quinta-feira, 3 de maio de 2018

Ruy Cinatti

   Ruy Cinatti em Timor
(Espólio de Ruy Cinatti na Biblioteca Universitária João Paulo II, Universidade Católica Portuguesa)


RUY
CINATTI

Veio ainda criança para Portugal. Formou-se no Instituto Superior de Agronomia, na especialidade de Fitogeografia, área em que publicou vários trabalhos científicos. Em Oxford, estudou Etnologia e Antropologia Social. Viajou pelo Mundo, tendo vivido alguns anos em Timor, como secretário de gabinete do governador de Timor, entre 1946 e 1948, e como chefe dos serviços de Agricultura do governo de Timor, dedicando a este território vários estudos, na área da fitogeografia e da antropologia social, alguns dos quais publicados pela Junta de Investigação do Ultramar, de que foi investigador. Em 1940, codirigiu, com Tomás Kim e José Blanc de Portugal, na primeira série, e com Jorge de Sena, José Blanc de Portugal e José-Augusto França, na segunda série, a publicação Cadernos de Poesia, que, sob o emblema "Poesia é só uma", apresentava como objetivo "arquivar a atividade da poesia atual sem dependência de escolas ou grupos literários, estéticas ou doutrinas, fórmulas ou programas", subscrevendo, no início da segunda série, uma conceção de poesia como "um compromisso firmado entre um ser humano e o seu tempo, entre uma personalidade e uma sua consciência sensível do mundo, que mutuamente se definem" e uma definição de poeta como "homem destinado a nele se definir a humanidade. Um ser capaz de ter todo o passado íntegro no presente e capaz de transformar o presente integralmente em futuro", através de uma "atitude de lucidez, compreensão e independência". É nas edições Cadernos de Poesia que publica as suas primeiras obras poéticas: Nós Não Somos deste Mundo, em 1941 e, no ano seguinte, Anoitecendo a Vida Recomeça. Entre 1942 e 1943, fundou a revista Aventura, contando como redatores Eduardo Freitas da Costa, José Blanc de Portugal, Jorge de Sena e Manuel Braamcamp Sobral, e apresentando como coordenadas da publicação uma orientação espiritual católica, o acolhimento nas suas páginas de "todas as expressões de beleza, todas as formas do trabalho do homem", enquanto expressões de um "Deus - motivo de toda a criação, origem de toda a justiça", seja sob a forma de contribuições de ordem literária, artística, filosófica, religiosa ou científica; e a união dos seus membros num "processo de integração espiritual", numa "cidadela fundamentada na AMIZADE". A partir de O Livro do Nómada Meu Amigo, de 1958, a presença dos territórios por onde viajou e, sobretudo, de Timor assumir-se-á como "objeto em que se concretiza a aproximação do poeta consigo mesmo e com a vida humana dos outros" (SENA, Jorge de - "Nota de Abertura" a Paisagens Timorenses com Vultos, 1974). Numa viagem que vai do sensível ao metafísico, a poesia parte então do deslumbramento diante da paisagem, para, do seu "manuseamento subjetivo" ("Justificação" do autor a Uma Sequência Timorense, 1970), ir ao encontro total do indivíduo consigo, com o outro e com Deus, numa "experiência pouco menos que mística" (ibi), para voltar como "homem - perene político", ao mundo da circunstância existencial e das exigências éticas, manifestando a indignação e a dor ante a destruição ecológica, a desagregação caótica das sociedades ultramarinas, o devir anárquico do Portugal pós-25 de abril. Mercê do seu trajeto profissional e de uma personalidade que recusou integrar qualquer tipo de "grupelhos" ideológicos ou literários, a poesia de Ruy Cinatti possui uma voz própria, sem comparação com qualquer outra experiência poética contemporânea, nascida de uma liberdade métrica e lexical total, que consegue integrar na obra poética materiais tradicionalmente não poéticos; eivada de uma particular relação a espaços e populações, cuja fragilidade parece condená-los a uma exterminação contra a qual o poeta tinha consciência de não poder lutar, mas que motiva composições de revolta e de grande intensidade emocional, como as de Timor-Amor ou de Paisagens Timorenses com Vultos; originalidade reforçada por uma "associação entre a alma e a natureza, que mutuamente se correspondem e interpenetram" (cf. AMARAL, Fernando Pinto do - prefácio a Obra Poética, 1992, p. 20), e que impõe a leitura, na sua poesia de outras viagens, as da peregrinação interior do homem "que a si próprio impõe o conhecimento do ser para poder salvar-se, como homem e como alma" ("Comentário Disponível" do autor, Obra Poética, p. 156). 
Ruy Cinatti foi distinguido com o Prémio Antero de Quental, pela obra O Livro do meu Amigo Nómada (1958), e com o Prémio Nacional de Poesia, por Sete Septetos (1967).

 in  http://www.infopedia.pt/$ruy-cinatti, Porto: Porto Editora, 2003-2016. 







Para Ruy Cinatti, regressar à terra significa, a um nível imediato, regressar à origem, "missão do poeta que de uma vez para sempre se colocou perante si e a Natureza naquele estado puro com que nasceu" (apud Stilwell 1995, 45). Só que a pulsão da origem e a busca desse estado puro traduzem-se obrigatoriamente na primeira pulsação do olhar em estado nascente, e é neste sentido concreto que a divisa "olhos novos para contemplar mundos novos", gravada à mão num apontamento inédito que evoca "uma noite no mar alto algures entre Cabo Verde e Bissau" (idem, 3z e 394), deve ser equacionada como a dobradiça que articula dois dos grandes núcleos temáticos que compõem a obra poética de Ruy Cinatti, a infância e a viagem. […]
A infância e a viagem constituem os dois estados nascentes de um poeta que, ao emergir da sua crisálida, entende que partir equivale rigorosamente a nascer. O que está em causa é apenas a mais completa novidade e a contínua surpresa do mundo, facultadas pela visão em permanente estado de deslumbramento. Se existe um impulso adâmico na poesia de Ruy Cinatti, é aqui que ele se situa, no lugar onde o princípio do homem e o princípio da humanidade, a Infância e o Paraíso se cruzam no movimento das pálpebras que pela primeira vez se abrem, para contemplar à luz do sol, como quis Caeiro, "a eterna novidade do Mundo", contrariando o entrópico "tédio da retina" instaurado pela rotina, a fim de aí se gerarem as "palavras nunca escritas" (idem: 342) e de se consumar essa singular identidade entre Poeta e Criança que Baudelaire apregoou em termos inesquecíveis. Neste contexto, toma todo o sentido a citação que Ruy Cinatti faz de George Calderon, sobre um Tahitiano, "Tudo o que Amaru faz é poesia, porque ele começa sempre no princípio" (apud Stilwell 1995: 241). Como em Caeiro, trata se de aprender a desaprender, ou de preservar aquilo a que Cinatti expressivamente chama, em Memória Descritiva, o "dom de pasmar" (Cinatti 1992: 328). O pasmo provoca o espasmo do olhar perante o mundo, colocando os "olhos fora d'órbita" (idem: 374), e esta é a mais essencial deslocação que gera aquilo que João Gaspar Simões designou como o "nomadismo estrutural" de Ruy Cinatti (Simões 1999a: 307) – encetado com os "olhos vagabundos" de O Livro do Nómada Meu Amigo (Cinatti 1992: 109) -, assim como a composição mais adolescente do que propriamente infantil do seu verso. […]

Ler mais: “Olhos novos para contemplar mundos novos: corografias de Ruy Cinatti”, Joana Matos Frias. Cadernos de Literatura Comparada - 24/25. Deslocações Criativas. Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, junho/ dezembro 2011


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    A Geração dos Cadernos de Poesia
 
Quando se extingue a revista Presença e começa a ganhar força o movimento neorrealista, a literatura portuguesa vive um clima de irredutível polémica entre as conceções da «poesia pura» e da «poesia social», que no fundo representa uma crise do processo modernista iniciado pela geração de Orpheu. É com o propósito de empreenderem uma superação ética do impasse, sem prejuízo da diversidade estética, que surgem os Cadernos de Poesia (1940-1953), dirigidos por Tomaz Kim, José Blanc de Portugal e Ruy Cinatti. Todavia, o empreendimento irá frutificar numa atitude original que concilia o esteticismo modernista e o empenhamento ético da poesia. Alguns dos autores associados aos Cadernos de Poesia, como Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade, terão uma influência decisiva nas opções estéticas das novas gerações a partir de meados do século.

