terça-feira, 4 de abril de 2023

E no seu nome esperarão as gentes (S. Mateus/Carlos Queirós)

 

Almanaque, abril 1960, p. 69



«E NO SEU NOME ESPERARÃO AS GENTES»

(S. Mateus, XII-21)

No ar azul da madrugada
Virias logo, se eu chamasse?
Encostarias Tua Face
À minha face enregelada?

Apagaria a Tua Mão
As cicatrizes que deixaram
Esses fantasmas que habitaram
A minha fruste solidão?

Quando notasses ao entrar,
Que tanto sofro por um nada,
No ar azul da madrugada
Sarar-me-ia o Teu Olhar?

Se eu Te contasse o meu desgosto
De quando a Infância me vem ver,
Ter de expulsá-la, pra viver,
Afagarias o meu rosto?

Vendo-me a alma condenada
A esta alheia expiação,
Virias dar-me o Teu perdão
No ar. azul da madrugada?

As minhas pobres confidências,
Olhos nos olhos, ouvirias?
Com Teu sorriso acalmarias
Minhas febris impaciências?

E se, com esta voz insone,
Jurasse que não creio em nada,
No ar azul da madrugada
Escreverias o Teu Nome?

CARLOS QUEIRÓS

“6 poemas religiosos: E no seu nome esperarão as gentes, por Carlos Queirós. Pudor, por Miguel Torga. Ressurreição, por Francisco Bugalho”, in Almanaque, abril 1960. Diretor: J.A. de Figueiredo Magalhães. Orientador gráfico: Sebastião Rodrigues. Disponível em: https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/Almanaque/1960/Abr/Abr_item1/P69.html

 

Texto de apoio

Carlos Queirós foi um poeta português do segundo modernismo, que se identificou com a revista Presença e que teve uma relação de amizade e admiração com Fernando Pessoa. Ele publicou dois livros em vida: Desaparecido (1935) e Breve Tratado de Não Versificação (1941). Morreu em Paris em 1949, aos 42 anos¹²³.

O poema aqui reproduzido faz parte do livro Desaparecido, que foi elogiado por Pessoa na Revista de Portugal. O título do livro sugere uma sensação de ausência, de perda, de vazio, que se reflete na temática dos poemas. O poema «E NO SEU NOME ESPERARÃO AS GENTES» é um exemplo disso. Ele é inspirado num versículo do Evangelho de São Mateus, que diz: «E no seu nome esperarão as gentes» (Mateus 12:21). Esse versículo refere-se a Jesus Cristo, como o Messias esperado pelos povos.

O sujeito poético usa esse versículo como mote para expressar o seu anseio por uma presença divina que o console, que o cure, que o perdoe, que o escute, que o acalme e que escreva o seu nome no ar azul da madrugada. A madrugada é um símbolo de esperança, de renovação, de luz. A imagem do ar azul da madrugada que o poema evoca sugere um momento de silêncio e paz, uma calma que permite que a voz do poeta se eleve para encontrar Deus. O eu lírico suplica por uma conexão, um toque que possa sarar as cicatrizes deixadas pelas experiências que o trouxeram até esse momento.

O poema é escrito em forma de perguntas retóricas, dirigidas a Jesus Cristo, mas sem esperar uma resposta. O sujeito poético questiona se ele viria logo se ele chamasse, se ele apagaria as cicatrizes que deixaram os fantasmas da sua solidão, se ele sararia o seu olhar quando notasse o seu sofrimento por um nada, se ele afagaria o seu rosto quando ele contasse o seu desgosto de expulsar a infância para viver, se ele lhe daria o perdão por ter a alma condenada a uma expiação alheia e se ele escreveria o seu nome no ar azul da madrugada.

Essas perguntas revelam a angústia existencial do sujeito poético, a sua carência afetiva, a sua nostalgia da infância, a sua culpa por não crer em nada e a sua busca por um sentido para a vida.

Em suma, este é um poema que expressa a angústia existencial de um poeta modernista que se sente desaparecido no mundo e que busca uma presença divina que lhe dê conforto e esperança. É um poema que combina simplicidade e profundidade, emoção e razão, fé e dúvida.

 

Adaptado da conversação com o Bing, 31/03/2023

(1) Carlos Queirós Ribeiro – Wikipédia, a enciclopédia livre. https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Queir%C3%B3s_Ribeiro Acedido 31/03/2023.

