segunda-feira, 10 de junho de 2019

Discurso de Jorge de Sena no 10 de junho de 1977




Discurso proferido na cidade da Guarda, durante as comemorações do “Dia de Camões e das Comunidades Portuguesas”, no dia 10 de junho de 1977 — o primeiro depois da “Revolução dos Cravos”.


É para mim uma honra insigne o ter sido oficialmente convidado pela comissão organizadora das comemorações de Camões em 1975, e do dedicar-se do Dia de Camões à recordação das comunidades portuguesas ou de origem portuguesa dispersas pelo mundo, para aqui falar na minha dupla qualidade de estudioso de Camões, e de residente no estrangeiro, que eu sou. Com efeito, em 1978, cumprem-se trinta anos sobre a primeira vez que, de público me ocupei de Camões, iniciando o que, sem vaidade me permito dizê-lo, tem sido uma contínua campanha para dar a Portugal um Camões autêntico e inteiramente diferente do que tinham feito dele: um Camões profundo, um Camões dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem do nosso tempo, que poderia juntar-se ao espírito da Revolução de Abril de 1974, e ao mesmo tempo sofrer em si mesmo as angústias e as dúvidas do homem moderno que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria consciência. 
Esse meu Camões foi longamente o riso dos eruditos e dos doutos, de qualquer cor ou feitio; foi a indignação do nacionalismo fascista, dentro e fora das universidades, dentro e fora de Portugal; foi a aflição inquieta do catolicismo estreito e tradicional, dentro e fora de Portugal; e foi a desconfiança suspeitosa de muita gente de esquerda, a quem eu oferecia um Camões que deveria ser o deles, quando eles preferiam atacar ou desculpar o Camões dos outros. Foi e ainda é, e será. 
Porque, sendo Camões o maior escritor da nossa língua que é uma das seis grandes línguas do mundo e um dos maiores poetas que esse mundo alguma vez produziu (ainda que esse mundo, na sua maioria, mesmo no Ocidente, o não saiba), ele é uma pedra de toque para portugueses, e porque tentar vê-lo como ele foi e não como as pessoas quiserem ou querem que ele seja, é um escândalo. São essa pedra de toque e esse escândalo o que, neste momento solene, a três anos de distância do 4o. centenário da morte do maior português de todos os tempos, vos trago aqui, certo e seguro de que ele mesmo assim o desejaria. E, antes de mais, peço que, nas minhas palavras anteriores ou nas minhas palavras seguintes, ninguém veja ataques ou referências pessoais que não há; tenhamos todos, tenham todos a humildade de reconhecer que, quando se fala de Camões e de Portugal, não podemos pensar em mais ninguém.
Quanto a ser um residente no estrangeiro, vai para dezoito anos que o sou, o que, curiosamente, é mais ou menos o tempo que o próprio Camões viveu fora de Portugal, desde que dele partiu para as Índias [em 1553, até que regressou,] em 1570, tão pobre como partira, mas com Os Lusíadas no bolso ou na bagagem, para publicá-los. Eu nem estou a regressar, nem tenho Lusíadas nenhuns. Mas não sou exactamente um emigrante no estrangeiro, ainda que neste viva, e com os emigrantes me possa identificar – aqueles emigrantes que vi e tenho visto de perto, primeiro no Brasil e depois nos Estados Unidos, e também pelo mais largo mundo que tenho percorrido, e que, com a sua laboriosidade, a sua dignidade, a sua humanidade convivente, são em toda a parte, míseros e mesquinhos, ou ascendidos e triunfantes, muitas vezes, os embaixadores que Portugal não envia, ou os representantes da cultura que Portugal não exporta.
Por dezassete anos, recordemos, Camões foi apenas um deles, quando ninguém sabia ou podia ainda saber o génio que ele era. Reatando: eu não sou exactamente um emigrante no estrangeiro, porque, quando saí de Portugal, tinha vinte anos de escritor publicado, e desde então a maior parte da minha obra, ou grande parte dela, foi escrita para Portugal ou em Portugal publicada. Seja o que seja, continuo a ser o que era, quando me exilei muito a tempo naqueles idos negros e tristes de 1959: um escritor português que vive no estrangeiro e que mantém um permanente contacto com Portugal, até por obrigação profissional: catedrático de Literatura Portuguesa, que é um dos meus títulos e deveres, não tenho outro remédio senão estar a par do que se publica. Por outro lado, a minha fidelidade a Portugal – e fidelidade é uma das palavras-chave da minha pessoa e da minha obra, como liberdade é outra – nunca me permitiu livrar-me de partilhar (acrescentadas da dor da distância) as dores e as alegrias, os desalentos e as esperanças de Portugal. 