 

 
Ruy Cinatti

 

O percurso biográfico de Ruy Cinatti (Londres, 1915 - Lisboa, 1986) contribui em grande parte para a compreensão da poesia de que é autor, desde a sua íntima relação com a Inglaterra, onde nasceu e fez estudos de etnologia e antropologia social, o que lhe possibilitou o conhecimento da literatura inglesa contemporânea, até aos trabalhos de pesquisa, enquanto engenheiro agrónomo, nas áreas da fitogeografia e da meteorologia, ou, ainda, até às ligações profissionais e vivenciais com o então Ultramar português e às sucessivas permanências em Timor, de 1946 a 1966.
Cinco anos após a publicação, em 1936, na revista Mundo Português, do conto juvenil Ossobó, reeditado em 1967, Ruy Cinatti estreia-se em livro, numa edição dos Cadernos de Poesia, com Nós não Somos deste Mundo (1941), patenteando uma discursividade romântica plena de referências católicas, que irá progredir para um misto de imagismo firme, conciso, e de prosaísmo circunstancial cuja originalidade figura entre as mais notáveis expressões poéticas do século XX. A representação imediata e evasiva do sentimento religioso cedo se contém num abstracionismo emocional com preocupações ético-humanistas e numa ironia transcendente moldada em intensas fulgurações imagísticas do real concreto. No essencial, a poesia de Ruy Cinatti estriba-se numa retórica contrapontística, ao mesmo tempo elíptica e aglomerativa, ou simbolista e realista, dispersando-se pela tematização, em registos que oscilam entre a melancolia e a violência satírica, dos mundos dissipados com a queda do Império e a Revolução de Abril, «ilhas perdidas» de que S. Tomé e Timor representam a figuração absoluta. Emocionalmente meditativa e narrativa, de expressão agreste e enxuta, é sua característica específica a mestria com que funde descrição e alusão num antilirismo épico conduzido pelo rigor fenomenológico, não raro fotográfico ou cinematográfico, das «imagens radiantes / que se antepõem / indiferentes a toda a estilística», pela vivência imanente do tempo como fluxo de aparições concretas e, de forma notória, pelo nomadismo heterotópico de uma «corografia emotiva» cheia de floras, faunas e sinais antropológicos de uma nitidez deslumbrante.
Em 1942, ano em que funda a revista Aventura (1942-1944), o autor publica, ainda sob a égide dos Cadernos de Poesia, o segundo volume de poemas, Anoitecendo, a Vida Recomeça. Em 1958, com O Livro do Nómada Meu Amigo, encerra o que podemos considerar um primeiro de quatro ciclos imbricados na sua evolução poética. Em Nós não Somos deste Mundo, destaca-se um adolescentismo contemplativo e alegórico, por vezes rememorativo e de grande densidade metafórica, variando entre o panteísmo paradisíaco em «horizontes tropicais» onde se revela a «terra genesíaca», o visionarismo rimbaldiano que sonda «os acordes secretos I Do mais íntimo ser» e a religiosidade vincadamente católica que faz vibrar no verso o encantamento de Deus. Em Anoitecendo, a Vida Recomeça, num discurso mais metafórico e evocativo, adensa-se a vidência de um sujeito que se forma entre o sentimento de «saudade de uma luz perfeita» e a meditação sobre um futuro figurado como «inocência do mundo», a escuta da «intimidade I Dos ritmos naturais» e a imaginação prosopopeica da «linguagem das coisas, linguagem do inanimado movendo-se». A conciliação do animismo e do nomadismo, que se faz sentir nestes dois conjuntos, vai atingir um alto grau de tensão com O Livro do Nómada Meu Amigo, em que o sonho de um mundo oculto a reaver acaba por coexistir com o despertar de um estado de vigília, a que a evidência da memória e a solidão meditativa trazem um acréscimo de atenção, voltada para a condição humana sob o olhar integrador de Deus (cf. «O Fenómeno Humano»: «A terra inteira erguida ao céu profundo. / Cada passo da História me é presente. / Sou o compasso do mundo. // Nele caminho, nele contemplo o nadai Da minha condição que é toda a sua»). A esta passagem da posição de vidência para uma posição de vigilância corresponde a descoberta de um sujeito que pensa e que instala na metáfora a função ordenadora de uma dualidade retórica, habilmente estruturada pela brevidade e pelo desenvolvimento discursivo (cf. «Linha de Rumo»: «Medito. Ordeno. / Penso o futuro a haver. / E sigo deslumbrado o pensamento I Que se descobre»).
O segundo ciclo, que compreende e consolida os traços mais característicos e originais da poética do autor, é representado por Sete Septetos (1967), O Tédio Recompensado (1968), Memória Descritiva (1971), Conversa de Rotina (1973) e 56 Poemas (1981). O conjunto de 1967, livro magistral a vários títulos, aprofunda os temas do nomadismo e da demanda do espaço paradisíaco («A dolorosa mensagem / da nossa vida / é esta: caminhar sempre»; «as voltas que dou ao mundo / em busca de paraísos»), mas introduz, numa linguagem mais analítica, meditativa e concreta, uma orientação temática para a intersubjetividade e a historicidade humanas, a liberdade e o amor, a justiça, a visão e a cegueira (cf. o admirável «Primeiro Septeto»). O Tédio Recompensado, mediante uma poética da literalidade e um discurso da evidência ecfrástica, incisivo na ironia e nas imagens, provoca uma passagem irreversível da esfera contemplativa para o plano da ação, do sonho para a vigília, do infigurável para a figurabilidade da presença («Dá-te apenas na ação que é a palavra / mais certa deste mundo»; «Livrai-me dos sonhos /em delírio»; «Perturba / o ar com a tua presença»), o que permite alargar o raio intencional a áreas temáticas como a condição humana, a incomunicabilidade e o humanismo filantrópico, ou a vivências concretas como a da solidão no mundo e a da perceção do trágico, a do quotidiano lisboeta e a de inúmeros lugares exóticos. Memória Descritiva é, como o título sugere, um livro que se estrutura sobre uma enunciação onde a memória do tempo e do espaço instala o tempo e o lugar da memória como origem da figura no interior do discurso, isto é, como origem diferencial de uma visualidade interna fundada na experiência do olhar, «contra o tédio da retina» e «o imbecil quotidiano», e numa objetividade desenhada pelo fluxo dos estados de consciência poeticamente vividos. O envolvimento retórico da loci descriptio, o eliptismo sintático da expressão direta, os sucessivos efeitos de naturalidade ou banalidade e a truculência satírica sem freio sustentam em grande medida a força desautomatizante do verso e da imagem, contra «Esta coisa tão alta e tão bisonha I de fazer versos como quem mete a rolha / na boca». Conversa de Rotina, de título igualmente motivado, representa sobretudo uma deriva para uma poética da coloquialidade, tecida por um «tom distraído» caricaturalmente rotineiro, irónico ou satírico, de que resulta uma originalíssima «poesia feita / em forma de piada» a que não falta o ludismo da invenção verbal, saltitando com desenvoltura por «Faits Divers» como «A Força do Hábito», «A Pequena Angústia», o «tedium-vitae» ou a «Conversa de sempre». Neste livro, que figura o «Mundo real anunciado», o invisível enquanto objeto poético é submetido a uma negação radical, que desprende Ruy Cinatti da linha rimbaldiana e rilkiana recenseável em muitos dos seus versos (veja-se, por exemplo, «Lembrando um Cão Chamado Zambeze»: «Por onde andamos nós, poetas, vendo loque não vemos?»). Por fim, 56 Poemas, com organização de João Miguel Fernandes Jorge, consiste numa antologia de «poemas anteriormente publicados em folhas volantes e depois agrupados em coletâneas ainda inéditas», e nela sobressaem, por um lado, o tom não raro burlesco, ácido e verrinoso, o erotismo e o humor negro, o fait -divers e os costumes, definições botânicas eruditas e abundantes referências culturais, uma topografia poética que presentifica paisagens e lugares como Veneza, Beira ou Timor, e, por outro lado, a reconciliação dos pólos místico e empenhado, da atitude religiosa e do enlace intersubjetivo («O que procuro - algumas palavras / que me revelem o prodigioso / mistério aberto entre duas almas»).
O terceiro ciclo prossegue o mesmo tipo de disposição retórica, mas é determinado por uma explícita unidade temática, referente à vivência poética do antigo espaço ultramarino português, com especial destaque para Timor, e à descrição dolorosa de um império em ruínas ante o olhar desesperado do sujeito. Integra os conjuntos Crónica Cabo-Verdiana (1967), Uma Sequência Timorense (1970), Os Poemas do Itinerário Angolano (1974), Timor-Amor (1974), Paisagens Timorenses com Vultos (1974) e Lembranças para S. Tomé e Príncipe - 1972 (1979). Crónica Cabo-Verdiana, subscrito pelo pseudónimo Júlio Celso Delgado, exibe uma desassombrada sátira ao colonizador e seus instrumentos de repressão, em contraponto com a representação lacerante da seca e da fome, da miséria, dos costumes e das lendas que tipificam o colonizado. Dando mostras de uma vasta gama de recursos, Ruy Cinatti compõe uma polifonia textual plena de variações de registo e de sobreposições de planos espácio-temporais, por onde perpassam continuamente o pitoresco da linguagem local e a ironia do concreto em narrativas versificadas de tonalidade popular, transcrições paródicas e anotações socioculturais, estatísticas ou geográficas de alto teor corrosivo. Uma Sequência Timorense, diretamente conectado a O Livro do Nómada Meu Amigo mediante a importação de uma dúzia de poemas, assume, conforme declara o poeta na «Justificação» preliminar, o estatuto de testemunho de «experiências de vida» em Timor. Conjunto de «meditações de um agrónomo-fito geógrafo e de um antropólogo» que testemunham «uma existência condicionada por determinantes morais e científicas», representa o «complemento de um ajuste de contas iniciado em Sete Septetos, estes voltados para o indivíduo e para o seu mundo ético e metafísico». O «poema-crónica» enraíza-se no «mundo da circunstância existencial» e visa desenvolver a dialética «pensamento e ação», isto é, a ideia de transformação da realidade através da linguagem poética. Assiste-se, verso após verso, à narração de «factos da experiência», com alternância de pequenas histórias e meditações existenciais, e à descrição ecfrástica de lugares, com uma toponímia local e um exotismo vocabular sob uma atmosfera de fome, crenças e lendas, numa osmose de naturezas que opera uma perfeita adequação e uma recíproca vibração entre a secura da paisagem e a secura da língua: «o estilo seco / da paisagem:/ letra de ninguém/ na minha prosa [...]. Fascino-me,/ moendo, remoendo até ao cimo/ palavras também secas, / quase estilhaçadas». Esta aderência, mais dialética do que mimológica, catalisa um efeito de vertigem e metamorfose, que a «terrível mutação das formas naturais» e os «pedaços de realidade sentidos até ao paroxismo» procuram sintetizar numa linguagem taquigráfica sacudida por constantes rajadas de imagens. Este livro terá uma solução de continuidade temática, em 1974, por um lado, em Timor-Amor, canto amoroso à «mulher-ilha» no «momento histórico» da ocupação indonésia, percorrido por ondas de um polemismo que não se resigna com o desinteresse do poder revolucionário português pelo destino do território, e, por outro lado, em Paisagens Timorenses com Vultos (nota de abertura de Jorge de Sena), uma «corografia emotiva de Timor» invadida por vivências e itinerários «do nómada meu amigo». Os Poemas do Itinerário Angolano oferece sucessões de relatos de viagem por terras de Angola, intensificados, mediante uma técnica de justaposição de imagens que gera um efeito fenomenológico de aparição súbita, por descrições e anotações de ordem histórica ou geográfica. Lembranças para S. Tomé e Príncipe -1972 reinstaura a memória na origem do poema, ao fixar instantâneos da «ilha-memória» de que Ossobó já dera conta, na sequência de uma viagem tropical do poeta em 1935. A escrita, na «precisão íntima» das imagens, apresenta-se como ato de reconstituição de ilhas edénicas e luxuriantes que, sendo objetos concretos de uma visão poética, geograficamente localizados, com o seu panorama e os seus vestígios do passado, não deixam de preencher o tópico de uma utopia do espaço insular originário, de uma «manhã imensa» que percorre toda a mitologia de Ruy Cinatti.
Por fim, o quarto ciclo, ostensivamente satírico e panfletário, subaproveitando de forma intencional as qualidades da linguagem direta e agreste refinadas a partir de Sete Septetos, engloba Borda d'Alma (1970), Cravo Singular (1974), O a Fazer, Faz-se (1976) e Import-Export (1976). Borda d'Alma, saído em edição ciclostilada, fora do mercado (2.ª ed., 1973), contando com a colaboração «contrapontística» de José Blanc de Portugal e declarando-se impressa «Na Oficina dos antigos 'Cadernos de Poesia'», procede, na totalidade dos poemas, datados de 1969, a uma sátira corrosiva, com nuances parodísticas e derisórias, do sistema eleitoral e da classe política, do regime fascista e da guerra colonial, do destino da Pátria e do Império. Por seu turno, Cravo Singular constitui uma sátira violenta, a quente, dos caminhos revolucionários de Abril. Escritos nos dias que se seguiram à Revolução de 1974, os poemetos, não raro simples pinceladas verbais, registam testemunhos em direto de um observador que se vê a si mesmo alterado pelo excesso das circunstâncias e derrubado do alto da sua euforia para o fundo da desilusão e da amargura, exalando um estado de espírito em tudo semelhante ao evidenciado no «protesto» de Timor-Amor. O rescaldo da Revolução será objeto de O a Fazer, Faz-se e Import-Export, respetivamente «meditação quotidiana» e «memória descritiva» dos «pós-tempos do 25 de Abril», portanto ainda referenciais e de incidências satíricas, com incremento de cedências ao banal da expressão e à expressão do banal. O ciclo termina, significativamente, com o efeito de distorção da paródia anfigúrica intitulada «Ponto Final»: «6 giligentes aplioides puntos / finisterraicos médio bibilutos / colidos látê os maléculoides».
Fora destes quatro ciclos encontra-se o derradeiro livro publicado em vida do autor, Manhã Imensa (1984), que na economia da obra desempenha uma função de síntese e de cúpula. Sob o signo de Calderón, a vida, de que esta poesia procurou figurar e transfigurar experiências radicalmente vividas, reduz-se ao seu sentido essencial de teatro do mundo. Assim, a poesia de Ruy Cinatti, quando parece «anoitecer» e apagar-se na noite escura, ilumina-se e «recomeça» no deslumbramento matinal de uma «manhã imensa». A origem da poesia regressa numa nova claridade: a vivência alucinatória do sonho, o visionarismo diabolizado, e sempre a carga simbólica de um paraíso terrestre, entre Deus e Timor.
De Ruy Cinatti, também autor de vários trabalhos científicos nos domínios da fitogeografia, da meteorologia e da antropologia cultural, foi ainda editada, em 1951, a antologia Poemas Escolhidos, sob a égide dos Cadernos de Poesia, com organização de Alberto de Lacerda. Apesar de ter vindo a público, em 1992, o volume de conjunto Obra Poética (org. de Fernando Pinto do Amaral), permanecem inéditos, no espólio legado à Casa do Gaiato de Lisboa, numerosos textos epistolares, documentais e literários, a cargo de Peter Stilwell. Nos últimos anos, foram dados à estampa os livros de versos Corpo-Alma (1994), Tempo da Cidade (1996), Um Cancioneiro para Timor (1996) e Archaeologia ad Usum Animae (2000).
Luís Adriano Carlos, História da Literatura Portuguesa.
Volume 7. As Correntes Contemporâneas, Lisboa, Publicações Alfa, 2002




