quarta-feira, 19 de julho de 2023

Soneto da Loucura, Carlos Drummond de Andrade

“Dom Quixote de Cócoras com Ideias Delirantes”, Portinari, 1956

http://www.portinari.org.br/#/acervo/obra/1215/detalhes


SONETO DA LOUCURA

A minha casa pobre é rica de quimera
e se vou sem destino a trovejar espantos,
meu nome há de romper as mais nevoentas eras
tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas.

Rola em minha cabeça o tropel de batalhas
jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno.
Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,
o que nele recolho é o olor da glória eterna.

Donzelas a salvar, há milhares na Terra
e eu parto e meu rocim, corisco, espada, grito,
o torto endireitando, herói de seda e ferro,

e não durmo, abrasado, e janto apenas nuvens,
na férvida obsessão de que enfim a bendita
Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas.

Carlos Drummond de Andrade,
D. Quixote, Cervantes, Portinari, Drummond. Rio de Janeiro: Diagraphis, 1973, p. 12

 

A dicotomia devaneio x realidade

Ao buscar as produções de Drummond e Portinari, a que primeiro se encontra é o “Soneto da Loucura”, ladeada pelo desenho de Portinari correspondente ao poema.

Está-se, portanto, diante de duas criações que estabelecem relações intertextuais que instigam a examiná-las. Tome-se como objeto de análise, o desenho “Dom Quixote de cócoras com idéias delirantes”.

Encontra-se, neste desenho, um Dom Quixote muito magro e solitário, sentado de cócoras com as mãos postas acima dos olhos, como se estivesse fixando seu olhar ao longe. A imagem de Dom Quixote pode causar estranheza logo em um primeiro olhar, pois transmite uma sensação de desequilíbrio e desalinho ao mesmo tempo. O desequilíbrio pode ser percebido na sua posição e na falta de harmonia do seu conjunto. A dimensão deste desenho plástico-pictórico é de 20x30cm, sendo vinte centímetros de largura e 30 de altura, porém, estabelecendo-se um ponto médio que localize o ponto central entre largura e altura, percebe-se que este se localizará próximo à axila esquerda de Dom Quixote, conforme se vê abaixo.

Imagem de Dom Quixote


Nesta divisão, pode-se visualizar que o corpo de Dom Quixote não está centrado. A maior parte do seu corpo encontra-se, quase que em sua totalidade, ao lado direito, no entanto, em vez desse posicionamento centralizá-lo neste lado da imagem, sua perna e braço esquerdos invadem o espaço esquerdo e são desproporcionais em relação aos mesmos membros do outro lado. Percebe-se uma textualidade visual que possibilita a construção de sentidos, principalmente ao observar as formações eidéticas – linhas –, assim como as formas que compõe uma assimetria, transmitindo, assim, uma idéia de desproporção dos membros que constituem uma percepção de instabilidade que fortalece a sensação de desequilíbrio (DONDIS, 1997), já que, aparentemente, o corpo tenderia a tombar para o lado, principalmente se for levado em consideração que seus braços, mãos e pernas não estão nivelados, o que por si só já causaria certa dificuldade para a sustentação e equilíbrio de alguém que se encontre nessa mesma posição, materializando, desta forma, a imagem de um ser em desarmonia.

O desequilíbrio das linhas também é mantido pelo pintor no olhar de Dom Quixote. Seus olhos estão como que arregalados e fixos no horizonte, porém, não passam a sensação de estarem realmente vendo algo, pelo contrário, parecem fixar o longe e o nada ao mesmo tempo. Sua postura demonstra que está à procura de algo, como se pode perceber pelas suas mãos, em posição característica de apoio à visão, demonstrando uma busca. Percebe-se que o negro de seus olhos ressalta o “vazio” presente no branco de suas pupilas. Este detalhe lhe confere um olhar de alucinação, de quando o indivíduo já não tem noção do seu eu, de forma que este olhar desvairado demonstra que alguma coisa se perdeu, ou seja, sua razão. Também se pode considerar que neste olhar visionário, é como se, na verdade, olhasse para um outro mundo à procura de algo. Seja qual for, parece tratar-se de uma busca apaixonada, o que se pode inferir pela vermelhidão intensa de seu rosto, que denota sua característica sangüínea.

