujo ao mar
Vira o barco na curva da morte/Olha a minha sorte
Olha o meu azar

Finalmente, a última estrofe testemunha o pânico, a angústia da tripulação de várias centenas de navegantes perdidos num naufrágio ou por razões naturais ou por ataque do inimigo, neste caso, os “infiéis” mouros.

O poeta continua a driblar com as palavras para gerar o efeito de confusão, de violência onde coloca no mesmo pé de igualdade heróis e doidos, colocando-os no mesmo pé de igualdade. Ele pretende desmistificar a noção de herói ao revelar o seu pavor, a sua perdição tal qual um demente já que o ambiente era” infernal”. O verso “Vou ao fundo” exprime a morte do herói e o surgir da ideia do anti-herói: aquele que revela fraqueza, que deixa de ser considerado um homem divinizado para passar a ser simplesmente humano, mortal. Este ambiente está evidenciado na orquestração musical de forte influência tradicional, com uma percussão alegre, de ritmo popular. A melodia envolvente, em sintonia com o texto, transmite uma energia, resultante de um jogo entre a harmonia e as constantes intervenções de um coro de vozes.

O poema termina com a refinada e cruel ironia da deliciosa vida que se vivia em Lisboa:

E depois do barco virado / Grandes urros e gritos
Na salvação dos aflitos /Esfola /mata Agarra ai quem me ajuda /
Reza/Implora/escapa ai que pagode /reza
Tremem heróis e eunucos /são mouros são turcos /
(…) Aquilo era o retrato do inferno /(…)
Vou ao fundo /e vai ao fundo sim senhor/
Que vida boa era a de Lisboa.

Este poema musicado pretende, de uma forma duplamente estética, traduzir uma mundividência do tempo dos descobrimentos. O objetivo do cantautor foi desmistificar, derrubar uma mentalidade que durante alguns séculos perdurou ao serviço de uma ideologia arreigada a valores agora contestados. Os conceitos de coragem, de heroísmo, de patriotismo são, desta forma, redefinidos, com a finalidade de abrir novos horizontes na busca da identidade do povo português.        

José Manuel Cardoso Belo. Vila Real, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, 2010, pp. 131-136
        
          

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 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro


 Fausto (músico). In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. URL: http://www.infopedia.pt/$fausto-(musico)


Músico português, Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias nasceu a 26 de novembro de 1948, a bordo do navio "Pátria", que viajava entre Portugal e Angola. Ao fim de vinte anos em terra africana, viajou para Lisboa onde fixou residência. Estudou no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina e iniciou a sua carreira musical como cantor e compositor com um dos melhores agrupamentos angolanos. 


A sua vinda para a capital portuguesa permitiu-lhe conhecer novos meios artísticos e editar o seu primeiro grande sucesso, "Chora, amigo chora" - que o levou a ganhar o Prémio Revelação em 1969 - assim como aproximar-se de nomes como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Manuel Freire. 

Fausto, dedicado sobretudo ao canto de intervenção, é considerado um dos mais criativos e expressivos criadores e intérpretes da música popular portuguesa. 

Destacam-se os álbuns Pró que Der e Vier (1974) e Beco sem Saída (1975), dois trabalhos marcados pela sua experiência revolucionária; Madrugada dos Trapeiros (1977), que inclui o famoso tema "Rosalinda"; Histórias de Viajeiros (1979), abordando, pela primeira vez, o tema das Descobertas; Por este Rio Acima (1982), baseado na obra Peregrinação de Fernão Mendes Pinto; O Despertar dos Alquimistas (1985), onde tenta descrever o país após a revolução do 25 de abril;Para Além das Cordilheiras (1989), que ganha o Prémio José Afonso; Crónicas da Terra Ardente (1994), onde volta ao tema dos descobrimentos portugueses; e A Ópera Mágica do Cantor Maldito (2003), uma perspetiva sobre a história portuguesa pós-25 de abril.

