sexta-feira, 1 de abril de 2016

Herberto Helder póstumo



oh que beleza sem gramática, que ferocíssimo esplendor:
rosa encarnada pelo ar acima
que é funda curva absurda,
rosa ascendida acesa desde a terra desmanchada,
escrita sobre o papel estrito
— e que o papel arda
que a extrema flor do cacto suba entre folhas espessas e coroas de espinhos,
mas que seja enfim mais peremptória ainda
a rosa irreversível


Herberto Helder, Letra Aberta


*

Não tenho nenhuma lei nem regra
para desordenar um poema escrito
não tenho mais que o desejo de tocar-te
ó coisa inúmera que entretanto
além de tocar
conto e reconto
continuadamente
fome de dizer como nunca foi
acontecido
fora do seu desejo mesmo tu
ó tão funda tão fundada
substância do mundo:
pleno cheio
serias sobretudo
como um voo ou como um ovo


Herberto Helder, Letra Aberta


*

a morte é mesmo estranha:
morre-se todos os dias
e enquanto se morre pede-se uma esmola para matar a fome de outra vida,
e dão-nos pelo amor de Deus uma pequena moeda de nenhum país,
e não há ranhura onde a moeda entre, nem a ranhura de uma velha caixa de música, e no entanto estremeço
e falta-me o ar, sim sim
arrebatavam-me as músicas de J.S. Bach
no silêncio das naves através da catedral inteira,
vozes e vozes dos rapazes castrados
e de repente um baixo monstruoso,
e isto se Deus existisse mesmo, punhal fundo no músculo coração,
e depois quente chôro pela cara abaixo
- oh porque me abandonaste?
mas na verdade ninguém me abandonara


Herberto Helder, Letra Aberta. Porto, Porto Editora, 201


*




fico tão feliz quando vejo como os golfinhos são inteligentes
tão subtis no súbito entendimento das intenções segundas que temos em relação a eles
se lhes dessem a ler bons poemas maior proveito teriam aqueles que os escrevem
do que têem com A ou B
eu cá por mim estou certo que nenhum golfinho diria
a propósito da morte de Deus e da glória do poema onde morre
as palavras turvas que me transmitiram algumas bocas maometanas
uma dessas bocas foi a mesma que disse viva o profeta!
quando decretaram a morte de Salman Rushdie
por causa dos Poemas Satânicos
parecia Lisboa nas trevas católicas
mas não ele felizmente não estava à mão de matar
até aproveitou a confusão e mudou de mulher
e na Dinamarca para aquecer um pouco
a malta gozava fazendo caricaturas sacrílegas dos ayatolas
mais um pouco e salvava-se o mundo
Herberto Helder, Poemas Canhotos

*

de tal maneira no tempo se é que se enganam de tal maneira
sempre se enganam em qualquer coisa enganam-se
no tempo que pouco têm para morrer —
de tal maneira se enganam nas palavras que se enganam
na cabeça que têm
que a têm pouca —
e por isso quando metem os dedos na matéria
vê-se que a matéria não estava madura ainda —
que pressa é essa? é a de já lhes fugir janeiro e estarem ainda
em setembro ou outubro —
de que lhes valem as flores da época se trocam
rosas por margaridas silvestres?
de tal maneira os aromas nas narinas dos búfalos
e as borboletas de prata pousam
apenas em nomes vagos não em corolas ferozes
nas primaveras com grandes espaços entre palavras —
mas que procuram eles? nomes?
apenas nomes entre tantos desastres?
eu não sei, eu tremo de dor apenas
perante os nomes não vistos e aspirados tanto que apeteça
morrer por um nome ou dois ou três
juntos, exactos, repetidos,
como exactamente em pleno transe louco
entre as flores dos nomes como:
dicionário folha atrás de folha,
e mesmo assim é como uma espécie de medo,
com um tremor no fundo da nossa idade
que vamos ver onde estão as pessoas que fugiram
da nossa vida, e quando foi que lhes tocámos,
ou na camisa ou no cabelo ou ao acaso nos dedos,
e que nomes eram os nomes deles entre
todos os nomes da terra,
e quando foi: se foi na descoberta
ou nos fins dos meses ou
a meio de uma tarefa leve como pentear-se,
ou ressuscitar em plena luz pela
primeira vez
ou pela última vez, logo antes de sair das trevas
para as grandes danças entre o ar e a água,
sai agora: e corta o cordão,
e entre sangue, olhos fechados, abre a boca toda,
e respira muito quase até cair bêbedo ou louco
pela voz: o nome e sobretudo nome a nome
cada coisa em torno até que o alcance
a ciência dos nomes todos,
coisa a coisa da terra afinal tão pequena
que mesmo ele a domina,
no domínio dos nomes,
e então suspende tudo com medo que ali acabe com um só nome
o múltiplo mundo matricial,
o mundo das mães loucas


Herberto Helder, Poemas Canhotos, Porto, Porto Editora, 2015





CRÍTICA

Os poemas descontínuos



O livro póstumo de Herberto Helder coloca questões que a sua poesia nunca tinha colocado, ao avançar por caminhos do exercício em tom menor





Há momentos neste livro que nos fazem aceder a um reconhecível Herberto Helder, mas também se põem aqui questões (como a da destreza e do seu contrário) inéditas na sua poesia

O livro é breve — 16 poemas, dois dos quais são dísticos — e o título serve de advertência: o leitor, ainda antes de começar a ler, deverá saber que o autor considerou estes poemas não destros, canhestros, desajeitados, e entende que isso terá de ser um pressuposto da sua leitura. É certo que uma tal classificação não evita uma ambiguidade fundamental, à semelhança do que acontece nos pedidos de indulgência dirigidos ao auditório, na retórica clássica : mesmo canhotos, o autor quis que eles fossem publicados e até considerou que o livro estava pronto (esta é, pelo menos, a versão oficial da editora e não há nenhuma razão para suspeitarmos dela). Mas a nomeação destes poemas como “canhotos” obriga-nos a um esforçado exercício de sintonização. Na verdade, a questão da destreza e do seu contrário, remetendo para a dimensão técnico-formal, nunca tinha sido uma questão que a poesia de Herberto Helder nos tivesse obrigado a considerar. Mais do que isso: a palavra poética herbertiana aproximou-se muitas vezes daquela condição de “contra-palavra” de que Celan fala no Meridiano, uma palavra que não se inclina perante “os cavalos de parada” e está para além de todas as maquinações da poesia bem-comportada. Herberto Helder não é um poeta estranho à problemática do métier por ser um intuitivo, como são aqueles que parecem confiar numa espécie de avatar moderno da musa (aproveitando o facto de a noção de métier, em poesia, ter sofrido um grande descrédito), mas porque se elevou a um absolutismo poético. 
Ora, alguns dos poemas deste livro oferecem-se como exercícios onde a questão da mestria se iria sempre colocar mesmo que não fosse explicitada, num gesto auto-reflexivo, no interior do próprio poema, como é o caso daquele que abre o livro, um poema em redondilha maior. Começa assim: “coisa amada nas montanhas/ amador ao rés das águas/ por mais que subam as águas/ e arrebatem as montanhas/ e as engulam inteiras/ haverá coroas de pedras/ sustentadas pela espuma”. E, mais à frente, alude-se à regra formal do poema: “coisa amada nas montanhas/ amador ao rés das águas/ a redondilha maior/ é menor que a sua história/ mas maior que tudo isso/ é a dor que o amor transporta”. Há aqui uma óbvia dimensão lúdica, um jogo desencantado e nada jubilante, mas que não deixa por isso de ser um jogo. E no último poema essa característica é ainda mais notória, já que se trata de um poema cheio de rimas em “ão” (muitas delas, internas), que é a mais desqualificada das rimas, na poesia em língua portuguesa, porque é de uma grande facilidade. A isso alude o fim do poema, apontando o dedo a si mesmo: “estes poemas que avançam/ no meio da escuridão/ até não serem mais nada/ que lápis papel e mão/ e esta tremenda atenção/ este nada/ uma cegueira que apaga/ a luz por trás de outra mão/ tudo o que acende e me apaga/ alumiação de mais nada/ que a mão parada/ alumiação então/ de que esta mão me conduz/ por descaminhos de luz/ ao centro da escuridão/ que é fácil a rima em ão/ difícil é ver se a luz/ rima ou não rima com a mão”. Quem imaginaria, há alguns anos (até, pelo menos, A Faca não Corta o Fogo, de 2008) que o último poema de Herberto Helder, deixado à posteridade, seria um poema “canhoto” com rima em “ão”? 









Como se perceberá, este livro não é apenas estranho à ideia de “poema contínuo” (como o anterior, A Morte sem Mestre, de 2014, já o era, de outra maneira), é também a afirmação de uma descontinuidade em relação à obra que Herberto Helder foi construindo como uma súmula. É como se o poeta quisesse agora mostrar-se na imperfeição, destituído de toda a apoteose. Assim começa um outro poema deste livro: “em boa verdade houve tempo em que tive uma ou duas artes poéticas,/ agora não tenho nada:/ sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica e traço meia dúzia de linhas:/ às vezes apenas duas ou três linhas;/ outras, vinte ou trinta:/ houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei/ a encher umas quantas páginas do caderno/ aconteceu também por vezes que o papel pareceu estremecer,/ mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse/ sob as minhas palavras escritas”. É esta condição de poeta diminuído, canhoto, que já não consegue fazer estremecer o mundo, que se diz nestes poemas. A tragédia, agora, é a pura ausência de trágico, a do poeta que só já pode entregar-se ao jogo da poesia, não como aquela “ocupação mais inocente de todas”, como reclamava Hölderlin numa carta à mãe, mas como a ocupação mais paradoxal de todas: aquela que permite evocar antigas grandezas através de exercícios “canhotos”. É certo que há momentos neste livro que nos fazem aceder a um reconhecível Herberto Helder. Mas, no essencial, ele situa-se noutro espaço diferente, diferente até de A Morte Sem Mestre, na medida em que uma atitude reactiva estendeu-se agora a outros domínios. Este livro reclama do leitor que ele esteja sintonizado num tom mais baixo do que aquele a que Herberto Helder nos habituou. 
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/os-poemas-descontinuos-1696289

*

Herberto Helder: um poema é um poema?

