quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

CARTA DE LONGE e O BARCO E O SONHO, de Manuel Ferreira

Monumento ao Emigrante Açoriano, Ponta Delgada




CARTA DE LONGE

Maria,
flor do meu coração,
é raro o momento do dia
em que não penso em ti e no nosso filho,
como o trouxesse pela mão
ou contigo pelo braço...

Juro-te que nunca vi nada que se pareça

com o calvário do emigrante!
O Sol nasce sem brilho,
frio e distante...
O corpo parece sem vida
e a Vida sem razão de ser ...

Acredita, minha querida,

por mais que te estremeça,
já não sei compreender
tudo o que me passa,
num prenúncio de desgraça,
por esta pobre cabeça...

O coração, escaldante como o lume,

o pensamento, vazio e incerto,
perdido em estranho ciúme,
nos espinhos de um remorso,
doloroso e encoberto...

Cuidados pela criança e receios de alguma doença,

longe da tua presença
cousas loucas, ideias negras, de morte,
a cada hora - tão longe e tão perto!

Mas, peço-te, minha santa,

não desesperes também
da tua triste sorte
e do meu negro destino...

Tudo, afinal, é o que tem de ser!...

Lembra-te que és mulher,
lembra-te que és Mãe,
põe os olhos no céu, reza e canta,
reza, cantando ao nosso menino!

Não leves a mal, mas juro-te, Maria,

que tudo daria
para outra vez cavar a nossa horta
contigo sentada no degrau da porta
e o menino à tua beira,
a engatinhar pela eira...

Nada melhor!

A nossa terra cavada, com tanto amor e suor,
de sacho em punho,
arregaçado, de chapéu de palha,
a bom cavar...

Depois, em junho,

a lida das searas,
a bom ceifar,
e a monda das vinhas,
na alegria do nosso cantar...

E o regresso, pela tardinha?

Tu descalça, leve e mimosa,
a blusa de chita cor de rosa,
a cintura fina e a saia rodada,
ao lado do peito a talha,
de volta da bica, cheia e fresquinha...

Vejo-te ainda,

como num espelho,
toda de vermelho,
tão pobre e tão rica,
tão pura e tão linda,
princesa e rainha
- e eu encantado...

Depois, a nossa ceia, ao canto da cozinha,

quente e perfumada ...
E o serão, junto ao tear,
com o menino a tagarelar?

Nada no mundo,

nada, podia pagar
o meu sono descansado,
junto ao teu corpo adorado,
doce e profundo...

Por ventura, já te acudiu ao pensamento,

ao embalares a criança,
no que seria este tormento,
se não fosse a confiança
que tenho em ti e no teu amor,
fiel e eterno?

Querida Maria:

Ninguém pode compreender
- só Deus Nosso Senhor -
toda a tortura deste inferno
noite e dia!

Pois, por mim, nos cardos da saudade,

só tudo te poderei descrever,
de todo o coração e ao natural,
nas suas cores e com o devido brilho,
se o céu, na sua vastidão e clara imensidade,
fosse o papel
e a tinta azul do mar,
num luzeiro de beijos, a voar,
para ti e nosso filho,
como sou, até à eternidade,
o sempre teu – MANUEL


Manuel Ferreira, julho de 1956.



"(A)riscar o Património", Sofia Carolina Botelho, 2014-10-10. 
Ponta Delgada - Campo de São Francisco e Monumento ao Emigrante Açoriano.