(2) Carlos Queirós (PT 1907-04-05) Poemas selecionados - Escritas.org. https://www.escritas.org/pt/carlos-queiros Acedido 31/03/2023.

(3) DIA CARLOS QUEIROZ – Centro Nacional de Cultura. https://www.cnc.pt/dia-carlos-queiroz/ Acedido 31/03/2023.

 ***


Intertextualidade: crónica de António Lobo Antunes

Ilustração de Susa Monteiro


E no Seu Nome esperarão as gentes

Quando me sinto desinfeliz vem-me sempre à cabeça o poema de Carlos Queiroz chamado E no Seu Nome esperarão as gentes, que é uma citação de São Mateus. Isto dura desde os treze ou catorze anos, quando li o livro de poemas Desaparecido que descobri na biblioteca do meu pai. E no meio da desinfelicidade aparece-me logo a primeira quadra

No ar azul da madrugada
virias logo se eu chamasse?
Encostarias Tua face
à minha face enregelada?

Porque é que isto sempre me comoveu e ajudou tanto? Porque volto a ser logo o menino que fui e que o poema torna mais forte no meio da grande solidão que todos temos às vezes:

Se Te contasse o meu desgosto
de quando a angústia me vem ver
ter de expulsá-la pra viver
afagarias o meu rosto?

Esta é uma pergunta minha também. O meu desejo. E aqui, sentado a esta mesa cheia de papéis, escrevo isto comovidamente. Estes versos acompanham-me sempre no ar azul da madrugada, quando tudo me parece irremediável, sem qualquer solução. O que farei de mim, o que farei comigo? E depois, felizmente, voltam a paz e a esperança. Porque carga de água tudo me toca, uma voz, um olhar, um sorriso às vezes, uma senhora de idade a afastar-se de mim a remar com a bengala porque o passeio se transformou numa espécie de mar? Quando eu era pequeno tinha a Gija, uma camponesa galega que me deu tanto amor. Ajudava-me a despir, vestia-me o pijama, ficava ao pé de mim até eu adormecer. Desapareceu da minha vida de repente, não sei porquê, e durante anos e anos não a vi. Quatro meses antes de embarcar para a guerra casei-me, havia pessoas no adro da igreja a olharem, eu não via a Gija

(chamava-se Alice, eu não sabia dizer Alice)

não via a Gija desde os cinco anos, portanto há cerca de vinte e de súbito ela estava ali, no meio das tais pessoas a olharem, gorda, de cabelos brancos e

(como se explica isto?)

soube logo que aquela pessoa era ela. Larguei a noiva, corri para aquela senhora e abracei-a de uma maneira como nunca abracei ninguém. Tinha o mesmo cheiro, a mesma forma de me tocar

(posso estar a ser injusto mas acho que nunca ninguém me tocou como ela)

os mesmos olhos transbordantes de ternura. E ali ficámos, agarrados, comigo de novo tão pequeno, tão feliz. Gija. Gija Gija Gija. Os convidados do casamento espantados, as pessoas que olhavam espantadas e eu, muito maior do que ela, de repente pequeno, ao seu colo. Ao seu colo. Tinha um senhor ao lado, que era o marido que eu não conhecia, mas eu queria lá saber do marido. Éramos um do outro, Gija, e voltei a ser o menino de alguém. Voltei, com tanta força, a ser o menino de alguém. A ternura dela era a mesma, o amor por mim era o mesmo, só que estava cheia de lágrimas. Lembro-me tão bem de dizer-lhe

– Gija nunca deixei de ser o teu menino

e depois voltei para o casamento, para Tomar onde tinha sido colocado antes de ir para Angola, para longe de ti, eu que nunca devia ter saído do teu colo, tu que me amaste sempre incondicionalmente, com tanta pureza, tanta simplicidade, tanta, meu Deus, alegria. E eu que continuo a amar-te de uma paixão tão linda, eu que sempre, ao acontecer-me um desses problemas gravíssimos da infância, uma queda, a perda de um brinquedo, dizia logo

– Quero a Gija

e tudo se compunha outra vez. Foi a última ocasião que te vi, embora continue sempre a ver-te

E se com esta voz de insone

dissesse que não creio em nada

no ar azul da madrugada

escreverias o Teu nome?

