sábado, 4 de dezembro de 2021

Greta Benitez


 

89

 

Sou tão velha que meus amantes já são nomes de ruas

Sou tão velha que minhas vontades já estão nuas

Sou tão velha que minhas verdades já são as suas.

 

Eu sou do tempo em que se fumava no cinema.

 

Sou tão velha que minha voz agora é boa para ler um poema.

 

Sou livre:

Posso fazer o que quiser que ninguém liga.

 

Parte de mim

Mora numa foto antiga.

 

Greta Benitez, Canção Antiqüe. Patuá, 2013


Greta Benitez 

 


BORDADO

 

Hoje estou fácil para você.

na vitrine, de graça (quase).

Cantando na praça

Bordando uma frase

Tricotando passos à sua procura pelas ruas

Hoje, mas só por hoje,

                  Minhas tatuagens são suas.

 

Greta Benitez (Curitiba, 1971)




CARREIRO, José. “Greta Benitez”. Portugal, Folha de Poesia, 04-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/greta-benitez.html


sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Frederico Pedreira

 


Repetem-se suaves as armações da manhã,

em gestos e mensagens limados,

abrindo-se no meu Peito. Procurar

os outros e neles uma voz semelhante,

o peso de ter nascido assim.

 

Ter a tua palavra na minha.

Regresso, porque tenho de regressar,

à vergonha de ter sido simples,

um corpo que larga fumo branco.

 

Ninguém me pede para continuar.

Sento-me no canteiro cansado de azul,

a cabeça no teu colo, uma boca lenta

a escavar a estranheza da tua,

pedindo-te as coisas mais simples.

 

E por vezes somos dois num assobio

alucinado em direção ao mistério

do próximo a passar: ainda não desfiz

o último coração da memória.

 

Frederico Pedreira

https://leitor.expresso.pt/diario/14-11-2014/html/caderno-1/cultura/09_Cultura_Poesia

 

 


 

CORAÇÃO LENTO

 

II.

 

Fósforo a fósforo

ilumino o teu rosto

como se fosse um fruto

lustroso, húmido das chuvas,

e a tua pele, como esse negro fruto

que me depuseram nas mãos,

descasca-se lentamente,

como se fosse apagando aos poucos

o seu próprio coração,

embora não seja extinção,

mas algo mais brando

o que o ilumina esta noite,

pousado em silêncio

sobre os meus joelhos.

 

X.

 

Jogavam xadrez junto ao mar.

Ela segurava uma romã,

ouvia-se o marulhar das águas

que nada separavam.

A sua camisola azul,

tudo rebrilhava, vermelho e azul,

nuns lábios de algodão.

As mãos dir-se-ia que ensanguentadas,

a vítrea cor dos olhos não temia

o adivinhar das próximas mortes

no suave declínio do amor.

 

XVI.

 

Houve um tempo em que me perdi

na esquina do desamor, outro houve

em que nada quis que não tivesse,

e nessa volta lenta dos derrotados

procurei sempre um sinal de luz

que me contasse os traços do teu rosto

num clarão de brevidade impossível –

como agora faço, acendendo palavras

fósforo a fósforo para nos ver sorrir

entre a roda dos cães soturnos.

 

XXXI.

 

Todas as personagens são,

por enquanto, um peso morto

na minha imaginação.

Só vejo cenários,

apetece a poesia possível

desses enredos onde ninguém pôs o pé.

Não gosto de falar ao ouvido

das personagens para que façam o que eu digo.

Nesta escrita pobre e dura,

angulosa como um caroço sem graça

ou mérito científico,

é ao meu ouvido que falo: repete

o mar, o bote nessas águas,

desdenha em paz de outros lugares.