O Barco e o Sonho
Manuel Ferreira

Os dois, Victor e Evaristo, eram unha com carne, mais que irmãos, nados e gerados no mesmo saco.
Vivendo paredes meias, ombro com ombro, patinhando de manhã ao anoitecer no lameira das valetas, de fralda esfarrapada, ou dividindo, mais tarde, o mesmo banco, no soletrar da cartilha, assim cresceram e  se criaram, companheiros e amigos, ao correr dos anos.
Filhos de gente pobre, sem eira nem beira, mal gaguejado o pà-pá-San-ta-Jus-ta, cedo foram empurrados para a vida, ao requerer das necessidades, no supreio da côdea, a esfolar a negra, ao calhar da sorte -·ambos em aprendizes de carpinteiro.
Mas, tirante a separação, na tenda, no lixa-lixa, de taco nas unhas, a burnir madeiramentos ou no transporte das cestas e aparas, de mis­ tura com as graçolas e cachações da mestrança - verdadeiros carpinteiros do Calvário, na arte e na alma - nada os afastava, nas horas livres, de folga, a caminho de casa ou da oficina, a passo ou a correr, à compita. Pegavam-se, por vezes, é certo, na brincadeira, como dois cachorros arruçados, sacudindo-se e rostilhando-se, com arreganho, de vontade, quase sempre por teimas e apostas. Contudo, à semelhança das fitas americanas, na panc··adaria, acabavam sempre amigos, cada vez mais amigos, de mãos dadas - O. K.!
De cada um dos nomes, por combinação, tinham tirado o seu apelido e, se, por acaso, de manhã se esmurravam, no jogo da bilharda, ao meio-dia negociavam as pazes, para à tarde voltarem lado a lado, numa escapada até à doca, a ver o barco da «carreira» ou a mergulhar como marraxos, à porfia, nos domingos de verão, com o mar calmo e tentador, no feitiço das águas verde-azuladas, em chamariz embalado, sem pausas nem canseiras, abrindo sulcos de espuma prateada, à passagem dos grandes paquetes, ao largo, felizes e empenachados, a estremecer os ares e os corações, na saudação a terra, num alvoroço de sonhos e de esperanças adormecidas.
- Vito!
- Varito!
- Que chatice! Hoje apanhei por alma da caixa velha!
- Por quê?
- Virei a cesta do mestre, com o almoço, e ficou tudo em papas...
- Amanha-te! Ontem, por menos, também levei p'la medida grande... Ainda tenho os ossos a doer... Repara nestes vergões…
- Má canalha, a mestrança... Só eles podem rir e roubar... cães danados...
- Varito!
- Vito!
- Deixa lá! Um raio nos parta! Mas um dia... um dia… ainda havemos de ser gente...
- Pois! De barba e bigode... como os demais...
- Nada! Gente de bagaço e de nome...
- Dois cartolas... de luvas e charuto?
- Ainda havemos de construir um barco que há de dar que falar…
- E que vamos fazer com o barco?
- Fugir... fugir a tudo isto... às aparas... aos cachações... à pouca sorte…
- Ena que maravilha...
- Combinado?
-Oh laricas! Combinado...
E, assim, a ideia germinou, com raízes fundas, na alma dos dois criançolas, dos doze aos quinze, dos dezoito aos vinte, na alegria dos primeiros garetos, a ocultas; depois, já homens, na flor da idade, na tortura dos escassos cobres roubados ao fumo e polidos nos dedos, demoradamente, ao calor de um grande sonho, em fornalha acesa.
Trabalhavam agora juntos, de sociedade, para os lados de Santa Clara, ao canto da Vila Nova, mais perto do mar e da pouca sorte. Era o destino e o sonho que os aproximava. Mas tudo ia de mal a pior, com a crise e a pouca bossa, que tinham para a sujeição da porta aberta, a aturar as impertinências e caturrices deste e daquele, de parentes e aderentes, se é que a clientela, como vespa fora do enxame, chegasse e bastasse - um, conservando-se solteiro, na retranca, a ver as modas, o outro, entalado na esparrela, com mulher e filho a sustentar, já às trelas com a caspa das dívidas, na desilusão dos bem-casados.
Apenas restava um recurso, somente, como ao náufrago, a tábua da esperança, emergindo, num anseio alto e distante, quase inacessível.
- Já temos coisa que chegue para a madeira...
- Mãos à obra e boca calada... que pela boca morre o peixe...
- Pois! É preciso que ninguém pense nem sonhe...
No telheiro esburacado, de esguelha para o calhau, começou o trabalho, pela calada, numa decisão explosiva, misteriosamente.
Temerosos e agigantados, pela tarefa, poucas horas restavam para comer e dormir, num silêncio entrecortado, amiúde, de suspiros, a traduzir os ímpetos e bramidos do Mar, em cachoeira solta, subjugando a terra e as almas, num domínio absoluto. No entanto, o sonho martelava-lhes o miolo, teimoso, persistente, a fogo.
Faltava-lhes tudo e tudo se tornava preciso estudar e prever, tudo. Tirar e confrontar medidas, fazer e refazer contas e cálculos, escolher e regatear madeiras, procurando do barato, fugindo a um nó, revolvendo pranchas e vigas, pelos picadeiros rafados, tirando mo1des, improvisando ferramentas, imaginando as coisas, resolvendo tudo pelo melhor...
Um e o outro molhavam o dedo, a meio beiço, sequiosos, a tratos com folhas e rascunhos, excitados, passando das tabelas aos preços, tanto por pé, tanto por chaprão, vivendo em silêncio o gemido fundo da serra, puxada do peito, nas madeiras rijas, no recorte de moldes e talas, sem um assobio, sem uma fala, sucintos, entre a ambição e a realidade, num mundo imenso de esforços, canseiras e angústias, silenciosas e recalcadas... Tudo tão difícil, tão caro, tão doloroso, e ao mesmo tempo, tão belo, naquela singeleza, nascendo do nada, de meia dúzia de tábuas afeiçoadas, na força do querer!
- O cavername - sua estrutura - linha de flutuação - a estabilidade - condições de navegabilidade...
Um bico-de-obra, a resolver! Não havia dinheiro para motores, nem para óleos, como o outro do jeep-anfíbio ou lá como era a sua graça.
Gaita de vida! Apenas lhes restava, como no tempo das índias, a vela e o vento, o vento e as estrelas…
Os de casa encolhiam os ombros, alheios à maneia, com desprezo, na indiferença da pobreza pelo que não dá pão.
- Lenha p'ró lume! Cada doido com a sua mania...
-Pois, alevá! Podia-lhes dar para pior…
- Gastos de dinheiro! Gastos de dinheiro... Bem mal-empregado...
Somente o sonho porfiava teimoso, superior às dificuldades, às fraquezas repentinas e aos esmorecimentos passageiros, no impulso da vontade.
A princípio, entre tacos e amarrilhos, aquilo não tinha forma definida. Tanto podia vir a ser, à primeira vista, um berço sem pés como um caixão da Santa Casa, na crueza do refugo da caridade, sem forra. E a mãe de um deles, assarapantada, dando de cara com o mostrengo, de súbito, até ameaçou estourá-lo a golpes de machado, reduzindo o sonho a cinzas, debaixo da panela, com todo o meu agouro. Cruzes, mafarrico, para o ira-mar!
Mas, por fim, de serão para serão, de semana para semana, a avantesma começou a crescer, jeitosa, a olhos vistos, equilibrada, nem bicho de carne e osso, cheio de harmonia e graça, obra de calafates feitos, da proa à popa, da quilha ao costado, do leme ao mastro…
Agora as marteladas eram mais vagarosas, abafadas quase a medo, nos últimos trabalhos de aparelhamento, como quem receia ferir alguém na alma, despertar de um sonho que apenas se sonha uma vez...
Podia-se ver, então, às vistas e às claras! Um barco, sem lhe pôr nem tirar, lindo, lindo, belo, tão soberbo que seria pecado condená-lo à babugem da pescaria, em tresanda de escamas, engodo, redes e guelras, cheirando a podre...
- A pintura, Victor, tem que meter verde e vermelho...
- Claro! A cor da nossa bandeira. Mesmo longe não a podemos esquecer...
E, com as primeiras pinceladas, o sonho foi subindo as escadas do delírio, no amassar das tintas, na escolha das cores, do nome, do batismo. Uma enfiada de nomes, de cores, de ideias, em tropel, no arco-íris das almas.
«Senhora de Fátima». «Santo Cristo». «S. José». «Andorinha». «Aventureiros». «Mar Alto»...
- «Victor Manuel»! O teu nome: o nome de um rei...
- Tolice! O barco é dos dois e não meu. Outro... outro...
- Então «Senhora de Fátima». Bem precisamos do seu auxílio...
- Começamos o barco a 19 de março... no dia de S. José e «S. José» se há de chamar...
- Sei lá! Às vezes tudo depende apenas do destino... da escolha de um nome...
Dias depois, com o lançamento do «S. José» à água, entre receios e esperanças, de mistura com a curiosidade de uns e os remoques de outros, voltava-se para os dois a primeira página de uma história maravilhosa.
- Belo barco!
- E feito por dois badamecos...
- Não tarda vendido ou encalhado...
- Quanto custa o barco?
- O barco não se vende nem se aluga…
- E se calhar é por conta dos donos…
- É questão d'ele cantar... que a coisa muda com'ó tempo...
- Não há dinheiro que o pague...
- Pois, home'! Os rapazes parecem atrevidos p'rá idade...
- Atrevido será você e de resto guarde o seu dinheiro… que o dinheiro, só em si, nunca enriqueceu ninguém...
No meio dos despiques e despeitos, mais que nunca, convinha não levantar suspeitas, a menor desconfiança. Boca calada e olho aberto, ao correr do quarteirão - lua em pé, marinheiro deitado.
- Já agora pouco falta... Mais meia dúzia de dias e pronto…
- Pschiu! Que o segredo é a alma do negócio...
- Mas p'ra que diabo querem vocês o barco, com tanta necessidade·à nossa volta?
- Sim! Que raio de negócio é este, que nunca mais se desengata?
E a família, presa à ideia da venda, via-os cada vez mais apegados ao barco, a bordejar e a pescar, renitentes ao conselho. Desconsolados, no comer, esquecidos à hora da ceia, num esmorecimento sombrio, tolo, sem fácil compreensão. Um, agarrado às crianças apertando-as fora do costume, contra o peito; o outro, sem fala seguida, cismado, talvez nos primeiros embeiçamentos da idade, de cabeça no ar…
- Nada de pressas, filho... Vê onde te enforcas e lembra-te que tens mãe viúva e duas irmãs solteiras, a sustentar…
Para mal, acrescia a tineta do barco, com o enguiço da pesca, quase todas as madrugadas fincados no mar, a oficina de porta fechada, ao abandono.
- Que vida vai ser a nossa, homem? Que tristeza é esta... que não comes nem bebes?
- Já temos uma boa oferta para o barco… sete contos… qualquer dia desata-se o negócio… e ficas descansada…