Meninos tomaram coragem
Para beberem os rios;
E começaram viagem
Para chegarem aos rios.

Manhã de partida,
Tão fria, tão alva.
Horizonte encantado.
“Olhai, que ali nos vamos”.

Músculos ainda tenros
Empurraram montanhas.
As fontes da água
Resvalam nos vales.

Na foz de todos os rios
Os meninos estão velhos.
A água bebida
Vem do mar profundo.

Meninos bailai.
Bebei os soluços,
Mas dançai, dançai…
Até cair de bruços.

Ruy Cinatti, Nós não Somos deste Mundo


Questionário sobre o poema “Meninos tomaram coragem”, de Ruy Cinatti:

 

1. Regista expressões ou versos que remetam para

a) Percurso

b) Obstáculos

c) Objetivos

d) Determinação

 

2. Podemos dizer que este poema expressa o caminho que se percorre ao longo da vida, desde a infância até à velhice? Justifica a tua resposta.

 

3. Explicita o apelo que o sujeito poético lança na última estrofe.

 

à Assistir à aula n.º 50 de Português – 7.º e 8.º anos (Projeto #ESTUDOEMCASA), sobre "Menino e moço", de António Nobre. "Meninos tomaram coragem", de Ruy Cinatti, 2021-05-04. Disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7828/e541375/portugues-7-e-8-anos (inicia no minuto 14’ 26’’).







***


Quando eu partir, quando eu partir de novo,
A alma e o corpo unidos,
Num último e derradeiro esforço de criação;
Quando eu partir...
Como se um outro ser nascesse
De uma crisálida prestes a morrer sobre um muro estéril,
sem que o milagre lhe abrisse
As janelas da vida... –
Então pertencer-me-ei.
Na minha solidão, as minhas lágrimas
Hão de ter o gosto dos horizontes sonhados na adolescência,
eu serei o senhor da minha própria liberdade.
Nada ficará no lugar que eu ocupei.
O último adeus virá daquelas mãos abertas
Que hão de abençoar um mundo renegado
No silêncio de uma noite em que um navio
Me levar para sempre
Mas ali
Hei de habitar no coração de certos que me amaram;
Ali hei de ser eu como eles próprios me sonharam;
Irremediavelmente...
Para sempre.