   
                      


[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/09/15/o-barco-vai-de-saida.aspx]

domingo, 14 de setembro de 2014

VENHAM MAIS CINCO (Zeca Afonso)


 Venham mais cinco, Zeca Afonso
José Afonso, Álbum: Venham Mais Cinco
Gravado em Paris de 10 a 20 de Outubro de 1973
       
        
Venham mais cinco
Duma assentada
Que eu pago já
Do branco ou tinto
Se o velho estica
Eu fico por cá

Se tem má pinta
Dá-lhe um apito
E põe-no a andar
De espada à cinta
Já crê que é rei
Dàquém e Dàlém Mar

Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar

A gente ajuda
Havemos de ser mais
Eu bem sei
Mas há quem queira
Deitar abaixo
O que eu levantei

A bucha é dura
Mais dura é a razão
Que a sustem
Só nesta rusga
Não há lugar
Pr'ós filhos da mãe

Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar

Bem me diziam
Bem me avisavam
Como era a lei
Na minha terra
Quem trepa
No coqueiro
É o rei


"Venham Mais Cinco" é gravado em Paris, sob a direção de José Mário Branco. 
Foi o último disco de José Afonso antes da revolução de Abril.

        
        
Análise de “Venham mais cinco”
          


Esta canção faz apelos à unidade, pois era necessária para lutar contra os males provocados pelo regime e para derrubar o regime que deveria «embalar a trouxa e zarpar».
No poema, o vocábulo vinho simboliza a transformação, pois o sumo da uva tem o poder misterioso de se transformar e de transformar aqueles que o bebem, em algo mais potente.
O número cinco anda associado, entre outras coisas, à análise, à crítica, à força, à integração, ao crescimento orgânico e ao coração. Neste aspecto, é sinal de união, de harmonia e de equilíbrio e um convite à confraternização (dá cá mais cinco).
Nos versos: «De uma assentada que eu...»; «o que eu levantei», nota-se que, em princípio, aquele que diz “eu” não tem nome, mas, de facto, torna-se imediatamente um nome activo. “Eu” deixa de ser um pronome, torna-se num nome, o melhor dos nomes. Dizer “eu” é, infalivelmente, atribuir-se significados, como objecto de um destino, de uma acção concreta e real.
Nos versos do poema: «se o velho estica», «dá-lhe um apito; «tem má pinta», «crê que é rei...», o pronome pessoal ele aponta, mas não revela.
Há até um nítida oposição entre o eu e o ele que provoca o desejo de mudança e a afronta.
O convite à confraternização, à união e à luta conjunta pelo mesmo ideal está sintetizado na expressão Venham mais cinco. Esta luta pressupõe que outros se unam aoeu num mesmo desejo de libertação e com vinho o povo celebraria a vitória e festejaria.
As razões para a mudança são apresentadas: se o velho estica: se Salazar morre – alusão aos dois últimos anos de vida deste estadista, após a queda, em 1968, em que foi substituído por Marcelo Caetano. Salazar é comparado a um “velho” que “estica”, mas ainda acredita que é “rei d’aquém e d’além mar”, isto é, que ainda governa; se tem má pinta: se é austero, autoritário, gélido, duro e dirigista; dá-lhe um apito e põe-no a andar: livra-te dele e destitui-o do poder; de espada à cinta: apoderou-se do poder; é a imagem personificada do poder; crê que é rei d’aquém e d’além mar: é o senhor de Portugal e das colónias (política que insistiu em manter, apesar de nela terem morrido cerca de 8 000 portugueses, para além dos muitos que ficaram feridos, física e psicologicamente); na minha terra quem trepa no coqueiro é o rei: coqueiro simboliza o poder, alto, de onde se avista a terra, o país, e o rei é o ditador que trepa no poder e avista tudo à sua frente; já é tempo de embalar a trouxa e zarpar: já é tempo de se pôr a andar, pois está há muito tempo a governar o país.
A prefiguração da mudança torna-se visível nos seguintes vocábulos: gritar, quetraduz a ânsia de liberdade e de clamar vitória; tiririri: o som dos apitos a festejar a vitória; a gente ajuda: sentido de unidade na luta; havemos de ser mais: o descontentamento aumenta.
No fundo, a tarefa era difícil (A bucha é dura), mas mais importante era a razão de ser dessa luta (Mais dura é a razão que a sustém) e nessa luta (rusga) não haveria lugar para os que defendiam o regime (os filhos da mãe).
        