Poemas Canhotos de Herberto Helder são poemas sobre o que é um livro de poemas; e são ainda um exercício sobre aquilo que não sabemos se tem autor. Uma recensão de Djaimilia Pereira de Almeida.
    É possível extrair de Poemas Canhotos um “ensino” (34) sobre o que pode ser um poema e sobre a sua aparição a quem o escreve ou o lê — e, central ao esboço de qualquer princípio de autoria, uma indagação sobre o que julgamos saber acerca dos poetas que lemos. Tal “ensino” não chega a constituir uma arte poética, nem respeita à maneira de Herberto, mas ao que significa existir enquanto autor ao longo de uma vida, vocação perante a qual um livro póstumo poderia parecer apenas a coda possível.
O poema final diz-nos que o que se escreve pode apenas aparentar a dignidade de uma autoria: “estes poemas que chegam / do meio da escuridão / de que ficamos incertos / se têem autor ou não / poemas às vezes perto / da nossa própria razão / que nos podem fazer ver / o dentro da nossa morte / as forças fora de nós / e a matéria da voz” (42). Será que isto é mesmo um poema? Será que é um poema meu? — são as perguntas centrais de Poemas Canhotos. Talvez estes “poemas que avançam”, de que não fica mais que “lápis papel e mão / e esta tremenda atenção / este nada” (43), mereçam uma “faminta ciência da paciência” (21). Apesar da incerteza quanto à autoria de poemas assinados por si, é em relação a esta reserva de paciência que se pode localizar a qualidade deste livro quando contrastada com o Herberto Helder de livros anteriores. Tal estranheza parece ser, no entanto, a que estes poemas lhe suscitaram, antes de ser a que suscitam aos seus leitores.
Podemos abandonar os nossos hábitos quotidianos, despedir-nos dos que partiram, não podendo porém impedir-nos dos nossos humores para com os trabalhos  que a despedida de tudo nos merece (abandonar até aquilo que sai da mão, mas não a mão, o rosto que barbear, o próprio corpo morrendo noutro), pois não está em aberto rejeitarmos o que não passa no teste de saber quanto do que escrevemos nos pertence, muito menos rejeitar o trabalho que nos coube, e ao qual as nossas interjeições pouco acrescentam: “que interessa fazer a barba se é tudo para cremar, / desde as unhas dos pés aos espelhos soberanos —” (16), lê-se em versos sobre o conflito entre os actos e os humores da despedida.
Perceber a cada poema se o que se escreve é um poema nosso, se é um poema de todo, é aquilo de que não existe fuga possível, como não existe modo de escapar de, tão à beira do fim, fantasiar sobre deixar de escrever, como no jovial devaneio sobre deixar de escrever do poema da página 20 (“escrever, / deixar de escrever, / escrever ou não escrever não é acabar assim tão depressa quanto se pensava”). À beira do fim, apenas se parece saber quão à beira da renúncia sempre se esteve. Estes são, nesta medida, poemas sobre o que é um livro de poemas; e são ainda um exercício sobre aquilo que não sabemos se tem autor.
É por esta razão que o último poema de Poemas Canhotos ([estes poemas que chegam]) — e, não exagerando, o próprio livro — ganha em ser lido como um poema sobre o que temos diante de nós ao abrirmos um livro, o que nos deixa em suspenso quanto a sabermos se o que nos é dado a ler em Poemas Canhotos foi ou não tomado à “escuridão”. Poderíamos, mudando Gertrude Stein (“a rose is a rose is a rose et coetera”, 21), arriscar que ‘um poema não é um poema não é um poema’ — nem sequer, sem explicações adicionais, um poema da autoria de quem o redige. Muito menos certo é então que Poemas Canhotos, ou qualquer outro livro de poemas, pertença seja a quem for.
É, no entanto, ainda a um nome civil que parecemos poder imputar algumas paixões e humores de Poemas Canhotos: o “amador ao rés das águas” (7); o que desistiu de artes poéticas (“em boa verdade houve tempo em que tive / uma ou duas artes poéticas, / agora não tenho nada: / sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica / e traço meia dúzia de linhas”, 18); o de “adjectivos longínquos, / tudo tão prodigioso que se não entende nada” (21) — tudo isto nos lembra o que julgávamos saber sobre Herberto Helder; o mesmo que presumimos ter conhecido Ramos Rosa, cuja morte é evocada na página 39: “e então morreu todo / fundo e completo de uma só vez” (39); o que se exaspera com versos de outros (“esfolo-te vivo, vadio, se me trazes outra vez versos desses”, 13) — o que julgamos ter lido ao longo de décadas.
A publicação destes últimos poemas sob o nome de Herberto Helder não coincide com a resolução da ambivalência entre a voz incerta e o relativo consenso quanto a esse nome, muito menos com a confirmação, por parte de quem o assina, de que o que gerou lhe pertence. Talvez até um último livro se possa publicar mantendo esta dúvida em aberto. Mas então quanto do que se publica em Poemas Canhotos são poemas, e porque não?, poemas de Herberto? Este livro póstumo aclara a forma como ler seja que livro for pode não ser uma via evidente de resposta a esta pergunta, por mais que teimemos em procurar os seus autores no que publicam, e nos seus últimos livros para lá de em todos os outros, cotejá-los com o seu passado, com um hábito que apenas a nós nos pertence.
Esperarmos que Poemas Canhotos seja o último livro do poeta conhecido por Herberto Helder é talvez uma limitação nossa. Por outras palavras, esperamos (possivelmente em vão) que o que lemos seja o que lhe pareceu pertencer-lhe. Tal não passa porém de um modo de desejarmos que nos pertença o que dele tenha restado, que Herberto Helder nos pertença. O que nos traz de volta às perplexidades suscitadas por este livro: como saber, diante de Poemas Canhotos, ou de qualquer livro de Herberto (ou de qualquer outro poeta), que estamos realmente perante poemas? Como se sabe, antes de sabermos o que significa um poema ser de alguém, se esses poemas são de alguém?
Djaimilia Pereira de Almeida (Luanda, 1982) estudou Teoria da Literatura na Universidade de Lisboa. Fundou e dirige a revista on-line “Forma de Vida”.
 http://observador.pt/2015/05/29/herberto-helder-um-poema-e-um-poema/





A moeda inútil
Um ano após a morte de Herberto Helder, o novo livro póstumo reacende a discussão sobre o "tom menor" do seu estilo tardio

Os últimos livros de Herberto Helder suscitaram uma atenção e uma controvérsia inusitadas, tendo em conta a "obscuridade" biográfica e textual que o poeta sempre prezou. A uma visibilidade quase inédita, com as fotografias e o disco e o fac-símile dos manuscritos, somou-se a troca de chancela e a política de edições únicas que fez de "Servidões" (2013) um objecto cobiçado. Mas esse título, tal como "A Morte sem Mestre" (2014) e o póstumo "Poemas Canhotos" (2015), marcou sobretudo uma mudança significativa no discurso do poeta, que se tornou mais referencial, mais coloquial, claramente "testamentário". Herberto morreu fez agora um ano, e "Letra Aberta" manterá acesa a discussão sobre esse estilo tardio, matéria que, diga-se, interessa bastante mais do que as circunstâncias editoriais e mediáticas. O novo volume reúne 33 poemas inéditos, escolhidos por Olga Lima, viúva do poeta. Ou seja, não se trata de uma sequência estruturada, mas de uma antologia de textos do espólio. E o que se pode dizer é que encontramos um Herberto no mesmo "tom menor" das últimas colectâneas. "Tom menor" não supõe a menoridade dos poemas, mas um registo mais imediato e desabrido, distante do fôlego lírico- hermético que nos fascinava e assustava.
Quando, num destes poemas, Herberto sugere que "razões nenhumas" é preferível a "uma Fac-simile da versão manuscrita de um poema do Livro póstumo de Herberto Helder grande razão surrealista", define uma poesia em chave irónica, sem aura, por vezes zangada, o tal estilo da última fase que se sucedeu a décadas de poesia órfica, mágica, romântico-experimental. A "grande razão" alude igualmente a um poema de Cesariny, e a uma suspeita de grandeza que todo o surrealismo tinha, grandeza que se vê aqui substituída por uns quantos "poemas bárbaros". É uma lucidez disfórica, própria da velhice, talvez. Porque este é um punhado de poemas finais, "uns poemas que pràqui tenho", diz o poeta, como se fossem coisa pouca, embora também não caia no excesso de modéstia: ''Acho que apesar de tudo escrevi um poema aceitável", "umas poucas linhas como estela e como exemplo". Herberto não atira à água os seus livros, como o Próspero de ''A Tempestade", mas não é órfico nem experimental como outrora. É o que é, e os outros que se danem: "Bom é ser odiado simetricamente por gregos e troianos."
"Letra Aberta" reconhece-se como um texto herbertiano, com as imagens fortes e os superlativos e os acentos circunflexos enfáticos, o eros frenético e as cidades europeias, as glosas camonianas e uma "rosa irreversível" vinda de outros tempos; mas o Herberto final, ântumo e póstumo, deve ser lido à luz do aviso "vou ali e já não venho", para citar um verso significativo no seu prosaísmo de despedida. Apontar cedências ou facilidades é um processo de intenções, mas a morte é uma certeza com consequências: "a morte é mesmo estranha:/ morre-se todos os dias/ e enquanto se morre pede-se uma esmola para matar a fome de outra vida,/ e dão-nos pelo amor de Deus uma pequena moeda de nenhum país,/ e não há ranhura onde a moeda entre (...)." Esta moeda inútil é uma decepção, sem dúvida, mas não uma abdicação, antes uma raiva renovada, um último protesto. Herberto escreve: acham-me "muito muito velho", pensam que sou "inofensivo", que estou "fora de combate", que sou "doce, sweet, frágil, etéreo, gasoso": "e é esse exactamente o erro deles/ - duro duro duro".

Pedro Mexia, Expresso-Revista, 2016-03-23










Herberto Helder: um poeta que só guardava o essencial

O arquivo de Herberto Helder foi integralmente digitalizado e vai poder ser consultado na Faculdade de Letras do Porto, que espera poder vir a acolher também a biblioteca do poeta.