Ruy Cinatti, Nós não Somos deste Mundo

***

Linha de rumo

Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Encontro-me parado…
Olho em redor e vejo inacabado
O meu mundo melhor.
Tanto tempo perdido…
Com que saudade o lembro e o bendigo:
Campos de flores
E silvas…
Fonte da vida fui. Medito. Ordeno.
Penso o futuro a haver.
E sigo deslumbrado o pensamento
Que se descobre.
Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Desterrado,
Desterrado prossigo.
E sonho-me sem Pátria e sem Amigos.
Adrede.

Ruy Cinatti, O Livro do Nómada meu Amigo, Guimarães Editores, 1966


Vocabulário:
Linha de Rumo (título): linha que um navio segue, cortando todos os meridianos sob o mesmo ângulo; linha orientadora.
Desterrado (v. 14): expatriado; exilado.
Adrede (v. 17): propositadamente; deliberadamente.

Questionário sobre o poema “Linha de rumo”:   
  1. Transcreve o verso que comprova que o Amor constitui a razão de viver do sujeito poético.
  2. Explicita a ideia contida no verso “Tanto tempo perdido…” (v. 5), evidenciando o motivo que justifica esta afirmação.
  3. Indica a razão pela qual a frase “Fonte da vida fui” (v. 9) pode ser considerada uma metáfora, identificando o sentimento que domina o sujeito poético.
  4. Explica o sentido do verso “E sonho-me sem Pátria e sem Amigos.” (v. 16), relacionando-o com o último verso. 


Novas Leituras. Português 7.º Ano (nova edição), Alice Amaro.
Lisboa, ASA Editores, 2014, p. 220. ISBN: 978-989-23-2258- 2


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Análise

A ilha é de terra e água
e de efeito contra-mútuo:
floresta que, tal a vaga,
ascende do mar à nuvem.
O ar respiram-no todos:
plantas, animais e homens
que no fogo forjam armas
e com elas ferem lume.
O fogo consome os homens
em sua nudez telúrica.
Água, fogo, terra e ar
nutrem de nervo e alma
um panorama essencial.
O fogo é o mais obscuro.

Ruy Cinatti, Uma Sequência Timorense



Morte em Timor

Sobre Timor um fogo fino paira,
alastra, crepita quando da terra se aproxima
e crescente, envolvente, cerca os montes
e coroa se afirma.

Meus olhos sentem a beleza rubra
ululante de cães pela noite fora,
a paciência da floresta destruída,
catana na raiz e depois cinza.

Minha incompreensão em vão procura
ressuscitar as crenças vãs de outrora,
os bosques sagrados onde o frio habita
no temor que as mãos prende e petrifica.

Minha imaginação em vão procura
deter com astros e outras mãos a sina
insidiosa qual a morte de homem
ancorado na árvore que sobre a terra se persigna.

E vejo um monte de palha
ardendo do cimo ao mar que ondula e se derrama nas praias
e contra o denso fumo que circunda,
avanço, resoluto, archote em vida,
proclamando a verdade do cântico,
a dança terreal que me fascina.


Ruy Cinatti, Uma Sequência Timorense


Questionário sobre os poemas “Análise” e “Morte em Timor”:

1. Atenta nos versos:
“O fogo é o mais obscuro.” (in “Análise”, v. 14)
 “Sobre Timor um fogo fino paira.” (in “Morte em Timor”, v. 1)
1.1. Retira dos poemas “Análise” e “Morte em Timor” as palavras/expressões relacionadas com o fogo.
1.2. Na tua opinião, que realidade pretende o sujeito poético transmitir sobre Timor?
1.3. O que tenta o sujeito poético fazer para mudar esta realidade? Justifica com dados textuais retirados do poema “Morte em Timor”.
1.4. Apresenta uma diferença (formal ou temática) entre os dois textos.

Contos & Recontos – Português 7.º Ano (Versão Atualizada – Metas). Carla Marques e Inês Silva, Lisboa, ASA Editores, 2014, pp. 200-201. ISBN: 9789892322551.




Ligações externas:


 BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA JOÃO PAULO II:



CASTELO, Cláudia. Ruy Cinatti: poeta, “agrónomo e etnólogo”, instigador de pesquisas em Timor. In: Atas do Colóquio Timor: Missões Científicas e Antropologia Colonial. AHU, 24‐25 de maio de 2011.

COSTA, Letícia Villela Lima da. Ruy Cinatti: o engenheiro das flores. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2004.

COSTA, Letícia Villela Lima da. Metáforas do Mosaico: Timor Leste em Ruy Cinatti e Luis Cardoso. (Tese) Universidade de São Paulo, 2012.

FRIAS, Joana Matos. “Olhos novos para contemplar mundos novos: corografias de Ruy Cinatti”, Cadernos de Literatura Comparada. Universidade do Porto., junho-dezembro de 2011.

MELLID-FRANCO, Luísa. “Ruy Cinatti, o poeta antropólogo”, Uma questão de palavras, Videofono (produção), 1992.

MOREIRA, João Luís Salgueiro. Ruy Cinatti – O Livro do Nómada meu Amigo ou A Poesia como Nomadismo. (Dissertação) Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2013.

STILWELL, Peter. Recordar Ruy Cinatti”. Lisboa, 1992. Revista Didaskalia, vol. XXII, fasc. 2, 1992.

STILWELL, Peter. ”A Condição do Homem em Ruy Cinatti”, Revista Didaskalia, vol. XXII, 1994.

STILWELL, Peter. ”O Timor de Ruy Cinatti”, revista Camões, n.º 14, Lisboa julho-setembro de 2001.
  


CARREIRO, José. Ruy Cinatti. Portugal, Folha de Poesia, 03-05-2018 (última atualização: 20-07-2022). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/ruy-cinatti.html (1.ª edição: Lusofonia - Plataforma de Apoio ao Estudo da Língua Portuguesa no Mundo, 2016. Projeto concebido por José Carreiro, disponível em http://lusofonia.x10.mx/literatura_portuguesa/RuyCinatti.htm)



terça-feira, 1 de maio de 2018

POESIS, Maria Teresa Horta

Maria Teresa Horta © Gonçalo F. Santos, 03-04-2018


Esta é a minha epopeia
feita de poesia
perdimentos e palavras

sem deuses sem batalhas
sem heróis nem lágrimas
sem o bronze das armas

Poema a poema a poema
paixão após fulgor após beleza
na sua dimensão mais ávida

Maria Teresa Horta, Poesis
Publicações Dom Quixote, 2017. ISBN / 9789722062862




O novo livro de Maria Teresa Horta, Poesis, é uma reflexão sobre a poesia e, também, um retrato poético sobre a vida da própria autora enquanto poetisa, com vários poemas alusivos ao seu percurso pessoal, abordando as dificuldades e as perseguições de que foi alvo enquanto mulher e autora de poesia erótica.
Nota de Imprensa D. Quixote.

*

DESFOLHAGEM

Quem sabe um dia
se encontrem jardins
onde se desfolhe a luz

como se fosse
            folhas de árvore

De livro?
De sabre?

A retomar dilemas…
escrevendo
           poemas

Maria Teresa Horta, Poesis              
Publicações Dom Quixote, 2017             

***

Crónica radiofónica: “Desfolhagem”  a partir do  poema homónimo de Maria Teresa Horta do livro Poesis, 2017:

"Sinais" com Fernando Alves. TSF, 14-06-2017.





ENTREVISTA

A poesia da liberdade: Maria Teresa Horta



Estamos no mês da liberdade. A poesia é liberdade e a liberdade é poesia e nenhuma delas existiria sem palavras. Estas são as de Maria Teresa Horta.
A poetisa conta-nos, letra a letra, como as algemas não suportaram a força de três mulheres, de Três Marias, de milhares de liberdades. Conta-nos, na primeira pessoa, como as grandes lutaram para que pudéssemos, agora, estar a contar esta história. A história das Novas Cartas Portuguesas.

