domingo, 2 de outubro de 2022

O Bar Botequim de Natália Correia

O Botequim ocupa há décadas o número 79 do Largo da Graça


50 ANOS, 50 RESTAURANTES

1982: Natália Correia, o vulcão açoriano que abriu um bar icónico e deixou a Assembleia da República em alvoroço

 

Botequim, em Lisboa

Ia facilmente da mais olímpica gargalhada à mais eloquente cólera. Ninguém ficava indiferente a Natália Correia e há quem a coloque no grupo dos principais e mais ousados pensadores portugueses do século XX. De alma cheia, indomável e imprevisível, escreveu obras apreendidas pela PIDE e almejou uma revolução “civilizacional” em Portugal a partir do Bar Botequim, que abriu na Graça, em Lisboa. Num debate parlamentar, em 1982, respondeu a um deputado com o poema “Truca-truca”, que entrou para a história. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, vamos viajar no tempo - com o apoio do Recheio - para relembrar os 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal.

 

Natália Correia no lançamento de um livro de Júlia Lello no Botequim

Em 1982, a Assembleia da República foi palco de um inesquecível debate sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. A meio dos trabalhos, o deputado do CDS, João Morgado, adversário do projeto-lei, argumenta que “o ato sexual é para fazer filhos”. Soam, então, os alarmes no espírito inquieto de Natália Correia, então sentada na bancada do PPD/PSD e defensora da despenalização do aborto. Responde-lhe com um poema: "Já que o coito - diz Morgado - /tem como fim cristalino,/preciso e imaculado/fazer menina ou menino;/e cada vez que o varão/sexual petisco manduca,/temos na procriação/prova de que houve truca-truca./Sendo pai só de um rebento,/lógica é a conclusão/de que o viril instrumento/só usou - parca ração! -/uma vez. E se a função/faz o órgão - diz o ditado -/consumada essa exceção,/ficou capado o Morgado".

 

Natália Correia, por Inácio Ludgero


 

Da sátira à gargalhada geral foi um instante. O poema ridicularizava a situação, levando o racional do deputado ao limite e expondo o “conservadorismo moral” de certas franjas parlamentares. “Explorou a natureza contra natura de uma tomada de posição completamente inconcebível”, comenta Daniel Adrião, que conheceu Natália Correia e é membro dos órgãos diretivos do PS. Com um percurso no jornalismo e na literatura, Fernando Dacosta foi outro amigo de Natália e critica a imprudência de Morgado: “Foi muito infeliz. Eu conhecia-o de Lamego, era um bom advogado, um bom chefe de família e um bom católico. A certa altura, quis fazer uma perninha na política e filiou-se no CDS, o partido que mais se coadunava com as suas ideias e postura, vem para Lisboa e também se quer destacar. Aproveita a questão do aborto e tem a infelicíssima ideia de dizer aquele disparate. Deveria ter sido um bocadinho mais prudente e perceber que a Assembleia, naquela altura, não era constituída por matarruanos, mas por grandes vultos da cultura portuguesa. Daí a intervenção da Natália ser imediatamente apoiada e defendida por esses grandes vultos”.

A despenalização do aborto só se concretiza em 2007, após um intenso e prolongado esgrimir de argumentos. O “Sim” venceu no segundo referendo sobre o assunto e a lei foi aprovada no parlamento. Plasmada no debate de 1982 ficou, porém, a certeza de que a liberdade era “o valor supremo” na vida de Natália Correia, para quem “o ser humano tinha o direito de fazer as suas opções em tudo o que dizia respeito ao seu íntimo”, realça Fernando Dacosta.

Bar Botequim em 1973

 

Bparpd, Arquivo Natália Correia



 

Um bar para o futuro de Portugal

Nestes tempos, Natália Correia era já uma figura influente da cultura portuguesa. Natural da Fajã de Baixo, em Ponta Delgada (São Miguel), e estabeleceu-se em Lisboa. Foi jornalista, dramaturga, poeta (não apreciava o termo poetisa por achar a poesia assexuada), deputada e a mais carismática anfitriã da capital. O bar que abriu, em 1969, com Isabel Meyrelles no bairro da Graça - onde a memória de Natália já nomeou uma rua e inspira pinturas murais -, “marcou o século XX português”, afirma Fernando Dacosta na obra “O Botequim da Liberdade”, que escreveu sobre esse local único. Natália queria que fosse a “antevisão de um Portugal que podia haver no futuro, um espaço de convívio, cultura, afetuosidade e de ideias”.

O Botequim mantém o elegante balcão original. Exibe madeiras trabalhadas à mão, livros e revistas nas estantes, fotos de Natália e de Amadeo de Souza-Cardoso. No início, e apesar da claustrofobiaali“as asas, a imaginação e a criatividade não tinham limites”. “Projetava-nos para um espaço libertário, porque a Natália sempre foi uma libertária e uma aristocrata do espírito, como gostava de dizer. O Botequim era um sítio onde se ia beber inspiração, construído à imagem e semelhança da Natália, que era o centro de todas as atenções”, descreve Daniel Adrião, cliente desde o final dos anos 80.