 

Frederico Pedreira, Coração Lento

Lisboa, Assírio & Alvim, 2021




Esta arte do que não pode ser dito

Um livro de poesia construído no trilho de engenhosos contrastes

 

Coração Lento é um livro construído sob a órbita de uma certa negatividade. A qual, no entanto, é amiúde questionada pela afirmação de impulsos vários em sinal contrário, surgidos na esfera do vital. O que implica, ao longo do mais recente livro de Frederico Pedreira, que à consideração dos elementos constituintes de um polo se sucedam apelações do outro lado da argumentação. Há, por isso, um encadeamento de avanços e recuos, entre anúncios de luz e exibições de obscuridade. De resto, o elemento visual é uma das matrizes deste livro. Palavras como “olhar”, “olho[s]”, mas também “retina”, além de vocábulos correlatos, repetem-se numa cadência frequente e deliberada. Desde (pelo menos) os pré-socráticos que se tem glosado a prevalência da visão sobre todos os outros sentidos: “os olhos são, de facto, testemunhas mais precisas” (Fragmentos Contextualizados, Heraclito, IN-CM, 2005, trad. Alexandre Costa). E é, precisamente, sobretudo por via da visão que os poemas estabelecem o xadrez de opostos, os cambiantes, o ciclo da afirmação e do negado — tão admiravelmente patentes em Coração Lento. Uma disposição que se pode já notar no primeiro poema do livro. Esta composição de sinais opostos, conjunto de proposições construídas por inviabilidades, falhas, lacunas, revela, desde logo, o seu engenho na forma de tematizar o empobrecimento da paisagem, dos modos de vida, dos lastros conviviais, da perda — “A praia impossível onde te vi enfim/ descalça e feliz como poucos teriam ousado/– pétala tremendo muito de frio ao de leve/ e de uma fome que não vem neste século nem no seguinte./ Contaram-nos histórias, essas ondas íngremes/ que o povo quase todo dizia ter escalado,/ talvez dom os peixes apertados na boca.” (p.13) A citação (longa, de toda a segunda estância do poema), como se perceberá da leitura de Coração Lento, constitui a antecipação de uma súmula. O reforço de sentido trazido pela presença contígua de “não” e “nem”, mas também a expressão da impossibilidade, da fome, sublinham a negação, que o poema reforçará, no que ficou por citar, com a “brevidade”, o “insolúvel”, o “informe”. Ainda neste poema inicial se começa a delinear a importância dos lugares, assinalada, ao longo do livro, por uma ruralidade agreste. Mas a escassez traduzida nos poemas, o desamparo e a privação que atravessam Coração Lento, não se fundem num cenário de relativismo, nem tão-pouco se inscrevem nas redes de um projeto demagógico de segundas e terceiras intenções. Nem panfletarismo, nem decorativismo, são, portanto óbices a estes versos. A categoria do espaço é antes um dos constituintes da aproximação à realidade que esta poesia promove. Sem esquematismos, nem a facilidade de uma identificação excessivamente sentimental, ou manipuladora.

Hugo Pinto Santos, 2021-06-04

https://www.publico.pt/2021/06/04/culturaipsilon/critica/arte-nao-1964846


Frederico Pedreira, https://www.publico.pt/2021/06/04/culturaipsilon/critica/arte-nao-1964846


Frederico Pedreira. E tudo isto é fado

 

O recente livro de Frederico Pedreira, Coração Lento, é um bom exemplo de uma tendência para reduzir tudo a um cinzentismo que não parece deixar grande saída.

 

Uma certa poesia contemporânea portuguesa parece ter inaugurado, nos últimos anos, uma nova modalidade, um novo tom: o tristonho - é acompanhada nisso por um certo discurso crítico. Quem veja nesta uma nova Stimmung, para usar um conhecido conceito que convém deixar no original, quem veja nesta uma nova forma de as coisas nos surgirem e nos falarem, uma abertura do mundo, engana-se. Tal como o “poético”, que é essa característica que não chega a ser característica, também o tristonho é uma tonalidade, um modo de dizer que se agarra a todo e qualquer objeto - e toda e qualquer coisa, por mais entusiasmante ou entusiasmada que seja, pode ser rapidamente reconvertida e assumir essa cor própria ao tristonho. É um olhar, doente e dolente, que se abate sobre tudo (os termos, aqui, contam bastante) e que arrasta todas as coisas, uma música de fundo cinzenta que não conseguimos deixar de ouvir. Não é melancólica - falta-lhe a beleza convulsiva, falta-lhe mover-se na extremidade da língua, uma certa agitação que abala as coisas. Não é tristeza - pelo menos aquela, adolescente, de que falava Ginzburg relativamente a Pavese, também ela um extremo sem saída. É um tom menor, que se encaminha para o silêncio mas que nunca lá chega, um modo quase sussurrante de acabar os versos (basta ouvir tantos a declamar para ver que os versos acabam sempre na mesma ausência de tom, na mesma música de elevador de baixa intensidade).