Naquela madrugada de ,fins de julho saíram mais cedo do que o costume, movendo-se como bonecos, de corda emperrada, olhando, à volta, com o ar vago e idiota dos fracos de juízo. E a demora foi como nunca - a manhã, a tarde, o dia inteiro...
Com o sobressalto das mulheres, não adivinhando coisa boa, rápido, começou o alarido, na vizinhança, a quebrar a sonolência do· domingo, em pasmaceira geral.
Nem um, nem outro e do barco nem sinal, na amarra, nem rasto de vela, ao largo.
- P'la certa estão p’r’aí co’ bom tempo... à, vida airada...
- Com um mar destes não há riscos nem desastres...
Chegou-se ao outro dia, entre prantos e fanicos, e nada!
Na aflição, de corações arroxados, foi dada busca às roupas, às gavetas, à papelosa de cada um, tudo a confirmar a notícia, de boca em boca:
- Fugiram, os malucos! Alta noite... nem aqueceram cama...
- Mas como? P'ra onde?
- Ora, como? No barco com malas e passadio...
- A estas horas já vão longe. Ninguém os finta...
- E ninguém maldou de nada?
- Qual maldou nem meio-maldou! Souberam-na fazer bem feita e pela calada... Tudo de combinação...
- Loucos... loucos varridos! Tudo resultado das fitas e dos cinemas...
- Mas diz que deixaram uma carta…um bilhete... fazendo as despedidas…
- Qual carta, qual carapuça! Safaram-se como dois melros sem pio... e só esta manhã é que apareceu a carta debaixo da porta...
- O caso começa a cheirar a marosca, ..
- Claro! São cousas que não se fazem debaixo de um cesto e sem a capa de alguém...
- Pobres famílias!
- Coitado de quem os tem...
O alarme chegou depressa às autoridades, passou rápido pelos telefones, retiniu ligeiro por toda a linha da costa, soltou lesto ao cabo submarino, à navegação do alto mar.
Fez-se o varejo a todos os portos, de norte a sul, ouvindo a guarda fiscal, sondando os pescadores, avisando os vigias das baleias.
Saiu a lancha da Capitania, num papejo resfolgado, teimosa, da Nordela à Galera, a bater todos os quadrantes, em jogo de escondidas, cá e lá.
Por fim, redobrado o enervamento, o patrulha da Marinha, o «Santiago», recebeu ordem de largar a toda a força, entre rolos de fumo negro, de mau agouro, no encalço dos melros, cruzando o mar, a perder de vista, seguindo mil rumos, bêbado com tonturas, descaindo aqui e ali, tombando além.
Escoou-se a semana a fio, inteirinha, contada pelos dedos. Sete dias e sete noites de tortura - e nada! Nada que· trouxesse um sinal de vida, nada que calasse a choradeira desabalada, sem conforto possível, num remoer de recordações lastimosas e de presságios amargos, no campo da dúvida, da incerteza, do mistério.
Mistério ou loucura, à má sina! Os dois sempre andaram com a mania da emigração, encasquilhada ao casco; fosse para onde fosse, tentando passaporte para a Venezuela, metendo papéis e empanhocas por agências e agentes, no propósito de procurar o futuro na Africa ou no Brasil, em Curaçau ou na América, no Novo Mundo...
- Boas cabeças, não resta dúvidas...
- A estas horas devem estar em boa companhia… no fundo do mar...
- Às vezes é o destino que nasce com as pessoas.
- Pois! O que tem de ser traz muita força…
- Podem vestir-se de preto, minhas filhas, e encomendar-lhes as almas...
E a carta, deixada: pelo Victor à mulher, corria de mão em mão, ensebada e desvanecida, pelo orvalho das lágrimas:
«Querida Alexandrina. Escrevo-te estas amargas notícias para ti e para toda a família. É para ficarem descansadas com o meu desaparecimento. Alexandrina, sabes que somos casados e que temos filhos e que é preciso ganhar o sustento e o futuro deles e o nosso também. Por isso pensei em fazer junto com o Evaristo este barco porque de contrário seria totalmente impossível ir para qualquer parte do estrangeiro. Assim te embacei a ti e a toda a família por que se fosse do teu conhecimento tu não me deixavas partir nestas condições. Peço-te que não te aflijas porque tudo é o que Deus quer e com o seu auxílio havemos de chegar à terra do destino.
Também te peço que digas ao meu padrinho que, se tiver sorte de lá chegar, lhe pagarei o que lhe devo. É por isso que me sujeito a trabalhar com o auxílio de Deus.
Alexandrina, eu devo no Banco Português do Atlântico a quantia de dois mil escudos que foi seiscentos para a fiança e os 1.400$00 divididos por mim e pelo Evaristo.
Alexandrina, quando eu chegar a terra, mandarei um telegrama, e se por acaso não tiveres notícias minhas dentro de dois meses é porque o mundo se acabou para a gente.
Deste teu marido que parte com muitas saudades tuas e dos nossos filhos e família - Victor Manuel Caetano.»
Mas, aparece-não-aparece, aos rebates do coração, com o decorrer dos dias, as esperanças iam desfalecendo, entre rezas e soluços num desfile de promessas sem consistência e de desenganos sem remissão, no mesmo soletrar.
«Alexandrina: quando eu chegar a terra mandarei um telegrama. E, se por acaso não tiveres notícias minhas dentro de dois meses… é porque o mundo se acabou para a gente…»
Mais brilhantes que os reflexos da estrela d'alva, em dealbar de abril, mais tentadoras que as cintilâncias do sete-estrelo de ouro, num conto de fadas, em céu azul, listrado de branco, com suas sete tiras vermelhas, brilhavam as quarenta e oito estrelas do sonho, em fileiras cerradas, luminosas, atraindo, chamando, fascinando…
E, como em jogo infantil, a lápis de cor, partindo do verde e do vermelho, entre quinas e castelos dourados, todo o céu, na sua amplidão insondável, desdobrava-se e dividia-se em quartéis e bandeiras, com renques de estrelas, em grupos seguidos, de 6 X 8, contínuos, cintilantes, sempre de 6 X 8, num quebra cabeças de entontecer…
A América! O Novo Mundo! Grandes cidades, docas, estaleiros, barcos, aviões, arranha-céus; dólares... muitos dólares! Um maná constante de dólares, como dobadoura de ouro, sem parar, com  uma chuva de estrelas, naquelas noites de agosto, na imensidade da abóbada azul, sem mácula e sem nuvens.
- Oh, yes!
- E, depois, as dívidas pagas... a vida direita...
- E ao cabo d'anos o regresso... a ilha a chamar... a dizer adeus…
Agora, no embalo das ondas, a aventura era uma realidade, incrível, pasmosa, a muitas milhas, a coberto da bruma, ao rolar das vagas e dos dias, insistentes, num desdobrar de pensamentos e sombras, na mesma moldura, no mesmo horizonte, igual e ilimitado.
A terra distante, a ilha esfumada, o ·nevoeiro da saudade e do remorso, o mar sem fim e sem descanso, o sol escaldante e impiedoso, as estrelas cismadoras e silenciosas, o céu escuro, por fim sem estrelas, sem azul, sem bandeiras, embaciado, negro, tão longe e tão perto...
O «S. José», no delírio da fome e da sede, era de novo um sonho sem forma definida - um berço sem pés… um caixão sem tampa, no abismo do Oceano, poderoso e esmagador,·semelhante a um realejo vazio, movediço, estranho, sem alma nem corda, prestes a esfrangalhar-se nas garras da Morte - um sonho de quem se mata pela primeira mulher, no desconhecimento do fruto proibido.
De tudo apenas restava um desejo imenso de paz e de perdão, a presença do céu, a lembrança da ilha, o fim - a ilha e Deus, Deus e a terra perdida, o Novo Mundo…
- Vito!
- Varito!
- Que loucura, a nossa!
- Perdoa-me se fui o culpado...
- Afinal tudo é o que Deus quer…

Um mês volvido, no último de agosto, quando menos. se esperava, a  Emissora sacudia as Ilhas e as almas, com a boa-nova, cruzada nos fios, nem repique de sino, em dia de Aleluia.
Depois de vinte e sete dias de mar, debaixo de forte temporal, já sem água e sem pão, no rumo da América e a Noroeste das Bermudas, um cargueiro recolhia a bordo os dois tripulantes do pequeno barco, esmaltado a verde e vermelho - as cores do sonho e do sangue, na loucura de quem tudo dá, em desafio, à vida e à morte.
- Oh, yes!
- All rigth!
Os aventureiros estavam vivos e sãos, a salvo! As lágrima, agora, em casa de Evaristo Gaspar e de Victor Manuel, com o mulherio reunido, a ponta do avental ao canto dos olhos, eram lágrimas de alegria, cálidas e confortantes como bálsamo, em ferida aberta.
«Alexandrina, quando eu chegar a terra mandarei um telegrama...»
E no domingo, 2 de setembro, com o telegrama prometido, aumentou a explosão e o alvoroço, em meia dúzia de palavras, na confirmação:
«Orcharchapell - Lisboa Rádio
Estamos América bens- Victor»
De seguida começaram a acumular-se maços de jornais e cartas, retratos e notícias, da viagem e da chegada, de bandeira em arco, num estendal de miudezas e pormenores escrevinhados pelos repórteres americanos e passados a linguagem de se entender:
«Trouxémos 45 quilos de batatas, mas por infelicidade, apodreceram mais de metade e foi esta uma das razões porque ficamos sem comida antes do tempo que prevíamos para chegar à América; 11 quilos de farinha, um fogareiro a petróleo, 20 latas de conserva, 100 litros de água, 4 quilos de pão, um litro de azeite, um litro de vinagre, quilo e meio de açúcar, um quilo de café e 20 litros de petróleo. O pão criou bolor e estragou-se...»
- Tudo muito bem preparado e pensado, à socapa!
«Enquanto ao barco aguentou-se bem. Nós tínhamos feito um lastro de 1000 quilos de pedras, razão porque resistiu sem novidade... »
E os jornais corriam de casa em casa, com empenho, no relato, com a história esmiuçada, pela boca dos próprios:
Depois de partirmos de S. Miguel, estivemos 27 dias a bordo do nosso barco; depois faltou-nos a comida e a água e tivemos de pedir socorro a um vapor que passava a quem pedimos comidas. Mas quando a gente encostamos ao vapor·partiu-se a roda da proa e rebentaram as espias. Desta maneira não podíamos seguir viagem. Então o capitão mandou-nos subir e tivemos que abandonar o nosso barco e metê-lo no fundo. Foi como quem nos cortasse o coração, ver ir por água abaixo o fruto do nosso trabalho de tantos meses, mas não havia nada a fazer. Só conseguimos salvar as malas da roupa e a bandeira portuguesa. O calendário onde todos os dias apontávamos as nossas impressões de viagem também foi para o fundo do mar…»
- Parece incrível!
- Que sorte, a dos felizardos!
- E que cabeças, tudo tão bem arrematado e bem planeado...
- Pois! Quem havera de dizer...