Um dos aspectos que mais chama a atenção no desenho, além da própria posição e postura da personagem, é o cromatismo. Quanto às cores, prevalecem os fundos amarelo e vermelho das partes descobertas do corpo de Dom Quixote. Estes cromas incluem-se na classificação das cores quentes, sendo o amarelo a mais quente e ardente das cores, característica seguida pelo vermelho, cor da paixão (ROUSSEAU, 2004). É o amarelo que é usado como pano de fundo para a imagem do protagonista. Isto não ocorre por acaso, visto esta ser a mais expansiva das cores. A esse respeito, Barros afirma que cada cor suscita “um movimento, uma temperatura, [...] um ‘estado de espírito’” (2006, p. 184). Em seus estudos, ao falar sobre a teoria das cores de Kandinsky, diz que, quanto a amarela, a mesma

identifica a força impactante de um movimento horizontal na direção do espectador. Ele [Kandisnky] também chama esse movimento de corporal, pois vem em direção ao nosso corpo físico. O movimento irradiante do amarelo é excêntrico e representa, nas palavras do próprio artista: ‘um salto para além do limite, a dispersão da força em torno de si mesma. (Ibidem, p. 185)

Quanto ao simbolismo desta cor, ela explica que, para o estudioso, “a dispersão excêntrica do amarelo confere a ele um aspecto superficial [...]. É uma cor fascinante e extravagante, uma explosão de energia, um desperdiçar das forças e, portanto, uma cor sem profundidade” (p. 186). Já no que se refere ao estado de espírito suscitado, trata-se da “cor que melhor representa a loucura e o delírio na visão de Kandinsky” (p.187). Percebe-se também o alto grau de luminosidade do croma amarelo no desenho de Portinari, o que fortalece seu movimento excêntrico. Assim, ocorre a prevalência de uma cor quente e expansiva acompanhada pela cor do fogo, da paixão e da impulsividade. O amarelo pode ser considerado como um vermelho mais luminoso (ROUSSEAU, 2004), pois ambas as cores, amarelo e vermelho, se harmonizam com os devaneios da personagem, à procura de algo irreal e inatingível. Apreende-se que os cromas são convergentes, visto que ao mesmo tempo que o amarelo aponta para o devaneio, no sentido de fuga do real, tanto ele quanto o vermelho – como cores quentes – suscitam e exprimem ardor, força e poder, entre outras coisas. Observa-se que uma parte da simbologia da cor vermelha também pode ser atribuída à amarela; contudo, a amarela distingue-se da primeira pelo seu caráter luminoso que o aproxima da inteligência (Idem, p. 100), que, por sua vez, pode-se dizer tratar-se de um dos atributos de Dom Quixote, homem culto e com vasta leitura.

Já nas vestimentas quixotescas há a presença do verde, azul, rosa e preto. O azul do seu tronco, principalmente por ser a mais fria e imaterial das cores, contrasta com o vermelho e o amarelo. Mas, ao invés de divergir da significação delas, ele as fortalece, pois é o azul que representa o caminho do infinito, onde o real se torna imaginário, uma vez que ele é o caminho da divagação. E quando ele se escurece, de acordo com sua tendência natural, torna-se o caminho do sonho (BARROS, 2006). Esta cor está mesclada com a cor verde, mediadora entre o calor e o frio, cor que também estará presente em suas calças. Há, ainda no tronco, mesclas de rosa compostas do vermelho e do branco, ou seja, da paixão e da pureza, e, finalmente o preto, cor que pode se situar nas duas extremidades, tanto na quente quanto na fria, mas que também simboliza a inexistência de luz ou de sombra.