Permitam-me ainda um esclarecimento. Na melhor das intenções, vária imprensa anunciou ou referiu que eu falaria aqui como representante dos luso-americanos. Se alguém pensou que eu tal faria, mais que num plano meramente simbólico de partilhar com eles o viver nos Estados Unidos, enganou-se redondamente. Primeiro que tudo, eu não sou um luso-americano: esta palavra significa não o português que vive na América, mas ou o que adquiriu a cidadania americana, ou o que descende de portugueses e já nasceu americano: luso-americanas são duas filhas minhas, por naturalização, e um neto meu que o é nato, como brasileiro por naturalização eu sou, e dois filhos meus o são natos, enquanto minha mulher e outros cinco filhos mantiveram a nacionalidade portuguesa. E, em segundo lugar, que é o primeiro de todos, eu não recebi dos luso-americanos nenhum mandato eleitoral para falar em nome deles, embora esteja certo de que mo teriam dado, se a eles o tivesse pedido, por saberem que os respeito e estimo, sem distinção de credo ou cor (porque há luso-americanos de cor, idos de Cabo Verde para lá, por exemplo). Democrata como sou, eu não falo em nome de ninguém, sem ter recebido um expresso mandato para tal. Eu fui convidado por Lisboa e de Lisboa, o que é uma honra, mas Lisboa não tem o direito de nomear representantes de nada ou de ninguém. 
Esse vício centralista da nossa tradição administrativa – um dos vícios que Camões denunciou e castigou nos seus Lusíadas – deve ser eliminado e banido dos costumes portugueses, sem perda da autoridade central que deve manter unido um dos povos mais anárquicos do mundo e menos realistas quando de política se trata. Porque os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista, quando se vêem confrontados, como é o caso desde Abril de 1974, com a experiência da liberdade. Isto não sucedeu só agora, e não é senão repetição de outros momentos da nossa história sempre repartida entre o anseio de uma liberdade que ultrapassa os limites da liberdade possível (ou sejam as liberdades dos outros, tão respeitáveis como a de cada um) e o desejo de ter-se um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião. 
Também dos limites da ordem social e dos deveres do homem para consigo mesmo e a sociedade de que faz parte foi Camões um mestre. Assim, aqui, no âmbito de celebrações que são camoneanas e do Portugal disperso pelo mundo desde que o país existe e desde que, no estrangeiro, comunidades portuguesas ou de lusa origem se formaram ou mantiveram, eu não represento luso-americanos, e não falo em nome deles ou de ninguém no largo mundo. Aceito falar, como eu mesmo, da importância e do significado de Camões hoje, e da necessidade de ter presente ao espírito esta ideia tão simples: um país não é só a terra com que se identifica e a gente que vive nela e nasce nela, porque um país é isso mais a irradiação secular da humanidade que exportou. E poucos países do mundo, ao longo dos tempos, terão exportado, proporcionalmente, tanta gente como este.
Sejamos francos e brutais. Há neste momento, milhões de portugueses dispersos pelo mundo em mais de um continente, e não só na Europa de que são mão-de-obra. O país pensa neles, e deseja recordar-se deles. Mas o país, pura e simplesmente, na situação económica que herdou e em que se encontra e toda a gente sabe desastrosa, não pode prescindir do dinheiro deles, ou do dinheiro que eles costumam enviar para a santa terrinha, ao contrário do que faziam e fazem portugueses do território nacional, que mandavam o seu dinheiro para o anonimato dos bancos da Suíça. 
Deste modo, celebrar as Comunidades Portuguesas no dia do santo nacional que celebrou a expansão imperial do país é, ao mesmo tempo, um belo ideal e um cálculo muito prático. Há quem diga e quem pense que celebrações como esta – de Camões ou das comunidades – são uma compensação para a perda ou derrocada do Império oferecida ao sentimento popular, e que isso das comunidades é mesmo ainda pior: uma ideia do fascismo. Antes de mais, neste país há que pôr um basta não só ao fascismo ele mesmo, mas à mania de atribuir tudo ao fascismo, até as ideias. Porque, por esse caminho, ficamos todos sem ideias de que precisamos muito, e os fascistas ou os saudosistas deles acabam convencidos de que tinham ideias, quando ter ideias e ser fascista é uma absoluta impossibilidade intelectual e moral. 
O celebrar-se no presente e no passado em sua gente, o homenagear essa gente e recordá-la aonde quer que viva ou tenha vivido é um imperativo imarcescível da dignidade humana, num dos aspectos que a representa: o pertencer-se directa ou indirectamente a um povo, uma história, uma cultura, que como no caso de Portugal, foi, é e será capaz de diversificar-se em outras. Nenhum internacionalismo que se preze de ter os pés na realidade e na matéria de que somos feitos, pode negar ou ignorar essas realidades tremendas que são uma língua ou muitas, uma raça ou várias, uma cultura por mais adaptável ou capaz de absorção que ela seja, que se identificam com um nome secular – Portugal no nosso caso, aqui e agora.
Pensarão alguns, acreditando no que se fez do pobre Camões durante séculos, que celebrá-lo, ou meditá-lo e lê-lo, é prestar homenagem a um reaccionário horrível, um cantor de imperialismos nefandos, a um espírito preso à estreiteza mais tradicionalista da religião católica. Camões não tem culpa de ter vivido quando a Inquisição e a censura se instituíam todas poderosas: se o condenamos por isso, condenamo-nos nós todos a que, escrevendo ou não-escrevendo, e ainda vivos ou já mortos, resistimos durante décadas a uma censura opressiva, e a uma repressão implacável e insidiosa, escrevendo nas entrelinhas como ele escreveu. 
Isto é, condenamos a vera ideia de “Resistência” que, modernamente, fomos dos primeiros povos da Europa a tristemente conhecer e corajosamente praticar. E sejam quais forem as nossas ideias e as nossas situações políticas, nenhum de vós que me escutais ou não, pode viver sem uma ideia que, genericamente, é inerente à própria condição humana: o resistir a tudo o que pretende diminuir-nos ou confinar-nos. Camões não tem também culpa de ter sido transformado em símbolo dos orgulhos nacionais, em diversos momentos da nossa história em que esse orgulho se viu deprimido e abatido. Claro que esse aproveitamento não teria sido possível se ele não tivesse escrito Os Lusíadas. Mas o restituir a quem o podia ler e o podia sentir mais fundamente um pouco de confiança em horas difíceis, é um acto de caridade, essa virtude que não é só cristã porque é, desde antes do cristianismo, a própria essência da civilização: a solidariedade humana quando a dor nos fere. E o ter sido usado, manipulado e treslido como Camões o foi, ou denegrido como também foi desde a publicação do seu poema, é um dos preços que a grandeza paga neste mundo. 
Camões e a sua obra têm pago esse preço como todos os outros. Deixem-me todavia recordar-vos que o grande aproveitacionismo de Camões para oportunismos de politicagem moderna não foi iniciado pela reacção. Esta, na verdade, e desde sempre, mesmo quando brandindo Camões, sentia que as mãos lhe ardiam. Aqueles oportunismos foram iniciados com o liberalismo romântico e com o positivismo republicano. E se o Estado Novo tentou apoderar-se de Camões, devemos reconhecer que ele era o herdeiro do nacionalismo político e burguês, inventado e desenvolvido por aquele liberalismo e aquele positivismo naquelas confusões ideológicas que os caracterizavam e de que Camões não tem culpa: tê-la-iam por exemplo dois homens que merecem o nosso respeito: Almeida Garrett e Teófilo Braga. E quanto à reacção mais recente em face de Camões, eu lembro apenas dois pequenos exemplos em que a censura o proibiu, se não estou em erro: o caso do jornal de Vila do Conde, em que um tio de José Régio usava publicar os clássicos, citando-os convenientemente, e o da revista Vértice, de Coimbra, que fazia o mesmo.
E isto para não falarmos de crimes literários e socio-morais de mais largo alcance, de que Camões era vítima nas escolas, parecendo até que nós éramos as vítimas dele. Porque, para além de encher-se a boca com a Fé e o Império, que nem uma nem outro eram para Camões o que eram para o Dr. Salazar, o poeta não servia para mais nada senão para exercícios de gramática estúpida: o que, tudo junto, chega para gerações lhe terem ganho alguma raiva e perdido o gosto de o ler. E há mais e pior: quando, no liceu, líamos Os Lusíadas, éramos proibidos de ler (e não estudávamos) as passagens consideradas mais chocantes pela pudicícia hipócrita desta nossa sociedade de sujeitos felizmente desavergonhados que fingem lamentavelmente possuir a virtude que não têm, e vivem a perseguir ou reprimir os pecados alheios. 
Claro que nós todos íamos logo ler as passagens “proibidas” e lendo-as assim, com olhos libidinosos, perdíamos a grandeza delas: a majestade do sexo e do amor, a magnitude da liberdade e da tolerância, a inocência magnífica do prazer físico e da paixão erótica, que, acima de tudo, Camões cantava e celebrava nessas passagens com uma abertura de espírito e uma audácia espantosas. Será possível que os frades o tenham feito alterar algumas coisas antes de publicar Os Lusíadas. Mas, em face de algumas daquelas que lá ficaram, temos de reconhecer que, mais do que aquilo, só um poema francamente pornográfico, incompatível com a dignidade e o decoro da grande epopeia que Camões desejou escrever e escreveu.
Tem-se dito que o grande protagonista da epopeia é o povo português, e na verdade o povo aparece, segundo as tradições clássicas, representado apenas pelos seus heróis, aqueles que Camões seleccionou para o efeito, à excepção dos marinheiros anónimos que acompanhavam Vasco da Gama ou os seus guerreiros anónimos sem os quais não haveria a magnificente descrição da batalha de Aljubarrota ou análogos momentos. Aqueles marinheiros, como o próprio Vasco, são deificados, ou transfigurados epicamente na Ilha dos Amores, em condições sem dúvida moralmente impróprias de quem deixara família em Portugal, mas altamente consentâneas, se me permitem a rudeza, com a promiscuidade sexual notória do povo português, ao mesmo tempo que de acordo com as convenções épicas e mitológicas pelas quais os heróis se dignificavam no conhecimento (que aqui uso no sentido intelectualmente neo-platónico e no sentido obscenamente público) das entidades divinas. Já se disse que as personagens mais vivas e activas de Os Lusíadas são os deuses pagãos, e não as criaturas históricas, mais pálidas e incaracterísticas do que elas.