Herberto Helder não era de guardar rascunhos ou de manter arquivos de correspondência, mas deixou, ainda assim, entre outros papéis, vários cadernos com inéditos, um livro de poemas em prosa que nunca foi publicado e uma antologia de quadras populares.

Todo este acervo acabou agora de ser digitalizado por iniciativa do ensaísta Arnaldo Saraiva, que conseguiu o apoio da Gulbenkian para custear a digitalização e intermediou o depósito deste arquivo digital na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), da qual é hoje professor jubilado e emérito.
Saraiva espera ainda que a própria biblioteca de Herberto Helder possa vir a ser depositada na FLUP, que recuperou recentemente um seu antigo edifício na Rua do Campo Alegre para acolher duas importantes bibliotecas, a do historiador da literatura e linguista Óscar Lopes (1917-2013) e a do escritor Vasco Graça Moura (1942-2014). Já no próximo dia 1 de Abril, a FLUP e a família de Graça Moura assinarão, numa cerimónia pública, o contrato de depósito do arquivo e das dezenas de milhares de livros da biblioteca do escritor.
Amigo de Herberto Helder e da sua viúva, Olga Lima, Arnaldo Saraiva diz que o seu primeiro objectivo foi garantir que ficava salvaguardada uma versão digital de todos os papéis do poeta tal como este os deixou. “Podia haver um acidente, podiam desaparecer coisas, ou serem mudadas de sítio, como aconteceu com o espólio de Fernando Pessoa”, diz o ensaísta. 
O presidente da Fundação Gulbenkian, Artur Santos Silva, “mostrou-se logo disponível”, conta Arnaldo Saraiva, para apoiar este projecto, que incluiu também a digitalização das muitas correcções e apontamentos que Herberto Helder deixou nos exemplares que guardava dos seus próprios livros. 
Tal como Pessoa, Herberto também tinha uma arca, em sentido literal, onde ia guardando o que queria conservar, mas não deixou 27 mil documentos, como o poeta dos heterónimos, nem incontáveis versões dos mesmos textos. “Ele não guardava muita coisa: recebia muitas cartas entusiásticas desde que publicou O Amor em Visita [em 1958], mas não conservou quase nada, explica Saraiva, que crê que o poeta terá mesmo destruído “alguma correspondência importante com grandes poetas estrangeiros”.
E se não seguiu o exemplo do seu amigo Carlos de Oliveira, o outro grande reescritor da poesia portuguesa da segunda metade do século XX, que deixou instruções explícitas para que nada fosse publicado postumamente, Herberto Helder também não parece ter querido legar à posteridade o acesso aos meandros da sua oficina poética. “Com a excepção destes últimos livros, costumava destruir as versões anteriores do que publicava, e o que conservava nos seus caderninhos eram coisas que tencionava eventualmente refazer ou usar mais tarde, e não registos de uma determinada fase de escrita”, defende Arnaldo Saraiva.
O ensaísta não pode precisar o número exacto de documentos digitalizados, mas pensa que o arquivo agora depositado na FLUP constará de “duas mil e tal imagens”, incluindo reproduções de fotografias e alguns artigos de jornais que Herberto recortou, e que nem sempre dizem respeito à sua obra.
Duro duro duro
Mas se o arquivo é pequeno, basta ler o livro que a Porto Editora lançou esta quarta-feira para assinalar o primeiro aniversário da morte do poeta, Letra Aberta, reunião de um conjunto de inéditos que Olga Lima seleccionou a partir dos cadernos de Herberto Helder, para não restarem dúvidas da sua importância. Se Poemas Canhotos, que o poeta teria deixado pronto a publicar, e que foi lançado logo após a sua morte, incluía alguns poemas fulgurantes, dificilmente este Letra Aberta poderá ser considerado inferior, quer na qualidade dos seus melhores poemas, quer mesmo enquanto conjunto.
“A sequência funciona, tem uma coesão surpreendente, e há neste livro pontos muito altos, poemas muito fortes”, diz o poeta Gastão Cruz, admirando a capacidade que Herberto Helder teve até ao fim de renovar a sua poesia. 
Também a ensaísta Rosa Maria Martelo, de quem a editora Documenta publicará em Abril Os Nomes da Obra — Herberto Helder ou O Poema Contínuo, também acha que “este é, sem dúvida, mais um livro notável, uma excelente selecção de poemas”, na qual “reconhecemos os temas de Herberto Helder, a energia fulgurante a que nos habituou e também aquela frontalidade que, devido ao envelhecimento e à proximidade da morte, exigia agora uma coragem rara”.
E sabendo que Herberto “foi sempre um reescritor” e que “pensou a sua poesia como um livro único, um poema contínuo que se ia ampliando e cortando, deslocando e refazendo”, Martelo confessa que até “receava os efeitos da publicação” deste volume de inéditos. “Mas a qualidade dos poemas é inquestionável, bem como a sua força e, talvez acima de tudo isto, a sua verdade”, argumenta. 
Não parecem também restar dúvidas de que a generalidade dos poemas escolhidos por Olga Lima, se não todos, são bastante recentes. Em alguns pressentem-se reacções ao que se escreveu nos jornais a propósito de A Morte Sem Mestre em 2014: “eu cá acho que sim,/ acho que apesar de tudo escrevi um poema aceitável,/ um poema que amadurou em mim ao longo de oitenta anos (…) ah, aceitem lá a pequenez geral da minha vida/ e do meu nome obscuro,/ e o quão honesto sou odiando tudo isso”.
E no poema que fecha o volume, refere expressamente os seus 84 anos: “(…) a verdade é que eu estou melhor agora/ com 84 anos:/ primeiro, como me acham muito velho, pensam que sou inofensivo, e não me chateiam,/ segundo, deduzido do anterior, não posso ser um rival perigoso,/ terceiro, estou à partida fora de combate,/ quarto, já não fodo,/ quinto, em linha recta, nem é preciso perder tempo comigo, sou doce, sweet, frágil, etéreo, gasoso/ e é esse exactamente o erro deles/ - duro duro duro/ quanto mais velho mais duro é o corno — disse o papa Malaquias e que por isso foi morto (…)”.
O volume reproduz alguns dos manuscritos a partir dos quais os poemas foram fixados, que permitem ver que a caligrafia de Herberto Helder é geralmente muito legível. A organizadora, que indica no livro as poucas situações em que o poeta não chegou a decidir-se entre duas palavras, só assinala um caso de “leitura problemática”.
O que parece é ter havido uma falha de transcrição no primeiro verso do poema cujo manuscrito aqui transcrevemos. As palavras “esta noite” passaram correctamente para o início, de acordo com o sinal usado por Herberto, mas este não abrange a sequência “diz o jornal”, que deveria ter permanecido no final do verso.
Um livro inédito
Arnaldo Saraiva diz que há outros poemas inéditos em condições de serem publicados além dos que foram agora reunidos em Letra Aberta, e encontrou ainda no espólio “um livro de prosa poética” inédito. Constava há muito que Herberto Helder tinha um livro que nunca quisera publicar, mas que teria chegado a mostrar a um par de amigos, e o aparecimento deste original parece confirmar que a dita obra de facto existia e que o poeta, se nunca a editou, também não a destruiu. “Tem muitas rasuras e intromissões depois da primeira escrita, e vê-se que há ali trabalho de várias fases”, diz Arnaldo Saraiva. “É um livro que tem de ser editado, mas é preciso que isso seja feito com critério, porque há ali saltos, intromissões e uma ou outra coisa que o Herberto deixou indecidida, e que não podemos decidir por ele”. 
Descontado este achado, Saraiva não encontrou no espólio “surpresas de maior”, mas refere ainda uma antologia de quadras populares que o poeta deixou organizada. “Na última conversa que tivemos, falou-me desse romanceiro”, conta o ensaísta, que dado o seu reconhecido interesse pelo campo das literaturas orais e populares, deverá assumir ele próprio a edição deste trabalho. “Só será publicado quando tudo aquilo estiver bem estudado, até porque é preciso ver se ele não inventou algumas das quadras”.
Ainda não há data para a disponibilização do arquivo agora digitalizado, mas Saraiva espera que possa ser consultado em breve. Mais complexo é o que fazer deste material. “Há poemas inéditos que têm de ser publicados com rigor, é preciso ponderar uma possível edição crítica, e novas edições de qualquer livro terão de passar por este material”, diz Saraiva.
O facto de Herberto Helder ter desmantelado vários dos seus livros, distribuindo parte deles por outros títulos, como aconteceu comApresentação do Rosto (1968), Vocação Animal (1971) ou Cobra (1977), mas também suprimindo definitivamente vários poemas de edição para edição do seu “poema contínuo”, e reescrevendo outros, torna a tarefa dos futuros responsáveis por uma qualquer edição crítica — para a qual, além do mais, parece não existir muito material — particularmente espinhosa.
E parece evidente que as futuras edições de Herberto não poderão deixar de ter em conta a sua condição de reescritor forte, ou seja, alguém para quem a obra é, em cada momento, um todo orgânico. Rosa Maria Martelo lembra um texto publicado na revista brasileira Cult, no qual “Herberto Helder fala do modo como os poemas a mais, mesmo quando suprimidos, e ele suprimiu, reviu ou deslocou muitos, ‘projectam a sua mácula nos poemas legítimos’”.  
Mesmo sem conhecer os manuscritos agora digitalizados, Martelo acha que “seria desejável manter a autonomia do que o poeta concebeu como ‘poema contínuo’, dado que o pensou como um texto único, um livro de livros”. E a ensaísta questiona-se se “haveria da parte de Herberto Helder a percepção de que os poemas de A Morte Sem Mestre, e por extensão, os que depois foram publicados em Poemas Canhotos, funcionavam como uma espécie de post-scriptum”.
Enquanto não houver respostas para esta e outras perguntas — e talvez o arquivo forneça pistas para se chegar a algumas —, seria talvez prudente assumir a edição dos seus Poemas Completos, que o poeta ainda viu sair em 2015, como último estado desse seu “poema contínuo”, tornado definitivo pela sua morte, e publicar tudo o resto, por muito bom que seja (e frequentemente é), com um estatuto diferenciado. 

 https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/herberto-helder-um-poeta-que-so-guardava-o-essencial-1727150?page=-1


Inéditos de Herberto Hélder lançados no Dia da Poesia 






CRÍTICA

A acção do poema

Mais um livro póstumo, onde a voz mais elevada da poesia de Herberto Helder se pode apreender nalguns poemas, os suficientes para justificar esta edição.