No que se refere ao poema “Soneto da Loucura”, percebe-se que o título em si, ao mesmo tempo que remete a um prenúncio do seu conteúdo, também aguça a curiosidade do leitor em conhecer a matéria poetizada. No primeiro verso constitui-se um “eu lírico” representado por Dom Quixote, que declara que sua “casa pobre é rica de quimera”, ou seja, embora sua casa seja despojada de bens materiais valiosos, ela é “rica de quimera”, ilusões/sonhos. Percebe-se a oposição entre a pobreza e a riqueza. Mais ainda: entre o mundo empírico, do objeto, e o mundo da fantasia. Nessa linha de raciocínio, pode-se dizer que o nome “casa” acaba funcionando também como metonímia do sujeito. Opõe-se, portanto, neste passo, uma aparência de descompasso entre aquilo que se vê – o real empírico –, e aquilo que se imagina – a quimera –, ambos constituindo o modus vivendi do sujeito que também está configurado na geometria quixotesca.

É possível dizer que, desde o início, o sujeito posiciona-se diante do mundo dos sentidos e de si mesmo em uma atitude avaliativa. Ele apreende o que o cerca e o que acredita atribuindo-lhes valores distintos. É desta posição judicativa que nasce a dicotomia Devaneio x Realidade. Assim, encontra-se um eu lírico que, em síntese, além de ser contraditório desde a sua apresentação, também euforiza o devaneio em contraste com a realidade. Toma-se, aqui, o conceito devaneio, conforme o entendimento de Bachelard (1944), mencionado anteriormente. É justamente este devaneio que leva o eu lírico a declarar que vai “sem destino a trovejar espantos”, ou a não se mostrar passivo diante dos acontecimentos. Nota-se que, ao falar da sua posição diante do mundo, ele também se refere a esse estar no mundo como sendo “sem destino”. Ele trovejará, atuará, pois busca uma participação ativa onde quer que seja necessário. Seu mundo é em qualquer lugar, não há um local determinado, não há um destino marcado. Desta forma, através de seus feitos, espera que seu nome rompa “as mais nevoentas eras,/ tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas”. Nesse passo o eu lírico revela que deseja alcançar a glória e a fama de seus heróis. É interessante que ele cite justamente um herói que exista apenas em seus sonhos e que representa o ideal (anacrônico) da cavalaria andante. Pentapolim, uma personagem da obra mestra, é um rei cristão que luta em defesa de sua filha donzela e se recusa a entregá-la a Alifanfarrão, um imperador pagão. A menção desse pai zeloso converge com sua intenção de “trovejar espantos”, principalmente atentando-se para o sentido moral de “trovejar”, como indignar-se, que nesse caso implica que atuará contra o que fere a ordem, idéia que retoma o verso anterior em que diz que a fama que deseja “há de romper as mais nevoentas eras”. Parece que em “nevoentas eras” o “eu poético” se refere a um período que está antes mesmo da própria História, ou seja, um tempo mítico. O adjetivo “nevoentas” se refere àquilo que cobre o objeto em referência com um véu de opacidade, impedindo que ele seja delineado, apreendido pela visão. Segundo Mielietinski

O caos se concretiza em sua maior parte como trevas ou noite [...]. A transformação do caos em cosmo foi esboçada em sistemas mitológicos bastante arcaicos, nas narrativas sobre a luta travada contra os demônios ctonianos e os monstros pelos heróis épicos mitológicos, cujos modelos ainda não se diferenciaram totalmente dos ancestrais e heróis culturais. [...] Os combates e lutas mitológicos são quase sempre de uma maneira ou de outra cosmogônicos e marcam a vitória das forças do cosmo sobre as forças do caos. [...] Tendo em vista que o cosmo se identifica com a ordem e a medida, o caos se associa naturalmente à violação da medida. [...] Se outros inúmeros episódios da luta dos heróis míticos e posteriormente dos épicos contra monstros, demônios, etc., não são um ato cosmogônico de transformação do caos em cosmo, são pelo menos um ato de defesa do cosmo contra as forças do caos que o ameaçam. (1987, p. 240 e 243, 244, 246).

Com isso, apresenta-se um sujeito talhado pelo perfil dos heróis nacionais que, por sua vez, têm suas origens nos arquétipos dos heróis míticos. Ele deseja trazer a luz, a ordem ao mundo, o que já foi antecipado na primeira estrofe, em que Dom Quixote se declara um sonhador, cujos feitos trovejarão espantos em busca de uma glória mítica, ou seja, uma glória tanto transcendental quanto atemporal.