Até certo ponto, isto é verdade. E é-o por algumas razões camonianamente importantes. Antes de mais, na filosofia que Camões assume e torna extremamente pessoal, os deuses pagãos possuem, como atributos do Deus supremo, invisível e silencioso, e como seus intermediários agentes, uma realidade autêntica que a criação artística faria necessariamente mais palpável e concreta. E é assim que nós vemos tão nitidamente Vénus, a Afrodite originária e primeva, um dos deuses anteriores a tudo, e também a deusa do amor que este sim, é todo poderoso – como a não veríamos? Ela é a amante, a esposa, a mãe, tudo o que o princípio feminino significa dentro e fora da nossa humanidade, naquelas complexidades psico-sexuais a que Camões se compraz em aludir, servindo-se de alusões mitológicas que parecem meros ornamentos ao longo da epopeia inteira. E como não veríamos Baco ou Diónisos, receoso de ser castrado da sua lendária glória de conquistador da Índia? Se, como descendentes de Luso, descendemos dele, e ele é o nosso pai receoso do triunfo e da liberdade dos filhos? Como não veríamos Júpiter, se ele é de certa maneira a providência divina, sempre disposta a sucumbir, mesmo incestuosamente, às atracções do amor? Estes deuses, na dialéctica camoniana, sem a qual Camões se não entende, são ao mesmo tempo as emanações do princípio divino que desce à terra, e são a nossa humanidade ascendida e divinizada. 
E é neste mesmo sentido que as referências a Cristo devem ser entendidas nos contextos camoneanos: ele é, supremamente, para Camões, o princípio divino que, como um fogo de vida, desce a encarnar-se humanamente, mas é também o homem, o herói humano que, pelo seu sacrifício, ascende ou regressa ao divino. E é este heroísmo do apostolado e do sacrifício o que, em toda a sua epopeia, Camões propõe continuamente pela referência ou pela narrativa. Até Inês de Castro, a grande matriarca do poema, ascende à glória épica pelo seu sacrifício de amor. Porque para o amor, para todas as formas de amor, Camões arranja sempre uma desculpa, um louvor, ou a suprema divindade, porque esse amor é, para ele, a todos os níveis, a realidade última, e a realidade sempre presente. Sem amor, não há heróis, nem há homens dignos desse nome. E amor, mesmo numa epopeia que transborda de feitos bélicos e de acções guerreiras, não existe sem uma infinita e total tolerância, um respeito pelos outros povos, as outras raças, as outras culturas, as outras religiões, ao ponto de, como já tenho chamado a atenção, o conceito de santidade ou a palavra santo se aplicar a todos, sem distinção alguma, cristãos, muçulmanos, brâmanes, etc., e até – não o esqueçamos – a uma ninfa que se deixa possuir, por bem requestada, na Ilha dos Amores. 
Este Camões de amor e tolerância permeia Os Lusíadas. Mas já se disse que, além e acima de tudo e todos, a principal personagem da epopeia é Camões ele-mesmo, não só como o autor, não só como o narrador, não só como o crítico severo e implacável de toda a corrupção e de toda a maldade, como o denunciador angustiado de uma decadência moral e cívica que ele via e sentia à sua volta, e o qual constantemente interrompe a narrativa para invectivar com o maior desassombro (lembremo-nos de que as ordens daquele D. Sebastião a quem o poema é dedicado, dirigidas aos seus imperiais governadores, chamando-os à virtude e à dignidade, não tinham de tom diverso senão a diferença que vai de uma carta oficial a uma poesia de génio). E há nisso de Camões ser central uma enorme e profunda verdade que é o Camões-homem e o Camões-poeta. Não só ele se colocou, nos seus cálculos arquitectónicos do poema, nessa posição, e assim se colocando, se apresenta como a culminação da aventura portuguesa que ele conta, como o herói que o é por ser quem transforma Portugal numa obra de arte, acima das contingências históricas e da mesquinhês humanas. 
O Camões que na epopeia espreita ou se mostra a cada momento, roubando mesmo alguma realidade estética a tudo e todos, nós conhecêmo-lo e entendêmo-lo de outro volante do políptico que é a sua obra: o grande poeta lírico que é também um grande pensador, e que, na obra lírica como na épica, se apresenta como resumo e epítome da humanidade mesma, e não só do povo português. Ele é o homem em si, aquele ser que se busca continuamente e ao amor que o projecta para dentro e para fora de si mesmo, e é, como Luís de Camões, o predestinado para ser, ao mesmo tempo, o poeta-herói supremo que realiza, isto é, torna real para a eternidade da poesia, a história de Portugal, e a embarca nos navios de Vasco da Gama para unir o Ocidente ao Oriente. Ao mesmo tempo, este poeta-herói-épico, e o poeta-homem, exemplo de ser-se português, em exílios e trabalhos, em sofrer incompreensões e injustiças , e – ao contrário do que sucede ou sucedeu a alguns – regressar com as mãos vazias, apenas rico de desilusões, de amarguras e do génio que havia posto numa das mais prodigiosas construções jamais criadas, desde que o mundo é mundo. E essa construção ele trazia, reunindo o Portugal disperso, para o que ele deixara a vida, como disse, pelo mundo em pedaços repartida. 
Ninguém como Camões nos representa a todos, repito, e em particular os emigrantes, um dos quais ele foi por muitos anos, ou os exilados, outro dos quais ele foi a vida inteira, mesmo na própria pátria, sonhando sempre com um mundo melhor, menos para si mesmo que para todos os outros. Ele, o homem universal por excelência, o português estrangeirado e esquecido na distância, o emigrante e o exilado, é em Os Lusíadas e na sua obra inteira, tão imensa e tão grande, a medida do mais universal dos portugueses e do mais português dos homens do universo. Ninguém, como ele desejou representar em si mesmo a humanidade, representar tão exactamente o próprio Portugal, no que Portugal possui de mais fulgurante, de mais nobre, de mais humano, de mais de tudo e todos, em todos os tempos e lugares. Ele é, como ninguém, o homem que viajou, viu e aprendeu. O homem que se sente moralmente no direito de verberar com tremenda intensidade, as desgraças de viver-se e os erros ou vícios da sociedade portuguesa. É o exilado físico de muitos anos mas é, como todos nós, e nisso tanto ou mais o somos que outros povos, o exilado moral, clamando por justiça, por tolerância, por dedicação à pátria, por espírito de sacrifício, por unidade nacional e universal, lá onde via que o homem é, como ele disse mais que uma vez, o “bicho da terra tão pequeno” contra o qual se encarniçam os poderes do mal.
Haverá ainda quem diga que esse homem cantou a expansão imperial, apesar de tudo, as conquistas imperiais do Oriente, e está portanto fora do nosso tempo e do nosso espaço históricos, e a sua epopeia ofende a consciência das Ásias e das Áfricas. Mas ele cantou a expansão portuguesa, na medida em que considerava que esta expansão era ou deveria ser a civilização ocidental levada a toda a parte, no que tinha de moralmente digno e de socialmente responsável. Ao escolher para assunto central da sua epopeia a viagem de Vasco da Gama, ele sabia perfeitamente que escolhia um momento decisivo da história universal; o encontro, para todo o sempre, para bem e para mal, da Europa com a Ásia, passando-se pela África.
Momento decisivo dessa história do mundo, como eminentes historiadores insuspeitos de simpatias portuguesas ou imperialistas o têm proclamado e reconhecido. E, na verdade, esse encontro (e esse Império que, no tempo de Camões, com todos os erros e crimes, não era os impérios coloniais inventados pela Europa do século XIX, nem socio-moralmente inferior à desordem política existente então, como hoje, em toda a parte) simboliza aquilo mesmo que, mais tarde, nos nossos dias, veio a verificar-se. Porque as ideias de independência política e de justiça social pelas quais lutaram e ainda lutam os povos da Ásia e da África, e às quais se renderam os povos das Américas ao separar-se da velha Europa, não são as tradições tribais originárias por respeitáveis que sejam: são aquelas mesmas ideias que, geradas na Europa, da Europa se difundiram, tal como as naus do Gama partiram de Lisboa para uma das mais gloriosas viagens de todos os tempos. Isso Camões cantou: e vendo-o no seu tempo, e na visão do mundo que ele teve, sabemos que devemos relê-lo atentamente para saber, que ele, tão orgulhosamente português, entenderia todas as independências, se fosse em vida nosso contemporâneo como ele o é na obra que nos legou, para glória máxima de uma língua falada e escrita ou recordada em todos os continentes. 
O orgulho de ser-se alguma coisa, o inabalável sentimento de independência e de liberdade, disso ele falou, e sentiu como ninguém. É disso um mestre. Tudo existe na sua obra: o orgulho e a indignação, a tristeza e a alegria prodigiosa, a amargura e o gosto de brincar, e desejo de ser-se um puro espírito de tudo isento e a sensualidade mais desbragada, uma fé inteiramente pessoal, pensada e meditada como ele a queria e não como uma instituição, e a dúvida do predestinado que se sente todavia só e abandonado a si mesmo. 
Leiam-no e amem-no: na sua epopeia, nas suas líricas, no seu teatro tão importante, nas suas cartas tão descaradamente divertidas. E lendo-o e amando-o (poucos homens neste mundo tanto reclamaram amor em todos os níveis, e compreensão em todas as profundidades) – todos vós aprendereis a conhecer quem sois aqui e no largo mundo, agora e sempre, e com os olhos postos na claridade deslumbrante da liberdade e da justiça. Ignorar ou renegar Camões não é só renegar o Portugal a que pertencemos, tal como ele foi, gostemos ou não da história dele. É renegarmos a nossa mesma humanidade na mais alta e pura expressão que ela alguma vez assumiu. E esquecermos que Portugal como Camões, é a vida pelo mundo em pedaços repartida.