"Não me fale se é grande livro que eu não sei nada disso"

"Nós escrevemos aqui as Novas Cartas Portuguesas, a Censura proibiu-nos, fomos para tribunal, era perigoso, estavamos no fascismo, íamos para as Mónicas, porque eles quiseram-nos castigar tanto que fingiram que nem era um processo político, nós fomos interrogadas pela polícia dos Costumes, onde estavam as prostitutas. Na sala estavam as prostitutas à esperam de serem ouvidas, e nós. Nunca nos caiu os parentes na lama, só que escritor é escritor e prostituta é prostituta - não é superior nem inferior, é diferente. Aliás, o inspetor Parente interrogou-nos, e o meu advogado, Luís Francisco Rebelo, um escritor, disse ‘Mas elas são escritoras, escrevem livros, o livro é muito bom, não é pornográfico, é um grande livro’, e o inspetor disse ‘Desculpe, mas não me fale se é grande livro que eu não sei nada disso’. Pois não, ele era um inspetor da polícia dos Costumes! Interrogava prostitutas e agora tinha três escritoras à frente. Ele só tinha ordem para a humilhação, a castração, a intimidação, por parte do governo, obviamente.
Quando nós vimos que estava a ser muito perigoso, um amigo da Isabel Barreno que ia para Paris teve a coragem - é preciso ter noção que para isto é preciso ter coragem - de se pôr à disposição de poder levar o que nós quiséssemos. Dois, três livros e cartas para quem nós quiséssemos para dizer o que se estava a passar, porque nem isto passava lá para fora, com a censura fascista era muito difícil, a não ser que alguém fosse lá e dissesse. Então ele levou três cartas, três livros das Novas Cartas. Foi para a Simone de Beauvoir, para a Marguerite Duras e para a Christiane Rochefort. Todas as três feministas, porque o feminismo só é mal visto em Portugal e em países de ignorância. Era assim e continua a ser. A Simone de Beauvoir tinha um grande grupo de feministas ligadas a ela, onde estava um grupo latino-americano, brasileiras sobretudo. Dizíamos que sabíamos que não compreendia português, mas que aquele grupo podia traduzir imediatamente e ‘verá que isto não é um panfleto feminista’, e ela fez duas manifestações, na rua, ao fim da tarde, a atravessar Paris, com os escritores todos atrás, e atores e tudo, até à embaixada portuguesa, com velas na mão."

"Minha Senhora de Mim"

Nós almoçávamos juntas todas as semanas, eu trabalhava n’A Capital, sou jornalista - a minha profissão é jornalismo -, a Maria Isabel Barreno e a Maria Velho da Costa estavam a trabalhar juntas no INI, e saiam do emprego, metiam-se no carro da Isabel, passavam pel’A Capital, apanhavam-me e íamos comer ao restaurante Treze na Rua do Século. Dizíamos sempre que um dia havíamos de escrever alguma coisa juntas, mas a coisa foi sempre adiando. Eu publiquei a Minha Senhora de Mim, e a minha vida mudou completamente porque foi apreendida imediatamente, não pela Censura mas pela PIDE, oito dias depois. Entraram pela Dom Quixote, que é a minha editora hoje novamente, e levaram. A editora, a Snu Abecassis, foi chamada ao Ministro Moreira Baptista, que lhe disse ‘Olhe, a senhora publicou este livro que está apreendido. Não lhe vou fechar a editora, mas a próxima vez que publicar esta senhora eu fecho-lhe a editora.’ E ela teve aquela ingenuidade de lhe perguntar ‘Mas seja que livro for que ela escreva?’ e ele disse, ‘Eu explico: se for um livro chamado A História da Carochinha, por Maria Teresa Horta, e a senhora publicar, eu fecho-lhe a editora’.
Entretanto, os telefonemas para minha casa, a toda a hora, a todo o momento, atendidos pelo meu filho, que tinha seis, sete anos, estarrecido, coitado, nem percebia o que se estava a passar, ouvia ‘A sua mãe é uma esta, a sua mãe é uma aquela’; o Luís, que lhe diziam as coisas mais variadas; a mim, que não tinha descanso; de tal maneira que A Capital foi abrangida por isto e as telefonistas faziam uma triagem primeira, e depois ainda passava para o Rogério Fernandes, que estava a trabalhar diante de mim, e ele fazia a segunda triagem para chegar a mim. A minha vida mudou completamente. Havia também aqueles senhores muito simpáticos que me telefonavam, que passavam na triagem porque me admiravam muito, e que me vinham convidar para jantar. E depois havia aqueles que, um dia, eu saio para me encontrar com o Luís - ele estava ainda n’A Capital - à noite, morávamos no bairro social do Arco do Cego, aqui ao pé, um bairro muito solitário, e não há táxis. Para apanhar um táxi àquela hora da noite, tínhamos que ir à estátua do António José de Almeida. Era muito solitário. Eu ia subindo a rua, e sabe aquela coisa que a gente só repara depois? Logo que eu saí havia um carro com uma luz, mas eu só reparei depois. Sei que o carro dá a volta atrás de mim, tenta passar para cima do passeio, mas era um passeio muito pequenino, com aqueles candeeiros que vêm até abaixo - e aí ele batia - então parou mais à frente, mas eu nada disto achei estranho. Parou, saíram dois, um fica ao volante; mandam-me ao chão, desatam a bater-me com a cabeça no chão, a dizerem-me ‘Isto é para tu aprenderes a não escreveres como escreves’. Há um senhor que vem, que era ali do bairro social e que pensou que me estavam a roubar, e disse ‘O que é isso? O que é isso?’ e eles fugiram, não queriam com certeza que ficasse a matrícula, não sei. Ele veio ter comigo e disse ‘A senhora tem de ir para o hospital’, não haviam telemóveis, portanto fomos a casa dele, a mulher ligou, eu falei para o jornal com o Luís, ele veio ter comigo, fui para o Hospital Sta. Maria, não tinha nada, voltei para casa. Mas isto é só para você ver o que aconteceu naquela altura, aquilo foi uma catástrofe. Mudou a minha vida. Por causa de um livro."

"Se uma mulher fazia esta confusão, três?"

"Aí, a Isabel Barreno e a Maria Velho da Costa disseram ‘Bom, isto é um máximo’, e a Maria Velho da Costa disse ‘Agora é que nós devemos escrever. Temos que dizer o que se passa aqui, temos de falar da situação das mulheres em Portugal. Como é que isto é possível?’. Não era possível uma mulher escrever poesia erótica - que horror, que escândalo. Na altura das Novas Cartas, eu falei com homens cultíssimos que me disseram ‘Eu não levei o livro para casa, por causa da minha mulher’, claro, põe maus pensamentos na mulher dele… isto é uma coisa incrível. Aí, a Isabel Barreno, que estava a começar a escrever A Morte da Mãe, não estava muito interessada, e eu e a Fátima íamos falando - temos de arranjar uma mulher existente, não é inventada. A Mariana Alcoforado - e a Isabel disse ‘Vocês estão doidas? Detesto essa mulher. É uma hipócrita.’ Eu nunca percebi porque é que ela era hipócrita e a Isabel, coitadinha, morreu sem me dizer. Acabou o almoço, eu fui para o jornal, elas foram para o trabalho. Na semana seguinte, fomos almoçar e a Maria Isabel Barreno trazia o primeiro texto. Portanto, o único texto que se sabe qual das três fez - nunca nenhuma de nós disse quem escreveu o quê - é aquele. A Isabel escreveu o primeiro texto. A partir daí, tudo o que nos aconteceu já não nos pareceu estranho, porque nós já estávamos à espera de ser um terror. Tínhamos consciência, mas esse era o desafio da Maria Velho da Costa: se uma mulher sozinha fazia esta confusão, este burburinho, esta indignação, três? Vejam bem, três? Mais do dobro. E foi. Claro que foi." 

"Elas vêm por aí abaixo"

"Foi perigoso, e foi terrível, mas isto vai ao primeiro encontro internacional de mulheres, e pela primeira vez, e única até hoje, foi assinado um acordo em que todas as mulheres na parte ocidental do mundo, iam dar apoio às mulheres portuguesas, às Três Marias. E isso mudou a nossa vida. Porque nós podíamos ter ido para as Mónicas imediatamente. Porque nós podíamos ter tido tudo, éramos chacinadas, metidas nas Mónicas durante anos e anos se não tivesse havido o 25 de Abril, mas antes disso, se não tivessem havido estas mulheres que encheram as ruas de Lisboa, que fez com que viesse para aqui a televisão americana, que foi pedir ao juiz, quando ele desse a sentença, licença para filmar em tribunal, e o juiz foi falar com o advogado da Maria Isabel Barreno, Dr. Duarte Vidal, a perguntar: ‘Isto está cheio, dizem de feministas. Elas então vêm por aí abaixo?’. Eu acho isto espantoso. Elas vêm por aí abaixo. Não sei porquê por aí abaixo - podia ser por aí acima, por aí ao lado.
A verdade é que quando nós chegámos, no dia em que ele ia dar a sentença, em março - ainda não era Abril - a praça à frente do tribunal estava completamente cheia de mulheres, de montes de lugares do mundo, desde a Holanda, Brasil, Inglaterra, França, Bélgica, tudo jornalistas. Quando nós chegámos lá, estavam três carrinhas da polícia de choque. Caiu-nos a alma aos pés e dissemos ‘Bom, já sabemos qual é a sentença. E se nós fôssemos perguntar a eles o que é que estão aqui a fazer?’’. Lembrámo-nos que o Carlos Coutinho tinha um processo também na Boa Hora, político, claro, e fomos perguntar. A Isabel disse ‘Ai, eu não estou para isso’, e ficou sentada mesmo ali nas escadinhas da Boa Hora. 