Letra Aberta reúne trinta e três poemas inéditos de Herberto Helder, escolhidos por Olga Lima DR

Depois de Poemas Canhotos, eis o segundo livro póstumo de Herberto Helder. Chama-se Letra Aberta e reúne trinta e três poemas inéditos, escolhidos por Olga Lima. A inauguração do espólio do poeta já sem a sua tutela (o livro anterior tinha sido deixado pronto para publicação) foi mais rápida do que era previsível, mas é gratificante: há neste livro um punhado de poemas que ascendem aos cimos da melhor obra herbertiana. E na comparação com o livro anterior, este tem muito a ganhar. Na recepção crítica da poesia de Herberto Helder, esta ideia de que nem tudo se equivale e de que também há momentos fracos é recente, foi suscitada pelos últimos livros, e é a resposta que obteve a um novo desafio (implicando não apenas decisões editoriais, mas também representações e imagens públicas) que o próprio poeta decidiu fazer, por insondáveis determinações, que revogaram severas determinações que se tinham colado à sua imagem como uma segunda natureza. Ecos deste embate, temo-los ainda nalguns poemas deste livro, aqueles que provavelmente serão por estes dias mais citados, mas que estão longe de ser o que de melhor nele podemos ler.






Herberto Helder é muito melhor no exercício de terror que praticou contra tudo (a língua, a pátria, a família, Deus, a beleza, etc.) do que no exercício de tiro ao alvo, mesmo quando o alvo é ele próprio e as suas circunstâncias biográficas (por exemplo, a atitude perante o envelhecimento e a morte próxima). No entanto, o abandono moderado de uma elevada entoação órfica seguiu também outras vias pelas quais o poeta chegou a poemas de um enorme fulgor. Há neste livro algumas amostras, vejamos esta: “escrevi umas poucas linhas como estela e como exemplo,/ mas faltava algures uma linha de silêncio que as ligasse todas,/ e então abri a mão inteira e sobre a mão abri a boca,/ e depois fechei os olhos a toda a volta,/ e depois a terra estremeceu,/ e depois eu estremeci no meio dela, mudo e cego e surdo e imóvel:/ mas soube que não tinha criado os elementos do mundo”. O poema a que pertencem estes versos é uma pequena pérola de auto-reflexão poética. A palavra “mundo” (fundamental, no vocabulário herbertiano) e as duas formas do verbo “estremecer” oferecem matéria de natureza poetológica para uma leitura da sua obra poética. Talvez o “estremecimento”, nas suas imensas ocorrências, seja uma maneira de dizer que o poema é uma acção e essa acção é uma agitação da linguagem. O poema é o lugar da maior agitação e é o que mantém aberto, na sua articulação, o sonho de uma língua que retém e desacelera. Abrir a linguagem, obter a “letra aberta”, é de facto uma acção que não consiste em dobrar a linguagem em direcção a um fim. E é aí que, em cada nome se dá um estremecimento. O poema vem do canto e guarda a memória de ter sido cantado. E quanto ao “mundo”, que reaparece com alguma frequência neste livro, aí entramos numa zona de onde se avista o fundamental da poesia de Herberto Helder. Há uma questão do “mundo” na poesia moderna (sobre a qual, aliás, há importantes estudos), que pode ser inaugurada com uma frase que podemos ler no Hyperion, de Hölderlin. É quando Diotima diz: “Tu queres um mundo. É por isso que tens tudo e não tens nada”. Mas para tratarmos a questão do mundo em Herberto Helder também não podemos ignorar que a sua poesia reivindica uma dimensão arcaica que a faz atravessar o tempo desde a origem. Tal como não podemos esquecer um conceito de Rilke, o “espaço interior do mundo”: em termos muito sumários, trata-se de um mundo interiorizado e um Eu exteriorizado, onde se abolem as fronteiras entre o dentro e o fora.
Nota: no frontispício do livro, podemos ler: “poemas inéditos escolhidos por Olga Lima”. Mas o livro não resultou apenas de um acto de escolha dos poemas. Quem fez a transcrição? De quem são as quatro notas que aparecem no final? E, mais importante ainda: de quem é a decisão de chamar a este livro Letra Aberta (nome retirado de um poema)? Tudo indica que é um título editorial, mas o livro faz passá-lo por título autoral. 
  https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/a-accao-do-poema-1727487





Herberto Helder. Pode o poeta perder a aura?


Joana Emídio Marques, Observador, 2016-04-10

Depois de anos refugiado numa obscuridade sem concessões, surgiram edições sucessivas e atenção mediática. Mas o que ficará da poesia de Herberto Helder?




Durante décadas a publicação de um livro de Herberto Helder era um acontecimento. Cada livro mexia com a tectónica da poesia portuguesa que se escrevia em redor. Obrigava a que todos e cada um se reposicionassem. Mesmo os que o odiavam. Ou sobretudo esses. Uns escreviam contra ele, outros escreviam como ele, outros escreviam o oposto a ele. Mas ninguém lhe ficava imune.
Os livros surgiam de vez em quando, sem data pré-estabelecida. Os poemas eram escritos e reescritos e carburavam esse tempo lento. Eram o poema contínuo. Um trabalho incessante sobre cada palavra e as suas respetivas ressonâncias, sobre cada imagem evocada fizeram da sua uma linguagem poética única na história da poesia portuguesa. Há lugares que só ele tocou, porque, entre outras coisas, escrevia contra a linguagem do poder. Escrevia contra a linguagem banalizada por um mundo ao sabor das modas e onde tudo passa sem deixar rasto. O poema contínuo era também um tempo contínuo. Um tempo que não coincide com esta modernidade onde tudo explode, se dissolve numa rapidez estonteante.
Mas a aura de Herberto Helder foi mais construída pela sua recusa de participar no circo mediático da literatura do que pela grandiosidade da sua poesia, que afinal poucos liam. O poeta que teimosamente desprezava o mundo das aparências construía, paradoxalmente, a aparência de um mito. Livros de edições únicas (por vezes corrigidos à mão pelo próprio autor), que faziam as delícias dos alfarrabistas, mas que eram sobretudo manifestação do constante desassossego e insatisfação que ele sentia em relação às coisas que escrevia.

O livro, agora lançado pela Porto Editora, contém 33 poemas inéditos. Preço:16.60 euros
A total recusa de falar aos media, a rejeição de quaisquer prémios e honrarias valeram-lhe uma corte de admiradores. Herberto era aquele que recusava majestaticamente aquilo que todos parecem querer: fama, mundanidade, dinheiro.
Esta postura que era, para Helder Macedo, escritor e amigo de longa data do poeta, “um misto de arrogância e integridade”, terminou em 2013, com a publicação de Servidões. O “fenómeno Herberto” explodiu.
Já com a Porto Editora a trabalhar a marca Assírio & Alvim, o livro esgota as tiragens, os media percebem o elan e os críticos apressam-se. E eis Herberto chegado às redes sociais, estrela pop de um mundo que ele nem sequer conhecia. A partir daqui saiu um livro por ano: A Morte sem MestrePoemas Canhotos e agora Letra Aberta. O primeiro terminado e publicado ainda em vida, o segundo estava pronto para ser publicado quando o autor morreu em março de 2015. Este agora é uma recolha feita nos cadernos de Herberto pela sua viúva, Olga Lima.
No meio deste frenesi, a grande questão que o novo livro nos deixa, e porque ele nos devolve a grandiosidade da poesia de Herberto, é: uma vez rasgada a aura de mistério do poeta como sobreviverá a sua poesia?
Os estudiosos da obra herbertiana desmultiplicam-se em análises, congressos, sonham com edições de aparato crítico. As redes sociais replicam a capa e alguns poemas. Os livros são celebrados, agraciados e rapidamente esquecidos. Há notícias de que o espólio vai ser digitalizado pela Universidade do Porto, que o professor Arnaldo Saraiva vai trabalhar quadras populares deixadas pelo autor e fala-se mesmo numa arca, apelando ao mito pessoano.
No meio deste frenesi, a grande questão que o novo livro nos deixa, e porque ele nos devolve a grandiosidade da poesia de Herberto, é: uma vez rasgada a aura de mistério do poeta como sobreviverá a sua poesia?

Servidões, livro de 2013 esgotou em poucas semanas. Como era desejo do autor o livro não foi reeditado.

O mito do poeta obscuro

“Qual poeta obscuro! O Herberto nunca quis ser obscuro, pelo contrário, nunca quis ser obscurecido pela mediocridade circundante”, afirma Helder Macedo, em conversa com o Observador. Já Gastão Cruz, outro poeta amigo de longa data de Herberto, afirma: “Essa coisa do obscuro é uma invenção da Maria Estela Guedes [uma das primeiras estudiosas da obra de HH].” Isto antes de desligar o telefone com a declaração “não falo com jornais de direita”.
Outro dos autores com quem o Observador falou foi Diogo Vaz Pinto, jovem poeta, editor, e crítico dos jornais i e Sol que, em 2014, assinou uma critica duríssima sobre o livro A Morte sem Mestre. Ao que Herberto, no seu habitual estilo combativo, resolveu contra-atacar num poema que surge no seu livro seguinte Poemas Canhotos (já publicado postumamente):
(…)um jovem ávido cheio de cotovelosno meio da multidão(…)oh dêem qualquer coisa ao rapaz frenético:um relâmpago fotográfico em cheio no rosto,um calmante,um sôco,um bombom recheado de maria gloriazinha,vai ser difícil vai ser difícil o rapaz não tem escrúpulos,tem uma fome que vem das primeiras letras,o rapaz é órfão de toda a gente,ele quer à força entrar no filme:logo a primeira imagem em plano glorioso,mas calma aí, isso não é assim tão raromas não vêem vocês aí aquele rosto famintonão vêem os olhos assassinos?ele era capaz de matar para ter uma chamada ao palco,ora ora o mundo está cheio disso:rapazes que nunca foram amados quando crianças com ranho no nariz e lágrimas nos olhos ardentes (…)
Mas também este crítico literário insiste na necessidade de se “abandonar esta mitificação da pessoa e da obra de Herberto, porque isto apenas acrescenta um ruído fútil, cansativo”.
Pelo contrário, diz, “é preciso deixar a poesia que ele criou respirar, repousar, pois será ela que abrirá caminhos para si própria, para se fazer sobreviver. A poesia dele ajuda-nos a pensar o futuro da poesia em geral e o futuro da sua poesia em particular. Porque questiona, como poucas, este tempo que vivemos, esta angústia e esta permanente sensação de estarmos a viver um tempo terminal. As suas perplexidades amplificam as nossas. O vazio que ela teme e confronta é o nosso vazio. Ao fazer ressoar os milénios passados como, eventualmente, os futuros ela está a dizer-nos que há outro tempo, outra forma de viver o tempo, que não tem que ceder a esta voragem, esta leviandade que a tudo e todos arrasta. Ou seja Herberto pôs-se à margem mas apenas para ver melhor, para não se deixar arrastar, compreender melhor este mundo e nunca deixou de sofrer com isso.”