Jorge de Sena, Paris, 3 de Junho de 1977






O 10 de Junho só regressou em 1977

A democracia só aceitou comemorar o 10 de junho três meses depois da revolução. Não deixou de ser feriado mas, em 1975, o governo apelou "à batalha da produção".

Em 10 de junho de 1974, apesar da revolução que tinha acontecido três meses antes, e que execrava o espírito do “Dia de Portugal”, houve feriado na mesma. O que não houve foram comemorações oficiais – o feriado estava tão associado à ditadura que o novo regime não quis oferecer pompa nem circunstância a um dia que servia ao regime salazarista-marcelista para exaltar o império falhado.
Aconteceram coisas, mesmo assim. Uma “manifestação popular de apoio ao Movimento das Forças Armadas” levou a que dois dos heróis do 25 de abril, os generais António de Spínola e Francisco Costa Gomes aparecessem num terraço do Palácio de Belém a agradecer o apoio dos 15 mil manifestantes, segundo contas do Diário de Lisboa.
A manifestação – “convocada por diversas forças democráticas” – tinha começado no Marquês de Pombal, descido a avenida da Liberdade, passado pelos Restauradores e subido até ao Largo Camões, homenageando o poeta com ramos de flores. Rumou a seguir a Belém e o aparecimento dos dois generais na varanda do Palácio de Belém foi “a grande apoteose”, escreve o Diário de Lisboa.
O 10 de junho de 1975 continuou a ser feriado, mas o governo liderado pelo general Vasco Gonçalves apelou aos portugueses para irem trabalhar em nome da “batalha da produção”, tal como a Intersindical. Carlos Carvalhas, que anos mais tarde será secretário-geral do PCP e a 10 de junho de 1975 era secretário de Estado do Trabalho, disse nesse dia em que muitas empresas, incluindo privadas, não fizeram feriado: “Os trabalhadores que em todo o país abdicaram do seu feriado são exemplos verdadeiramente revolucionários que esperamos ver frutificar”.
Para o então secretário de Estado do Trabalho, “a posição que se assume perante a batalha da produção é que distingue os verdadeiros dos falsos revolucionários”. Carlos Carvalhas estava em visita à empresa Cometna, que produzia válvulas e estava em regime de autogestão. Dias antes, a 27 de maio de 1975, tinha sido preso o administrador, Alfredo Alves.
A delegação governamental que visitou algumas empresas que recusaram o feriado incluía, além de Carlos Carvalhas, o ministro do Trabalho major Costa Martins; o ministro da Indústria João Cravinho, que será mais tarde ministro de governos PS e ainda o 1º tenente Judas que nessa visita sentenciará: “A revolução não pode aceitar os que não trabalham”.
Em 1976 não se passou nada de relevante – o candidato a Presidente da República Ramalho Eanes andava em campanha eleitoral entre Buarcos e Coimbra para as eleições que se realizariam daí a duas semanas, a 27 de junho. Numa das intervenções, falou de Camões. Pinheiro de Azevedo, outro dos candidatos presidenciais, andava pelo Algarve em visita na qualidade de chefe do governo.
O 10 de junho tal como hoje o conhecemos só foi criado em 1977, sob o nome “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”. Foi comemorado oficialmente na cidade da Guarda, com as presenças do então Presidente da República Ramalho Eanes e do primeiro-ministro Mário Soares. Jorge de Sena, o escritor radicado há muito tempo nos Estados Unidos, fez um discurso extraordinário em defesa de Camões – incluindo a justificação de que não se poderia chamar a Camões “fascista”.
“Pensarão alguns, acreditando no que se fez do pobre Camões durante séculos, que celebrá-lo, ou meditá-lo e lê-lo, é prestar homenagem a um reaccionário horrível, um cantor de imperialismos nefandos, a um espírito preso à estreiteza mais tradicionalista da religião católica. Camões não tem culpa de ter vivido quando a Inquisição e a censura se instituíam todas poderosas: se o condenamos por isso, condenamo-nos nós todos a que, escrevendo ou não-escrevendo, e ainda vivos ou já mortos, resistimos durante décadas a uma censura opressiva, e a uma repressão implacável e insidiosa, escrevendo nas entrelinhas como ele escreveu”, disse Jorge de Sena.
Ana Sá Lopes, Sol, 2017-06-09




PODERÁ TAMBÉM GOSTAR DE LER:

 



  CAMÕES, HERÓI HUMANISTA                  
O ideal de homem virtuoso é, para Camões, o daquele que, como ele, for possuidor de «honesto estudo / Com longa experiência misturado». Camões é o herói humanista d' Os Lusíadas.

 Programa “Jorge de Sena”, da série “A Ideia e a Imagem”, Álvaro Manuel Machado, RTP1, 1978-06-15. Disponível em: https://arquivos.rtp.pt/conteudos/jorge-de-sena/


 Ler Jorge de Sena (® 2010 Universidade Federal do Rio de Janeiro)

 Poesia útil e literatura de resistência” (A literatura como arma contra a ditadura e a guerra colonial portuguesas), José Carreiro






“Discurso de Jorge de Sena no 10 de junho de 1977 ” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 10-06-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/06/10-de-junho-de-1977-discurso-de-jorge.html


domingo, 2 de junho de 2019

Ana Luísa Amaral

Revelada nos anos 90, tal como os já citados Manuel Gusmão e Fernando Pinto do Amaral, Ana Luísa Amaral (Minha Senhora de Quê, 1990; Coisas de Partir, 1993; Epopeias, 1994; E Muitos os Caminhos, 1995; Às Vezes o Paraíso, 1998; Imagens, 2000; Imagias, 2002) continua – com modulações eventualmente paródicas, ou, mais frequentemente, sob o signo de uma mais ou menos velada ironia favorecida por outras tradições literárias que lhe são familiares, como a anglo-americana, em que, nos últimos tempos, também sobressaem as questões de género, como veiculadoras de um ponto de vista específico – aquela que é uma das linhas mais em evidência na poesia portuguesa à beira do termo do século, a que faz do diálogo com a memória literária e cultural uma das suas mais fortes razões de ser, derivando, no entanto, nas mais recentes recolhas, para uma esfera de recorte cada vez mais afirmadamente intimista, a exigir «uma nova língua», outras «linguagens». 

Fernando J. B. Martinho, Literatura portuguesa do século XX, Lisboa, Instituto Camões, 2004, p. 49.







NÚ: ESTUDO EM COMOÇÃO

Em que meditas tu
quando olhas para mim dessa maneira,
deitada no sofá
diagonal ao espaço onde me sento,
fingindo eu não te olhar?
Em que pensa o teu corpo
elástico, alongado,
pronto a vir ter comigo
se eu pedir?
As orelhas contidas em recanto,
as patas recuadas,
o que atravessa agora o branco dos teus olhos:
lua em quarto-crescente,
um prado claro?
E quando dormes, como noutras horas,
que sonhos te viajam:
a mãe, a caça, a mão macia, o salto
muito perfeito
e alto, muito esguio?
Onde: a noite sem frio
que nos abrigará
um dia
e que há-de ser
(só pode ser)
igual?