Por norma, as manhãs eram passadas em casa, a escrever. A tarde era para afazeres sociais e, à noite, Natália ia para o Botequim vivenciar cultura. Saciava-se com o primeiro rosbife (também se servia Bacalhau à Brás), as pessoas chegavam e iam “contando as suas coisas”. Havia uma certa mise en scéne, Natália sabia acomodar “as peças do puzzle” pelas mesas e começava a dominar. A partir daí, tudo podia acontecer e, como escreveu Dacosta, em noites de festa “navegava-se delirantemente em demanda de continentes venturosos (ilhas de amores) que nunca se encontravam”. Para Natália o importante não era alcançá-los, “mas procurá-los”, comungando com “pessoas de espírito e ousadia”, realça o autor. Não se discriminavam vias políticas, Natália valorizava sobretudo os criadores, a “cultura e a autenticidade”, o respeito pela “diferença e as minorias”, “tinha urticária à mediocridade e ao carreirismo, a tudo o que cheirasse a oportunismos e a arrivismos”. Topava-os a léguas e punha-os fora do bar, sem delonga.


Fotobiografia de Natália Correia, por Ana Paula Costa

 

Noites longas e o salão literário

As convicções de Natália eram uma fortaleza. “Não gostava de ser contrariada em matérias que considerava sacrossantas”, diz Daniel. Certa vez, entra em choque por causa do Muro de Berlim com o filho do general Costa Gomes, à frente do pai, gelando a sala. O seu espírito vulcânico entrava imenso em erupção e o bar foi “invadido e destruído” algumas vezes, recorda José Manuel dos Santos. À meia noite, muitos acusavam o cansaço, mas viam Natália eufórica: “Além de ter comido o rosbife, tinha-nos absorvido a energia, o Cesariny tinha razão quando dizia que ela era vampírica”, garante um sorridente Fernando Dacosta. Com laivos de magia, foi neste bar que se continuou a tertúlia lisboeta e se “fizeram e desfizeram revoluções e governos, obras de arte e movimentos cívicos”“Só uma pessoa como a Natália era capaz de iluminar algo assim”, refere Fernando Dacosta, para quem os “grandes e mais ousados pensadores portugueses do século XX foram Fernando Pessoa, na primeira metade, e Agostinho da Silva, Natália Correia e Jorge de Sena na segunda”. Defende que os Sonetos Românticos são “uma obra prima”, atingindo a dimensão da lírica camoniana, e lembra um dos conceitos avançados introduzidos por Natália, o “femininismo”, que reivindica a valorização do feminino existente no homem e na mulher.

Fumaradas, taças de champanhe, declamações, cantigas e o piano ampliavam as noites. De madrugada começavam a sair convivas, algo regados. Se o primeiro visse a polícia, avisava os outros, que seguiam de táxi. Natália conduzia “muito mal”, diz Fernando, que amiúde a levava a casa. Numa noite, ela pega no volante e entra “à socapa” numa praceta, vindo um carro com prioridade pela direita. “Só não embateram porque o dono do outro carro parou a tempo e apitou. A Natália sai do carro e atira - “O senhor não sabe dar prioridade a uma senhora?” (risos). Era “repentista” e imprevisível...


Fotografia do Botequim, cedida por Daniel Agrião, à esquerda na imagem, e com Natália Correia ao centro, vestida de azul

 

A casa de Natália Correia, na Rua Rodrigues Sampaio, também era lendária. Divisões amplas e uma zona de estar e receber forrada “a livros, quadros, a fotos, a referências, a recordações” e símbolos, descreve “O Botequim da Liberdade”. Aí se fez um “fascinante” salão literário e se representou, pela primeira vez, a peça Huie Clos, de Sartre, traduzida e protagonizada por Natália. Henry Miller veio de propósito conhecer uma “verdadeira deusa grega”. Numa das idas de Daniel Adrião à sua casa, jantaram um empadão de carne feito com arroz e depois foram à ante-estreia da peça de teatro “A Pécora”. Também em privado Natália se revelava “cativante, fora da caixa, surpreendente e de imaginação vivíssima”. Tinha “o prazer da comida e da bebida” e o hotel do marido, Alfredo Machado, abastecia a mesa. Havia algum aproveitamento... Luiz Pacheco “abria a mala à socapa e pumba, uma lagosta para dentro da mala!”, conta Dacosta. No último piso do hotel funcionava uma roleta clandestina e, como é óbvio, “não havia fortuna suficiente para sustentar uma cambada de comilões e de viciados no jogo, foi tudo à falência”.

Natália Correia sempre vigilante..., Carlos Ribeiro Silva


Amália Rodrigues e a Revolução

Quando entrava outra diva no Botequim, Natália contentava-se porque “dava importância” ao bar, mas era também “uma concorrência que não queria”, considera José Manuel dos Santos. “Acontecia muito com a Graça Lobo”, por exemplo. Os serões em casa de Amália Rodrigues, que tinha a própria corte, davam faísca. Natália começava a dar nas cantigas de amigo e Amália, “enxofrada e manhosa”, pegava na guitarra, dedilhava e cantava. “Ora, entre ouvir a chumbada das cantigas de amigo da Natália ou o fascínio da voz da Amália, virávamo-nos todos para a Amália e a Natália deitava fumo, nem disfarçava (risos)”, recorda Fernando.