O recente livro de Frederico Pedreira (Coração Lento, ed. Assírio & Alvim) é, a esse nível, exemplar. Exemplar porque este dispositivo encontra uma cristalização que nos permite pensar esta tendência recente, exemplar porque Frederico Pedreira tem uma oficina poética bastante bem feita, com um rigor na construção do poema que falta a muitos - mas a culpa não é deles, muitas vezes, mas da ausência de uma outra figura que desapareceu sem deixar rasto do panorama literário, o editor. Mas exemplar, também, porque Coração Lento permite perceber as limitações que esta tonalidade tem, esta, para citar Kafka - que não tem nada que ver com esta história -, “cinza que não é capaz de tomar um aspeto de vida”. 

A imagem que comparece no segundo poema tem algum interesse (“fósforo a fósforo/ ilumino o teu rosto”), deixando ver o cuidado que Frederico Pereira tem em limar o conteúdo imagético - os poemas são, nos seus melhores momentos, pequenos cristais autocontidos aos quais não se poderia acrescentar mais nada. O problema, no entanto, é que esse rigor na construção acaba por ser contrabalançado, arrastado, por um dispositivo retórico que está constantemente a ser usado e que se abate sobre praticamente todos os poemas de Coração Lento: é o poema “que não vale / mais que uma assinatura”, o “desengonçado estaleiro”, a “pobreza do verbo”, a “volta lenta dos derrotados”, o verso onde se vê “o verde dos olhos dissipar-se/ na chama triste do papel em branco”, a “pobre arte da oratória”, o coração “romântico, lasso, um pouco baço”, as palavras que “vogam acabrunhadas”.

Esta derrota, este derrotismo, esta impotência generalizada que capturou e que se abateu sobre uma parte considerável da poesia portuguesa contemporânea, em que o poema nunca vale “mais que uma assinatura”, em que o verso vê algo dissipar-se na “chama triste do papel em branco”, onde o poeta é este constante derrotado sabe-se lá bem do quê, esta modalidade tristonha que não conhece outra música que não seja esse baixo contínuo sempre igual e sempre o mesmo - tudo isto é um dispositivo retórico ou, pior, não passa de uma autocomiseração através da qual uma certa poesia se regozija pela sua própria impotência. 

Autocomiseração poderá ser, dispositivo retórico é, certamente. Poderá haver aqui uma referência velada a um diagnóstico epocal - a poesia, afinal, desapareceu, ou quase, é hoje um fenómeno marginal - mas esta derrota não precisa de cair necessariamente nesta tonalidade tristonha (ouçam Camões, que tanta derrota conheceu: “acenda-se com gritos um tormento/ que a todas as memórias seja estranho”) e pode assumir outros movimentos e declinações: o protesto, o grito, o entusiasmo, tudo menos esta autocomiseração cinzenta que mais não é que o poeta a assumir o lugar que outros lhe deram (Kafka também poderia dizer-nos algo: “Como um cão! - exclamou ele, para que a vergonha lhe sobrevivesse.” E é preciso que a vergonha sobreviva, dita e escrita). Mas é dispositivo retórico, antes de mais, porque esta tonalidade só poderia ter um fim ao qual se recusa sempre: o silêncio puro e simples, o calar-se de vez. 

Basta abrir um pouco ao acaso Coração Lento para ver funcionar esta retórica, esta “ladainha dos lábios”. 

“A cidade ilumina-se sincera

nas sucessivas cabeças da vitória.

Mal-amados os que esperam 

a dádiva beata na sarjeta.

Milhares de luzes: teço e desteço

o fio de Ariadne, uns olhos de peixe 

amarrados na ponta.

Somos detestados por todos. 

Nem a entrada no radical museu

nos é permitida.

O sangue uma miragem que

já não interessa.