‘Letra Aberta’: um regresso depois da despedida

“um nome que me digas ou não me digas duas vezesem dois abismos de sono, esse nomefaz-se carne no mais âmago de mim mesmo,esse nome trabalha-me,é igual ao segredo:pãoeu cômo-o no mais escuro do mundo,cortado a água e mais nada,quase como quando se morre mais devagar,se é noite que entra:pão profundo mastigadoacaso na maior parte das noites seguidas umas à outras”
(pag.39)
Tanto Helder Macedo como Diogo Vaz Pinto (dois poetas de gerações muito diferentes, um tem 80 anos e o outro 30) concordam que nos últimos livros o poeta estava a despedir-se. Ele sentia que já se perdia nesse tempo que foi o núcleo da sua poesia. Dai a reatividade e maior fisicalidade dos seus últimos poemas. Na opinião de Helder Macedo “os últimos livros do Herberto representaram, simultaneamente, uma recuperação de atitudes (iconoclásticas, desmistificadoras, irónicas em relação a si próprio) da sua juventude e uma tentativa de encontrar uma nova voz poética em que as veiculasse, não como início mas como fim de vida. Foram por isso livros de grande coragem, em que o Herberto (um dos poetas mais imitados no nosso repetitivo panorama literário) se não imitava a si próprio.”
“Ele impõe uma resistência ao processo de canonização e a espetacularização que haveria sempre de convertê-lo num ícone”, afirma Vaz Pinto. “Neste novo livro temos a possibilidade de espreitar sobre o ombro, temos vislumbres de um irrefreado ofício em busca do ponto último, em que de tão perfeitamente maduro o sabor de um verso não mais se esquece. É, ao mesmo tempo, uma espécie de post-scriptum, esse gesto tão humano de olhar para trás e questionar-se sobre se a grandeza do esforço em que empregou a vida toda poderá sobreviver a um tempo em que nada sobrevive, um tempo de obliteração. Sabemos que estes poemas eram apenas a crisálida do que viria a ser se o poeta continuasse vivo e a trabalhá-los continuamente como era seu hábito, obrigando-os a um período de estágio na gaveta para que se gastasse o fôlego a tudo o que fosse contingente. Talvez este livro demorasse muitos anos a vir a público, e depois poderia ser chamado de volta à liça, reescrito, porque Herberto não abandonava os versos a um destino público. Ele vigiava-os, escrutinava-se. Em muitos sentidos foi dos poetas que mais se empenhou em condicionar a forma como era lido. E nesse sentido estes são poemas imperfeitos, mas que nos permitem perceber a forma como ele se embrenhava, pairando em círculos elevados, até fixar um sentido especialmente acutilante, fixá-lo nas inúmeras vertentes da linguagem, das imagens ao som e aos ritmos”, continua o poeta e crítico.
"Os seus leitores que haviam ficado perplexos (ou mesmo dececionados, como alguns ficaram) com este livro vão ficar mais sossegados. Reconhecerão aqui o poeta que amavam e não queriam que mudasse." 
Helder Macedo
“Quanto à publicação destes poemas, acho que é um ato de partilha por parte da Olga Lima, que foi a constante e discreta companheira do Herberto durante longos anos até ao fim da vida dele. E que discreta continuou a ser, no modo como os recuperou e organizou. Que eu saiba, o Herberto nunca disse que não queria que estes poemas (ou outros textos que a Olga me disse que deixou inéditos) fossem publicados. Simplesmente deixou-os ficar entre os seus papéis, até ver. É bom que agora se vejam”, completa Helder Macedo
Neste livro, constituído por poemas que Herberto ainda não teria considerado prontos para publicação, diz ainda Helder Macedo “reencontramos, paradoxalmente (ou não), o poeta anterior a esses últimos livros. Os seus leitores que haviam ficado perplexos (ou mesmo dececionados, como alguns ficaram) com este livro vão ficar mais sossegados. Reconhecerão aqui o poeta que amavam e não queriam que mudasse. Em vez da sobre-humana voz bárdica dos seus grandes poemas, temos aqui a voz precariamente humana de quem os havia escrito. É, nos seus próprios termos, um belo livro. E, no contexto da obra do Herberto, um testemunho literário importante. De algum modo, ainda bem que o Herberto não os trabalhou mais, transformando-os no que, em termos de “oficina” literária, poderiam ter sido. No contexto da restante obra poética do Herberto e como expressão de quem o Herberto se havia tornado com a proximidade da morte, não são por isso menos belos nem menos verdadeiros.”

Depois de décadas sem se deixar fotografar, Herberto surge nas fotos de Alfredo Cunha, poucas semanas antes da sua morte.
“Alguns destes poemas lembram-nos o melhor de Herberto. Lembram-nos que como ele continuou até ao fim a tentar abrir novos caminhos para a poesia. Lembram-nos como ele consegue usar o mais amplo espetro da língua para continuar a realizar inversões bruscas na paisagem, ser ainda mais claro do que os que se limitam ao método da redução e simplificação banal das coisas, denunciando muito claramente o ambiente geral de indigência em que mergulhou o país. Apesar de imperfeitos estes poemas tremem de desgosto, cada palavra busca uma refulgência própria e é a expressão de um desencanto irado que choca com o desencanto cabisbaixo que se tornou um ânimo geral”, afirma Diogo Vaz Pinto.

Herberto Helder ou o poema contínuo

Se a aura de Herberto Helder sobreviverá ou não à máquina mercantil, isso não vai mudar a natureza da sua obra. Talvez só depois de rasgada esta aura artificial, mais alimentada pelos comportamentos sociais do poeta do que pela sua poesia, se possa enfim vislumbrar melhor a amplitude do que nos deixou Herberto.

Os poemas de HH foram, ao longo dos anos, sendo reunidos em várias súmulas. Estas edições tiveram vários títulos diferentes mas, como sugere o poeta Manuel Gusmão, o melhor será este que deve ser lido assim:”Herberto Helder ou o poema continuo”

O trabalho de reescrita continua dos poemas, que o faziam recusar fazer mais do que uma edição de cada livro, demonstra como ele compreendeu bem a essência disruptiva e ambígua da modernidade, e como soube integrar isso no seu trabalho e na sua lírica. O seu profundo desassossego, a sua compreensão de que o mundo não é feito de uma geometria racional mas por pequenas e grandes catástrofes, fez com que o poeta construísse uma obra que replica essas metamorfoses contínuas. Letra Aberta parece ser assim um testemunho poético, onde ele nos mostra, precisamente, que cada palavra está aberta ao devir e que, portanto, a sua poesia poderá ser lida, compreendida e amada em qualquer tempo que vier.
http://observador.pt/especiais/herberto-helder-poeta-perdeu-aura/

quarta-feira, 30 de março de 2016

Jorge de Sena, "Poemas seleccionados e ditos pelo autor", disco LP (1.ª ed. 1974)



Gravação da voz realizada nos estúdios da Universidade da Califórnia em Santa Barbara. 
Este disco "antologia" contém 20 poemas:

1. Felicidade
2. Humanidade
3. Ode para o Futuro
4. Glosa à chegada do Inverno
5. Ó doce Perspicácia
6. As Evidências - Soneto XI
7. Epígrafe para a Arte de Furtar
8. A Paz - I,II,III,IV,V
9. Quem a tem
10. Uma pequenina luz
11. Como queiras Amor...
12. Camões dirige-se...
13. Anósia
14. Requiem de Mozart - I,II,III,IV
15. Missa Solene de Beethoven
16. Sonetos da visão perpétua - I,VII
17. Os ossos do Imperador
18. Madrugada
19. Tu és terra...
20. Conheço o Sal...

Disco na integra com detalhe de capa (ed. 2011)




domingo, 27 de março de 2016

O QUE ESPERA O POETA DO LEITOR?


José Carreiro, 1993.


         No Dia Mundial da Poesia ouvimos dois poetas recém-publicados de duas gerações:
         Filipa Leal e Luís Filipe Castro Mendes

Está um pouco esquecida a frase batida de que Portugal é um país de poetas, mesmo que a realidade mostre que continua a ser verdade. Com um benefício, desta vez os poetas não andam a queixar-se de ninguém os ler ou de não serem editados.

Basta um exemplo, o de Matilde Campilho, que em poucos meses teve quatro edições do seu livro. Explicação para o facto? Pergunta-se ao responsável pela coleção onde foi publicado o Jóquei, o também poeta Pedro Mexia, se há novos leitores ou se são os habituais: "Os leitores de um livro de poesia são, em geral, leitores habituais de poesia, ou seja, poucos. Mas o Jóquei chegou a muitíssimo mais gente."

Não é preciso um grande esforço para se ver que as editoras estão atentas ao fenómeno dos novos poetas, pois, como diz Pedro Mexia, mesmo que a coleção que organiza publique apenas quatro títulos por ano, "o catálogo tem poetas portugueses vivos, quase todos jovens". Um investimento que já deu resultados, afirma: "Rosa Oliveira publicou na coleção o seu primeiro livro de poemas, ao qual foi atribuído o Prémio Pen Clube Primeira Obra."
Também a Assírio & Alvim, a editora com o melhor currículo na edição de poesia, está atenta à obra dos principais poetas portugueses, estando a publicar obras completas de Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Ruy Belo e Rui Cinatti. Mas a preocupação da editora também é para com os poetas vivos, sendo vários os títulos recentes de Gastão Cruz, Ana Luísa Amaral ou Armando da Silva Carvalho (ler coluna à direita), bem como uma especial atenção às novas gerações, como é o caso de Daniel Jonas, ou às mais recentes, como Filipa Leal.