Antes da Revolução dos Cravos, Natália organizara a “Antologia de Poesia Erótica e Satírica”, que escandalizou o regime e lhe valeu condenação em tribunal, com pena suspensa. E publicou O Homúnculo, mandado apreender por Silva Pais, da PIDE. Um familiar de Silva Pais, cliente do Botequim, contou a Natália o veredicto de Salazar, que ficou sem dormir: “Apreendam o livro, mas não toquem na Natália Correia, porque é uma mulher muito, muito inteligente”, revela Fernando Dacosta. Para José Manuel dos Santos, não a prendiam por temerem “o escândalo”. Com o 25 de abril, grandes vultos da política e ainda das forças armadas, como Otelo, Vítor Alves ou Melo Antunes, afluem ao Botequim. “Passava lá toda a gente que tinha influência e poder”, confirma José Manuel dos Santos, que começa a frequentar por esta altura. Natália inicia o diário Não Percas a Rosa na noite do golpe. “Era uma oposicionista corajosa, feroz, e por vezes até selvagem, por isso recebe o 25 de Abril com muita alegria. A pouco e pouco, vê sinais de que a Revolução democrática, ou a liberdade, começam a correr riscos, queriam transformar aquilo numa outra coisa, e ela fica na primeira fila do combate. Fui com ela ao decisivo comício da Fonte Luminosa, com o Soares, e a que se juntou a Vera Lagoa”, diz o ex-assessor cultural de Mário Soares e Jorge Sampaio.

 

Arte urbana alusiva a Natália Correia, num mural de Maria Dias Coutinho


Pinturas murais alusivas a Natália Correia, na Graça, em Lisboa


 

Todas as noites chegavam informações ao bar. Melo Antunes vinha “de madrugada, com uma pastinha” e lia um documento que o Grupo dos Nove andava a redigir. Por vezes, Natália indignava-se: “O sujeito não concorda com o predicado! Como é que estes revolucionários não sabem gramática? O Melo Antunes pegava numa borrachinha, ia apagando e lá punha o sujeito a concordar com o predicado. Era todo um surrealismo...”, recorda Dacosta. A seguir ao 25 de Novembro, a Natália “fica contra” Melo Antunes: “Ele tinha dito, na minha opinião bem, que não se podia ilegalizar o PCP, e ela achou que isso era uma cedência”, refere José Manuel dos Santos, que assistiu a uma discussão com oficiais “melo-antunistas”. “Acabou. Não quero falar mais de assuntos políticos, o que me interessa é a literatura, a língua portuguesa e a arte”. Um coronel da aviação afirma, então, que se está “a cagar para a língua portuguesa” e Natália perde a cabeça, dá-lhe “duas chapadas” e confronta-o: “Jurou defender Portugal perante a bandeira e já Fernando Pessoa dizia - A minha pátria é a língua portuguesa! Ele jurou defender a língua e agora está a insultá-la e a conspurcá-la!”. E ainda ligou para o Lemos Ferreira, então Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, incitando-o a expulsar o “energúmeno”, recorda José Manuel dos Santos.


Natália Correia, durante as eleições de 1976, Inácio Ludgero



Natália Correia a dançar com Francisco Sá Carneiro, Inácio Ludgero


Soares, Sá Carneiro e os ódios de estimação

Depois de assistir a um debate tardio na assembleia, no primeiro governo constitucional, José Manuel dos Santos vai para o Botequim e não demorou até uma série de ministros, como Sousa Gomes e Medina Carreira, entrarem para cear. “Foi sempre um dos centros fundamentais de poder”. Tal como sucedeu com o PPD/PSD (em relação a Sá Carneiro), Natália aceitaria ser deputada pelo PRD “não pelo partido, mas pelo general Eanes”, que também considerava. Mário Soares “foi sempre muito amigo dela”, realça o ex-assessor. Um dia, era ele primeiro ministro, e está numa embaixada a tratar de um assunto. Natália interpela-o e Soares diz-lhe que não era “nada assim” como ela dizia. “Não me ouve, não me ouve. Ainda há-de vir rastejar a meus pés...”. Soares contrapõe: “Ó Natália, se fosse há 50 anos talvez, agora não”, comentário que mereceu da visada um queixoso “Ele só olha para mim como uma fêmea!”. Mas Soares “gostava dela, e muito”.Durante a presidência aberta nos Açores, Natália atrasa-se uma manhã e perde o seu avião. Como o voo presidencial era o último, alerta o presidente: “Não tenho avião!”. “Não esteja zangada, tudo se resolve. Sabe que tem sempre um lugar no meu coração”, apazigua o chefe de Estado. “Posso ter lugar no seu coração, mas não tenho nos seus aviões”, acentua Natália, sendo levada para o avião presidencial. Aí, aponta ao Chefe da Casa Militar: “Dê-me o lugar, sou uma senhora!”. O general Carlos Azeredo, que gostava imenso dela, “fez-lhe continência” e cedeu-lhe o lugar, ficando de pé, fardado e com as medalhas.