A simbologia das palavras: os sentidos implícitos nas canções de Zeca Afonso e a revolução silenciosa”, Albano Viseu. In: Revista 3 do CEPHIS (Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social de Trás-os-Montes e Alto Douro), setembro de 2013. Coimbra, Terra Ocre edições/Palimage.
         
            
Texto de apoio
        
canto de intervenção concretizou um importante papel – social, político e cultural –, no contexto da História nacional, e contribuiu, em certa medida, para preparar as camadas populares para a mudança que se avizinhava:
‑ uniu e consciencializou os portugueses, sobre a situação repressiva exercida pelo regime.
‑ «os poemas antes de serem cantados já eram conhecidos (…), assim como a poesia, a par da música, e terão tido um papel importante na consciencialização das pessoas, e até dos militares».
‑ agitou o povo, através dos apelos: à luta, ao combate, à união, à agitação e à revolta.
‑ «uma tentativa de infiltração na marcha social, ou melhor, na luta das classes» (Correia, Mário, Música popular portuguesa – um ponto de partida, Coimbra, Centelha, 1984, p. 87).
A letra mobilizadora das canções e os sentidos dialógicos e simbólicos que nelas foram utilizados constituíram um mote para lançar uma estratégia de combate silencioso contra o regime, tendo acabado por cumprir as suas funções. Muitas pessoas estiveram atentas à evolução da situação, pelo que as canções de intervenção foram catapultadoras de sentidos, tendo-as ajudado a lutar e a resistir.
Foi ousado enfrentar o regime, foi ousado subsistir num clima de paz relativa, levantando a voz, sempre com uma forte esperança de mudança.
[…]
    Zeca Afonso tentou comunicar valores e ideais, utopias e mensagens libertadoras, ansiou por um Portugal sem tabus, sem ter de calar o valor da liberdade, pelo que se tornou num vulto histórico, num modelo de afronta na luta contra o regime. As suas canções premeiam uma veia criadora, intensamente preocupada com causas humanas e sociais e são exemplo de ação e de luta constante, objetivando provocar a agitação e a mudança, contra o marasmo fomentado por um regime que necessitava de ser questionado e, por fim, substituído.
A simbologia das palavras: os sentidos implícitos nas canções de Zeca Afonso e a revolução silenciosa”, Albano Viseu. In: Revista 3 do CEPHIS (Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social de Trás-os-Montes e Alto Douro), setembro de 2013. Coimbra, Terra Ocre edições/Palimage.
        