"As Marias vão presas"

"Nós fomos falar com a polícia e dissemos ‘Olhe, se faz favor, porque é que está aqui tanta polícia?’, e ele disse ‘Ah, as meninas não sabem? Pois, é que as Marias vão presas’. Pronto, já estava. Não era preciso o juiz dizer. ‘E está aqui tanta gente estrangeira que pode haver uma manifestação’. A Maria Velho da Costa, quando ouviu isto, disse ‘E agora? Se nos rapam o cabelo?’. Eu acho o máximo. ‘Olha o que tu te foste lembrar! Tu não és como o Sansão! Continuas a escrever’, e de repente, eu disse ‘Papel. E o papel para escrever? Ai, que horror! Como é que eu posso ir sem papel?’. Chegámos ao pé da Isabel e ela disse ‘E eu ralada, olha, paciência’. Já estávamos nisto há anos. Anos. E de repente estava ali aquela solidariedade, aquelas mulheres todas à nossa roda, e chega a menina do tribunal e diz ‘Senhoras doutoras e senhores doutores, o juiz deu parte de doente’. Não foi capaz, não foi capaz de dar aquela sentença diante das câmaras de televisão americana. Sim senhora, muito bem, cumprindo uma ordem do governo. Claro que se armou logo ali uma grande coisa, apareceu a polícia de choque, estupidamente foi subindo por ali fora atrás de nós e arrebanhando as pessoas que iam saindo das lojas, eles é que fizeram uma manifestação enorme. O juiz marcou o dia dez de maio para dar-nos a sentença e entretanto é o 25 de Abril. E pronto. E aconteceu a coisa melhor da minha vida, mais maravilhosa da minha vida, que eu acho que, entre outras coisas - o nascimento do meu filho, o dia em que eu conheci o homem que amo - o 25 de Abril é das coisas mais maravilhosas da minha vida, é a liberdade, porque nada se pode fazer sem liberdade. Não se pode ter luta das mulheres, não se pode ter luta pela escrita, nada. Não se pode ter nada sem liberdade. Eu sou uma lutadora. Eu acho que sou uma sonhadora da liberdade, porque eu não sou capaz de viver sem a liberdade, é a sensação que eu tenho. E vivi quase trinta anos sem a liberdade."
Leia a entrevista completa a Maria Teresa Horta na Vogue Portugal de abril, já nas bancas.

Irina Chitas, 03-04-2018




Maria Teresa Horta, por António Ferreira, 05-08-2017


Maria Teresa Horta: “A paixão pode magoar, mas é tudo o que há de mais maravilhoso”

Aos 80 anos lança um novo livro, Poesis, com a certeza de que ela é a sua própria poesia. Conversa com caminho de regresso à infância e à génese de uma mulher-poetisa insubordinada, desobediente e apaixonada.

Maria Teresa Horta posa para a fotografia. Sobre ela paira um candeeiro. Um globo na forma de uma gota pendente que a mão de um anjo ou de uma mulher agarra. Para a poetisa, é a mão de uma mulher, uma mulher com asas. Quando era pequena, conta, costumava deitar-se no chão e ficar a observar essa figura tão insubmissa e desobediente quanto ela própria quis ser. Ou provou ser, quando publicou “Minha Senhora de Mim”, em abril de 1971, incomodando ‘os bons costumes’ da ditadura de Salazar, que não perdoava às mulheres a escrita erótica; ou quando escandalizou mais uma vez o regime com “Novas Cartas Portuguesas”, que escreveu juntamente com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa; ou quando se recusou a receber o Prémio D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus, das mãos de Pedro Passos Coelho, atribuído ao seu livro “As Luzes de Leonor”, sobre a sua quinta avó, a marquesa de Alorna. Com traduções de poemas seus em inglês, edições a sair em França de “A Dama e o Unicórnio” (2013), um livro de poesia acabado de publicar, “Poesis” (2017), e muitos poemas ainda por escrever, Maria Teresa Horta conversou sobretudo sobre a infância, a mãe, o pai, a família... De outra forma não poderia ser para uma mulher que acredita que somos a nossa génese ou que quem escreve tem de entender de onde vem. Ainda mais quando a escrita se confunde com o próprio ser e se diz: “Eu sou a minha poesia.”
Parabéns, no mês de maio completou 80 anos!
Nem me diga isso. Detesto fazer anos desde pequenina. Tenho uma fotografia, aos 3 anos, com a mão estendida: “Não quero!” E não é que o meu filho nasce exatamente como eu? Um dia fui dar com ele sentadinho numa escada, a chorar. “Magoaste-te?”, perguntei-lhe. “Não”, disse ele. “Não quero fazer anos!”
Porque é que não gosta?
Não gosto de festejar. Sou pouco de festejos, a não ser que seja pela liberdade. Estou sempre pronta para uma manifestação. Também gosto de festejar os aniversários dos meus netos e do Luís [o marido].
Nunca percebeu porquê?
Não, e fiz 17 anos de psicanálise. Nunca percebi porque me angustia desde pequenina. O meu pai perguntava-me porquê. E eu dizia: “Não quero. Não quero. Faz-me mal!”
Não houve uma festa de aniversário em que invertesse esse sentimento?
Talvez, na única festa que fiz a mim mesma. Mas começa logo por ser estranho. Fiz essa festa para me aproximar do amor da minha vida, o Luís. Logo que o vi achei-o tão bonito... Fiquei de imediato envolvida. Na primeira conversa que tivemos, depois de termos assistido a um filme, passámos a noite a discutir. Na altura, achava que gostar de alguém podia magoar muito. Era algo que já vinha das histórias do meu pai e da minha mãe.
Nessa altura já era casada...
Sim, casei aos 17 anos, para poder sair de casa. Atingia-se a maioridade aos 21 anos, mas, como os meus pais eram divorciados, eu seria maior aos 18. O meu pai, que era médico e professor de medicina, não queria que eu escrevesse ou não aceitava o que me levava a escrever. O nosso relacionamento foi sempre muito conturbado. Com a minha mãe foi diferente. Ela era linda de morrer e andou uma quantidade de anos a imitar as atrizes de Hollywood. Às vezes não sabia muito bem se a minha mãe era a Rita Hayworth ou se era ela própria. Lembro-me de o meu pai dizer, quando eu tinha 4 ou 5 anos: “Toma conta da tua mãe.” Foi sempre assim.
Não era muito pesado tomar conta da sua mãe?
Era. Ela era tão voadora. Tão bela. Tão difícil de alcançar. A minha mãe ou a cabeça da minha mãe era muito livre. Já bastante tempo depois do 25 de Abril, uma prima sua, da família Mascarenhas, comentou com ela: “Olha lá, então a tua filha Teresa é feminista?” A minha mãe percebeu logo que havia agressividade na pergunta e respondeu: “É, sim, e eu também era e acho que não sabia.” Isto, para mim, é verdade, embora o entendimento dela sobre feminismo fosse diferente do meu. Havia nela uma rebeldia muito grande em relação à situação da mulher. A minha mãe fazia tudo ao contrário.
Foi uma mulher muito corajosa. Saiu de casa do marido porque se apaixonou...
Sim. Foi.
Embora tivesse sido um grande sofrimento para si...
Sim, mas estive sempre do lado da minha mãe. Acompanhei-a muito. Ela teve grandes perturbações pós-parto. Era uma pessoa muito instável, e quanto mais deprimida ficava mais bonita parecia. Era uma coisa impressionante, perturbante. A minha mãe atravessa a minha poesia desde o primeiro livro até hoje.
Não está mesmo em todos os seus livros?
Está. Há duas coisas que estão sempre na minha poesia. A minha mãe e a poesia. No meu primeiro livro, eu já faço um poema à poesia. E há agora o apogeu disso no “Poesis”. Eu tinha de fazer este livro. Ficaria incompleta se não tivesse vivido para fazer este livro. Quando a minha mãe se foi embora, senti que ela me tinha abandonado. Foi como se houvesse uma tempestade dentro daquela casa... como se andasse tudo pelo ar, comigo, menina, a tentar agarrar-me às coisas, e o meu pai não tivesse feito nada para segurar a minha mãe. Já escrevi vários contos em que transformo o que senti naquele momento. Tudo voa, exceto a minha avó, a mãe do meu pai. A minha avó, que vivia connosco, e que é o grande esteio da minha vida.
Mas morre logo a seguir...
Sim, um mês depois.