embora continue sempre a ver-te, Gija. Não vais acreditar na quantidade de vezes em que penso em ti. Onde quer que estejas, que estupidez dizer isto, estás no Céu de certeza, o teu menino pensa em ti. Há uns anos fui a Compostela receber um prémio, ou seja à tua terra na Galiza. E no discurso de agradecimento, com o Presidente do governo lá deles

(isto passava-se na Catedral e era solene) dediquei-te o prémio e disse o teu nome. Tenho a certeza que estavas lá, com o meu pijama de menino na mão

– Temos que vestir o pijama, Toino

e que te sentia tão orgulhosa de mim. Quando um dia morrer vais vestir-mo outra vez, porque não posso aparecer nu diante do Senhor, ordenas a Deus

– Tome bem conta do meu menino, ouviu?

e esperas que Ele te garanta

– Claro que tomo, Gija

antes de te afastares e que, de vez em quando, virás espiar-me no medo que eu tenha desarrumado o cobertor e espirre, ordenando a São Pedro que ponha o olho em mim, porque o meu menino, você é Santo e percebe, não veio aqui para se constipar.

 

António Lobo Antunes, «E no Seu Nome esperarão as gentes», Visão, n.º 1331, de 6/9 a 12/9/2018, p. 7. Crónica disponível em: https://visao.sapo.pt/opiniao/ponto-de-vista/2018-09-13-e-no-seu-nome-esperarao-as-gentes/

 

Questionário sobre o excerto da crónica de António Lobo Antunes (desde “Quando me sinto desinfeliz (…)” até “(…) e tudo se compunha outra vez.”).


1. Em momentos de infelicidade, o autor lembra-se dos versos de um poema de Carlos Queiroz, pois

(A) produzem nele, simbolicamente, o mesmo efeito que Gija na sua infância.

(B) correspondem às perguntas que costumava colocar a Gija.

(C) proporcionam o mesmo conforto que a leitura dos textos sagrados.

(D) despertam nele emoções que transpõe, inevitavelmente, para a escrita.

2. No contexto desta memória de Lobo Antunes, entre outros aspetos, a evocação de Gija associa-se cumulativamente às ideias

(A) de honestidade e de subserviência.

(B) de proteção e de perdão.

(C) de amor e de compaixão.

(D) de segurança e de harmonia.

3. O advérbio «lá», utilizado na linha 35, apresenta uma ideia de

(A) desaprovação.

(B) indecisão.

(C) negação.

(D) indignação.

4. A partir da linha 41, o autor usa a segunda pessoa, quando se refere a Gija, para

(A) reproduzir, no seu discurso, as palavras que lhe dirigiu no dia do casamento.

(B) renovar os laços de união que foram perdidos após ter sido colocado em Angola.

(C) exprimir a convivência que com ela manteve de forma regular ao longo da vida.

(D) expressar a profunda comunhão com alguém que continua vivo na sua memória.

5. Nas orações «que nunca ninguém me tocou como ela» (linha 31) e «que eu não conhecia» (linha 35), as palavras sublinhadas são

(A) um pronome, no primeiro caso, e uma conjunção, no segundo caso.

(B) uma conjunção, no primeiro caso, e um pronome, no segundo caso.

(C) pronomes em ambos os casos.

(D) conjunções em ambos os casos.

6. Identifique as funções sintáticas desempenhadas pelas expressões:

a) «de papéis» (linha 16);

b) «que aquela pessoa era ela» (linha 29).

7. Indique o valor aspetual veiculado por cada uma das expressões seguintes:

a) «Quando eu era pequeno tinha a Gija» (linhas 20 e 21);

b) «Desapareceu da minha vida de repente» (linhas 22 e 23).

 

Chave de correção:

1-A; 2-D; 3-C; 4-D; 5-B. 6. a) Complemento do adjetivo; b) Complemento direto. 7. a) (valor aspetual) imperfetivo; b) (valor aspetual) perfetivo.

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 – Ensino Secundário, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho). República Portuguesa – Educação / IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2019, 2.ª Fase (versão 1)

 


CARREIRO, José. “E no seu nome esperarão as gentes (S. Mateus/Carlos Queirós)”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 04-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/e-no-seu-nome-esperarao-as-gentes-s.html


segunda-feira, 3 de abril de 2023

é o mar e tudo o que nele cabe, Fernando Martinho Guimarães

 


 

À la carte

IX

Um frio quieto toma conta
das pálpebras quando para lá do mar
o olhar se perde
Pouca coisa o pensar do longe
remedeia ou consola
quando das ilhas do sul
não se acha nunca horizonte
para prumo do pensamento
Uma espessura de sal retorna e petrifica
e algo se quebra na cegueira de tanto olhar.
E o mar e tudo o que nele cabe
que nos perde e nos salva.