 

Capa do livro "O Botequim da Liberdade", de Fernando Dacosta

   

 

“O Botequim da Liberdade” inicia com a chegada de Snu Abecassis e Francisco Sá Carneiro, num Volvo escuro, a uma Ceia de Poesia no Botequim. Do interior vêm “notas de piano, tinir de copos, odores de canela” e os convidados trazem um enorme ramo de rosas brancas para a anfitriã, que foi o cupido do primeiro almoço do par: “Ela é uma princesa que jaz adormecida num esquife de gelo à espera do príncipe que a desperte com um beijo de fogo. O príncipe é você. Telefone-lhe e convide-a”, incitou Natália a Sá Carneiro, ligando depois a Snu: “Menina, o príncipe encantado por que esperavas vai aparecer-te”, lê-se. Natália fica arrasada com a tragédia de Camarate. Quando Santana Lopes era secretário de estado da cultura, teve um desaguisadocom Natália e nessa noite apareceu no bar com um ramo de flores. “Eu aceito, você é um estupor mas sabe tratar uma senhora como deve ser”, retribui Natália. Quando ele se foi embora, vaticina: “Este rapaz ainda chega a primeiro-ministro”.

Muitas figuras emergem no Botequim, estabelecendo diferentes ligações e relações de proximidade. De Helena Roseta a Isabel da Nóbrega, de António Vitorino de Almeida a Saramago. Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner e Agustina Bessa-Luís eram “no mundo literário, ódios de estimação” para Natáliaescreve Dacosta.Com Luiz Pacheco e Mário Cesariny começa por dar-se bem, mas os três egos deixam de se “conciliar no mesmo poleiro”, e distancia-se de Ary dos Santos “por desníveis de caráter”. Embirrou com Marcelo Rebelo de Sousa quando ele tomou banho no rio e apoiou Jorge Sampaio na corrida à presidência da Câmara. Irritavam-na, também, algumas abordagens dos média, como uma pergunta sobre a sua simpatia para com Sá Carneiro num debate no Instituto Franco-Português de Lisboa. “Você não passa de uma ignorante, não está preparada para me questionar, estou farta de semelhante marabunta vaginal”, reproduz Dacosta.

 

Fernando Dacosta, autor do livro "O Botequim da Liberdade", era cliente do Botequim


 

Combativa até ao fim

No início da década de 90, Natália percebe que o final se aproxima. Queixava-se mas não a levavam a sério. Não imaginavam “que aquela mulher fosse mortal”. Via-se a braços com a doença, a perda de rendimentos e desencantada com o “liberalismo selvagem” e o retrocesso democrático. O Botequim ia perdendo gás e influência, o que também “a entristece e que lhe tira até energia e força”. Poucos meses antes de Natália morrer, José Manuel dos Santos regressa de um jantar com o presidente Mário Soares e vai ao bar informá-la que, além de um prémio da Associação Portuguesa de Escritores, ia ser condecorada com a Ordem da Liberdade. Na sala está Júlio Pereira (acompanhado), que aparecia para “provocar a Natália”. A anfitriã chegou com o marido, Dórdio Guimarães, Isabel da Nóbrega e a viúva de Fernando Namora, estreante no bar. Esta, senta-se sobre um rolo de papel com um desenho ou pintura de Júlio Pereira, que lança a primeira “ordinarice”. Seguiram-se as “maiores enormidades” contra Natália e Dórdio. Natália tenta conter-se, até à decisiva vileza: “Tu devias era estar a vender castanhas num sítio qualquer, porque como escritora...”. Num ímpeto, salta “como uma leoa” e enraivece: “Deem-me um chicote para eu chicotear este biltre, este energúmeno!”. Embora debilitada, “era a Natália de sempre, com um extraordinário discurso de insulto”, recorda José Manuel dos Santos. No meio da gritaria, Dórdio e Isabel gatinham por trás até ao bar e chamam a polícia. Como não tinham percebido bem a razão da queixa e apanham Natália no auge da sua fúria, os agentes dirigem-se a ela para a prender, e ela vocifera: “Estão a tentar molestar uma senhora, o biltre é aquele e vocês são iguais a ele! É por isso que tudo o que é belo no mundo está a acabar, porque estou rodeada de imbecis e malvados!”. A contenda resolve-se, o instigador abandona, os agentes ficam “boquiabertos”...

 

Natália Correia em casa, Inácio Ludgero

 

“Todas estas personagens, para além de serem grandes escritores, artistas e intelectuais, eram originalíssimas, maravilhosas. Nunca desmentiam a sua obra, eram tão grandes como a sua obra. Eu adorava a Natália. Era, simultaneamente, a pessoa mais colérica e eloquente na cólera, e a pessoa que mais gosto tinha em rir. As suas gargalhadas eram olímpicas, homéricas, históricas. Ela adorava rir e divertir-se”, descreve José Manuel dos Santos. Fernando Dacosta elogia a abrangência e profundidade do seu pensamento, salientando que a amiga se interessou pelo neorromantismo, neoclássico e por tudo o que era diferente. A peça de teatro Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente, por exemplo, era sobre o Sebastianismo, que “não significa desistência, apatia e espera pelo salvador”, mas se liga, antes, a um “movimento de resistência”, salienta Dacosta. O Botequim materializava-o e assumiu uma “importância extraordinária na história de Portugal”.