Ana Luísa Amaral











LUGARES COMUNS


Entrei em Londres 
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar 
de praia (isto é só para quem não sabe 
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era 
mesmo muito manhoso, 
não é que fosse mal intencionado, era manhoso 
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha 
suja. Muito rasca.
Claro que os meus preconceitos todos 
de mulher me vieram ao de cima, porque o café 
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate 
(se fosse em Portugal era sandes de queijo), 
mas pensei: Estou em Londres, estou 
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses 
até nem se metem como os nossos, 
e por aí fora...
E lá entrei no café manhoso, de árvore 
de plástico ao canto. 
Foi só depois de entrar que vi uma mulher 
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me 
mais forte, não sei porquê mas senti-me mais forte. 
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e 
depois eu
Lá pedi o café, que não era nada mau 
para café manhoso como aquele e o homem 
que me serviu disse: There you are, love. 
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou 
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois 
pensei: Já lhes está tão entranhado 
nas culturas e a intenção não era má e também 
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião 
quero lá saber
E paguei o café, que não era nada mau, 
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta 
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto 
e depois vi as horas e pensei que o táxi 
estava a chegar e eu tinha que sair. 
E quando me ia levantar, a mulher sorriu 
como quem diz: That’s it
e olhou assim à sua volta para o presunto 
e os ovos e os homens todos a comer 
e eu senti-me mais forte, não sei porquê, 
mas senti-me mais forte
e pensei que afinal não interessa Londres ou nós, 
que em toda a parte 
as mesmas coisas são


Ana Luísa Amaral


Ana Luísa Amaral
© Jorge Carmona / ed. LDS / Antena 2




Representações do contemporâneo | Tradição literária | Figurações do poeta | Arte poética na poesia de Ana Luísa Amaral

 

Uma poesia do quotidiano feminino. Diálogo com a tradição.

Ana Luísa Amaral tem recolhido em torno de si uma invejável unanimidade por parte da crítica mais atenta ao campo poético, ao ser considerada uma das mais interessantes revelações da poesia portuguesa dos anos 90. E como se isso não bastasse, a sua obra poética tem também sido olhada como congregadora das mais significativas tendências que esta novíssima poesia manifesta. Refiro-me

1 – à construção de epifanias do quotidiano, no caso de Ana Luísa Amaral, um quotidiano tradicionalmente periférico, o quotidiano feminino;

2 – à revisitação intertextual do cânone estético cultural ocidental;

3 – à contrafação paródica, mais ou menos lúdica do dito cânone, nomeadamente do cânone literário modernista, que a poeta em questão conhece bem;

4 – à vivência de um desconserto existencial que questiona uma axiologia forte, sem deixar de a reclamar, no caso vertente, no fio do horizonte;

5 – à interrogação metapoética e densamente autorreflexiva;

6 – à discursividade narrativa que não deixa de incorporar o fragmento, ligada quer à rememoriação, quer ao anedótico;

7– à reivindicação da poesia como experiência do excesso, quer do excesso excessivo do barroco, quer do excesso rasurado do limite, experiências que não impedem, em Ana Luísa Amaral, o recurso por vezes bem rebuscado à elipse.

 

Isabel Pires de Lima, «Concertos/desconsertos: arte poética e busca do sujeito na poesia de Ana Luísa Amaral», in Maria de Fátima Outeirinho & Rosa Maria Martelo (orgs.), Cadernos deLiteratura Comparada – Identidades no Feminino, n.º 2, Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa/Granito, 2001. [Também publicado na revista Veredas, nº 3 – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas – Faculdade de Letras – Universidade de Coimbra].

 

Figurações do poeta

Desde o princípio, a poesia de Ana Luísa Amaral se confronta com a questão central da modernidade, do fazer poético como descentramento do sujeito, o que acarreta formas de enunciação ambíguas entre a ficção do eu e a sua figuração e situações de oscilação ontológica1, confirmando esta oscilação o tal síndroma de «estar entre». […]

Há todo o dramatismo nessa vivência poética lírica moderna que tem consciência de que o poema se constrói de palavras apenas, frágeis, fugazes, limpas de emoção, embora poderosas «coisas de partir2», partir de quebrar e partir de navegar; palavras que enunciam a ficção da voz poética emocionada pelo amor, «lírica de emoção» de um tu, a qual ambiguamente dá origem a outra figuração de si mesma, tentando rasurar esse tu, «empurrar-te para cima do poema»3, como é dito. 

Isabel Pires de Lima, «Concertos/desconsertos: arte poética e busca do sujeito na poesia de Ana Luísa Amaral», in Maria de Fátima Outeirinho & Rosa Maria Martelo (orgs.), Cadernos deLiteratura Comparada – Identidades no Feminino, n.º 2, Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa/Granito, 2001, pp. 52-55. [Também publicado na revista Veredas, nº 3 – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas – Faculdade de Letras – Universidade de Coimbra].

 

Tradição literária

A tradição é um tempo-espaço aberto que pede ao poeta faro criativo para transformar o passado, nutrir-se dele, a fim de gerar o ato criador. […] O mapa de palavras, legado da tradição, é rota permanente que o eu lírico reconhece e com ele recomeça, também num duplo registo – sereia e cisne –, a delinear imagens de amor transmutadas da lírica ocidental.

Sensível, portanto, à sua atualidade, a poeta mostra o seu roteiro poético pessoal, inscrevendo no corpo da poesia a rota do Amor. Sensualmente, o eu lírico, em diálogo com o Outro, par amoroso, caligrafa linhas, esboçando a sua topografia […].

A poeta, por sua vez, confere a rota, despreza a rigidez da forma impressa em rimas e métricas, e inscreve no poema a mobilidade do diálogo ou réplica, traduzindo, em versos próprios, voz e ritmo de poetas e musas, conforme a tradição e à luz do seu tempo.

Misturam-se vozes de poeta e musa, dificultando identificar o eu e o outro da fala. […] Ana Luísa Amaral cede lugar ao desejo e […] exprime amorosamente a sua criação.

[…] A poeta sabe, como os poetas e musas da tradição, que para escrever o amor é preciso «engenho» e «brando pesar»; e mais, sabe que a linguagem é, como diz Barthes: «ao mesmo tempo demais e demasiadamente pouca, excessiva e pobre». 

Maria Aparecida Junqueira, «Imagens: tempos espacializados naPoesia de Ana Luísa Amaral», 
in
Ângulon.º 125/126, Cadernos do Centro Cultural Teresa d’Ávila, Publicações FATEA, 2011.

 

Representações do contemporâneo

Por vezes, é certo, evoca-se nestes poemas essa esfera a que chamamos doméstica e que, não tendo evidentemente de ser exclusivamente feminina, tem sido de facto – e por que motivo senão pela desvalorização a que vota a maioria das culturas ditas civilizadas? – largamente reservada às criaturas do sexo feminino. Não me refiro ao doméstico enquanto fonte de inspiração […], mas ao doméstico e suas tarefas como experiência e prática de vida humana, tão rica de sentido e de valor, como insuficiente e sufocante. É este último mundo que nos surge em alguns poemas de Ana Luísa Amaral. 

Maria Irene Ramalho, «Duplo posfácio», in Ana Luísa Amaral,  
Minha Senhora de quê, Lisboa, Quetzal Editores, 1999, pp. 96-97.

 

 

Linguagem, estilo e estrutura

1. Características da poesia de Ana Luísa Amaral

O amor, o tempo, a memória, a infância, a poesia, a dor. O modo vocativo, os versos de orações elíticas, as repetições com diferença, a sintaxe equívoca, as assonâncias, as aliterações. O uso do raciocínio lógico. O humor às vezes envergonhado. E as imagens e os conceitos inesperadamente associados, ao modo dos metafísicos ingleses: admite-se, num poema de homenagem elegíaca4, uma alusão aos fracos dotes de cozinheira desaparecida? Ou à sua «desarrumação», que, porém, paradoxalmente, é também a fonte da sua capacidade – como que poética – de nomear, e assim radicalmente de organizar? 

Maria Irene Ramalho, «Coisas Exatas: A Propósito de Imagias, de Ana Luísa Amaral», in Scripta, v. 6, n.º12, Belo Horizonte, Revista do Programa de Pós-graduação em Letras e do Centro de Estudos Luso-afro-brasileiros da PUC Minas, 2003, p. 260.

 

2. Sintaxe e pontuação

O «reino» de Ana Luísa é […] o da sintaxe, ou melhor, das «sintaxes trocadas» […].

O espacejamento do texto reproduz, com grande felicidade, essa justaposição imagética que nunca funciona sem um pequeno (ou grande) salto associativo, fazendo desta poesia um discurso que progride por síncope (o que se articula com um outro rumo da sua poesia, mais próximo de uma discursividade «lisa», de contornos mais sugestivamente infantis). É aqui – nesta arte da elipse – que provavelmente a lição de Dickinson5 mais se nota, fazendo-o sobretudo […] em torno de uma ressemantização6 da pontuação […]. Sucede isso nos casos em que o poema acaba sem querer concluir, denunciando o travessão final essa indeterminação semântica […].