E, como nas fitas, a América, grande e acolhedora, à semelhança da sua estátua, recebeu os dois aventureiros, com uma chuva de dólares num clamor - de facho aceso e de braços abertos!

Manuel Ferreira, «O Barco e o Sonho», revista Açória n.º 1, 1958.
(Fonte utilizada: Antologia Panorâmica do Conto Açoriano – séculos XIX e XX,
João de Melo, Lisboa, Vega Editora, julho de 1978)






AÇÓRIA. Fascículo de Cultura e Arte. Organização de Jacinto Soares de Albergaria.(Tipografia Insular, Lda.).  Ponta Delgada. 1958-1959. 16x23,5 cm. 2 números. B

Publicação composta por apenas dois números, da qual destacamos alguns dos artigos: Antero e Mihail Eminescu, por Ruy Galvão de Carvalho; O Barco e o sonho, por Manuel Ferreira, Poema de Armando Côrtes-Rodrigues; Cinema — Linguagem Universal, por Fernando Lima, O Conceito de Tradição em Teófilo, por Jacinto Soares de Albergaria, etc.

Nela colaboraram ainda: Otília Frayão, José Enes, Dias de Melo, José Barbosa, Aníbal Cymbron Barbosa, Valério Florense, Eduíno de Jesus, Carneiro da Costa, entre outros.
https://in-libris.com/products/acoria

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MANUEL FERREIRA – O HOMEM E A OBRA