Maria Teresa Horta na sua casa em Lisboa, por António Ferreira, 05-08-2017


Fica sem ter onde se agarrar?
Sim. Passei a ter medo de dormir sozinha à noite. A minha avó achou por bem trocar de quarto. Na noite em que mudou de quarto pedi-lhe para encostar a cama dela à minha. Tinha medo. Ela encostou-a e deu-me a mão. E eu acordei a meio da noite com a mão dela agarrada à minha. Estava fria.
Estava morta?
Estava. Foi difícil libertar-me da mão dela, porque tinha a mão muito gelada. Estava agarrada.
A sua avó não aparece tanto na sua escrita...
Está nas “Meninas”, por exemplo.
Mas não volta a ela muitas vezes. É um porto seguro?
É. Nunca tive dúvidas da minha avó. Ela é que me salva. A partir do dia em que ela morre, eu não choro nem falo. Fiquei muda. Ainda hoje não choro. Aprendi a não chorar. Isso torna as meninas pequeninas vulneráveis. Os dois esteios da minha vida, embora de maneiras diferentes, desaparecem no espaço de um mês. Fico com aquele senhor que chegava à noite, o meu pai. A história para trás é muito complicada... A minha mãe também foi criada pelo pai achando que a sua mãe estava morta. De repente, quando se casa, o meu pai recebe um telefonema de uma senhora que quer saber como está a Carlotinha, a minha mãe, dizendo, ao meu pai, que é a mãe dela. Como ele desliga logo a seguir, a minha mãe é obrigada a contratar um detetive para encontrar a mãe. Toda a vida julgara que era órfã de mãe. No bilhete de identidade tinha escrito “mãe incógnita”. Se há coisa menos incógnita é uma mãe.
Tinha ideia de que a sua mãe era da família da marquesa da Alorna?
E era, através do meu avô, o pai dela. O meu avô era um dos irmãos mais novos da família Mascarenhas, logo a minha mãe era sobrinha do conde da Torre. O meu avô conheceu a minha avó numa história estranha. Era solteiro e tinha uma relação com uma senhora que engravidou. Foi com ela fazer um aborto e, na sala de espera, conheceu a minha avó, uma rapariga linda de morrer, que também lá estava para fazer um aborto. Apaixonaram-se. Desfizeram tudo o que estava para trás e foram viver juntos. Da sua relação nasceram três crianças, uma delas é a minha mãe, que o meu avô regista como filhos de mãe incógnita. Um dia, porém, o pai dele, que era quem mandava nele, chama-o e anuncia-lhe que tem de ir buscar os filhos e casar-se com uma prima. E o meu avô vai a casa da minha avó buscar os meninos, deixando a minha avó aos gritos. Quando ele se casa, a minha mãe é colocada num colégio, onde passa a viver, a pensar que é órfã de mãe, até se casar aos 17 anos.
Essa história não foi um escândalo?
Não, porque ele era homem. Se fosse mulher era. Numa família aristocrática, como a minha, havia regras. Sempre gostei do meu avô e fiquei muito dececionada quando soube desta história. Quando ele regista a minha mãe como filha de mãe incógnita já está a pensar em retirar-lhe as crianças. Toda a vida a minha avó materna procurou os filhos.
Porque é que nunca usou o Mascarenhas da sua mãe?
Porque tenho um problema com a aristocracia. Foi a Leonor [e a escrita do livro sobre ela, “As Luzes de Leonor”] que me conciliou com esse lado da família. Pela primeira vez disse que ela era minha avó. Ela conseguiu que eu não tivesse vergonha de dizer que era Mascarenhas. Sinto-me filha do meu pai, que era de uma família pobre. Os Mascarenhas não trabalhavam.
A sua mãe casa por amor?
Sim. Conhece o meu pai num elétrico, num passeio com uma tia que pediu para fazer. Naquela altura, os elétricos eram novidade. Ele usava o elétrico para ir trabalhar. O meu pai era o médico rigoroso e honesto. Eles encontraram-se nesse elétrico e ficaram maravilhados. No dia seguinte, ele foi colocar-se à frente da casa dela. Foi uma coisa muito romântica. Uma descoberta. A única paixão do meu pai foi ela.
Porém, ela deixa de o amar...
Ainda hoje estou para saber o que se passou na cabeça da minha mãe. Primeiro, não tinha mãe. Depois, veio a saber que tinha, e ainda acaba por acompanhar a minha avó no final da sua vida. A minha mãe sempre precisou de ser amada. Ou, mais do que isso, de ser admirada.
Isso é muito claro no seu livro “Meninas”.
Pelos vistos, foi muito pouco amada. Há uma tia, a tia Luísa, que lhe dá afeto. Mas, quando essa tia morre, a minha mãe vai para o colégio, do qual só volta aos fins de semana. Em casa é muito mal recebida pela madrasta, que a odeia, porque ela lhe faz lembrar a outra. Um dia, tinha eu vinte e tal anos, à saída da casa de banho de um cinema, a minha mãe diz-me: “Com esta mania de tirar os anéis, ia deixando aqui a aliança do pai.” Pergunto-lhe: “A aliança do pai?” E ela responde: “Mas qual é que eu devia ter?” Eu disse-lhe: “A do meu padrasto!” Ela morreu com a aliança do meu pai. Ela pode ter saído de casa porque se sentiu pressionada, porque quando tentou acabar com o meu padrasto ele deu um tiro na cabeça à frente dela. A bala não o matou. Entrou por um lado e saiu pelo outro. Perante este ato romântico, ela não podia recuar. A verdade é que eu passo a minha vida a desculpar a minha mãe e a dizer que ela não podia ter feito de outro modo.
É curioso perceber que, à medida que a idade avança, se perde ou se gasta mais tempo a pensar na infância, nos pais...
Não sei como é com os outros. Comigo faz parte do meu imaginário, do meu imaginário poético. Não há nada perdido. Há tudo encontrado. Isto faz parte daquilo em que me tornei; e aquilo em que me tornei é feito do que resolvi ou não resolvi. A mãe é a nossa génese. É de onde partimos. Não dá para iludir. Fiz psicanálise durante 17 anos, e aquilo que nós somos passa pela nossa génese, pela nossa educação. Quando fiz psicanálise, foi com o intuito de saber quem era. A Catherine Clément, que teve e tem uma importância muito grande na minha vida, dizia a mesma coisa. Uma pessoa que escreve tem de entender de onde vem. Portugal era um país em que as mulheres que escreviam nem eram escritoras e raramente publicavam. Quando eu apareço, já é diferente. Existe a Natália Correia, a Fernanda Botelho, a Sophia de Mello Breyner Andresen... Mas elas ainda pertenciam a um lado obscuro.
Por isso é que começa por dizer que vai escrever, nem se imagina como escritora...
Costumo dizer que nasci na biblioteca do meu pai. A casa era pequenina, nos Soeiros, e o meu pai, que lia muito e era uma pessoa muito culta, tinha um escritório forrado a livros. Aquilo era o mundo para mim. Aos 12 anos já achava que a coisa mais maravilhosa do mundo era ser escritora. Custava-me a acreditar que havia escritoras num mundo tão mesquinho em relação às mulheres. A minha avó, que me ensinou a ler, era uma sufragista. Só o soube mais tarde, através da Maria Lamas, apesar de ir às reuniões com ela desde pequenina. Na altura, pensava que ia a casa de amigas. A minha avó morreu sem nunca ter dito uma palavra contra a minha mãe. Tanto que um dia o filho disse-lhe: “Afinal, a mãe é mãe dela ou é minha?” E ela responde: “Não se tira os filhos às mães, e chega de maus tratos às meninas.”
A Teresa só podia ser feminista...
Acho que sim. Aprendi a ler com a minha avó, mas de um modo muito caótico. Foi por isso que o meu pai resolveu colocar-me numa professora por volta dos meus 5 anos, e a professora ensinou-me a escrever em dez dias. Deixo de ser muda quando começo a escrever. A escrita era uma falta de expressão fundamental na minha vida. Resolvo escrever romances mal sei escrever. Comecei nos cadernos do meu pai, nos que ele não queria mais e onde deixava quase sempre no final, vá lá saber-se porquê, quatro páginas em branco. Mas os meus romances eram sempre amorais. Ainda tenho um desses textos na minha mão que a minha mãe guardou.
Essa perversidade manteve-se?
Acho que sim. Mais na ficção. Só escrevo poesia aos 14 anos. Faço um poema na mata do Buçaco. Para mim, a poesia era uma coisa linda. Achava muito estranho haver tão poucas poetisas publicadas. O meu pai não tinha uma mulher na estante do escritório dele.
Mas a sua avó tinha um livro da marquesa de Alorna...