Tal ressemantização opera ainda sobre os dois pontos, sincopando decididamente o discurso e criando um efeito de parataxe7 que […] responde fielmente ao imperativo de «transler», o mesmo é dizer, de suspender os nexos da gramática do mundo herdada. 

Osvaldo Silvestre, «Recordações da Casa Amarela, A poesia de AnaLuísa Amaral», in Relâmpago, n.º 3, 1998, p. 49.

 

Uma poesia do amor

Dez anos depois, Minha senhora de quê mantém a frescura e a novidade com que em 1990 surpreendeu os leitores de poesia portuguesa. Uma novidade e uma frescura tanto mais de salientar quanto é certo que Ana Luísa Amaral escreve os seus poemas em diálogo constante com os poetas, com a poesia e com a tradição – ou, melhor dizendo, com as tradições. […] No quarto [livro de poesia de Ana Luísa Amaral], intitulado E muitos os caminhos (1995), de novo a poesia, a forma poética, a própria cultura são viradas do avesso. Em seis belos poemas de amor reunidos sob o título geral de «Histórias de uma noite de verão», a poeta não só escreve um «soneto», decerto porque o soneto é uma forma privilegiada de poesia de amor, mas escreve-o irreverentemente «a fingir», assim obliquamente redefinindo uma cultura que coloca as mulheres em posição subalterna. Nos restantes poemas desta sequência, é o próprio amor que é virado do avesso, como se todo o sentimento irrompesse de repente a exigir uma nova linguagem de paixão, como se o Hades, o fogo do amor e a criatividade, bem como os próprios poetas, tivessem de ser reimaginados, e a Beatriz fosse dada uma nova voz para dizer, não a tranquila doçura do amor sancionado e divino, mas o poder terrível do transgressivo, humano amor.

 

Maria Irene Ramalho de Sousa Santos, «Prefácio» a Ana Luísa A maral, Minha senhora de quêLisboa, Quetzal Editores, 1999, pp. 7, 11 e 12 (texto adaptado).

 

Arte poética

À poesia se pede que dê à linguagem consciência de si própria, para que nós, que não somos poetas, reconheçamos nas palavras os traços do mundo suficientes para, resguardando-nos do vazio, o tornar habitável. O cerne do universo poético de Ana Luísa Amaral encontra-se, provavelmente, no ponto onde esse reconhecimento se fabrica, e por isso os seus versos parecem apenas necessários, sem desvios. Dir-se-ia que lhe é muito fácil identificar o ritmo que une os movimentos dispersos que nos transportam de dia para dia, tecidos por igual de labor doméstico e reflexão, de afetos e memórias, de leitura e de «trabalho sério», matéria imponderável que no verso ganha corpo e se torna imagem com sentido.

Melhor que qualquer outra, assenta-lhe a poética que no livro inaugural, Minha Senhora de quê? (1990), os versos do poema «Discreta Arte» delineiam, assimilando a criação aos gestos familiares e simples de quem arranja o espaço para o convívio quotidiano:

«Discretamente. Cultivar a palavra. / Arte de dispor flores por longa mesa, / prazer de dispor quadros por paredes / em critério de escolha pessoal.»

E, no entanto, esta é uma poética de superior exigência, que ambiciona realizar «O excesso mais perfeito», como diz um dos títulos de Às vezes o paraíso (1998) − «um poema de respiração tensa» capaz de reunir em si «muito mais tudo que as gregas divindades / de equilíbrio», intensidade pura −, e que de uma tal desmesura discretamente se constrói.

 

Fátima Freitas Morna, «Ana Luísa Amaral», in Isabel Pires de Lima (coord.), Vozes e Olhares no Feminino, Porto, Edições Afrontamento & Porto, 2001, p. 94.  

***

 

Uma interioridade de espaços, gestos e laços quotidianos e (mais) femininos, embora estreitamente conjugados com a revisitação intertextual e a desconstrução irónica dos grandes temas da Modernidade estética, conduz, também neste caso, ao fragmento narrativo, ao fait-divers, à exploração da memória e mesmo ao humor. Contudo, a centralização desta temática, numa poesia que, ao mesmo tempo, dialoga agilmente com o cânone poético que a excluiu ou pelo menos secundarizou como temática «menor», obriga a uma permanente deriva entre centro e periferia, a ambos desajustando de um modo inovador. Chegamos, assim, embora por outra via, à mesma lógica de intensidades anteriormente observada: fazendo derivar o centro da periferia, ou sobrepondo-os de modo inextricável, recusando qualquer hierarquização de temas ou formas, cabe à poesia fundar «[o] excesso mais perfeito» (Amaral, Às Vezes o Paraíso, p. 61), descobrir um «infinito tudo» (Amaral, E Muitos os Caminhos, p. 7) que, antes de mais, é essa luz discursiva à qual Luiza Neto Jorge chamou «resplendor». Sob este ponto de vista, é significativo que esta poesia recorra, por exemplo, à torsão sintática e à elipse como marcas de excesso de presença ou ausência discursivas, fazendo da produção de sentido uma experiência de limites. 

Rosa Maria Martelo, «Anos 90 – poesia», in Óscar Lopes e Maria de Fátima Marinho (dir.), História da literatura portuguesa – as correntes contemporâneas – vol. 7, Lisboa, Publicações Alfa, 2002, p. 500.

 

NOTAS:

1 Ontológica: que se refere ao ser em si mesmo.

2 «Coisas de partir»: título de poema e livro de Ana Luísa Amaral.

3 «Empurrar-te para cima do poema»: verso do poema «coisas de partir».

4 Elegíaca: melancólica, triste.

5 Dickinson: Emilly Dickinson foi uma poetisa americana; sobre ela escreveu Ana Luísa Amaral a sua tese de doutoramento.

6 Ressemantização: novo sentido dado.

7 Parataxe: processo de articulação de frases através de coordenação sintática, frases parentéticas que introduzem comentários ou atos expressivos do locutor ou alguns tipos de interrogativas.

 

https://eltrapezio.eu/es/espana/ana-luisa-amaral-ganha-premio-rainha-sofia-de-poesia-ibero-americana_20994.html


 

ENTREVISTA
“Uma coisa é escrever poesia, outra coisa é fazer livros”


Autora premiada e traduzida em várias línguas, poeta, professora universitária, tradutora, nasceu em Lisboa em 1956, mas vive em Leça da Palmeira desde os 9 anos. Foi lá que nos recebeu. Numa sala onde não faltam livros e poemas inéditos, e onde fomos visitados amiúde pelas duas gatas da poeta e também pela cadela Mily, em homenagem à poeta Emily Dickinson sobre quem Ana Luísa Amaral fez doutoramento. Deixou de fumar e esteve mais de meio ano sem escrever. Acaba de ver o seu livro de poesia "What´s in a name" sair nos Estados Unidos da América pela editora New Directions.



NAVEGAÇÕES DOENTES

Tenho os sintomas todos:
navegam-me fluidos
e o devaneio em barcos de desejo

Os sons de trovoada
mesmo tapando ouvidos:
esclerótica paixão que não domino

Tenho os sintomas todos
e assim me reconheço
acamada, incurável: na parede do fundo
navegantes os barcos



Agradeço-lhe antes de qualquer coisa receber-nos em sua casa e apresentar-nos as gatas e esta cadela, que tem um nome para homenagear outra poeta. 
Sim, Mily Dickinson. É uma homenagem, ao fim e ao cabo, à grande poeta Emily Dickinson. O problema é que ela de Milly Dickinson, como já reparou, tem muito pouco. A Emily Dickinson, daquilo que sabemos da vida dela, era uma pessoa bastante recatada, recolhida. Foi uma mulher que saiu de casa, para longe de casa, duas vezes em toda a vida. Aliás, a partir dos 30 anos, dos 33 mais ou menos, começa a vestir-se de branco e não sai do quarto até aos 50 e tal. Acho que ela morre com 53, 54, agora não me lembro muito bem, sou muito má com contas, portanto, praticamente não sei. É muito engraçado, ela vai de resto a uma consulta, porque tem problemas de visão e vai a uma consulta em Boston, e é consultada através de um tabique, portanto o médico não a vê. Ela diz-lhe o que é que sente, quais são os problemas, e o médico do outro lado faz-lhe o diagnóstico.