[…] Manuel Ferreira o jornalista, Manuel Ferreira o poeta, Manuel Ferreira o escritor, Manuel Ferreira o investigador histórico, Manuel Ferreira o autonomista convicto.
Desde muito cedo, ainda estudante no então Liceu de Ponta Delgada, Manuel Ferreira manifestou um profundo interesse pela escrita, obtendo então, vários prémios nos Jogos Florais. No ano lectivo de 1935-1936, foi um dos fundadores e chefe de redacção do jornal académico Arco –Íris, onde prestou homenagem a diversos valores nacionais e reacendeu uma entusiástica campanha em prol da construção de um monumento ao poeta das Odes Modernas, em Ponta Delgada.
Após concluir o curso geral do Liceu, Manuel Ferreira ingressou, no então, Serviços Municipalizados de Abastecimento de Água da Câmara Municipal de Ponta Delgada, chegando a chefe daqueles serviços. Mas, apesar das exigências da sua vida profissional, assim como, da orientação de uma exploração agro-pecuária, Manuel Ferreira nunca deixou de se interessar pelo jornalismo.
De Novembro de 1937 a Setembro de 1943 foi redactor e chefe de redacção do Correio dos Açores, e colaborou durante anos no então semanário Açoriano Oriental, de que também foi chefe de redacção, de Julho de 1963 a Outubro de 1965.
Reassumiu a chefia da redacção do Correio dos Açores em Dezembro de 1965 e aí se manteve até Maio de 1975, desenvolvendo e apoiando uma das mais acesas campanhas daquela década, a nível insular, nomeadamente na defesa do regime autonómico e dos interesses dos Açores, em particular da Ilha de S. Miguel, podendo considerar-se o principal impulsionador do terceiro movimento autonomista, na década que antecedeu o 25 de Abril e num período em que os próprios dirigentes e responsáveis administrativos quase descriam dos princípios e ideais da autonomia.
Na defesa da cultura e dos valores açorianos, numa persistente campanha jornalística, conseguiu que os dezanove Municípios dos Açores atribuíssem o honroso galardão de Cidadão Honorário dos Açores ao Cardeal Costa Nunes e ao cientista José Agostinho, e obteve do Município de Ponta Delgada a construção de um mausoléu condigno no Cemitério de S. Joaquim, para as cinzas do Padre Gaspar Frutuoso, há mais de trinta anos esquecido num jazigo particular.
Mesmo depois de abandonar o Correio dos Açores em 1975, o decano dos jornalistas açorianos não deixou o jornalismo e passa a colaborar com frequência no Açoriano Oriental continuando a tratar de temas de interesse regional com a lucidez, com a tenacidade e com a frontalidade que sempre o caracterizaram, seguindo sempre o lema que regeu e rege toda a sua vida: alto como as estrelas e livre como o vento. O seu ex-libris tem sido sempre a sua norma de vida, quer nos bons, quer nos maus momentos.
Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados, Senhora e Senhores Membros do Governo as agruras da vida têm sido uma presença quase constante na vida de Manuel Ferreira, as doenças, as 9 operações sucessivas, e pior que tudo, a morte do filho na flor da idade. Mas nada disto o derrotou, nem o derrota. Diríamos que lhe dão ainda mais força, mais força para investigar, mais força para escrever e mais força para lutar. E foi após a morte de seu filho, após o maior desgosto da sua vida que Manuel Ferreira, começou a sua grande actividade literária com a publicação do seu primeiro livro O Barco e o Sonho, em 1979, que representou um êxito sem precedentes no mundo ilhéu, com honras de autêntico best-seller açoriano - em dois meses foram vendidos cerca de 2 000 livros - e que serviu de tema ao telefilme de Zeca Medeiros com o mesmo nome, na RTP/Açores.
Manuel Ferreira, até à data, já publicou 32 livros, encontrando-se o 33.º livro já no prelo, a ser publicado muito brevemente, e que vem completar a trilogia da Simbologia do Açor, trilogia esta compostas pelas obras: A Simbologia do Açor na Heráldica dos Municípios Açorianos, publicada em 1986; Açores – Origens, Raízes e História, que foi publicada em 1999 e muito brevemente o terceiro volume desta trilogia O Açor Eterno.
São três obras que abordam a presença do Açor ao longo da nossa história açoriana, nos diversos ramos de actividade, nomeadamente nas áreas da heráldica militar e dos vários organismos corporativos, indústria, comércio, transportes e comunicações,  bancos e caixas económicas, associações recreativas, humanitárias e desportivas, filatelia, literatura, numismática, entre muitos outros, havendo também referências a sectores relacionados com o continente português, assim como, com as nossas comunidades de imigrantes dos Estados Unidos da América, do Canadá e do Brasil.
O Açor só aparece como elemento mágico, verdadeiro ícone e constante arma de combate, com a primeira e grande cruzada dos Autonomistas Micaelenses e com o triunfo da Autonomia Administrativa em 1895.
Manteve-se em lume brando, com uma ou outra erupção acidental, nas primeiras décadas do século passado, tendo Manuel Ferreira tentado reacender a chama nos anos setenta, enquanto chefe de redacção do Correio dos Açores.
Após o 25 de Abril intensificou-se o culto do símbolo por todos os lados e sectores. Nos últimos 30 anos surgiram cerca de 500 pequenas e grandes sociedades, algumas tiveram curta duração, com o Açor nos seus logótipos ou integrado no próprio nome empresarial.
O primeiro volume da trilogia: A Simbologia do Açor na Heráldica dos Municípios Açorianos, apresenta uma extensa e acidentada crónica sobre cada um dos vinte e quatro Municípios Açorianos - hoje reduzidos a 19 Municípios – numa luta heróica, de séculos de isolamento e incompreensão. Tendo sido criados vinte e quatro concelhos, cinco acabaram por ser extintos, no rescaldo da revolução liberal, nomeadamente a Vila de Água de Pau e a Vila das Capelas, em S. Miguel (1853); a Vila de São Sebastião na Ilha Terceira (1855); a Vila do Topo em S. Jorge (1855) e a Vila da Praia na ilha Graciosa (1867), tendo sido a justificação a «falta dos recursos e elementos necessários para ter administração regular».
A Simbologia do Açor constitui uma simbiose entre o documento histórico e a prosa expositiva do autor, tornando-o numa leitura agradável, coisa rara em livros de referência, como é o caso do presente livro. A Simbologia do Açor, não é unicamente um livro de palavras. É acima de tudo um livro de uma ideia. A ideia da identidade açoriana, demonstrada através da história e vivida ao longo dos séculos. Não é por acaso que a obra abre com a transcrição da carta de D. Afonso V a seu tio, o Infante D. Henrique, datada de 2 de Julho de 1439, concedendo-lhe licença para povoar, as então, sete ilhas dos Açores, o que significa que ainda as ilhas não eram conhecidas na sua totalidade e nem tão pouco alguma delas povoada, e já a identificação da sua unidade arquipelágica era feita através do nome Açores que, deste modo, as nomeava a todas sem a nenhuma dar nome próprio. Os nomes, pelo menos os actuais, viriam mais tarde, muitos deles mais ou menos fiéis às denominações das antigas cartografias catalã e maiorquina do mestre Angelino Dulcert e seus seguidores até Valseca.
Com a chegada dos primeiros colonos, e com a consequente e inevitável constituição de pequenos núcleos, criam-se os primeiros concelhos. É precisamente aqui que a unidade das ilhas se estabelece com base não nas desigualdades evidentes, quer de tamanho, quer de riqueza ou de importância existentes entre elas mas sim, na equalização da dignidade municipal que a todos e a cada um dos seus concelhos é concedida.
Manuel Ferreira apresenta-nos, aqui nesta obra, uma pesquisa alargada dos diversos símbolos heráldicos dos então, 24 Municípios Açorianos e a sua bizarra e curiosa evolução até aos nossos dias.
O segundo volume desta trilogia: Açores: Origens, Raízes e História, contém mais de 500 reproduções fotográficas, a maior parte delas encontram-se em cores fidedignas, abrangendo os séculos XIX e XX. Nesta obra, podemos constatar que o Açor aparece por tudo que é lado e em mil e uma estilizações. Aparece nas acções e impressos de banco, montepios, caixas económicas; flutua nas bandeiras de vários navios das marinhas de guerra, mercante, de pesca ou de recreio; circula em dezenas de capas de livros, jornais, revistas e ex-libris; estampa-se em cerca de 20 brasões e estandartes militares, quer sejam do Exército, da Marinha ou da Aviação; enobrece-se no pincel de artistas como Roque Gameiro, Alonso Campos, Jorge Colaço, Tomaz Borba Vieira ou Domingos Rebelo, etc, etc.
O terceiro volume da trilogia O Açor Eterno, aguardaremos mais um mês para podermos ter o prazer de desfrutá-lo.
Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Deputados, Senhora e Senhores Membros do Governo, entre a publicação de O Barco e o Sonho, seu primeiro livro e a de O Açor Eterno, seu 33.º livro, Manuel Ferreira ofereceu aos leitores uma viagem no tempo, dando-lhes a conhecer importantes pilares do nosso passado, como por exemplo, no domínio da Política com as obras: Vitorino Nemésio e a Sapateia Açoriana – Loucura ou Traição, Pedras para o Templo; no domínio da História com: Açores – Armas e Barões Assinalados, Penhascos Dourados, O Ilhéu da Vila, A Ilustre Marquesa de Ponta Delgada, Ponta Delgada – a História e o Armorial, O Explorador Micaelense – Roberto Ivens, Galeria Ressuscitada, A Simbologia do Açor na Heráldica dos Municípios Açorianos, Açores: Origens, Raízes e História, Antero Imortal; da Arte com as obras: Pedras que Falam – A Ermida de Nossa Senhora dos Remédios da Lagoa, Manuel António de Vasconcelos – O Homem e o Artista, O Caricaturista Micaelense – Augusto Cabral; no domínio da Etnografia Regional com: A Viola dos dois Corações; do Social com a obra: Ribeira Chã – A Via Sacra de um Povo, de um Padre e de uma Igreja; no domínio da Economia, do Comércio e da Indústria com as obras: Cultura da /Vinha em Santa Maria e S. Miguel, Os Cem Anos da Melo Abreu, Açoriana de Seguros – Cem Anos, Turismo em S. Miguel - Cem Anos; do Jornalismo: Manuel António de Vasconcelos – O Primeiro Jornalista Micaelense e o Açoriano Oriental; no domínio da Literatura temos as obras: O Segredo das Almas Cativas, O Morro e o Gigante e O Barco e o Sonho, entre outras. Estes dois últimos livros constituem uma obra-prima, um retrato fiel dos costumes, do modo de ser, de estar e de sentir do homem e da mulher açorianos, antes do desabrochar da democracia. Apesar das diferenças formais existentes, os livros de Manuel Ferreira não deixam de revelar uma notável unidade de pensamento, de objectivo e até mesmo de temática. Todos eles têm como cenário estas ilhas e como intenção o louvor e a valorização dos Açores, o dar a conhecer aos açorianos quem na realidade são, mas também, o que não devem e o que devem querer.
É de salientar que as capas de todos os livros de Manuel Ferreira são da autoria do pintor Tomás Borba Vieira.
Manuel Ferreira é também um poeta. Para além dos inúmeros poemas que escreveu mas que nunca publicou, temos o poema Carta de Longe. Há semelhança de Armando Côrtes-Rodrigues e de Carreiro da Costa, Manuel Ferreira quis também nos presentear com uma Carta de Longe. Manuel Ferreira conseguiu transpor para o papel todo o dramatismo, todo o sofrimento, toda a tristeza e toda a saudade que sente um imigrante, em terras longínquas. […]

Maria José Duarte, Horta, Assembleia Legislativa dos Açores, 22-02-2006
http://base.alra.pt:82/Doc_Intervencao/I466.pdf
http://base.alra.pt:82/Diario/VIII32.pdf





             

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Não creio que na literatura atual haja nada de radicalmente novo (Harold Bloom)


Foto
El crítico literario Harold Bloom en su casa de New Haven.
PASCAL PERICH

“Todos los días recibo correos con el mismo lamento: ‘Leemos basura”

A sus casi 85 años, Harold Bloom sigue siendo un coloso entre los críticos





A sus casi 85 años, Harold Bloomsigue siendo un coloso entre los críticos, aún pleno de la floreciente excentricidad y del genio legendario que lo ha erigido en uno de los pocos eruditos célebres de nuestro tiempo. A pesar de su mala salud de hierro, acaba de entregar a sus editores un libro sobre lo sublime en Estados Unidos que se publicará en primavera: The Daemon Knows: Literacy, Greatness and the American Sublime (El daimon sabe: alfabetización, grandeza y sublimidad en Estados Unidos) que coincidirá en España con la edición de Poetas y poesías (Páginas de Espuma). Está enfrascado también en otro ensayo sobre Shakespeare, tema de uno de sus libros más renovadores, Shakespeare, la invención de lo humano.
Bloom, “secularista con inclinaciones gnósticas”, persiste en el asedio permanente al modo en que la influencia se ejerce en la literatura de imaginación, y la idea de que bulle entre el conflicto y la tensión. Mucho más que dispuesto a comentar el estado de la crítica literaria actual que su propia obra, recibió a EL PAÍS en su hogar en New Haven, Connecticut.