 

Raiava a madrugada de 16 de março de 1993 quando Natália sai do Botequim e chega a casa. “Foi deitar-se, sentiu-se mal, levantou-se e depois é um mistério”. Morria um astro e Fernando ficou “suspenso de tudo”. “É indescritível...”, verbaliza. Daniel Adrião sentiu um “enorme choque” e sugere que o Estado português aproveite os 30 anos da sua morte (e 100 desde o nascimento), em 2023, para a homenagear“enorme urgência de mudança estrutural no país” que Natália ambicionava “está por realizar”. “Era uma revolução civilizacional que elevasse os portugueses a outro patamar de cultura, ao conhecimento, educação, e ao respeito pela diferença e pelas minorias, era até o apoio institucional aos que pensam fora da caixa, aos criadores e artistas, àqueles que fazem com que o mundo avance”, conclui Daniel Adrião.


Área de esplanada e a entrada do Botequim ao fundo


 

A Nova gerência do Botequim

Depois da morte de Natália, o bar funcionou uns meses e fechou. O espaço teve outras existências, até Hugo Santos o reabilitar e reabrir o Botequim em 2010. Ouvira falar da história, mas não lhe imaginava a dimensão. O impacto “foi surreal”, gerando-se uma roda viva de jornalistas e reportagens. “Só ouvia falar na Natália e do Botequim, ela 'viveu' mais dois ou três anos depois da reabertura”, valida. O bar continua defender a liberdade, acolhendo quem vem comer, beber, ler, trabalhar no computador ou “abrir a alma” para o amigo em conversa íntima. Foi complicado no início, os vizinhos chamavam a polícia todos os dias receando o regresso do barulho. “Nos primeiros meses tive aqui uma lanterna vermelha e as velhotas acharam que isto era uma casa de prostituição”, recorda Hugo Santos.

À imagem de Natália, Hugo também já teve de expulsar clientes por virem “levantar a grimpa” e desrespeitarem o local, a vontade ou a orientação sexual alheias. “É um espaço onde és bem recebido e, mais do que isso, onde sentes um prolongamento da tua casa”, comenta Carlos Ribeiro Silva, cliente desde o primeiro dia da nova fase. No Botequim (Largo da Graça 79, Lisboa, Tel. 218888511; encerra à quarta-feira), a cozinha abre das 11h às 02h00. Vendem-se desde cafés a refeições completas, funcionando como bar e restaurante. Forte nas opções vegetarianas, como as Saladas de couscous com seitan (€7,65) e de Ovo com queijo e cogumelos frescos gratinados (€7,65), apresenta ainda Prego em pão alentejano com ovo, queijo e molho de mostarda (€7,85), e os bons folhados: prove o de queijo de cabra com tomate e espinafres (€7,45), o de mozzarella, cogumelos e presunto (7,45) e o de seitan caseiro (€7,65), Sopa de cogumelos frescos (€2,60), tábuas de queijos e enchidos.

Prego em Bolo do Caco do atual Botequim, Carlos Ribeiro Silva


 

Sara Tavares vem tomar café, Frankie Chavez e Nuno Prata já deram concertos na casa onde, por vezes, se acendem discussões sobre teatro, política, música, televisão ou o digital. Há dias em que se juntam mesas e já daí saiu um casamento. De alguma forma, a influência de Natália Correia ainda paira no ar. Hugo sente-se só um “guardião” de uma filosofia pulsante. E se há 'incultos' que estão mais “próximos do mistério do que os racionalistas”, como defendia Natália, se há mistério na criatividade, atente-se à mensagem que deixou a Fernando Dacosta na Lagoa do Fogo. Deve ser visitada às três da madrugada, “altura em que se desoculta aos iniciados”. “Sempre que vier a São Miguel, depois de eu ter morrido, suba à Lagoa do Fogo a essa hora, eu estarei lá”.

Hugo Santos, atual gerente do Bar Botequim


 

Para comemorar os 50 anos do Expresso e do Recheio, fazemos uma viagem no tempo para relembrar restaurantes que marcaram as últimas cinco décadas. Acompanhe, todas as semanas, no Boa Cama Boa Mesa.

Recorde os primeiros restaurantes desta iniciativa:

1972: O restaurante bar de Lisboa que se transformou na segunda casa do Expresso

1973: O tributo a Eusébio e uma mesa para a eternidade

1974: O Pote que ajudou a cozinhar a Revolução dos Cravos

1982: RECHEIO RECEBE DISTINÇÃO

O trabalho desenvolvido pelo Recheio dá frutos, não só com o aumento dos volumes comercializados, mas também a nível internacional. Em 1982, o Recheio recebeu a distinção de “International Food / Europe Award”, durante a Feira de Alimentação em Barcelona. Aquele que se mantém como o mais importante certame do setor agroalimentar em Espanha, e que é bienal, voltou a realizar-se em abril deste ano. Na 23.ª edição da atual “Alimentaria & Hostelco” estiveram representadas cerca de três mil companhias (400 das quais internacionais), dispersas por sete pavilhões expositivos no Fira de Barcelona Gran Via. Com o evento, demonstrou-se que a indústria da comida e hospitalidade “é um pilar da recuperação económica e internacionalização”, sublinha um press kit.