           E o que espera o poeta do leitor?
Sete poetas explicam a sua relação com os leitores. Esperam alguma ligação ou desprezam essa possibilidade? Escrevem para quem compra livros ou o lado de lá não tem importância? As respostas diferem, tal como são diferentes os poemas de cada um.


Ana Luísa Amaral  |  RUI OLIVEIRA / GLOBAL IMAGENS


Ana Luísa Amaral
Do poeta o leitor nada espera, a não ser partilha de paixão. O que não é pouco. Mas essa expectativa só se dá depois de o poema estar passado a livro. Porque, durante a escrita do poema, o poeta nada espera. "Todo o poema é sobre aquele que sobre ele escreve", disse uma vez. Ao escrever, o poeta escreve para si, porque precisa, e sempre a partir do próprio corpo e do mundo, tal como o vê. O leitor vem sempre depois e ao chegar ao poema recebe-o como se fosse seu (como o poeta recebe os poemas dos outros que antes dele escreveram). A unir poeta e leitor está a paixão - que, por ser paixão, tem sempre uma dimensão de espantamento e de assombro. Ou de desassossego. Depois do poema partilhado, desassossegar o leitor - que mais pode, pois, o poeta esperar?

           António Carlos Cortez
O poeta espera que o leitor entenda que a poesia não é a mera emoção de um eu textual que pode corresponder ao autor empírico. O poeta, consciente de que o trabalho da palavra é a projeção de uma emoção vivida e depois transfigurada em linguagem, persegue um leitor que partilhe esta mesma conceção de trabalho. O poeta não procura o leitor romântico, aquele que pensa que a poesia é a rima bem feitinha ou uma espécie de jogo floral. Não procura um leitor cheio de superstições literárias. Procuro um leitor sensível e inteligente, o que está atento ao trabalho frásico e às imagens; procuro um leitor atento como uma antena, para lembrar Sophia.

          Cláudia R. Sampaio
Não espero nada quando escrevo, não penso no exterior. Escrever é ser solidão. Uma solidão que não assusta, tão necessária como a visão deste enigma que é esta superfície que pisamos, sem nome, sem porquê. Escrever um poema pode ser tão perigoso como estar à beira de um precipício. O leitor deveria ter a noção desse perigo, dessa urgência de vertigem que faz mover a caneta. Por isso, que leia não com os olhos mas com a vida toda, com a fome, com o invisível. Só assim poderá ter o estremecimento necessário ao entendimento do que está para além da palavra, e ser também ele poema.

           João Luís Barreto Guimarães
Pouca coisa. Que o leitor revele um interesse único pelo poema que o poeta produziu. Que aguarde ansiosamente cada novo livro como se de uma singular oferenda se tratasse. Que lhe dedique em exclusivo tempo de qualidade. Que use de um naipe de faculdades sensitivas e cognitivas para entrar no texto e se espante com a inteligência e o brilhantismo do mesmo. Que, após entrar dentro do texto, permita que o texto entre dentro de si. O que o poeta espera do leitor é que o leitor o admire e o reclame e o ame, mais ou menos para sempre. É isto que o poeta espera do leitor. Coisa pouca, realmente.

           José Tolentino Mendonça
O poeta não espera nada, e só assim está certo. Aquela experiência de solidão e graça, aquele misto de façanha e medo que se prova na construção de um poema pede esse absoluto desprendimento. O poeta não espera nada, portanto. Mas o poema espera tudo. Poder-se-ia dizer que espera ser lido, escutado mesmo que de passagem, criticado, analisado, reencontrado, refeito, tatuado numa labareda ou até esquecido. Tudo isso. Creio, porém, que o poema talvez espere simplesmente um amigo que de longe venha, como diria Ruy Belo.

Maria Teresa Horta  |  GONÇALO VILLAVERDE/GLOBAL IMAGENS


Maria Teresa Horta
Do meu leitor, espero que seja inteligente, exigente e criativo, e queira da minha poesia o mesmo que eu exijo: sempre mais e melhor, voando além de mim mesma.

           Nuno Júdice
Espero do leitor que abra um livro de poesia como se abre uma caixa de fósforos: fazendo a cada poema o que se faz quando se risca um fósforo, para que ele se acenda e o seu fogo ilumine ou incendeie quem o lê. E é isso que eu, colocando-me na posição de leitor, espero de um poema: a capacidade de revelar nas palavras e nas imagens a música, a interrogação, a inquietação, mas também a perceção daquilo a que chamei "o mistério da beleza". É isso que procuro quando escrevo, tentando captar na convergência dos ventos os sinais de que a poesia continua a abrir horizontes surpreendentes num permanente convite à viagem para dentro e para fora de nós.

João Céu e Silva, Sucesso da poesia evita confronto entre gerações de poetas” in DN Artes, 2016-03-21


Poesia a reboque das edições de autor

José Carreiro, Ponta Delgada, 2005-11-30. Chuva de Época. Edição de autor.

“Invisível” para as massas durante quase todo o ano, o género poético continua a exibir um dinamismo insuspeito, numa espécie de milagre que desafia a lógica e a razão. O circuito da poesia, que inclui recitais, tertúlias ou festivais, atravessa a totalidade do território nacional e é frequentado por entusiastas de diferentes gerações, na maior parte candidatos a poetas.

Bem diferente é o panorama editorial. Não que o número de edições seja escasso, mas porque, perante a retração das editoras, está cada vez mais dependente do investimento dos próprios autores na compra de exemplares que suportem os custos de impressão. Segundo números recolhidos pelo Jornal de Notícias junto da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), foram publicados em território nacional, só na última década, mais de 15 mil livros de poesia (15.660), o que equivale a 4.5% da produção editorial. Nesse período, 180 editoras publicaram pelo menos um livro de poesia. As que desenvolvem atividade regular neste género, todavia, são uma minoria.
Ainda segundo a APEL, nos últimos anos “o aumento tem sido gradual”, sem, no entanto, especificar esse incremento. Certo é que “a maioria das obras são edições de autor” assinala a mesma fonte. A percentagem seria ainda mais elevada se incluíssemos as editoras de autor com chancela, ou seja, livros publicados por pretensas editoras mas que, na prática, obrigam o escritor a assumir (mais do que) a totalidade dos custos de edição, cobrando preços que variam entre os 1500 e os três mil euros. Mais grave ainda: em muitos casos, os livros não chegam sequer a ser dar entrada no mercado editorial.

Poetas “mais pobres”
A situação não causa estranheza ao poeta A. Pedro Ribeiro, com mais de uma dezena de obras publicadas, que diz mesmo que a prática é cada vez mais generalizada. “Quase todas as editoras pedem dinheiro para publicar”, acusa.
Vasco David, editor da Assírio & Alvim, reconhece que “existem mais opções” de publicação hoje, mas adverte, por outro lado, que “muitas delas não chegam a dar qualquer visibilidade aos autores”. “Acabam é por deixá-los mais pobres”, constata.
As editoras de poesia que, não pertencendo a nenhum grande grupo, se recusam a entrar no jogo das edições custeadas enfrentam dificuldades severas. É o caso da mítica Edições Mortas, que hoje publica apenas a revista Piolho. Imbuído da “mesma necessidade de repetir, conspirar e corromper como se não houvesse amanhã”, o editor e poeta A. Dasilva O. observa que “Portugal não merece os editores, em extinção, que persegue e condena”; lamentando “a promoção e glorificação dos editores de iliteracia”.
Apesar dos avanços tecnológicos da última década terem facilitado a edição, o poeta João Luís Barreto Guimarães acredita que o papel do editor de poesia “ainda é fundamental”. “As plataformas online são ótimas facilitadoras da divulgação, mas não devem ser aceleradoras da publicação, A edição de poesia carece de tempo e de juízo crítico”, defende o autor do recente Mediterrâneo.
Idêntica opinião acerca do impacto das tecnologias na edição tem o responsável da Assírio & Alvim, convicto de que “a Internet não funciona como um veículo de edição, mas sim como uma plataforma de publicação e muitas vezes de auto-publicação”.
Menos consensual parece ser a questão do número de leitores de poesia. Vasco David acredita que “se tem mantido estável, o que só por si é notável, considerando que existem cada vez menos livrarias”. Além disso, prossegue, “as livrarias apostam cada vez menos neste género, optando por uma oferta massificada e cada vez mais comercial”.
Membro ativo de tertúlias e sessões de poesia, A. Pedro Ribeiro dirige palavras críticas “aos versejadores da corte”, mais interessados em “ganharem prémios” do que no exercício pleno e desinteressado da escrita poética.
A questão volta a não gerar consenso. João Luís Barreto Guimarães considera-as úteis, ao funcionarem como “focos de resistência", e Vasco David diz que “há iniciativas muito boas e outras nem tanto”. Mais contundente é o editor da 50 Kg, que dedica palavras corrosivas ao (epi)fenómeno: “Essas iniciativas sobre a poesia estão na ordem do espetáculo. É por isso que se assiste a espetáculos poéticos, com música, cuspidores de fogo, novos jograis, e até strippers... Isso tudo para plena satisfação de um público consumidor de espetáculos... Mais leitores? Ui, 'tá' quieto!”.

Rui Azevedo Ribeiro, por seu turno, prefere apontar o dedo aos “conglomerados editoriais, que agora proliferam”, responsáveis pela atual desregulação do mercado. No entender do também poeta, os grandes grupos “também já possuem meios de expressão da crítica”, pelo que “começaram a introduzir novos autores que não passam por um crivo de 'qualidade' isento e criticamente eficaz”.

Contra "os versejadores da corte" 
O autor do poema Declaração de amor ao primeiro-ministro diz ainda “ter muitas dúvidas” de que hoje existam mais iniciativas poéticas do que há uma década, por exemplo.