"No creo que en la literatura actual haya nada radicalmente nuevo"

La presencia de Bloom ha sacudido profundamente las torres de la academia, a pesar de haber cumplido ya su sexagésimo año en la Universidad de Yale, en su “departamento de una sola persona”. “Dejé el departamento de Literatura Inglesa y me convertí en profesor Sterling del departamento Bloom en 1976”, recuerda. Desde esa atalaya ha levantado una fortaleza en torno a El canon occidental, una de sus obras más influyentes, contra los usurpadores de la primacía estética: críticos marxistas, feministas, historicistas de nuevo cuño, todo aquel que lea un poema como documento social o mezcle política o ideología con la literatura. Denomina “escuela del resentimiento” a esta lectura tendenciosa, y a sus practicantes, pues sostiene que la lectura “cuidadosa y escrupulosa, desinteresada” es un arte que agoniza.
Jeanne, su esposa, estaba el día del encuentro en la cocina y Bloom se sentó ante una gran mesa de madera, un tanto quebradizo, con una taza infantil de agua y el andador a su vera.
A la pregunta sobre la erosión de la lengua en la era de Internet, que redefine a los reseñistas y redactores de bitácoras autodenominados críticos, responde: “La mayoría de los que se llaman a sí mismos poetas sólo son versificadores. Y la mayoría de los que se llaman a sí mismos críticos no lo son de ningún modo, se trata de periodistas, o de ideólogos o propagandistas”. Bloom cita el doctor Johnson: “Sigue siendo el mayor crítico literario de Occidente y mi héroe: la función de la verdadera crítica es enaltecer la mera opinión en conocimiento. No me interesa la gente que ostenta una opinión sin conocimiento”.
¿Y qué hace a un verdadero crítico? “Un profundo conocimiento de la filología, del griego y del latín, del provenzal y del hebreo, además de las lenguas romances, y la historia del idioma inglés. La gente ignora estas cosas, y no parecen preocuparles. Le digo a mis alumnos que se aíslen cuando un poema o un pasaje de prosa los encuentre o los enaltezca hasta el conocimiento, y lean en voz alta, canten hasta que lo posean, lo hagan suyo de memoria. Ese es el verdadero conocimiento en el campo de la literatura. La memoria es en verdad la madre de las musas. Nunca he escrito un poema porque no puedo olvidar que yo mismo soy una encarnación de la memoria”.
"Soy un profesor, y estoy muy agotado, pero no voy a retirarme”
Las personas parecen estar buscando heraldos de lo nuevo, comisarios del conocimiento verdadero, pero el comercio parece preferir otra cosa, ¿estamos viviendo el ocaso de las humanidades, de los periódicos y las revistas serias? “Todos los días recibo correos electrónicos de personas de todo el mundo y su lamento es el mismo: ‘leemos basura”. ¿Así que un crítico verdadero es una suerte de profeta y acaso asistamos a una inminente edad en que los profetas vuelvan? “Los buenos lectores saben por instinto quién es y quién no es un crítico. Hay millones de personas que me llaman maestro, lo cual es una lección de humildad, pero comprendo lo que quieren decir. Para mí la enseñanza, la lectura y la escritura son tres nombres de una sola actividad. Soy un profesor, y estoy muy agotado, pero no voy a retirarme. Bloom se levanta una vez más y se excusa, arrastrando los pies por el pasillo en su andador hasta el cuarto de baño: "Estoy sometido a diálisis", dice casi en tono de disculpa. Pregunto sobre el pensamiento mágico en la literatura: “Es una modalidad distinta de la poesía, pero es poesía. Lo más polémico que he dicho o escrito ofende a los ortodoxos de la fe, ya sean cristianos, musulmanes o judíos, y es que Yahveh, Jesús y Alá, son personajes literarios. Y por ello la noción de matar a la gente en nombre de un personaje literario es una obscenidad. Pero lo hacemos, eso es lo que está pasando en la actualidad sin cesar en Siria e Irak, en Palestina”.


En primavera se publicará en España su libro 'Poesía y poetas'

Sobre el estado de la literatura dice: “No me parece que en la literatura contemporánea, ya sea en inglés, en Estados Unidos, en español, catalán, francés, italiano, en las lenguas eslavas, haya nada radicalmente nuevo. No hay grandes poetas como Paul Valéry, Georg Trakl, Giuseppe Ungaretti y mi predilecto entre los españoles, Luis Cernuda, o novelistas como Marcel Proust, James Joyce, Franz Kafka y Beckett, el último de la gran estirpe. Borges era fascinante, pero no un creador”. ¿Y qué piensa de la obra de Bolaño, con el que mantuvo correspondencia? “Hay algo ahí, ya veremos. Tuvimos nuestras diferencias, aunque dijo que ejercí influencia sobre él. Algunos de los poetas sudamericanos son muy vigorosos, ése que es incluso mayor que yo, Nicanor Parra. Y Vallejo es un poeta notable. Y, por supuesto, Octavio Paz, un escritor muy vigoroso tanto en prosa como en verso, y un amigo muy querido”.





 






Não há nada de novo sob o sol da literatura?


A criação literária está hoje condenada à repetição? Faltam-nos grandes inovadores, como Joyce ou Kafka? Ou andam por aí e não os reconhecemos? Ou a própria ideia de novo como critério de avaliação estética não sobreviveu ao eclipse do modernismo? Aqui se conta como uma frase anódina de Harold Bloom provocou um debate animado.


Esgotado o tempo das vanguardas artísticas, já não devemos esperar, neste início do século XXI, que a criação literária nos traga algo de novo? A pergunta foi colocada pelo jornal espanhol El País a escritores, ensaístas, editores e livreiros a pretexto de uma declaração do crítico norte-americano Harold Bloom.
Entrevistado para o El País pela editora e tradutora Valerie Miles, o octogenário Bloom,  conhecido pela sua luta de décadas contra todas as tendências académicas que lhe pareçam ameaçar o primado do estético nos estudos literários, afirmou não ver hoje “nada de radicalmente novo” nas literaturas ocidentais.
Vinda de quem vem, a afirmação dificilmente se poderá considerar surpreendente. A obra mais célebre de Bloom, O Cânone Ocidental, é em boa medida a descrição de um progressivo enfraquecimento desse poder de criação literária que permite produzir obras verdadeiramente originais, uma chama que nesta “idade caótica”, para usar a expressão do crítico, só alguns poucos homens de génio teriam conseguido trazer ainda acesa do seu enfrentamento com os gigantes da tradição literária.
“Não me parece que na literatura contemporânea, seja em inglês, [designadamente] nos Estados Unidos, em espanhol, catalão, francês, italiano ou nas línguas eslavas, haja nada de radicalmente novo”, disse Bloom, acrescentando que já não há “grandes poetas” como Paul Valéry, Georg Trakl, Giuseppe Ungaretti ou Luis Cernuda, nem ficcionistas como Marcel Proust, James Joyce, Franz Kafka, ou Samuel Beckett, que considera “o último da grande estirpe”.
O que poderia ter sido rapidamente esquecido como mais uma entre muitas declarações de Bloom de teor equivalente acabou, no entanto, por gerar um debate interessante, ao qual o PÚBLICO agora acrescenta as opiniões dos ensaístas Pedro Eiras, Luís Mourão, Abel Barros Baptista e Rosa Maria Martelo, e ainda a do editor Francisco Vale, da Relógio D’Água.
Eiras acha que a busca do novo se tornou gratuita e defende, sim, uma literatura “extrema”. Mourão quer vê-la centrada naquilo que o cinema e a televisão não podem fazer por ela: usar a palavra para pensar o mundo e encontrar um ritmo próprio para o habitar. Barros Baptista parece estar a perder um bocadinho a paciência para tanto novo autor que não leu nada de significativo e que acha que para escrever um romance basta pôr-se a “falar da vida”. Rosa Martelo pergunta-se o que sucederá ao cânone estritamente literário de Bloom se no futuro próximo a criação privilegiar “formas compósitas”, que associem a literatura a outras artes com a naturalidade que as tecnologias digitais hoje permitem. Francisco Vale acredita que a literatura ainda nos reserva “magníficas surpresas” e sugere que o problema, hoje, não é tanto os Ken Follet conviverem com os Thomas Pynchon, é começar a haver pouca gente que dê pela diferença.