Pode-se também estabelecer uma relação com uma passagem mítica quando o eu lírico revela que em seus pensamentos passam batalhas “jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno”, pois, na cosmogonia, entendida aqui como a ordenação do caos, instala-se a ordem com a separação de três esferas: “a terrestre, a celeste e a subterrânea (a passagem da divisão binária para a trinária), dentre as quais a esfera central – a terra – se opõe ao mundo aquoso embaixo e ao celeste em cima”. (Ibidem, p. 242).

Na cosmogonia, esta separação é um fator importante para o estabelecimento da ordem, e, no poema, o herói se põe disposto a atingir três esferas para estabelecer a sua cosmogonia. É interessante o uso da expressão “tropel de batalhas”, pois por tropel entende-se som impactante, movimento desordenado, tal como nas lutas dos heróis míticos. Ao que parece, instaura-se uma comparação entre a imaginação e o mundo mítico. O verbo “rolar” confere certa plasticidade à cena, como se fosse uma narrativa fílmica que apreende o som forte das batalhas, marcado pelo ruído da cavalaria e pelos movimentos acelerados que sintetizam uma visão forte, violenta do objeto descrito. Essa imagem troante e atordoante é ponto de referência na aproximação com a tradição, quer mítica, quer histórica. A gradação presente em “jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno” implica a idéia de exclusão, ou seja, afirma-se a não existência de qualquer luta dessa natureza. Mas não se restringe a esse aspecto, já que o mesmo revela que “Se da escura cozinha escapa o cheiro de alho,/ o que nele recolho é o olor da glória eterna”. Esses versos, que introduzem a presença dos sentidos, são iniciados com a conjunção “se” denotando hipóteses que inserem uma linha de raciocínio lógico. Neste ponto temse uma revelação da visão distorcida que já estava anunciada anteriormente: Dom Quixote não somente imagina as coisas; ele também metamorfoseia o que vê e o que sente. Uma leitura mais aprofundada possibilita apreender a contraposição entre a realidade e o devaneio em “escura cozinha” e “olor da glória”, já que se pode relacionar o espaço da realidade ao ambiente da cozinha, que possui o cheiro real de alho, ao mesmo tempo em que “olor da glória” pode corresponder ao espaço do devaneio, do sonho ou da imaginação. Percebe-se uma distinção bipolar entre os adjetivos usados, pois enquanto a realidade, atribuída à cozinha é escura, o devaneio, contido no olor da glória, é eterno. “Escura cozinha” antepõe-se à “glória”. Nessa relação cria-se a oposição no campo semântico concernente à cor. Se “escura” implica a idéia de um croma com reduzida luminosidade, “glória” pressupõe alta concentração tonal, sugerindo, ainda, brilho e esplendor. Outro aspecto a considerar, ainda relacionado à carga semântica dos vocábulos usados, visto que enquanto a realidade tem “cheiro” – observe-se a escolha de um vocábulo coloquial –, o devaneio tem “olor”, sugerindo um aroma muito mais agradável que o do alho. Veja-se que a realidade está presa ao alho, algo tido como comum, ao passo que o devaneio é glória, que leva ao singular, ao nobre. Então, há a marcação do cheiro vinculado à realidade que passa, divergindo do olor que é destituído de sua materialidade e da contingência temporal. Verifica-se que ao devaneio é concedido um status de nobreza e eternidade, ao passo que a realidade está atrelada ao comum e pouco valioso, como o cheiro de alho, que é efêmero e desagradável. Além disso, também se pode perceber um rebaixamento interessante no que tange à realidade, uma vez que está ligada ao cheiro de comida, ou ao cheiro do corpóreo. Percebe-se, nesse ponto, a presença do realismo grotesco pela “lógica da inversão, o contato do alto com o baixo” (BAKHTIN, 1999, p. 270). Porém, observe-se que neste “baixo corporal” (Ibidem, p. 271) ocorre, também, a elevação da idealidade, ou seja, enquanto o terreno, ou o corpóreo representado pelo alho, é rebaixado, o idealismo contido no “olor da glória” e que representa o devaneio, é sublimado. Bakhtin, em A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento esclarece que

Na base das imagens grotescas, encontram-se uma concepção especial do conjunto corporal e dos seus limites. As fronteiras entre o corpo e o mundo, entre os diferentes corpos, traçam-se de maneira completamente diferente do que nas imagens clássicas e naturalistas (p. 275).