Sérgio Almeida
http://www.jn.pt/blogs/babel/archive/2016/03/26/poesia-a-reboque-das-edi-231-245-es-de-autor.aspx



sábado, 26 de março de 2016

Todos ilhéus | All islanders, Nuno Costa Santos





Nuno Costa Santos

[N. Lisboa, 10.9.1974] De uma família açoriana foi criado em S. Miguel. Frequentou a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde dirigiu a revista Inventio.
É escritor e argumentista. Publicou, entre outros, os livros Dez Regressos e Os Dias Não Estão para Isso. Trabalhou em jornais, na rádio e na televisão e é associado das Produções Fictícias. Teve um programa no canal Q intitulado Melancómico. Escreveu o texto da peça É Preciso Ir Ver – uma Viagem com Jacques Brel e a biografia Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco. Colabora regularmente com a revista Ler e com a Sábado e tem um programa na Vodafone FM. Dá, regularmente, aulas de escrita criativa. Dirige a revista transeatlântico (número zero: setembro de 2014)

Adaptado de http://www.culturacores.azores.gov.pt/ e Azorean Spirit – SATA Magazine n.º 72, fevereiro-abril 2016


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Todos ilhéus

Ao me saberem açoriano, diversos continentais perguntam: "Nunca te fez confusão viver numa ilha?". Mesmo muitos dos que se encantam com as paisagens e o acolhimento, contam-me de um ocasional sentimento de claustrofobia, confessam que por vezes se sentem agoniados por estarem rodeados de mar, por não poderem atravessar fronteiras terrestres, fugir para outra banda, dar uma volta de carro até ao país do lado.
Respondo que não. Que nunca tive esse sentimento quando vivia a tempo inteiro na ilha de São Miguel nem o tenho sempre que regresso a casa e por lá fico, em trabalho ou em férias. Que nunca pensei: "Vivo numa ilha, estou tramado". Revelo até um escândalo: durante o meu crescimento nunca pensei que vivia numa ilha. Nunca reflecti sobre o assunto, muito menos acompanhado de bibliografia.
Nunca passei um minuto a matutar nas questões do "mar por todos os lados", do "isolamento", da "solidão", da "limitação". Estava demasiado preenchido. A ilha era a minha terra, onde tinha vivências contraditórias, umas alegres, outras não, como acontece em qualquer lugar do mundo.
Nem na fase das inquietudes habituais quis levantar voo para território distante. Na adolescência nunca senti o desejo urgente de me ir embora. Viajar para o continente e aí viver era apenas o percurso normal de quem havia terminado o liceu e queria prosseguir os estudos. Não passei tardes no quarto a fantasiar com a vida lisboeta e não fui para cima de uma rocha como um poeta romântico a imaginar os mundos "cosmopolitas" para lá do horizonte. Era feliz onde estava - tanto quanto pode ser feliz um adolescente. Com a sorte de ter uma família, um grupo de amigos, namoradas, uma vida cultural feita de muitos discos, livros e filmes que nos chegavam de fora com a velocidade certa, de beber fininhos bem tirados em cervejarias onde se falava, se debatia e se asneirava. A ilha nunca teve qualquer dramatismo, esse tipo de dramatismo de quem a vê de fora, mesmo quando está dentro.
A ideia de que o ilhéu é um ser prisioneiro entre vagas e de que quer sempre ir mais além do que o espaço que habita é um cliché que convém mais a uma poesia gasta da vivência insular do que à realidade quotidiana. Claro que não me refiro ao sonho emigrante que muitos açorianos tiveram em alturas de dificuldades extremas. Penso naqueles que têm condições materiais mínimas e alcançaram à sua maneira uma posição de conforto e de pertença a uma comunidade com virtudes e naturais defeitos. Muitos deles, claro, associados ao desporto federado de comentar a vida dos outros.
É curioso perceber que muitos dos visitantes que partilham este sentimento repentino de estarem encerrados no meio do Atlântico, quando voltam ao ninho, pouco saem dos seus circuitos habituais. Pouco saem do seu roteiro, seja pessoal ou profissional. Não visitam bairros alheios. Não conhecem o nome das avenidas, das ruas, das freguesias da sua cidade. Vivem em ilhas ainda mais pequenas do que as ilhas onde por instantes se sentiram prisioneiros. Vai-se a ver e somos todos ilhéus. Pensem nisso.

Crónica de Nuno Costa Santos in Azorean Spirit – SATA Magazine n.º 72, fevereiro-abril 2016





MIL FOLHAS

Entrevista: Nuno Costa Santos

Nascido em 1974, Nuno Costa Santos não é propriamente um novato no mundo da escrita, ainda que “Céu Nublado com Boas Abertas” (Quetzal, 2016), o seu primeiro romance, tenha chegado às livrariasapenas este ano. O percurso tem sido feito de livros de poesia ou contos, crónicas avulsas, aventurasbloguianas, programas radiofónicos e televisivos, o que faz deste primeiro livro uma estreia com muito embalo.
A partir de um livro do avô que encontrou numa estante como “um soldado esquecido”, Nuno Costa Santos ficcionou a história de um homem que regressa à sua terra para cumprir uma missão literária, atribuída sem destino específico mas com muita crença pelo seu avô morto: a recolha de histórias recentes da ilha de São Miguel, lá nos indescritíveis Açores. Um livro feito de histórias e tempos cruzados, de personagens que se confundem e fundem, atravessado por muitas referências literárias e uma banda-sonora de eleição. O Deus Me Livro esteve à conversa com Nuno Costa Santos na última edição das Correntes d`Escritas.
Quanto de ti passou para a personagem principal do livro, que regressa aos Açores para cumprir uma herança literária passada pelo avô?
Passou bastante, por um motivo. Ao dialogar com o livro de um avô que se expôs muito, a única forma de ser minimamente leal com esse projecto, de dialogar com esse livro, era eu próprio me jogar bastante como narrador/personagem/protagonista. O livro que encontrei é escrito na primeira pessoa e a viagem é feita na primeira pessoa. E as características da personagem têm muito a ver comigo, ainda que não seja eu. É mais velho, por exemplo, há pormenores, pequenos truques, ilusionismos que fazem parte do jogo da literatura. Mas respondendo à tua pergunta levei muito de mim para dentro do livro: do meu crescimento, da minha adolescência, das minhas opções, dos meus humores, dos meus ressentimentos e dos autores que fui lendo.
O livro tem algumas semelhanças estéticas com as obras de Sebald, desde o tom confessional – quase em forma de diário -, à inclusão de fotografias ou à utilização de muitas citações. Será este seu primeiro romance, também ele, um livro de memórias tocado pela magia da ficção? E que tenta fazer da memória arte, essa “inutilidade suprema” de que se fala ao cair do pano?
O Sebald bastante, mas também o Olivier Rolin do “BaKu”, por exemplo, livro editado pela Sextante e que tem também este lado marcado para a morte, de viagem, um livro que também usa fotografias. Assumo essa herança. Eu escrevo – e isto pode parecer um pouco arrogante – aquilo que gostaria de ler. Podia ter feito um livro mais convencional sob o ponto de vista da arquitectura, pegando na história dos meus avós, um casal que nos anos 40 do século passado é obrigado a separar-se por causa da tuberculose, e que ficam separados durante quatro anos e, ao fim de seis, o elemento masculino do casal tem de tirar um pulmão. Tudo isto dava um romance clássico, uma história de amor. Mas achei que tinha muito mais a ver comigo este diálogo com o livro, comigo próprio, esta espécie de livro do desassossego.
A certa altura lê-se isto: “Admiro nos homens não a valentia mas a capacidade diária de se esquecerem que um dia vão morrer”. Qual é a tua relação com a morte, e de que forma está esta presente na tua vivência?
Há quem diga que os poetas – no sentido genérico do termo – têm, desde muito cedo, uma consciência aguda da própria mortalidade. Eu lembro-me perfeitamente de quando comecei a pensar na morte. Antes disso tinha aquela ideia de que sempre que havia um problema terreno haveria sempre um depois, uma solução – muitas vezes encontrada pelos meus pais -, mas depois de me deparar com a morte comecei a sentir uma certa angústia. Sou uma pessoa muito vulnerável ao mundo, algo que tem tanto de bom como de mau. A parte má é ter essa consciência da sombra, é estar aqui num ambiente porreiro, com esta música, mas poder haver uma imagem que me remeta para a ideia de que vamos todos morrer, que isto vai ser tudo destruído, e que nem este edifício que é tão sólido vai sobreviver. A arte é uma forma de tentar resolver isso.
Pegando nas tuas palavras, “porque é que alguém que tem tudo para acreditar no divino não sente fé?” E não será esta, afinal, algo que todos nós buscamos, como o próprio João Pereira da Costa, que na Cova da Iria acabou por encontrar nada mais que “a pior das clausuras”?
Absolutamente. Aqui nas Correntes nota-se muito isso, há a crença na literatura. Há aqui pessoas que têm uma relação quase religiosa com a literatura, como se fosse um território no qual se pudesse acreditar. Eu tenho essa crença mas também a tendência para questioná-la, sabotá-la, para desconfiar dela. No lado especificamente religioso não fui baptizado, mas a minha mãe ensinou-me a rezar. Havia um pedido final que fazia sempre, que era “Deus faça com que não haja guerras nem tremores de terra”. Estamos todos à procura disso, mesmo os não crentes têm de ter alguma crença. Agora estamos a viver uma era de pequenas crenças, mundanas, como a gastronomia, o gourmet. Se me perguntares qual é a minha, é esta: a possibilidade de viver instantes de felicidade aqui na terra com os meus, com a minha comunidade, e tentar ser o mais solidário com as comunidades que estão distantes da minha. Tenho essa crença na solidariedade.

No livro, o protagonista diz ter trocado o surf pelas páginas irregulares de Artaud, Bréton ou Holderlin. Mais à frente fala-se de Ferreira de Castro, Alves Redol, Pessoa, Sá-Carneiro, Borges Kafka ou Joyce. São estas as influências ou, pelo menos, as tuas preferências no que diz respeito à literatura?
Falaste aí de uma mistura de referências minhas e do meu avô. Esses escritores neo-realistas foram muito absorvidos pelo meu avô, e foram eles que o sintonizaram muito para o sentimento de desigualdade social, que havia na terra onde morava, uma sociedade rural muito estratificada e pobre. No meu caso esses escritores iniciais, sobretudo Holderlin, Artaud, Breton, foram os que li em cima dos rochedos, em Rabo de Peixe, enquanto alguns dos meus amigos surfavam. Diverti-me, também fiz os meus tubos mas nas páginas da literatura. E acabávamos todos a beber uma imperial. Ou um fino como se diz aqui.
No que toca a música, há também uma diversificada banda sonora que vai de composições ao piano e Pink Floyd a sonoridades mais atrevidas como as dos My Bloody Valentine ou dos Jesus & Mary Chain. É esta também parte da banda sonora da tua vida?