A marca Recheio surgiu no mercado em 1972. 50 anos depois, dispõe de 40 lojas e três plataformas distribuídas por todo o território nacional, mantendo como grande objetivo ir ao encontro das necessidades dos clientes ao apresentar desde os ingredientes às soluções, assumindo claramente um compromisso de estar ao lado dos empresários do canal HoReCa e retalho tradicional, contribuindo para o desenvolvimento do negócio, como um parceiro.

 

Pedro José Barros, Expresso, 2022-09-28

  

Natália Correia no lançamento de um livro de Júlia Lello no Botequim

 

Bparpd, Arquivo Natália Correia


Funcionários do Bar Botequim Bparpd, Arquivo Natália Correia

Natália Correia ao lado de Dórdio Gumarães no Botequim Bparpd, Arquivo Natália Correia

Natália Correia, por Inácio Ludgero

Natália Correia na sua casa, a 2 de julho de 1982 Inácio Ludgero

Natália Correia fala à comunicação social Inácio Ludgero

José Manuel dos Santos, ex-assessor cultural de Mário Soares e de Jorge Sampaio, era cliente do Botequim


 


“O Bar Botequim de Natália Correia”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-02. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/o-bar-botequim-de-natalia-correia.html



sábado, 1 de outubro de 2022

A Esfinge, Miguel Torga


 

 

Coimbra, 1 de junho de 1989

 

A ESFINGE

 

Sei a resposta inútil

Que também vou dar:

O enigma sou eu.

A criança, o adulto e o ancião

Que, sucessivamente,

Sem perder as feições de cada um,

Atónito, fui sendo pela vida fora.

Sempre a sonhar-me, candidamente,

Eterno e necessário

À cósmica harmonia,

E dia a dia

Mais triste e consciente

Que de modo nenhum o monstro desumano me pouparia,

Quando chegasse a hora

Do nosso encontro.

Quem se decifra dita a própria sentença.

No caminho de Tebas principia a morte.

 

Miguel Torga, Diário XV

 

 

A Sombra: O Labor Poético

Esfinge - um poema que questiona a condição humana, numa referência ao enigma que o monstro terrível coloca ao Homem, simbolizado pela personagem de Édipo.

Embora pouco relevante na obra inicial de Torga, o poeta-diarista regressa frequentemente ao mythos da Esfinge nos Diários XV e XVI (especialmente neste último). Talvez porque, ancião, pressinta próximo o encontro com o monstro desumano (antítese de si, que é humano), para o qual caminha triste e consciente. Assim, qual Édipo (também), conhece antecipadamente que é ele próprio o enigma. O Homem, à semelhança de uma boneca russa, encaixa em si a criança, o adulto, o ancião, não tendo perdido nunca o espanto e a pureza iniciais (atónito; candidamente) nem a capacidade de sonhar (note-se a expressividade da utilização do pronome em sonhar-me).

Porque interrogar sobre o animal que tem quatro patas de manhã, duas à tarde e três à noite, é o mesmo que perguntar quem é o Homem, conhecer a resposta é estar consciente da sua mortalidade. Verifica-se, assim, a desconstrução do mito: a resposta é inútil e não libertadora; o seu portador, ao invés de ser poupado pelo monstro, dita a sua sentença. No caminho de Tebas principia a morte porque, ainda criança, o Homem caminha até junto da Esfinge, aprendendo a conhecê-la e a conhecer-se a cada passo dado. Dia a dia se prepara para a inevitabilidade do duelo final, cumprindo junto do terrível híbrido um novo “Ecce homo”.

No Diário VI, respondendo a um inquérito do Journal des Poètes, Torga reflete sobre o enigma da Esfinge e sobre a ambiguidade da sua interpretação. Entendendo que todo o Homem é contemplado pela resposta de Édipo, discorre sobre o humanismo da Poesia e o poder da palavra poética:

“Sim, a Poesia pode ainda ser a grande mensagem da Europa ao mundo, e prolongar em liberdade a tradição do seu humanismo. Mas com a profunda e radical reforma dos seus servidores. Entendendo que ela é a mais completa pergunta que se pode fazer à humanidade, e a mais sugestiva resposta que essa mesma humanidade pode dar, nenhum sofisma deve existir nos termos. Ora os poetas tentam de há muito ouvir incompletamente a Esfinge e retorquir-lhe com ambiguidade. A expressão desse diálogo é equívoca e serve ao mesmo tempo Deus e o Diabo. Cada poeta mói no mesmo almofariz o bem e o mal, sem reparar que desde que o homem é homem o dilema é sempre o mesmo: todos ou alguns? E se foi possível outrora, por virtude da cegueira desses tempos, esquecer que o animal de quatro, duas ou três patas do enigma (na meninice a gatinhar, bípede na maturidade e apoiado no bordão na velhice) não era apenas um Sócrates de eleição mas também o seu escravo, quer o confesse, quer não, o Parnaso de agora sabe-o perfeitamente. (…) [É urgente que a Poesia arranque do homem] Simplesmente a revelação gratuita e maravilhosa da face permanente do circunstancial, esperança libertadora ansiosamente desejada por todos os mortais.” (Diário VI)

No Diário XVI, revela a inquietação:

 

“Quando se é novo, a esfinge que nos interpela à entrada das Tebas do mundo é sempre uma mulher. Na velhice, é ainda um vulto feminino, mas sinistro, vestido de negro e de foice na mão” (Diário XVI).