Ou seja, através do grotesco estabelece-se a diferenciação entre a realidade e o mundo. Reafirma-se, dessa forma, a inadequação do Eu perante o Mundo, haja vista a realidade ser aqui o objeto rebaixado, enquanto a idealidade, compreendida sob o aspecto do devaneio, é sublimada.

Apresenta-se, também, a dualidade eterno x efêmero, que, por sua vez, converge com a dicotomia Devaneio x Realidade, principalmente se a base para isso for a teoria das idéias de Platão, que defende a existência de dois planos, inteligível e sensorial. No primeiro encontram-se as idéias que são relativas às aspirações da alma, e dessa forma, permanente. Já no segundo tem-se a dimensão dos sentidos, que são em si um reflexo das idéias, e com isso, instável e efêmero (CHÂTELET, 1995). Assim, a dicotomia Devaneio x Realidade é resultado da tentativa de Dom Quixote de trazer as idéias do plano inteligível, do sonho, para o plano sensorial, ou à realidade, configurando assim, seu devaneio.

Dessa forma, este sonhador parte para o campo do devaneio, pois adota a ação (BACHELARD, 1994) em busca da ordem e sua conseqüente fama. Para isso, ele parte em seu “rocim, corisco, espada, grito”, que consiste em outra gradação. Estes são os recursos utilizados para busca da glória: seu cavalo, tido como corisco, sua espada e seu grito. Na enumeração nominal, destaca-se no primeiro elemento referido uma clara recuperação da expressão popular “cavalo corisco”. Nos campos de Minas Gerais, berço do poeta Drummond, essa expressão metaforiza a ligeireza do cavalo que é pressupostamente comparado ao fenômeno da natureza – corisco. Pretende-se expressar que o animal é tão rápido quanto uma descarga elétrica, um relâmpago. A seguir, acrescenta-se “espada, grito”. Sua espada e seu grito que também se pode compreender por bravura, visto a apresentação da espada ao alto juntamente com o brado de guerra representar uma posição de ataque entre os combatentes em uma batalha. Em termos do herói/sujeito aqui focalizado, esses sintagmas nominais parecem traduzir, neste momento, a explosão do eu em face de si mesmo e do mundo; pela sugestão de equivalência entre ele, sujeito, e o rocim, o corisco, a espada e o grito. A imagem que então emerge é a da integridade humana, já tendo encontrado e fixado seu centro na forma de luta. Pode-se, então, dizer que o sujeito que ia “sem destino”, encontra, no devaneio, um rumo, um caminho, tanto que, munido desse arsenal, o herói se apresenta para a ação que se descortina com missões a cumprir: a salvação de donzelas, isto é, “o torto endireitando”. A primeira parte da tarefa proposta pelo sujeito da enunciação é a regeneração do mundo real, que, aos seus olhos, é um mundo às avessas.

Para ele, não há lugar para o que transgride a norma cavaleiresca; ao “torto”, ou seja, ao desrespeito às donzelas, aplica-se o “ferro”. Note-se ainda que esse herói que sabe usar de firmeza, de violência, sabe ser suave, gentil com o feminino, o mundo das sedas. Ao vislumbrar o que fará já se coloca na posição de herói, pois estará devolvendo a ordem ao mundo, e fazendo isso, qualifica a si próprio de “herói de seda e ferro”. Na oposição obtida entre seda e ferro, encontra-se a apresentação de um herói que ao mesmo tempo é delicado e gentil como uma seda e duro e forte como o ferro.