Estou sempre a ouvir música. Ainda agora descobri uma banda de Manchester que me está a fascinar chamada Money, meio baladeira. Mas sim, os My Bloody Valentine fizeram parte da minha adolescência. Lembro-me de ter uma gravação em cassete que emprestei a um amigo que me disse que aquilo devia estar mal gravado. Também Jesus & Mary Chain, The Cure – muito – Joy Division, Bauhaus, B-52`s, mas coisas muito diversas como Meredith Monk, Michael Nyman, Wim Mertens, Miles Davis, Prince, muito daquele catálogo da 4AD, claro, que condiz na perfeição com a paisagem açoriana: como Cocteau Twins, Dead Can Dance, The Moon and The Melodies. Toda a minha vida insular foi cruzada pela música, e até já fiz um filme com amigos em que vou aos Açores buscar os discos que lá deixei, e que passam pelos Pixies, Stones Roses, Inspiral Carpets, Charlatans, nunca mais saía aqui. Mas vejo os discos como uma espécie de catálogo de amigos. A música para mim é tão importante como a literatura, só que nunca seria capaz de ser músico.
Será a vida isto mesmo, um “Céu Nublado com Boas Abertas”?
Acho que sim. A felicidade deste título tem a ver com isso. De se aplicar à meteorologia açoriana e muito à vida do meu avô. Céu muito nebulado, doença, sofrimento até ao limite, nervosismo, raiva e, depois, com boas abertas: a possibilidade de voltar a estar com a minha avó, de dançar, ler, de ter os filhos, de ser gerente bancário, de conseguir se reerguer. Acho que no fundo a vida de todos nós é isto.

terça-feira, 22 de março de 2016

A ameaçada aventura da edição de poesia em Portugal


A ameaçada aventura da edição de poesia em Portugal
DIOGO VAZ PINTO / DAVID TELES PEREIRAhttp://www.ionline.pt/501132, 22/03/2016 10:55


O dia mundial da poesia veio e passou, os vivos cuidaram de si, os mortos pontuaram as lembranças, para a ressaca pouco ficou mesmo porque a festa está longe de ter sido rija, ainda assim, como escreveu Carlos Drummond de Andrade, fica sempre um pouco de tudo, às vezes um botão, às vezes um rato, no caso da poesia ficam os livros, as grandes colecções, e é uma sorte porque esse pouco talvez seja o melhor que a poesia tem





Há muito por fazer. E muito foi feito no passado mas parece ter-se perdido, sem direito a um futuro, ou sequer à honra da memória. Do que marca os dias hoje, são mais os projectos, impulsos, a razão que sonha um país onde fosse possível contar com a rede necessária de cúmplices para fazer de novo uma grande colecção de poesia em Portugal. Faltam, na verdade, os amantes. Os leitores. E, como é óbvio, “faltas tu faltas tu/ falta que te completem ou destruam/ não da maneira rilkeana vigilante mortal solícita e obrigada/ – não, de nenhuma maneira resultante!”
Faltam-lhe amantes, o que é diferente desses seus distantes admiradores, porque como lembrava Wisława Szymborska, se alguns gostam de poesia, gostar também se gosta de canja de galinha, da lisonja e da cor azul, como se gosta de um velho cachecol, de levar a sua avante, de fazer festas a um cão. Mas a poesia com festas não vai lá. E é preciso aproveitar para lembrar o que já foi da edição de poesia no nosso país, das colecções hoje históricas, coleccionadas, traficadas pelos muito poucos que podem, alguns mais seduzidos pela conquista de outra lombada no afinco com que compõem as suas estantes, os taxidermistas da vida selvagem dos livros.


Lembremos então as excelentes colecções da Portugália, da Guimarães, da Moraes, a extraordinária série dos Cadernos de Poesia, da Dom Quixote. Tiravam-se milhares de exemplares, e existiam leitores para eles. Um público ansioso por "oferecer a boca ao astro", os que faziam por trazer o “nariz amarelo de pólen”.
É ilustrativo o bastante o caso de António Alçada Baptista, um homem que se fez do lado da cultura, vindo da província, contra o contentamento desgraçado das suas origens: "Na minha visão da infância e da adolescência, Salazar era o procurador, em Lisboa, dos meus avós, dos meus pais, dos meus tios e dos padres."

Uns bons anos antes de fundar a revista O Tempo e o Modo, Baptista trocou a advocacia pelo que viria a chamar a sua grande aventura. Soube, em 1958, que a Editora-Livraria Moraes estava à venda e lá foi almirantar-se, contando na tripulação com um grupo de jovens recém-licenciados católicos – Pedro Tamen, João Bénard da Costa e Nuno Bragança, entre outros. Juntos cobriram distâncias que a outros teriam parecido impossíveis.



"Nunca me passou pela cabeça que tínhamos nas mãos uma empresa comercial sujeita a critérios de rentabilidade e julgava que, como nós, alguns milhares de portugueses estavam ansiosos por livros. (…) Mas "esta aventura falhou porque a camada da sociedade portuguesa a quem ela se dirigia recusou frontalmente a sua colaboração e não esteve disposta a correr nenhum risco nem, na prática, se sentiu minimamente solidária com o esforço que estava a ser feito", lembraria Alçada Baptista. Foi o fim daquela aventura mas, mais que isso, marcou também o momento em que os editores deixaram de poder contar com um público exigente, leal e comprometido.

A morte de Vitor Silva Tavares no ano passado ditou o fim da editora do subterrâneo, a &etc, uma empresa poética que resistia há mais de 40 anos, sem lucro nem agravo. VST foi em todos os sentidos no percurso da palavra à acção o exemplo do editor-poeta, aquele que apontou o estreito mas não menos aventuroso caminho que restava para as editoras de vão de escada, as pequenas, humílissimas, mas independentes, as editoras que hoje seguram o sufocado fôlego de um espaço que já nem conta com os 300 leitores que permitiam ainda que se falasse numa linha irredutível que não deixaria aquele nicho cair na pura indigência.
Hoje resistem algumas colecções com tradição embora longe dos tempos mais auspiciosos – a Relógio D’Água, a Cotovia, e a Assírio & Alvim, anexada pela federação Porto Editora. Surgiu entretanto com uma firmeza assinalável a da Tinta-da-China, com Pedro Mexia no leme. Depois há o universo atomizado das tais editoras pequenas ou minúsculas, mas persistentes, incansáveis, que dificilmente conquistam posições mas também não arredam pé: Averno, Mariposa Azual, Artefacto, Companhia das Ilhas, Do Lado Esquerdo, Douda Correria...




    David Teles Pereira
Já se disse que muito foi feito no passado e que, infelizmente, grande parte desse muito parece hoje perdida. Mas perdida de que forma? Os livros integrantes das grandes colecções de poesia do século XX estão hoje, na maior parte, indisponíveis ou apenas disponíveis em alfarrabistas e a preços tantas vezes pornográficos. Tirando os casos em que os textos foram mais tarde incluídos em obras reunidas dos autores, o que quase só aconteceu relativamente aos autores portugueses, o contacto com as tais colecções exige hoje um esforço quase académico, quase arqueológico, um lugar que até a um bibliófilo pareceria hostil, quando mais aos meros leitores. Contudo, a parte mais significativa deste problema pode ser explicada através da perecibilidade – principalmente a dos interesses – e do passar do tempo, que distribui pelos livros uma justiça que, a bem ver, nem sempre nos é imputável.
Este processo revela, contudo, um outro problema bem maior e deliberado: a falta de diálogo entre as editoras presentes e as editoras passadas, ou melhor, a ausência de memória editorial. É verdade que o património editorial passado, idealmente, deveria desempenhar a mesmíssima função que o património poético anterior cumpre junto dos novos autores. E, nesse mundo ideal, as novas editoras necessariamente estariam neste momento a revisitar a simplicidade e eficácia gráfica dos Cadernos de Poesia ou, para dar um exemplo mais recente, o sóbrio modelo de paginação tão bem aplicado por Olímpio Ferreira na Cotovia, na &etc, na Fenda e nos tempos iniciais da Averno. Mas, se no mundo real isto só a espaços vai acontecendo, que o que nos legitima hoje a desejar um processo de diálogo diferente com o passado? É a edição de poesia que impõe parte do ritmo e sentido nesta arte e, nesta perspectiva, um olhar mais íntimo, mais ajuizado sobre o acervo editorial português permitiria às novas editoras de poesia impor aquilo que neste momento mais falta faz: um ritmo de leitura. Ao invés, com um olhar quase sempre divorciado do passado, o que a edição de poesia em Portugal mais tem feito é atascar ainda mais um ralo já complemente entupido. Poucas tendências recentes da edição de poesia em Portugal se destacam tanto quanto esta aparente obsessão por lançar novos autores. Alguns verão aqui uma vantagem, um exemplo da democratização dos meios de publicação e uma externalidade positiva das redes sociais, quando, na verdade, parecemos todos russos a mandar os nossos compatriotas perder a vida contra os alemães e, neste caso, não há inverno que nos salve. A profusão contemporânea de nomes, aquilo que a um olhar menos atento serviria como indício de vitalidade do meio, pouco ganha em dignidade àquela odienta máxima de que “o caminho é para a frente”. Não é e só algumas vezes foi. Sem memória e referência as editoras não completam sequer uma identidade e, com isso, os nomes que todos os anos acrescentam as fileiras da poesia terão certamente um lugar entre as futuras glórias do esquecimento, num processo que as pequenas tiragens só vão tornar ainda mais implacável. Só num universo editorial que mal consegue dialogar com o que já fez no século XXI – para nem irmos muito longe – se compreende esta abundância constante de novidades. Ao invés, um breve olhar para o passado dar-nos-ia pelo menos um início de conversa com a maior de todas as qualidades editoriais: a ausência de pressa. 

"A ameaçada aventura da edição de poesia em Portugal", http://www.ionline.pt/501132