E essas reservas todas deviam-se a quê?
Não sabemos. Bom, acho que por um lado há todo um contexto social, cultural, histórico, digamos assim, que de alguma forma propicia este tipo de comportamento das mulheres, não é? Se pensar nas Bronte, nas irmãs Bronte, também não saíam de casa. Se pensar em Elisabeth Barrett Browning, ela estava enfiada em casa até conhecer por carta Robert Browning, que finalmente a raptou! Ele raptou-a literalmente de casa dos pais, com o consentimento dela, bem entendido. Fugiram os dois, casaram e pronto, a partir daí, Elisabeth Barrett Browning fez uma vida super pública, digamos. Mas os exemplos de mulheres do século XIX, de meados do século XIX, que do ponto de vista privado, digamos, têm um comportamento muito contido, muito reservado, são vários. A grande questão com Emily Dickinson é que ela adopta esse comportamento e leva-o até ao extremo. Como faz aliás com a sua poesia. Por exemplo, ela pega na prosódia do hino puritano, do hino religioso, que são 4 batimentos, 3 batimentos, 4,3, 4, 3, e depois, de vez em quando, distorce-o. Ou seja, ela sabe muito bem como fazer correctamente, se quiser. Aliás, há um poema muito engraçado em que ela diz “I cannot dance upon my toes// No man instructed me”, portanto “Eu não posso andar em pontas// Nenhum homem me ensinou”, mas é mentira porque ela sabe muito bem andar em pontas. Ou seja, ela sabe muito bem como regular o verso só que de vez em quando desregula-o.

Propositadamente.
Propositadamente, com certeza. No caso do hino puritano é adaptar a forma religiosa da altura, só que depois aquilo é tudo desconstruído, desmontado. Por isso acho que o processo usado em Emily Dickinson não é tanto a transgressão, mas é mais a subversão. Porque são processos diferentes. Um polícia não me diz assim: “a senhora cometeu uma subversão”, diz-me: “a senhora cometeu uma transgressão”. Porque a transgressão é um rompimento das normas às claras, de uma forma aberta, ao passo que a subversão é construir sob, debaixo, não é?, uma versão subterrânea. Então, e isto é a minha opinião, no caso da subversão em vez da explosão temos a implosão, implode por dentro.

E a Ana Luísa acha isso mais interessante?
Muito mais interessante, é claro.

Porque não é declarado.
Há uma carta muito interessante que cito muitas vezes em que ela diz: “o meu ofício é a circunferência”. Acho que isto define muito bem a poética de Emily Dickinson, porque a circunferência não tem centro, contrariamente ao círculo, a circunferência é a linha só e é uma linha que simultaneamente fecha e abre. É a fronteira. E a poesia de Dickinson é constantemente feita numa fronteira, num estar entre, in between.

Fala dela com conhecimento, mas também com uma enorme paixão.
Sim, tenho as minhas grandes paixões: Emily Dickinson, William Blake, William Shakespeare. Peço desculpa por ir tão para trás, porque realmente estes são os grandes para mim. Shakespeare tem tudo. É um poeta antes de mais nada, porque muitas das suas peças são escritas também em verso iâmbico. Não só os sonetos, estou a falar também das peças, e em Shakespeare encontra tudo. A natureza humana está toda lá. Desde o ciúme, o amor, a raiva, a morte, a dissimulação, o poder, o desejo de poder, como o poder corrompe. Por exemplo, estudos sobre a corrupção que o poder provoca, etc. Depois o Blake. Ele falou do seu tempo, finais do século XVIII e início do XIX, mas isto também retrata o nosso tempo. Não conheço nenhum outro poeta que tenha falado do horror, da tragédia que é a desigualdade tremenda entre as pessoas como ele: “Some are born to sweet delight// Some are born do endless night”, “Alguns nascem para doces delícias// Alguns nascem para a noite sem fim.” “Noite sem fim” é uma coisa extraordinária. E é verdade, algumas pessoas nascem para a noite sem fim. Estou a pensar nos refugiados, por exemplo, alguns do continente africano, que nós sabemos que vão nascer para a noite sem fim, e outras que nascem para as doces delícias. E depois Dickinson, com certeza. E depois, claro, os mais recentes: Camões, Sá de Miranda, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, adoro Mário de Sá-Carneiro, acho-o um grande, um enorme poeta e não está ainda devidamente... agora as pessoas estão a começar a interessar-se pela poesia dele, mas acho que a grandeza do Pessoa o ofuscou.

Saiu há pouco tempo um livro seu nos Estados Unidos, editado pela New Directions. Este livro, “What`s in a name”, já teve algumas referências. Está contente?
Estou, estou. Tem tido belas recensões, belas críticas.

The New York Times.
Também, sim sim. Poetry Review of Books, sei lá, a Paris Review. Olhe, pronto. Sim, tem tido boas referências.

Fica constrangida quando refiro isto. 
Sim, um bocadinho.

Porquê?
Não sei, não sei.

Estava a falar-me há pouco dos seus deuses. Tivemos ocasião de conversar com um poeta que nos dizia que o trabalho dele é escrever contra, precisamente contra os deuses dele. No sentido de não fazer igual a eles porque quando se gosta muito de um poeta corre-se o risco de o copiar. O seu processo de escrita de poesia também tem alguma coisa a ver com isso ou não?
Não, rigorosamente nada. Ou seja, quando escrevo não penso como é que tenho que escrever. Escrevo e acabou-se. Escrevo;porque preciso. Sempre escrevi desde que me conheço e escrevo porque necessito de escrever. Posso dar-lhe um exemplo: os momentos de maior tristeza, para além obviamente de perdas imensas que tive na vida, como o meu pai, o Paulo Eduardo de Carvalho, a minha tia, portanto, os momentos de maior tristeza que tive foram estes últimos meses em que deixei de fumar. Estive seguramente uns 7 meses sem conseguir escrever. Aliás, escrevia umas porcarias, pronto; não prestava para nada. Finalmente há coisa de um mês e meio comecei a escrever. Aquilo foi de repente, percebe? Ou seja, de facto isto é verdade: as sinapses têm de se refazer. Toda a minha vida girava em torno do cigarro: fumava porque estava triste, fumava porque estava contente, fumava porque estava a escrever, fumava porque não estava a escrever, fumava a ver televisão, fumava a conversar. Enfim, fumava em qualquer situação.

A inspiração ligada ao cigarro.
Sim, muito ligada ao cigarro. E para mim isso era absolutamente fundamental. Como lhe digo, quando deixei de fumar estive 7 meses sem escrever e foram meses de uma profunda tristeza, uma profunda tristeza.

Mas há tristezas que podem ser motores para escrever. Não foi o caso desta?
Não, mas acabei por conseguir escrever, agora escrevo. Acho até que estou a escrever de forma um bocadinho diferente, é uma coisa estranha.

Dizia que escreve porque precisa.
Porque preciso de escrever. Não sei viver sem escrever. Por isso dei este exemplo do cigarro, para ilustrar, porque para mim é absolutamente fundamental escrever. Tal como preciso de beber água ou como preciso de ler.

De resto tem aqui uma pilha de poemas inéditos que não publica. Ou seja, são a prova de que, de facto, escreve muito. 
Depois ficam ali, pronto.

E ficam ali porquê?
Porque acho que não prestam. (risos) Não têm grande qualidade ou, também pode acontecer, por vezes não se integram no livro. Porque uma coisa é escrever poesia, outra coisa é fazer livros. Fazer um livro de poemas, para mim, pressupõe oferecer uma certa ordem aos poemas, digamos assim. É-me mais fácil escrever poemas do que fazer livros, devo dizer. Um livro para mim tem de ter uma coerência interna, e aí sim eu penso o que vou fazer com os poemas. Quando escrevo o poema não penso o que vou fazer. Não penso: agora tenho de tentar escrever contra ou a favor ou seja lá o que for deste ou daquele.