Teremos chegado ao fim, 

nem espinhos nem rosas, 

só uma temperatura morna,

aquilo que a custo compramos,

a vera infelicidade”

Nos seus melhores momentos, a poesia de Frederico Pedreira lembra um certo João Miguel Fernandes Jorge, aquele modo quase narrativo de dar conta de encontros fugazes que deixam algo na memória, pequenos cristais de tempo que o poeta vai limando (veja-se, por exemplo, o poema 38, onde se relata um encontro numa taberna). Há inclusive um poema (o 22º da primeira parte), com o seu “lendo tudo do lado errado da pauta”, a “flauta furada pelo vento”, o “soluço apanhado à sorte”, que consegue escapar um pouco a esta tonalidade tristonha que deflagra em todos os momentos de Coração Lento (mas isto é porque evoca em mim a memória distante de uma “fífia” de que falava um poeta a que volto sempre). Mas a poesia de João Miguel Fernandes Jorge, para continuarmos com uma possível afinidade de Frederico Pedreira, nunca cai nesse tom tristonho, vagamente nostálgico (“Houve um tempo (...) em que não se chamava versos/ às coisas em que um homem pensava ou sentia”, como se lê no último poema da segunda parte), assume outros e variadas tonalidades, nunca se fica por essa “temperatura morna”, “nem espinhos nem rosas”.

O dispositivo que se repete de poema para poema é aliás verificável por aquele que citei: começa por se delinear uma possibilidade (“tomara que”, como começa o poema 6 da segunda parte), por contar uma história (“estavam os três numa praia.”, como diz outro poema), por abrir uma situação em particular. Mas depressa essa possibilidade, essa abertura, se fecha irremediavelmente, depressa se abate sobre o poema esta tonalidade cinzenta que não é isto nem aquilo. O verso chave do poema, aliás, poderia ser esse “já não interessa”, sendo o resto uma declinação tautológica dessa ausência de interesse que o tristonho, enquanto modalidade, impõe (vejo agora que as notas que fui tomando dizem quase todas respeito ao final dos poemas). Seria interessante, aliás, ver como é que na economia dos diversos poemas se joga essa arquitetura cuidada, essa delimitação rigorosa de uma situação concreta e particular, com esta deflagração do “coração (...) lasso, um pouco baço”, que, a meu ver, é mais baço que lasso e que, consequentemente, acaba por contaminar o resto do poema - que fica sempre e irremediavelmente com essa “temperatura morna” que não é “vera infelicidade” nenhuma.

Que este dispositivo se repita em quase todos os poemas acaba por ter duas consequências desastrosas: a primeira é que, findo o livro, todos os poemas acabam por se equivaler, por se tornarem iguais (é o problema do tristonho: tudo é cinzento, tudo é subsumido a uma equivalência geral, todas as situações, todos os encontros, acabam nesta “temperatura morna”); a segunda é esta tonalidade sempre igual, sempre a mesma, que se abate sobre todo e qualquer poema. É um problema típico do tristonho: não conhece qualquer variação, não conhece outra velocidade, não aumenta nem diminui o som, mas mantém-se sempre na mesma música, sempre nesse tom médio, que não é nem muito alto nem muito baixo (a estrutura “nem...nem” pode ter outros usos, como se sabe), onde tudo é arrastado para essa baça “ladainha dos lábios”. É uma poesia epilogal à qual apetece dizer: e tudo isto é fado.

 

João Oliveira Duarte, 11/06/2021

https://ionline.sapo.pt/artigo/737374/frederico-pedreira-e-tudo-isto-e-fado


***


Entrevista ao autor Frederico Pedreira, vencedor do Prémio União Europeia de Literatura 2021, com o seu livro A Lição do Sonâmbulo.


@ Os_Livros_da_Lena, 2021

Entrevista patrocinada por EUPLPrize (Prémio União Europeia de Literatura).


***



«Numa lufa-lufa entre o coração e a cabeça» — Entrevista a Frederico Pedreira

 

Tânia Pinto Ribeiro, 2017-07-07 

https://imprensanacional.pt/numa-lufa-lufa-entre-o-coracao-e-a-cabeca-entrevista-frederico-pedreira/




CARREIRO, José. “Frederico Pedreira”. Portugal, Folha de Poesia, 03-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/frederico-pedreira.html



Eucanaã Ferraz

https://pt.wikipedia.org/wiki/Eucana%C3%A3_Ferraz

 

CALENDÁRIO

 

Maio, de hábito, demora-se à porta,

como o vizinho, o carteiro, o cachorro.

Das três imagens, porém, nenhuma diz

 

do que houve, para meu susto, àquele ano.