Mesmo entre os inquiridos pelo El País, são poucos os que concordam com o crítico americano, mas nem todos os que discordam adiantam exemplos de autores que desmentiriam o seu diagnóstico. Entre os que o fazem, o escritor mais consensualmente destacado é o alemão W. G. Sebald (1944-2001), autor de Os Emigrantes ouAusterlitz. Já em Portugal, Pedro Eiras e Luís Mourão apontam o caso singular de Gonçalo M. Tavares.
A literatura quer-se extrema
Para Pedro Eiras, a doença actual da literatura, chamemos-lhe assim, é a sua “homogeneização a partir do cânone do romance” e, dentro do romance, em torno de um “realismo consensual e pacífico, de consumo fácil, que já não está a colocar questões”.
Assumindo que não tem a menor nostalgia das vanguardas, o ensaísta acha que “o novo é hoje uma aposta gratuita” e que “o que importa não é perguntar se um texto é novo, mas perguntar se é extremo”. Daí que critique Bloom por usar “uma linguagem que já não nos serve de nada”.
Os escritores que interessam a Eiras são esses “autores de textos extremos”, que “não estão ali para entreter ninguém, mas para fazer qualquer coisa de muito genuíno”. E para ser mais claro, dá o exemplo concreto de um autor português de hoje que lhe parece escapar tanto à repetição como à busca gratuita da novidade: Gonçalo M. Tavares. Referindo-se ao seu livro mais recente, Uma Menina Está Perdida no seu Século à Procura do Pai, nota que “tem personagens, acção, tempo e espaço” e “não é propriamente um romance desconstruído”, mas é “um texto que coloca perguntas a ele próprio e ao leitor”. Em Gonçalo M. Tavares, diz Pedro Eiras, “a máquina do romance não procura nem a novidade nem o entretenimento, está a colocar questões reais”.
Luís Mourão introduz outro aspecto da questão ao sublinhar que “a pergunta pelo novo não pode ser colocada do mesmo modo a uma literatura que teve quase a exclusividade da narrativa” e a uma outra que concorre “com o cinema, o vídeo e a televisão”.
Uma competição que obrigou a melhor literatura a especializar-se. Se nesta como em todas as épocas há “uma literatura light, mais comestível”, a que interessa a Mourão é “a que faz o que só ela pode fazer”, porque a literatura, diz, “ainda é a única arte que usa a palavra para pensar o mundo e, ao mesmo tempo, encontra um ritmo para estar no mundo”.
É pelo diverso modo como cada um dos autores articula estas duas dimensões que Mourão destaca Sebald, com “o seu ritmo lento e cumulativo e a forma de pensar a ele associada”, e Gonçalo M. Tavares, com “o seu ritmo rápido e o modo de pensar correspondente”. O ensaísta acha “um bocadinho irrelevante” saber se o que estes autores fazem “é novo”, mas observa que algumas das questões com as quais ambos se confrontam, como o Holocausto ou o exílio, “só se tornaram visíveis no nosso tempo, porque historicamente nos aconteceram a nós”.



Associando o primado do novo com o período do modernismo, Mourão nota que “nessa geração havia também uma ligação muito estreita entre os planos criativo e crítico”, com muitos autores, aliás, a assumir ambas as funções, uma situação que contrasta fortemente com a realidade actual: “a crítica quase desapareceu, o critério de avaliação tem mais a ver com as vendas e os prémios, e não há nenhum discurso crítico que defenda escolas ou princípios”.
Novidade e repetição
A Abel Barros Baptista parece natural que Bloom, que “leu a literatura moderna e coloca no centro do cânone o percurso histórico que leva ao modernismo”, ache que “o que há depois disso é repetição”. Mesmo hoje, diz, “a ideia de literatura que ainda sobrevive está muito baseada no novo” e “não aceitamos bem que uma literatura se faça através da repetição”. No entanto, se “os modernistas levaram à exaustão” essa busca do novo, Barros Baptista observa que mesmo nesse período havia, como houve sempre, “um vasto contingente de escritores” a engrossar as fileiras da repetição.
Mais do que a ausência do novo, o que o ensaísta lamenta é a “grande infantilidade” de boa parte da literatura actual. “Há muitos escritores infantis, impreparados, sem densidade, gente que fala da vida, mas como ninguém tem hoje vida para falar da vida, a vida de que falam é a que vêem na televisão”.
E ao contrário dos autores do passado, que eram geralmente leitores fortes, a maior parte dos escritores portugueses actuais “não leu Tolstoi ou Balzac”, acredita Abel Barros Baptista. “O romancista de hoje já não tem que mostrar que leu o Proust, e pode escrever um romance sobre deixar de fumar sem querer saber se alguém já o fez, e isso é uma vitória do modernismo”.
Este tempo em que “o comércio tomou conta de tudo” também não é propício ao surgimento do novo, argumenta, já que o novo tende a exigir mais do leitor, a “perturbar a transmissão” da obra, e o comércio “gosta de produtos que sejam iguais aos que já tiveram sucesso”. Não por acaso, “as livrarias on line são estruturadas na lógica do ‘quem gostou deste livro, também gosta destes’”, observa Barros Baptista, que nem sequer acredita que esta espécie de Weltliteratur nivelada por baixo possa servir de trampolim para leituras mais exigentes: “É como essa história de que jogar xadrez nos torna mais inteligentes; torna-nos mais inteligentes a jogar xadrez”.
Follet vs Pynchon



Tal como Luís Mourão, também o editor da Relógio D’Água, Francisco Vale, sublinha a “atracção” que hoje exerce sobre os criadores literários “a escrita para o cinema e a televisão”, e admite mesmo como “provável” que “Jane Austen, Hemingway, Scott Fitzgerald, Camilo e Eça estivessem hoje, se fossem vivos, a trabalhar nessas áreas e não em romance”.
O responsável da Relógio D’Água vê várias razões para que as “grandes obras literárias” tendam hoje a ser relativamente raras: da “perda do estatuto de referência cultural e política dos escritores, iniciada nos anos 60 do século XX”, à “dificuldade da crítica e dos leitores em distinguir os mais ou menos competentes fazedores de bestsellers, de Ken Follett a Dan Brown e David Nicholls, dos romancistas que provavelmente irão perdurar, como Cormac McCarthy, Foster Wallace, Jonathan Franzen, Thomas Pynchon, Zadie Smith e, talvez, Karl Ove Knausgård”.
Vale reconhece ainda que “a saturação dos caminhos já percorridos pela ficção, ao longo dos séculos, contém a ameaça da repetição”. Mas nota que há hoje outros factores que contribuem para aumentar a diversidade, como “a acção recíproca dos diversos géneros literários e artísticos”, muito presente na ficção actual, ou “a afirmação de literaturas como as africanas, que se alimentam de tradições orais e das experiências de emigração”.
Olhando para trás, o editor vê contextos sociais e políticos que, desde a Grécia de Péricles, se revelaram propícios à criação literária — e lembra “o teatro inglês do período isabelino, a literatura russa entre a libertação dos servos e a Revolução de 1905, a poesia romântica inglesa, o romance do Centro da Europa, de Kafka, Musil e Broch”, ou ainda “a criação literária nos Estados Unidos, em particular no Sul, nos anos 30 a 50 do século XX” —, mas também épocas de “asfixia criativa”, como as que se viveram “na U.R.S.S., apesar de Bulgákov e Vassili Grossman, na Alemanha nazi, na China das últimas décadas ou nos estados sujeitos a hierarquias religiosas muçulmanas”.
E é também por saber que há épocas e lugares mais favoráveis do que outros à criação literária que não se mostra catastrofista. Duvida que “estejamos perante um declínio da literatura” e não vê motivos para descrer que nos possam “aguardar magníficas surpresas”.
A obsessão da produtividade
Rosa Martelo concorda com Francisco Vale na convicção de que a triagem qualitativa das obras é hoje difícil e acha que a Universidade tem culpas nesse cartório. “A deificação da produtividade levada a cabo pelo capitalismo global também se faz sentir no plano das artes, literárias e não só, e na cultura”, diz. “Hoje, os autores de grande circulação não podem ignorar as lógicas do mercado, e mesmo quem estuda a literatura está sob os efeitos desta obsessão de produtividade”, o que, alerta, “gera em torno da criação literária uma espécie de linguajar constante, um ruído de fundo que nem sempre se traduz em muito que dizer”.
Como a generalidade dos inquiridos, a ensaísta também não duvida de que devemos em boa medida “às vanguardas históricas e à experimentação modernista” essa convicção de que “o valor estético tem a ver com a instauração do novo”. Mas acrescenta três ideias que podem ajudar a explicar por que é que, como sugere Barros Baptista, não conseguimos libertar-nos assim tão facilmente da forma mentis modernista.
A primeira é a de que “essas práticas do novo”, que passaram, por exemplo, pela “experimentação discursiva, a desagregação sintáctica ou a colagem”, se foram “tornando elas próprias canónicas e criando um gosto”. A segunda, que se liga com a anterior, foi desenvolvida pelo comparatista alemão Andreas Huyssen, que mostrou que nos anos 60 do século XX, “quando o pós-modernismo estava a emergir nos Estados Unidos, a Europa assistia a uma consolidação do modernismo”.