E escreve de uma vez? Como é que isso acontece?
Depende, depende. Às vezes escrevo um bocadinho e depois ... já me aconteceu, acontece-me várias vezes até, escrever três ou quatro versos, três ou quatro estrofes, e depois ter que sair, interromper e não poder continuar. E depois repego, retomo o poema.

Mas antes de se sentar e escrever, o poema já anda consigo, digamos assim?
Muitas vezes sim.

Portanto, não é uma coisa repentina? Ou pode ser?
Pode ser. Também pode ser uma coisa repentina.

Pode-se escrever sem ler?
Não. Concordo com a ideia de que toda a literatura acaba por ser uma reescrita do que se escreveu antes. Agora, ela tem que ter uma voz nova sempre. E o que é maravilhoso é isso. É possível fazer vozes novas ainda, mesmo com tantos séculos de literatura. Porque as combinações que se fazem com as palavras são infinitas, também. Repare, nós temos esta coisa que é extraordinária: o nosso alfabeto é o mesmo, e as palavras a mesma coisa. As palavras que uso para conversar consigo são as mesmas que uso para escrever um poema. Agora, quando escrevo um poema obviamente é a forma como combino as palavras e isso não sei explicar. É claro que eu queria ter uma voz diferente, mas quando estou no processo de escrita do poema não tento exercitar nenhuma voz diferente. Escrevo somente.

E essas vozes novas de que fala continuam a existir apesar de os temas na poesia e na literatura em geral serem recorrentes. Os temas serão sempre os mesmos?
We are pretty much the same (risos) Repare, Lear, o Rei Lear, tem uma coisa maravilhosa: naquela altura em que as filhas lhe tiram tudo, em que ele está no meio da charneca nu, louco, pergunta: "is man no more than this?" Será que o homem não é mais do que isto? E depois diz: "dispam-nos de tudo, das roupas, da cultura, de tudo o resto, e nós não passamos de seres acossados." E é verdade. Acossados, e portanto, passíveis de sermos agressivos, de matarmos para ter um bocado de pão. Todavia no meio disto aparecem sempre algumas excepções que redimem o que pode ser essa...

Condição...
Essa condição humana, justamente. Portanto, retire tudo, a capa da cultura, essas capas todas e é muito complicado. Nós somos, infelizmente, aquilo que éramos aqui há uns séculos atrás. Enquanto assim formos, o amor, o ódio, a tristeza, o ciúme, tudo isso continuará a ser-nos comum. Por isso é que continuamos a comover-nos. Às vezes vou no comboio e uma criança pequenina começa a rir-se à gargalhada. Repare nas expressões das pessoas em volta. Rarísssimamente ficam indiferentes. As pessoas sorriem, é muito engraçado. Há um ou outro que não sorriem, mas 90% sorriem. Ou, por exemplo, uma criança começa a gritar desalmadamente. As pessoas ficam incomodadíssimas. Ou seja, de facto nós somos muito parecidos uns com os outros.

Isso leva-nos para uma outra condição sua que é a questão do feminismo. Parece-lhe que continua a fazer sentido, hoje?
Claro. Então com estes números que temos tido da violência doméstica, já viu? Quantas mulheres morreram desde o início do ano? Morreram! Mortas por violência doméstica. Acho que está tudo ligado. Enquanto o sistema não mudar, este sistema patriarcal... Não sou contra os homens, de forma alguma. O feminismo não é contra os homens, e é importante que isto seja dito desta maneira. Para mim o feminismo é uma questão de direitos humanos, só. Resume-se a isto: direitos humanos.

E, portanto, há um longo caminho a fazer.
Há um longo caminho a fazer. Nós somos todos feitos da mesma matéria com que, de resto, são feitas também as estrelas. É a mesma coisa. Portanto, a pele é igual. Todos nós temos pele, todos nós temos corpo, todos nós precisamos, como mamíferos, de sermos tocados. Portanto, se se afastavam os homens, por exemplo, da educação das crianças e era uma tarefa só das mulheres, o homem coitado, o desgraçado, trabalhava fora e ganhava dinheiro para sustentar a família, o que era horrível também. Se ele perdia o emprego era uma responsabilidade tremenda. Portanto, isso era uma perda para os homens. O que acontece é que o nosso sistema, que é patriarcal, de alguma forma tentou mostrar, ou provar, até por teorias, a dominação masculina. Por isso é que falamos no falocêntrico, centrado no falo, tentando provar que os homens dominam e as mulheres se submetem. A partir do momento em que os vários feminismos põem isto em causa, o que acontece é que há reacções, e os homens reagem, pois claro. Os homens que foram educados na ideia de que dominam, sentem-se ameaçados. É normal que se sintam ameaçados. Agora, isto não é ameaça nenhuma, pelo contrário. Isto só representa uma melhor forma de vivermos todos juntos.

Acha que ainda sentem essa ameaça?
Então não sentem? Acho que esta questão da violência doméstica tem a ver com isso.

Temos de terminar, mas não queria deixar de lhe dizer que gosto muito dessa ideia de sermos feitos da mesma matéria que as estrelas.
Então não somos?! Há um belíssimo documentário, aliás, não é um documentário, é um poema em filme, que é do Patricio Guzmán, aquele cineasta chileno, que se chama "Nostalgia de la luz" que é lindíssimo. A determinado momento diz-se mais ou menos isto que eu estou a dizer, mas de uma forma mais científica: uma pessoa ligada à química explica que o cálcio que existe nos nossos ossos é o cálcio que existe nas estrelas, é o cálcio que existe no universo. O mesmo cálcio - é extraordinário. Portanto, esta cisão que temos vindo a provocar entre nós e a natureza está a virar-se contra nós. Quero dizer, este tempo desgraçado, as mudanças climáticas, tudo isto está a virar-se contra nós. Quando tudo devia estar, de alguma forma, em harmonia.

É preciso voltar a ouvir a natureza, não é?
É preciso voltar ouvir as coisas, a música das estrelas, pois claro.

- A poesia serve para quê?
A poesia de facto não serve para nada, não tem uma aplicação prática. Com a poesia não se faz uma mesa, não se constrói uma casa. Mas ela é absolutamente fundamental, porque, como toda a arte, assiste-lhe não o pragmatismo, mas o simbólico, e nós, humanos, precisamos do simbólico, que passa sempre pela nossa relação com os outros. Precisamos dele como precisamos de comer ou de dormir. Porque é sua a dimensão estética, mesmo quando fala do horror ou da crueldade. A poesia, tal como eu a concebo, faz-nos, acredito, melhores pessoas, porque nos move (podendo fazer-nos agir) – e nos comove.

- Deve saber vários versos de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?
Dois: “Eu cantarei de amor tão docemente”, de Camões, e “Farei um verso de puro nada”, de Guilherme d’Aquitânia.

- Se não fosse poeta portuguesa (ou de outro país) seria de que nacionalidade?
Talvez italiana, porque a língua italiana é, para mim, a língua mais bela que conheço – depois da minha.

- Um bom poema é?
Desculpe citar algo que não é meu, mas de Emily Dickinson: “Se leio um livro, e ele torna o meu corpo tão frio que fogo nenhum o pode aquecer, sei que isso é poesia”. Substitua-se “livro” por “poema” e isso é para mim um bom poema: o que se sente no corpo e fala à cabeça e ao coração.

- O que a comove?
A bondade. Alguma poesia. Ou pensar que somos feitos da mesma matéria de que são feitas as estrelas.

- Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?
“Carta a meus filhos, sobre os fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena.

- Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?
Deixa uma filha maravilhosa, amigos e poemas. Leva saudades.

O Poema Ensina a Cair começou por ser, em 2015, uma rubrica semanal do Expresso Diário sobre poesia portuguesa. Pretendia divulgar autores contemporâneos, mas não só. A ideia original de Raquel Marinho volta agora ao Expresso, desta vez com uma comunidade grande de seguidores nas redes sociais. Pode acompanhá-la no Instagram e no Facebook.

Raquel Marinho, Expresso, 2019-05-29

https://www.cm-stirso.pt/conhecer/noticias/noticia/poesia-livre-homenageia-ana-luisa-amaral


ENTREVISTA
Ana Luísa Amaral não sabe ser cautelosa

 


“Ana Luísa Amaral” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 02-06-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/06/ana-luisa-amaral.html