O quinto mês pulou o muro alto do dia

como só fazem os rapazes, mas logo

 

pelos quartos e sala convertia o ar em águas

definitivamente femininas. Eu

tentava decifrar. Mas

 

deitou-se comigo e, então, já não era isso

nem seu avesso: a camisa azul despia

azuis formas que eu não sabia, recém-saídas

 

de si mesmas, eu diria, e não sei ter

em conta senão que eram o que eram. Partiu

do mesmo modo, em bruto, coisa sem causa.

 

Maio, maravilha sem entendimento,

demora-se à porta, como o vizinho,

o carteiro, o cachorro. Porém,

 

nenhuma das três imagens, tampouco

este poema, diz do que houve, para meu susto,

àquele ano.

 

Eucanaã Ferraz, Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008

 

 

O ATOR

 

Pensei em mentir, pensei em fingir,

dizer: eu tenho um tipo raro de,

estou à beira,

 

embora não aparente. Não aparento?

Providências: outra cor na pele,

a mais pálida; outro fundo para a foto:

 

nada; os braços caídos, um mel

pungente entre os dentes.

Quanto à tristeza

 

que a distância de você me faz,

está perfeita, fica como está: fria,

espantosa, sete dedos

 

em cada mão. Tudo para que seus olhos

vissem, para que seu corpo

se apiedasse do meu e, quem sabe,

 

sua compaixão, por um instante,

transmutasse em boca, a boca em pele,

a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.

 

Daria a isso o nome de felicidade,

e morreria.

Eu tenho um tipo raro.

 

Eucanaã Ferraz, Cinemateca. São Paulo: Companhia das Letras, 2008

 

 

POR VEZES, NÃO RARO

 

Por vezes, não raro,

basta um gesto, sua borracha,

um quase nada de alvaiade,

um rasgo e só.

 

No entanto, o carvão

de certas palavras,

de alguns nomes,

não se apaga fácil.

 

Afogá-lo, inútil:

o maralto traz

de volta cada sílaba

em sal fortalecida.

 

Enterrá-lo? Logo renascerá:

árvore alta, trigo, praga.

No fogo, irrompe a letra,

inda mais sólida liga.

 

Há que esperar do esquecimento

o dente miúdo

e lento roer a nódoa na língua,

o travo no peito.

 

Eucanaã Ferraz, Dessassombro. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2002

 

UM FIO DE LUZ

 

Um fio de luz:

tesoura que baste

para tornar nítido

o que

 

sobre a cômoda,

sobre a mesa:

um lápis, uma pera,

um cálice,

 

que nossos olhos

podem anotar

sem complicação,

sem gula ou fastio.

 

Mesmo da morte a repentina

ternura, se vista de tal modo:

num vaso, haste, pétala

que cede.

 

Sobre a cômoda, sobre a mesa,

belezas que um nosso gesto

pode anexar ao peito

sem grande peso.

 

Ou, ainda, o peso nenhum

de quando nenhum atavio:

tábua

sem nada em cima.

 

Eucanaã Ferraz, Dessassombro. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2002, p. 23

 

 

POESIA E SOBREVIVÊNCIA

A imagem de abertura do livro Desassombro é de um fio de luz que penetra o espaço íntimo da casa, recortando sutilmente essa penumbra até evidenciar, sobre a mesa, coisas tão comuns como “um lápis, uma pera, / um cálice”. Objetos de uso cotidiano, frutas que apodrecem; coisas que qualquer pessoa poderia ter em casa e que revelam a medida das nossas necessidades: escrever, comer, embriagar-se. Nesse espaço íntimo e assombrado pela consciência da finitude, uma luz tênue traz a possibilidade de reencantamento pelas coisas simples, pequenas e belas que foram deixadas sobre a mesa. Por outro lado, essa alegria implica simultaneamente no reconhecimento da morte, do fundo trágico da existência.

Ao notar a beleza das coisas que podemos sentir sem grande peso, como esses objetos domésticos, o homem toma consciência de que o seu destino é perdê-los. O enfrentamento com a morte parte de reconhecer que o peso, afinal, será suprimido por uma leveza que não cabe aos vivos. Esse “peso nenhum / de quando nenhum atavio: / tábua / sem nada em cima”, que se refere ao fim das tensões entre luz e sombra, alegria e penar. É especialmente notável a forma como o poeta consegue atenuar a tragicidade da morte ao afirmá-la enquanto ausência de peso, ausência de imagem. Uma leitura pouco atenta poderia inclusive confundir o sentido da estrofe final com a anterior, onde o que se afirma, ao contrário, é possibilidade da beleza e da alegria – apesar de toda precariedade. Os versos curtos e sutilmente recortados – que estabelecem um vínculo entre a forma do poema e a imagem do fio de luz – ajudam a suavizar o aspecto trágico que serve de fundo à alegria; a sombra que permite o aparecimento das pequenas cintilações.