Em Portugal, “é só a partir dos anos 70 que se começa a pôr em causa essa ideia de novo”, diz Rosa Martelo, apontando as obras iniciais dos poetas Manuel António Pina e António Franco Alexandre como pioneiras da questionação irónica do novo. E mesmo assim, nota, ambos o fazem com “alguma ambivalência, como se estivessem a dizer: ‘Já não se pode escrever nada de novo, mas eu sou o primeiro a dizê-lo”.
A terceira ideia, a mais inquietante, resumiu-a o antropólogo Marc Augé na sua sugestão de que “a sobremodernidade é a transformação da modernidade em destino comum”. Isto é, interpreta Rosa Martelo, “a condição múltipla do sujeito, a evanescência das representações, aquilo que era o estilo dos modernistas, transformou-se na nossa vida quotidiana”. E a partir daí, diz, “ou a literatura representa isto, ou tenta contrapor-lhe alguma coisa”.
E o que se pode contrapor, pensa Rosa Martelo, talvez passe por novas sínteses que, sem prescindirem da autonomia estética conquistada pelo modernismo, mas também sem caírem na subordinação ideológica dos realismos sociais, “nos resgatem, pela autenticidade e singularidade discursivas, da mesmidade falsamente neutra e da  normalização”. Um caminho que, nestes tempos de “confluência entre palavra e imagem visual”, poderá vir a passar pela generalização de “novas formas compósitas” que “juntem a literatura com outras artes”, um cenário que, nota Rosa Martelo, “desestabilizaria a ideia bloomiana de cânone literário”.
Da Bíblia a Bloom
O inquérito do El País, conduzido pelo jornalista Winston Manrique Sabogal e publicado já no final de 2014, incluía, além dos testemunhos dos muitos entrevistados, dois textos de opinião, respectivamente assinados pelo argentino Alberto Manguel – o autor de Uma História da Leitura acha que é a própria frase de Bloom que nada traz de novo – e pelo escritor e ex-ministro da Cultura espanhol César Antonio Molina, que tende a concordar com o crítico americano, sugerindo que vivemos uma época de “intensidade ténue” e defendendo que não só “não há nada de radicalmente novo na criação literária”, como “provavelmente não voltará a haver”.
Manguel recua à Bíblia para lembrar que “em todas as épocas e culturas” há “vozes que se elevam”, como a de Bloom, para repetir a declaração do livro de Eclesiastes de que “não há nada de novo debaixo do sol”. Mas o seu argumento principal, que Luís Mourão e Rosa Martelo também enunciam doutros modos, é o de que a “ideia de novidade foi um conceito inventado pelos modernistas para justificar as suas experiências artísticas”.
Esse propósito de inovar, observa, não passaria pela cabeça de Cervantes ou pela de Shakespeare: o primeiro “imitou deliberadamente a novela pastoral e de cavalaria” e o segundo “foi buscar vários dos seus argumentos a autores italianos”. No entanto, acrescenta, há em ambos “um tom, uma mudança de ponto de vista, uma revisão das ideias consabidas, que os convertem em algo único e notável”.
E Manguel acredita, ao contrário de Bloom, que vários autores continuam hoje a ter sucesso nessa alquimia e “iluminam o nosso século, como Cervantes e Shakespeare iluminaram o deles”. Escritores como Cees Notebom, com os seus “ecos de Ibn Batttuta e de Diderot”, W. G. Sebald, com os seus “vestígios de Sir Thomas Browne e do [Heinrich] Heine prosador”, Enrique Vila-Matas, com o que herdou de Laurence Sterne, Ismail Kadaré, continuando “a tradição de Heródoto e Homero”, Cynthia Ozick, que “estudou a obra de Henry James”, ou Pascal Quignard, com a sua “dívida a Montaigne”.
Servindo-se de Dante, um autor especialmente amado por Bloom, para enviar uma última farpa ao crítico americano, Manguel lembra que o autor daDivina Comédia condenou ao Inferno os que “foram tristes” no “doce ar que do sol se alegra”. Isto é, parafraseia o argentino, “aqueles que não sabem reconhecer no mundo a felicidade do que é criado sob o sol do dia de hoje”.
Uma condenação a que talvez o próprio César Molina não escape, já que o ex-ministro acha que enfrentamos “o ocaso das humanidades” e cita Bloom para defender que, em matéria de literatura, estamos “cada vez mais atulhados de lixo”. Um cenário para o qual concorrem, diz, “a industrialização a que submetemos a criação literária” e o facto de ser hoje dominante a “ideia de diversão e entretenimento”.
A excepção Sebald
Uma ideia que vários inquiridos glosam é a de que o novo na literatura só é relevante se de algum modo reflectir a tradição relativamente à qual inova. Um dos que salientam este ponto – que, aliás, o próprio Bloom decerto subscreverá, já que dedicou mesmo um livro, A Angústia da Influência, a teorizar esse processo – é o romancista espanhol Javier Cercas. A literatura, diz o autor de Soldados de Salamina, “é como a matéria: não se cria nem se destrói, só se transforma”.
Se Cervantes, Shakespeare ou Kafka tivessem sido “radicalmente novos”, defende Cercas, “não seriam tão bons”. Enrique Vila-Matas está de acordo: “Uma obra nova só tem sentido se se inscrever numa tradição, mas só tem valor nessa tradição se — como acontece com Diderot face a Sterne, com Joyce a respeito de Homero, ou com Valeria Luiselli quanto a Beckett — nos oferecer uma variação profunda, que nos devolva transformada a obra-prima” que lhe serviu de ponto de partida.
É também este mesmo critério que leva o ficcionista colombiano Juan Gabriel Vásquez a apontar W. G. Sebald como um autor “absolutamente novo”, justamente porque consegue, “apoiando-se na tradição”, levar a literatura “a lugares onde ela nunca tinha estado”.
Se a excepcionalidade de Sebald parece reunir um amplo consenso, vários inquiridos citam outros escritores, de Vila-Matas ao norueguês Karl Ove Knausgård, de Claudio Magris ao recém-nobelizado Patrick Modiano, da poetisa Anne Carson ao romancista português António Lobo Antunes, referido ao El País por Claudio López de Lamadrid, do grupo Penguin Random House.
Um dos mais interessantes testemunhos recolhidos pelo diário espanhol vem de Antonio Ramírez, da livraria La Central, que procura perceber por que é que, “como leitores, temos a sensação de que a literatura da primeira metade do século XX possui uma densidade, uma complexidade e uma força” que, por comparação, faz com que “a literatura de décadas mais recentes pareça lânguida”. Uma explicação, sugere, é que “as convenções literárias vindas do século XIX estão a esgotar-se totalmente” e, por isso, “a literatura contemporânea só alcança intensidade quando está muito consciente da fragilidade do solo sobre o qual se apoia, quando sabe que atingiu o limite, interroga a sua própria condição e tenta tornar explícitas as regras do jogo”.
Mas Ramírez adianta uma explicação complementar, e que talvez tenha alguns pontos de contacto com essa reivindicação de uma literatura extrema formulada por Pedro Eiras: a de que a intensidade que outrora encontrávamos na ficção migrou, nas últimas décadas, para os “testemunhos da experiência inenarrável dos campos de extermínio no século XX”. Nesta perspectiva, os sucessores de Joyce e Kafka chamar-se-iam hoje Primo Levi ou Imre Kertesz, Varlan Shalamov ou Jorge Semprún.
23/01/2015 - 06:29