 

Atente-se na transfiguração da Esfinge que, na juventude é sempre uma mulher. Contudo, pela ação inexorável de Cronos, transforma-se em espectro, personificando a própria morte.

Ainda neste volume, insertas no discurso proferido no Instituto Alemão a 23 de novembro de 1990, encontramos as seguintes palavras:

“As esfinges que interpelam sibilinamente os viandantes à entrada de todas as Tebas da existência, [sic] são monstros de carne e osso e papel e tinta. E os seus enigmas, avisos ambíguos e catárticos que, depois de fielmente decifrados e trasladados, abrem caminho à ânsia libertadora de Gregos e Troianos.” (Diário XVI).

Esta última Esfinge recupera a do mythos, que abre caminho à libertação de Tebas. Remete para os escritores, que sibilinamente nos interpelam com avisos ambíguos e catárticos, e para o difícil e louvável trabalho dos tradutores, que fielmente decifram e trasladam os enigmas da escrita literária, permitindo o conhecimento e a liberdade.

A Esfinge, na sua origem, encontra-se ligada à poesia. Embora Hesíodo, na Teogonia (326 e sqq.), a apresentasse apenas como um monstro terrível, devorador dos habitantes da região de Tebas, é com o texto de Sófocles que a figura mítica vai ser difundida na posteridade. O Rei Édipo, na discussão com Tirésias, refere o seu encontro com o “cão de fila” que atormentava a cidade:

 

“Mas afinal, vamos, dize, em que é que tu és um adivinho seguro? Quando a cantora, aquele cão de fila, aqui se encontrava, porque não pronunciaste as palavras que trariam a este povo a libertação?

E, contudo, o enigma não era para o primeiro que viesse desvendá-lo: era preciso ter artes divinatórias; delas não te mostraste possuidor nem por auspício nem por revelação dos deuses, mas fui eu, ao chegar, eu, Édipo, que nada conhecia, quem a reduziu ao silêncio por intuição do espírito, não pela ciência dos auspícios (…)” (SÓFOCLES, Rei Édipo, introdução, tradução e notas de Maria do Céu Fialho. Lisboa: Edições 70, 2006, 81).

 

Designando a Esfinge, Édipo utiliza a palavra αυδς (V. 391), remetendo para a sua ligação à palavra poética a que, dado que é uma criatura fantástica, tem acesso. Édipo interpreta-a, quando as artes divinatórias de Tirésias não tinham conseguido fazê-lo. Contudo, sendo homem, fá-lo por meio da sua γνώμ κσρήζας (V. 398).

Embora não saibamos se Miguel Torga leu a versão de Séneca, autor que tanto apreciava233 e cuja filosofia, como já verificámos, conhecia bem, não podemos deixar de referir que o Édipo latino, em diálogo com Jocasta, designa o enigma como carmen ou nodosa uerba234. Isto significa que, também no drama senequiano, a palavra da Esfinge (cujo é preciso deslaçar) possui uma origem poética.

A(s) Esfinge(s) de Torga contempla(m) a ligação à poiesis. Resolvendo o enigma, que, simultaneamente, coloca todo o homem no cerne da pergunta e da resposta, aproxima-se da verdade, dos mistérios da condição humana. Assim, a poesia surge ainda ligada à filosofia.

No Diário XVI, de todos os volumes, o mais pungente, aquele em que o bicho instintivo sente a proximidade da morte, a Esfinge é recuperada duas vezes, o que não sucede em nenhum dos outros. Do mesmo modo, o poema analisado surge no tomo XV. Senhora do enigma da condição humana, é esta figura, já espectral, que o poeta e diarista defronta nos últimos passos do seu caminho. Assim, o monstro é também expressão do humanismo que caracteriza a obra torguiana. A interpretação que lhe confere – de que o Homem é a Esfinge de si próprio – ancora-se em alguns pormenores do mito, que seleccionou para metaforizar os conceitos que pretende. E foi o lado negro, o do abismo, de impotência, apesar do conhecimento, que o poeta recriou.

Não esqueçamos que (e o Édipo senequiano alerta-nos para este facto235), embora saindo vitorioso do confronto com a Esfinge, o herói iniciou, ao entrar em Tebas, o caminho do seu destino funesto, há tanto profetizado. A libertação desencadeou, em última análise, a desgraça, a queda e a sombra. Em Torga, encontramos o mesmo processo: a resolução do enigma nodoso conduz à consciência da própria mortalidade, aproximando o Homem do seu carrasco.

“Ora os poetas tentam de há muito ouvir incompletamente a Esfinge e retorquir-lhe com ambiguidade.”, contudo,

“Quanto a ele próprio [Torga], pelo contrário, nenhuma dúvida haverá de que tem sempre tratado de ouvir a Esfinge completamente e de lhe retorquir com frontalidade exemplar. Mas, da sua parte, isso não exclui, antes estimula, o recurso a múltiplos registos. É que a Esfinge é una, mas complexa; singular, mas versátil; unívoca, mas pluricórdica. Exatamente como a obra do grande poeta Miguel Torga.”236

 

Ana Aguilar, A influência clássica na obra poética de Miguel Torga: o caso particular do Diário. Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2010.