No capítulo anterior, havíamos percebido alguns contrastes semelhantes em um poema de Eugénio Montale citado por Ítalo Calvino, assim como nos pequenos lucciole de origem luciferina descobertos em Bolonha por Pasolini. No entanto, como vimos, esses contrastes são agora articulados em um ambiente íntimo, longe da luz abrasadora dos postes públicos, nessa zona de apagamento onde o desejo pode se refazer em silêncio. No poema, a certeza do fim não é substituída por um otimismo ingênuo, mas também não dissipa o presente em pura negatividade. O permanente contato entre luz e sombra é não apenas necessário, como concerne apenas ao reino dos vivos, reino da imanência. Como afirma Silviano Santiago em seu texto “Um fio de luz: o poema, a esperança”, que apresenta o livro:

 

Entre assombros e desassombros (vale dizer: silêncio e palavra, entre trevas e luz, entre temor e coragem, entre descanso e trabalho, entre decadência e trabalho, entre o belo e o feio, etc.) se recheia o livro de poemas que estamos lendo. (SANTIAGO, 2002, p.11)

 

O mundo de que fala Eucanaã Ferraz não é desvinculado de seu entorno, nem da necessidade de trabalhar e cumprir os ritos do contemporâneo. O homem que experimenta a beleza ínfima dos objetos iluminados é o mesmo que se vê obrigado a reconhecer na finitude o fundamento da alegria. Mas “mesmo da morte a repentina / ternura, se vista de tal modo: / num vaso, haste, pétala / que cede” (FERRAZ, 2002, p.23). A experiência da morte só se torna fundamental na medida em que permite perceber os clarões que iluminam nossa precariedade; no peso da nossa condição trágica, alguns frágeis atavios.

 

Ler mais em: Sobrevivência da delicadeza na contemporaneidade e a poesia de Eucanaã Ferraz, Marcelo Mello. Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2014.




CARREIRO, José. “Eucanaã Ferraz”. Portugal, Folha de Poesia, 03-12-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/12/eucanaa-ferraz.html



segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Último recorte da planície


A Leontina d’Aguiar
(12/12/1928 – 10/11/2021)

 

Como último recorte da planície

assim vejo o rebentar da morte.

Talvez um semitom aí se agite

oscile perdurável por entre as ervas,

registo da razão sempiterna.

Devagar no lugar que o tom ocupa

subimos devolutos na escala determinada

brandindo. 

Queria por aqui dizer não ao vento contrário,

a mão sob as vísceras, o óleo na testa. 

Oh botão de fraca chuva,

lava na margem as mãos mergulhadas

e dos dedos os atilhos desata 

para que pegado ao tempo

este se desfaça.

 

José Maria Aguiar Carreiro



"flower", por mememe, twitter, 2021-11-26



CARREIRO, José. “Último recorte da planície”. Portugal, Folha de Poesia, 29-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/ultimo-recorte-da-planicie-jose-carreiro.html



segunda-feira, 8 de novembro de 2021

um âmbar na cova da mão, Alberto Pimenta

A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos – sociais, políticos, culturais? Como pode resistir a poesia e a quê?


Inquérito Poesia e Resistência (Portugal) realizado por Ana Luísa Amaral, Joana Matos Frias, Pedro Eiras e Rosa Maria Martelo para o ILCML


Resposta de Alberto Pimenta (Porto, Portugal, 1937):


Quê?

um âmbar na cova da mão
cor de mel amolgado
quase maleável
não parece acabado
tão justo e ajustado
mudo macio e
aos olhos translúcida
fonte que espelha
tanta história da terra
um grão uma asa uma flor
e depois o imaginado.

vai a pedra
de entre os dedos
sobe à terra que a chama
na água ao seu redor
muda de leito e de forma
irradia então
puro líquido fulgor
que até ao mais fundo
da memória ilumina
as formas que já tomou
as que ainda há-de tomar.