 ***

XI

Isto de fazer versos
tem o seu quê. A mais das vezes
não tem porquê. E se, lestos,
nas palavras achamos prazeres,
volúpias ou assombro de mistérios,
é porque delas os afazeres
não são mais que tristes remédios.

 ***

O lugar dos caminhos

XIX

São muitas as vezes em que
Sentado no sofá me distraio
A olhar as prateleiras com livros
Na parede em frente.
Não é que me dê algum prazer especial
Olhá-los do sofá em que me sento
Apenas me limito a olhá-los
E distraidamente salto de um
Para outro livro. E não me detenho
Em nenhum deles em particular
Às vezes demoro um pouco mais o olhar
Num ou noutro. Ou é a lombada ou
O título curioso que têm
Deve ser isso.
Mas não me demoro muito.
Tempos houve que juntava
Ao olhar o pensamento de os ler
Não sei se por cansaço
Ou porque o olhar tem mais força que o pensar
Fico-me pelo olhar das prateleiras com livros
                                            Na parede em frente
Deve ser por isso

 

Fernando Martinho Guimarães, é o mar e tudo o que nele cabe. Vila Nova de Famalicão, Edições Húmus, 2023 (Coleção 12catorze, n.º 67). Disponível aqui: https://edicoeshumus.pt//index.php?route=product/product&product_id=1524


Fernando Martinho Guimarães



Modos de fazer mundos ou crónica do poeta pasmado

O poema XIX pertence à terceira parte (“O lugar dos caminhos”) do livro é o mar e tudo o que nele cabe (2023), de Fernando Martinho Guimarães.

Nele, o sujeito poético detém-se numa situação recorrente do quotidiano: o facto de ficar parado a contemplar os livros no que eles têm a oferecer à superfície: “Fico-me pelo olhar das prateleiras com livros”.

O Eu reconhece com alguma nostalgia que, ao olhar as prateleiras com livros na parede à sua frente, não sente mais o mesmo prazer de antes, mas mesmo assim contenta-se em olhá-los de maneira distraída, saltando de um para outro livro.

Essa imagem ligada à ideia de cansaço com que o sujeito poético procura justificar, evoca uma sensação de impotência diante da dificuldade de concentrar-se num livro em particular. Por isso, o eu lírico diz “Tempos houve que juntava / Ao olhar o pensamento de os ler”.

Se, por um lado, o poema é marcado por este (aparente) sentimento de resignação e conformismo, como se o sujeito poético tivesse aceitado que a idade o impede de fazer o que fazia antes; por outro lado, essa mesma idade trouxe a sabedoria que permitiu ao sujeito poético apreciar a beleza e a importância do ato de observar sem julgamentos ou expectativas. Isto é, ao contentar-se em olhar os livros, o Eu mostra que aprendeu a apreciar os livros de uma forma mais simples e direta, tão à maneira de Alberto Caeiro.

Essa dicotomia entre o cansaço da idade e a luz da apreciação direta do mundo pode ser vista como uma reflexão sobre a passagem do tempo e a maturidade. À medida em que envelhecemos, enfrentamos limitações e desafios, mas também podemos experimentar com assombro uma renovada forma de enxergar o mundo.

"Deve ser por isso"

E assim termina o poema, sem ponto final, numa encenação humorada de quem adormece, por exemplo numa poltrona, a olhar os livros da estante em frente 

 

Fernando Martinho Guimarães

Fernando Martinho Guimarães (1960) 

Nascido transmontano (Alijó, Vila Real), foi na cidade do Porto que viveu até aos princípios dos anos 80. 

De formação filosófica e literária, a sua produção ensaística e poética reflete essa duplicidade.

 Publicou em 1996 A Invenção da Morte (ensaio), em 2000 56 Poemas, em 2003 Ilhas Suspensas (edição bilingue, castelhano/português), em 2005 Apenas um Tédio que a doer não chega e em 2008 Crónicas.

 

 


CARREIRO, José. “é o mar e tudo o que nele cabe, Fernando Martinho Guimarães”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 03-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/e-o-mar-e-tudo-o-que-nele-cabe-fernando.html