A minha mãe tinha-o em cima da mesa, na salinha dela. Um dia fui perguntar à minha avó se havia escritoras. A minha mãe ouviu a conversa e disse: “Não gostas tanto daquela fotografia da tua avó que está no palácio [de Benfica]? Estás sempre a olhar para ela... Ela é escritora.” É aí que eu me apaixono pela Leonor. Há uma ligação muito grande na maneira de ser, na desobediência. Mas a coisa que é mais conivente entre mim e a Leonor é o papel da poetisa. A Leonor foi sempre a poetisa. Eu também sou as duas coisas ao mesmo tempo. Não sou a avó e a poetisa. Sou a avó poetisa. Não há separação. A Leonor também nunca a teve. Era ela e aquela desobediência que não a deixava. Às vezes, ela queria ser bem-comportada. Eu nunca o quis. Ela começa uma carta muito bem e, de repente, vai galopando e acaba a dizer as coisas mais inconcebíveis segundo as normas da época. Sempre teve a noção de que se podia prejudicar. Tentou controlar-se, mas o ser autêntico que ela foi sempre venceu. E aquilo que mais me caracteriza é a desobediência e a insubordinação.
Mas depois não se importa de tomar conta da casa, de engomar, cozinhar, lavar a loiça...
Não é verdade. Detesto. Faço-o porque não tenho dinheiro. Todas as coisas têm um preço. É a minha vida. Levar uma vida à risca, ter determinados princípios e não me esquecer de quem sou, em momento nenhum, tem custos. É das coisas de que mais me orgulho. Nunca fiz nada de que tenha vergonha. Há aqueles princípios de vida, de norma, de honestidade, de coerência... Isso é importante. Das coisas boas da minha vida é o meu filho, e é o Luís, que é o meu amor. O meu grande amor.
E como é que um amor se reinventa ao longo de 54 anos?
Não sei. Não faço ideia nenhuma. Reinventa-se. Hoje, quando olho para o Luís, ainda tenho o mesmo encantamento. É aquela coisa assim: “Eu não posso viver sem ti.” Ainda digo “amo-te” antes de adormecer. Acordo de noite para o ouvir respirar, cheirar... A paixão pode magoar, mas é tudo o que há de mais maravilhoso. Não era capaz de viver com nenhum homem que não fosse por paixão.
O seu primeiro casamento não foi por paixão?
Não. Foi por amizade. Era a única maneira de sair de casa. Dava-me muito mal com o meu pai, e onde quer que eu estivesse ele ia buscar-me. Um marido podia defender-me. Na altura, o meu padrasto fascista estava no Caramulo a tratar-se de uma tuberculose e a minha mãe tinha ido com ele. Pela segunda vez fui prescindida, embora a minha mãe tenha lutado por nós. Foi difícil, porque quando uma mulher saía de casa não tinha direito aos filhos.
Pode dizer-se que a sua mãe foi uma espécie de Anna Karenina?
Bastante. Sem aquele final trágico e maravilhoso. A minha mãe gostava demasiado de si própria para se suicidar. Gosto muito da Anna Karenina. Quando Flaubert diz: “A Madame Bovary sou eu”, é de facto verdade. São homens que escrevem sobre o que veem numa mulher. A minha mãe era uma mulher a sério. Não era uma mulher inventada pelos homens, embora eles também a inventassem. De vez em quando deparava-me com essas imagens da minha mãe inventadas pelos homens que eu sabia que não correspondiam ao que ela era. A minha mãe teve grandes problemas. Era muito romanesca, um figura literária, uma ficção. No Caramulo, descobriu o meu segundo padrasto e veio de lá com ele.
Escreveu muito sobre a sua mãe, mas nunca sobre essas peripécias...
“A Paixão Segundo Constança H.” tem muito dela. Tem muito de mim, mas sobretudo dela. Há aquela passagem na praia com os filhos, porque o meu desejo era que a minha mãe, em vez de ter ido com alguém, tivesse feito aquilo. Pegasse em nós três e fosse para uma praia solitária e estivesse connosco. Depois há a parte ficcional, que é a da amiga e a do homem, que não era o meu pai. O meu pai gostava demasiado dele próprio, tinha um ego enorme.
O seu pai é o homem de “Ema”?
Sim, além do escritório que está lá, além da austeridade... O meu pai não era violento, mas usava a sua autoridade. Se alguém mandava naquela casa era ele.
Se não fosse a Leonor, acha que escrevia?
Sim. Já tinha começado. Acredito em fadas e acho que tive uma fada. Quando nasci, ela disse apenas duas coisas: “Esta menina vai ter olhos azuis e vai escrever poesia.” Depois esqueceu-se de mim. Eu nunca existiria sem livros. Era uma menina muito frágil fisicamente. E ainda sou. A minha força está na minha cabeça, na minha vontade. Com a Leonor chega-me o garante de que as mulheres são realmente escritoras e que até há na família uma mulher que escreve, que só o meu pai é que não tem livros escritos por mulheres nem poesia nas estantes, além do Camões, que amo. A poesia aparece mais tarde. A poesia sou eu. A ficção não. Na ficção introduzo-me, construo, e é um deleite, e enfio toda a minha poesia lá dentro. Construo da parte de dentro.
Em “Poesis” escreve: “Eu sou a minha poesia.”
Sim, eu sou a minha poesia, sou exatamente a minha poesia. Não faço o género da escritora que diz: “Ah, eu escrevo, mas é um sofrimento...” Não, é uma alegria.
Diz: “Serei sempre poetisa, não interessa a minha idade.”
Sim, repare, na poesia não interessa nada a idade. Eu sou sobretudo a minha poesia. A poesia, a vida, o mundo dão-me tanto prazer. Tive tanto gosto disto tudo que não interessa a idade. Não me sinto menos. Não vejo nada mais esvaído. Nada me dá tanto prazer como tudo me tem dado. O prazer físico, porque quando escrevo tenho prazer de escrever.
É erótico o ato de escrever?
É! Sempre erótico. Exceto os poemas, que me dão prazer mas que têm a ver com o lado político e com a resistência fascista. Que têm a ver com a sociedade, com os outros... e todo esse lado que me fez fazer “As Mulheres de Abril”, que é aquele livro em que me reconheço menos mas que não me arrependo nada de ter escrito.
O penúltimo poema de “Poesis” chama-se ‘Sem Vassalagem’...
Porque eu vivi sem vassalagem. E termino o livro, ou lacro-o, com ‘Epopeia’: “Esta é a minha epopeia/ feita de poesia/ perdimentos e palavras/ sem deuses sem batalhas/ sem heróis nem lágrimas/ sem o bronze das armas/ Poema a poema a poema/ paixão após fulgor após beleza/ na sua dimensão mais ávida.”
Cumpriu dois dos seus grandes sonhos, “A Dama e o Unicórnio” e “As Feiticeiras”...
Sim, mas ainda estou à espera que o Papa Francisco peça desculpa às mulheres. Já alguma vez ouviu dizer que o primeiro genocídio foi contra as mulheres? A Igreja já pediu desculpa às crianças, mas não às mulheres... Houve sítios onde não se safou uma única mulher. E este livro, “Poesis”, não foi uma promessa feita. Tenho uma obra. Está feita. Eu quero que as pessoas saibam que não se pode dizer: esta é a Teresa Horta e esta é a poesia dela. Quem gostar da obra da Teresa Horta gosta de mim através da minha obra. A minha identidade é poética. Está aqui. Para mim, a poesia é esta correria, esta alegria...
Já fez tudo o que tinha para fazer?
Não. Estou a fazer outro livro neste momento. Escrevo todos os dias três a quatro poemas. Acordo de noite com a poesia, e tenho de me levantar e escrever para não a perder, mas depois já não consigo adormecer. No dia seguinte, as frases ficam em cima das frases, versos e versos, já não me entendo. Escrevo no colo, os poemas andam aqui pela casa. Não uso mesa, máquina, computador... Quando os perco, entro em perfeita loucura. É como se me tirassem um pedaço, um pedaço do coração, e já não respiro. Fica tudo aterrado cá em casa. Fico doida. É como se fosse o poema mais maravilhoso que já escrevi e mais nenhum poeta o teria escrito. Procuro debaixo das coisas, viro tudo... Quando o encontro, pronto, já não ligo mais. Isto é essencial na minha vida, esta é a minha vida, mas levanto-me cedo, cozinho, lavo, engomo...


Entrevista de Cristina Margato e fotos de António Pedro Ferreira, Expresso, 05-08-2017. URL: http://expresso.sapo.pt/cultura/2017-08-05-Maria-Teresa-Horta-A-paixao-pode-magoar-mas-e-tudo-o-que-ha-de-mais-maravilhoso#gs.JafZrbY

Maria Teresa Horta, por António Ferreira, 05-08-2017


Poesis, Maria Teresa Horta” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 01-05-2018. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/poesis-maria-teresa-horta.html