Estava a escrever este poema (ou talvez a anterior variante) quando chegou o carteiro com o envelope com a carta com o convite Lyracom. Parei de escrever, li, voltei a olhar para o poema e perguntei: onde está aqui a resistência?

Consultei o dicionário de latim, procurei resisto/resistere e achei como primeira entrada “parar e olhar para trás”. Fiquei inquieto. Não é meu costume fazer isso: parar e olhar para trás. Mas o âmbar… fiquei parado a olhar a luz da pedra que a margem húmida do rio ia engolindo.

E penso: resistir é então antes do mais “parar e olhar para trás”. Mas também é, ainda em latim (vi a seguir), “enfrentar” e “opor-se”, naturalmente ao caminho em que se vai, só que agora activamente e sem olhar para trás. Já não é só desviar os olhos, é enfrentar o próprio caminho.

E então continuo a pensar: talvez sejam, de facto, essas as duas maneiras possíveis de resistir; parar, deixar de olhar para o que está à vista, ou então olhar, ver, e não aceitar. Não resistir será então persistir no caminho, o qual, como é próprio dos caminhos, foi já traçado anteriormente por quem traça os caminhos e as respectivas pontes (neste caso, pontífices). Resistir é não seguir esse caminho, optando ou por virar-lhe as costas, ou por enfrentá-lo. E, tratando-se de poesia, é no contorno da palavra que tudo se passa.

Creio que a poesia, como acto de busca da verdade subjectiva (a ciência é que busca a verdade objectiva), terá de fazer sempre uma dessas duas escolhas: virar as costas ao visto daqui, para manter outros vislumbres, ou seguir mas opondo-se, sempre pela palavra, tornando-a por exemplo outra, ou entrelaçando-a (Varrão: viere) com outras, em ritmos e harmonias de coisas primordiais, e nunca com o ruído das rodas que rolam por esses caminhos e a pouco e pouco até os vão afundando. A menos que se trate de enfrentar essas rodas e engrenagens mandando-as pela ribanceira abaixo. Isso também é muito belo. Desgraçadamente porém elas regressam sempre como desenhos animados que afinal são.

Por isso, nesses trilhos da obediência, ouve-se às vezes dizer que em certo lugar do caminho faltam 4 médicos, ou 4 juízes, ou 4 pedreiros, ou 4 motoristas, ou 4 fiscais, mas jamais se ouvirá dizer que faltam 4 poetas. Ainda bem.


 Respondem os poetas (de Portugal):

https://ilcml.com/inquerito-poesia-e-resistencia-portugal/




       Poderá também gostar de ler:

 

A heterogeneidade das práticas discursivas a que damos o nome de poesia reflete-se em diferentes conceitos de resistência, tão variáveis quanto as poéticas que lhes estão associadas. “Não há opressão maior e mais infame que a da língua”, escreveu Alberto Pimenta, e a poesia desenvolve mecanismos de resistência que assentam na consciencialização deste facto. Mas, por outro lado, talvez se tenha vindo a criar alguma resistência aos usos que a poesia de tradição moderna reivindicou para “as palavras da tribo”.

Reportando-se ao mundo contemporâneo, Pimenta constatava recentemente: “nesses trilhos da obediência, ouve-se às vezes dizer que em certo lugar do caminho faltam 4 médicos, ou 4 juízes, ou 4 pedreiros, ou 4 motoristas, ou 4 fiscais, mas jamais se ouvirá dizer que faltam 4 poetas. Ainda bem”. Porquê “ainda bem”? Por que precisa a poesia deste estar à margem? E se não faz falta (?), por que razão continua? As “operações” poéticas de Alberto Pimenta e os diálogos que estas mantêm (ou recusam) com outras poéticas portuguesas contemporâneas serão o ponto de partida para algumas possíveis respostas.

 

Ler mais em: “Tensões e Implicações entre Poesia e Resistência na Contemporaneidade Portuguesa”, Rosa Maria Martelo. In: elyra 2, 12/2013: 37-53 – ISSN 2182-8954. Disponível em: https://www.elyra.org/index.php/elyra/article/view/25/28

 



CARREIRO, José. “um âmbar na cova da mão, Alberto Pimenta”. Portugal, Folha de Poesia, 08-11-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/11/um-ambar-na-cova-da-mao-alberto-pimenta.html