Assim, o devaneio começa a prevalecer. No poema ele avança desde o início sobre o espaço sensorial da realidade e, no final, tem-se a sua dominância. É explícita a condição desse homem que não dorme, que está “abrasado”, o que possibilita concluir que o devaneio tomou conta dele de forma que até mesmo o seu alimento são as nuvens – espaço físico destinado aos sonhos –, ou seja, este homem que não dorme e nem come perde a razão e, em sua loucura, passa a alimentar-se desses sonhos de forma que se encontra em uma “férvida obsessão de que enfim a bendita/ Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas”. Novamente Dom Quixote expressa seu desejo cosmogônico de trazer a harmonia ao mundo, pois a Idade de Ouro é tida como uma época de paz e harmonia tanto entre os homens, quanto entre estes e a natureza, e ele, enquanto herói, agirá ativamente para que esse período sobrevenha sobre a terra. Apreende-se, nesse ponto, a busca por uma cosmogonia utópica1, não se esquecendo que analogamente o Sol é um símbolo universal do rei (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2005). Dessa forma, Dom Quixote ao citar a “Idade de Ouro e Sol”, na realidade toma para si a luta cosmogônica travada por deuses e heróis míticos para trazer à Terra um império baseado no símbolo do Sol, visando reestabelecer não somente a ordem harmônica das coisas, mas também a luz e o conhecimento. Essa passagem encontra ressonância com o pano de fundo amarelo do desenho, tendo em vista seu caráter expansivo.

É nítida, neste aspecto, a identificação entre Dom Quixote e Drummond, o gauche do “Poema de Sete Faces”.

Sendo a obra do gauche uma maneira de interferir na realidade, erige-se ela própria como uma realidade autônoma. A obra poética do gauche é essa concreção saída da defasagem entre o Eu e o Mundo, e que se constitui numa extensão do autor em busca de um elemento reparador ou descritivo de seu conflito. (SANT’ANNA, 1980, p. 24)

O poeta parece experimentar o mesmo desajustamento diante do mundo que a personagem cervantina. E assim como Dom Quixote encontra uma saída através do devaneio, o poeta, que se auto-denomina gauche, tem, em sua obra, um caminho para encontrar a sua realidade aceitável.

Pode-se conjeturar o motivo de Drummond nomear o seu Soneto de “Soneto da Loucura”. No que tange à loucura, segundo Foucault , em seu livro História da Loucura na Idade Média, a partir do momento que o homem se apega a si mesmo, ele se ilude, surgindo, então, o primeiro sinal da loucura (1972). Porém, ainda resta pensar na razão pela qual o autor optou por um soneto – e, especificamente, um soneto alexandrino. Uma das possibilidades seria a convergência entre o estilo clássico de criação poética, sendo em si um modo racional de expressão, com a busca do eu poético pela harmonia e pelo conhecimento expresso no último verso com “Idade de Ouro e de Sol”.

Um soneto é uma forma fixa de escrita, que implica um trabalho artesanal. É bastante usado para explorar temas segundo uma perspectiva mais racional. É composto por dois quartetos e dois tercetos, sendo que, em geral, o último expressa uma conclusão (TAVARES, 1978). O autor explora a oposição desde o seu título, pois, em seu bojo o vocábulo soneto sugere a idéia de racionalidade, e loucura traz o sentido de irracional. Esta oposição também é trabalhada durante a construção dessa forma poética. O poeta apresentou através de seus quartetos uma crescente oposição entre devaneio e realidade, para introduzir, também gradativamente, nos seus tercetos, a predominância do devaneio.

No entanto, a busca de proporção expressa na eleição do soneto como forma resulta ineficaz: não se trata de um soneto perfeito, já que não há nenhum sinal de combinação rímica.