 

__________

233 Aliás, presta-lhe uma homenagem nos Poemas Ibéricos, na “História Trágico-Telúrica” (pág. 264), com um poema de título “Séneca”, que transcrevemos pela sua beleza e simbologia: “Antes da loba tive mãe humana. / E desse ventre cordovês amado / Recebi o legado / De que Roma se ufana: // A severa moral, / O estoicismo teimoso da vontade, / E o alto ideal / Duma pobre e cristã fraternidade… // O mais, a toga e o acto suicida / Imposto pela dura tirania, / Foi o cenário que na minha vida / A tragédia pedia.”.

234 Séneca, Oedipus, 98-102: “(…) carmen poposci. Sonuit horrendum insuper, / crepuere malae, saxaque impatiens morae / reuulsit unguis uiscera expetans mea. / Nodosa sortis uerba et implexos dolos / ac triste carmen alitis solui ferae”. (O destacado é nosso.)

235 Op. cit., 106-108: “Ille, ille dirus callidi monstri cinis / in nos rebellat, illa nunc Thebas lues / perempta perdit.”

236 MOURÃO-FERREIRA, David, “Poética e poesia no Diário de Miguel Torga”, Colóquio/Letras 43 (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1978) 19.

 

***

 

Édipo hesita responder à Esfinge

A Esfinge, enviada por Hera contra Tebas para castigar a cidade pelo crime de Laio – pois amara o filho de Pélops, Crisipo, em amores culpados –, assolava a região, devorando os seres humanos que não conseguissem decifrar os enigmas que lhes apresentava. De entre os vários enigmas, que todos os dias os tebanos, na ágora, tentavam decifrar em comum mas sem nunca conseguirem, um deles era: “Qual é o ser que caminha ora com dois pés, ora com três, ora com quatro e que, contrariamente ao normal, quantos mais pés usa mais fraco é?” A resposta é “o homem” (Outro dos enigmas era: “Há duas irmãs: uma gera a outra e a segunda é gerada pela primeira”. Solução: o dia (feminino em grego) e a noite. ).

No entanto, no poema A ESFINGE, ao contrário do mito, a resposta ao enigma apresentado não é “o homem”, mas sim o sujeito poético identificado aqui e em muitos outros lugares com o poeta: “O enigma sou eu”. É o seu percurso existencial de três fases, “A criança, o adulto e o ancião”:

 

A ESFINGE

 

Sei a resposta inútil

Que também vou dar:

O enigma sou eu.

A criança, o adulto e o ancião

Que, sucessivamente,

Sem perder as feições de cada um,

Atónito, fui sendo pela vida fora.

Sempre a sonhar-me, candidamente,

Eterno e necessário

À cósmica harmonia,

E dia a dia

Mais triste e consciente

Que de modo nenhum o monstro desumano me pouparia,

Quando chegasse a hora

Do nosso encontro.

 

Segundo o mito, somente Édipo conseguiu responder-lhe e, como prémio, obteve o trono vagante e a mão da rainha Jocasta. A resposta, que parecia fazer dele um homem afortunado, mais não fez do que apressar, tal como ao sujeito poético do poema, a sua desgraça e permitir que se cumprisse o destino inexorável. É por isso “resposta inútil”:

 

Quem se decifra dita a própria sentença.

No caminho de Tebas principia a morte.

(M. Torga, Diário XV, p. 1658).

 

No entanto, ao contrário do mito, o Édipo d’A ESFINGE, em Penas do Purgatório, não responde imediatamente à Esfinge. Sabe a resposta, mas inicialmente, por covardia, prefere calar. Responder implica revelar-se por completo e, dessa forma, comprometer o seu futuro. Só posteriormente, num acesso de coragem, ele perde “o sangue frio masculino” e responde abrupta e completamente, como se atirasse à Esfinge a resposta, consciente das terríveis consequências:

 

A ESFINGE

 

És tu ainda a mesma astuta

Do caminho de Tebas.

Voz feminina, ambígua,

Materna e sibilina inquisidora.

Paro e oiço a pergunta, a melodia,

O sofisma sonoro,

E tolhe-me tamanha covardia

Que não respondo - coro.

 

Tão confuso me vejo no dilema

De não ter salvação se me revelo,

E nem sossego enquanto te não diga

De mim tudo o que sei,

Que perco o sangue frio masculino

E, vencido, dou força à eterna lei

Que te manda brincar com o meu destino,

Por seres mulher e porque te encontrei.

 

(M. Torga, Poesia Completa II, Rio de Mouro, 2002, p. 516)

 

Manuel Francisco Ramos, Miguel Torga: manipulação do mito. Edição de Autor, 2013 (ISBN 978-989-98534-7-8)


  

Poderá também gostar de:

  • A poética torguiana”, Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária da poesia de Miguel Torga, por José Carreiro. In Folha de Poesia, 09-08-2013




A Esfinge, Miguel Torga”, José Carreiro. Folha de Poesia, 2022-10-01. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/10/a-esfinge-miguel-torga.html