        
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Poeta, cantor e compositor, José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos nasceu a 2 de agosto de 1929, em Aveiro, e faleceu a 23 de fevereiro de 1987, em Setúbal. 
Viveu até aos três anos na cidade onde nasceu, tendo, em 1932, viajado para Angola onde passou a viver com os pais e irmãos que aí já se encontravam. Terá sido aqui que o poeta criou uma relação estreita com a Natureza e sobretudo com África que, mais tarde, se refletiria em muitos dos seus trabalhos.
Regressado a Portugal, depois de uma breve passagem também por Moçambique, José Afonso foi viver para casa de familiares em Belmonte, onde completou o Ensino Primário. Estudou, já em Coimbra, no liceu D. João III e ingressou, depois, no curso de Ciências Histórico-Filosóficas da Faculdade de Letras daquela cidade, tornando-se notado pelas suas interpretações do fado típico coimbrão - não apenas pela qualidade da sua voz mas pela originalidade que emprestava às interpretações. 
Em 1955, iniciou uma pequena carreira como professor do Ensino Secundário e lecionou em liceus e colégios de locais tão variados como Mangualde, Aljustrel, Lagos, Faro e Alcobaça. Seis anos mais tarde, partiu para Moçambique onde voltaria a dar aulas. De volta ao seu país, em 1967, conseguiu uma colocação como professor mas, ao ser expulso do Ensino por incompatilidades ideológicas face ao regime ditatorial vigente, começou a dedicar-se mais à música e, consequentemente, a gravações mais regulares.
A sua formação musical integrou um processo global de atualização temática e musical da canção e fado de Coimbra. Foi assim que o cancioneiro de Zeca Afonso recriou temas folclóricos e até infantis, reescrevendo formas tradicionais como a "Canção de Embalar", evocando mesmo, neste retomar das mais puras raízes culturais portuguesas, o ambiente lírico dos cancioneiros primitivos (cf. "Cantiga do Monte"), ao mesmo tempo que introduziu no texto temas resultantes de um compromisso histórico, denunciando situações de miséria social e moral (os meninos pobres, a fome no Alentejo, a ausência de liberdade) e cimentando a crença numa utopia concentrada no anseio de "Um novo dia" ("Menino do Bairro Negro"). 
Reagindo contra a inutilidade de "cantar o cor-de-rosa e o bonitinho, muito em voga nas nossas composições radiofónicas e no nosso music-hall de exportação", partiu da convicção de que "Se lhe déssemos uma certa dignidade e lhe atribuíssemos, pela urgência dos temas tratados, um mínimo de valor educativo, conseguiríamos talvez fabricar um novo tipo de canção cuja atualização poderia repercutir-se no espírito narcotizado do público, molestando-lhe a consciência adormecida em vez de o distrair." ("Notas" de José Afonso in Cantares, p. 82). 
Canções decoradas por várias gerações de portugueses, filhas da tradição e incorporando, por seu turno, a tradição cultural portuguesa, a maior parte dos temas de Zeca Afonso integram, como voz de resistência mas também como voz pura brotando das raízes do ser português, o imaginário de um povo que durante a ditadura decorou e entoou intimamente os versos de revolta de "Vampiros" ou de "A Morte Saiu à Rua", ou que fez de "Grândola, Vila Morena" o seu hino de utopia e libertação. 
Menos equívoca, no pós-25 de abril, mas animada pelo mesmo ímpeto de reivindicação de justiça e de apelo à fraternidade, a sua canção, no que perde por vezes de subtil metaforização imposta pela escrita sob censura, ganha em força e engagement, na batalha contra novos fantasmas da alienação humana como o imperialismo, a CIA, o fascismo brasileiro, o novo colonialismo de África, o individualismo europeu. Neste alento, as Quadras Populares (1980) constituem uma verdadeira miscelânea sobre os novos desconcertos do mundo, as suas novas e renovadas formas de opressão, enumerando uma por uma as iniquidades, disparates e esperanças frustradas da sociedade saída da revolução de abril, aspirando, em conclusão, a uma revolução ainda não cumprida ou ainda por fazer.
Apesar de galardoado por três vezes consecutivas (1969, 1970 e 1971) com um prémio oficial, a sua produção viria a ser banida dos meios de comunicação, dado o seu conteúdo indesejável para o regime; por essa mesma ordem de razões - talvez mais do que pela inovação musical -, a sua popularidade viria a crescer após a reimplantação da democracia.
De toda a sua discografia, destacam-se os seguintes álbuns: Balada do outono(1960), Baladas de Coimbra (1962), Baladas e Canções (1964), Cantares de Andarilho (1968), Traz outro Amigo Também (1970), Venham mais Cinco (1973),Coro dos Tribunais (1974), Grândola, Vila Morena (1974), Enquanto há Força(1978), Como se fora seu Filho (1983) e Galinhas do Mato (1985).
   
                        

[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2014/09/14/venham-mais-cinco.aspx]