Esse predomínio do devaneio e tomada pela loucura da personagem tem seu apogeu no último terceto, classicamente usado para estabelecer uma conclusão. Dessa forma, em Drummond, ele serve para dar total vazão à loucura do sonhador, justificando, assim, o título do soneto. Observe-se também que ele usou uma estrutura de texto argumentativo, explorando bem as orações explicativas e finais, estabelecendo e dando base para a racionalidade do texto. Tem-se, então, uma composição que se apresenta como uma defesa da loucura, valendo-se de argumentos que a sustentam. Isso possibilita comparar o estilo de escrita, tido como nobre por excelência, com a possível visão de nobreza da loucura desse sonhador, o que leva às vozes subjetivas encontradas neste soneto. Instaladas em primeira pessoa com o eu lírico representado por Dom Quixote, falam de sua ânsia por fama e glória, de seus desejos e terminam com sua decisão pela loucura na ânsia de reviver um tempo que já passou. Embora esse eu lírico seja o próprio Dom Quixote que fala de seus anseios e de sua condição, percebe-se que há um certo distanciamento que demonstra uma visão romântica do eu narrado; é como se quem relatasse fosse na realidade um observador. Tem-se a impressão de que se marca uma distância crítica entre o sujeito, que comete grandes feitos e o olhar que o apresenta. Este “eu” que não possui uma visão clara das coisas, como foi apresentado na primeira estrofe, e que termina enlouquecido na última, parece ter a “ajuda” ou “auxílio” de uma visão em terceira pessoa na composição do soneto, que embora esteja em sua totalidade em primeira pessoa, possui a característica da observação atenta e distanciada da terceira pessoa. Um possível motivo para essa ocorrência seria o espelhamento do autor (Drummond) na personagem. Ao tratar da inaptidão do Eu (Quixote) versus Mundo, o poeta dá vazão ao espelhamento de si mesmo enquanto gauche, uma vez que sua incompreensão frente à realidade das coisas e entre a oposição dessa realidade, em relação aos seus anseios, o faz se identificar com a personagem narrada. Sobre o gauchisme, Sant’anna, em seus estudos sobre o tema, afirma que “caracteriza o gauche o contínuo desajustamento entre a sua realidade e a realidade exterior. Há uma crise permanente entre o sujeito e o objeto que, ao invés de interagirem e se completarem, terminam por se oporem conflituosamente” (1980, p. 38).

Encontra-se convergência no diálogo deste primeiro poema e primeiro desenho. Ambos apresentam e descrevem características de Dom Quixote. Esta confluência se apreende desde os respectivos títulos: “Soneto da Loucura” para Drummond e “Dom Quixote de cócoras com idéias delirantes”, para Portinari. Como já dito anteriormente no caso do soneto, mas que também se confirma no desenho, os títulos são um prenúncio daquilo que será apresentado pelos dois artistas. Ao atentar para os vocábulos “loucura” e “delirante”, por loucura, segundo Erasmo de Rotterdam, entende-se “um sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo” (apud FOUCAULT, 1972, p. 24). Foucault enriquece esse pensamento ao dizer que a loucura não diz respeito à realidade do mundo, mas sim à realidade que o homem acredita existir (1972). Já alucinante é o que faz perder o tino, a razão, o entendimento. Observe-se que o louco é dominado pela paixão intensa, assim como por “delirantes” implica a idéia de algo apaixonante, e que o delírio, ou alucinação é, em suma, ilusão, fantasia e devaneio. Não somente os títulos dialogam entre si, em vista de o devaneio estar presente também no conteúdo do poema, pois logo na primeira estrofe o eu lírico declara que sua casa “é rica de quimera”. Esse espaço compreendido como o dos sonhos, rico em ilusões, também será encontrado na estrutura do desenho, que tem um fundo amarelo, que apresenta um deslocamento da realidade, ou um movimento de transcendência que denuncia a expansão do devaneio do sujeito, reafirmado pela cor vermelha que revela um apaixonado sem controle. Um aspecto que pode confirmar isso é o fato de os pés de Dom Quixote, no desenho, não possuírem o apoio do chão, que seria um elemento real. Ao contrário, eles estão sobre o suporte do amarelo, cor da expansão, que se pode entender pela expansão da loucura, da sua entrega ao devaneio.

A mesma dificuldade de percepção do mundo empírico no poema é encontrada no desenho, caracterizado pelo olhar visionário que parece olhar para um outro mundo. Inclusive, o próprio título do mesmo remete a esta idéia, visto que para a psiquiatria e para a psicologia a alucinação é tida como a percepção de um objeto inexistente. São essas imagens desordenadas, que na realidade não existem e que estão em seus sonhos apaixonados, que se encontram em sua cabeça. Por isso a sua dificuldade de abarcar o mundo real. No amarelo também é possível apreender a glória buscada por ele. Este croma tanto vitaliza o campo semântico da “glória eterna” que se deseja, como também é tido como a representação da transcendência, de forma que se tem a presença de Quixote envolvida por essa cor que representa aquilo por que ele anseia, aquilo que está diluído na distância, que é inapreensível aos olhos, que transcende os sentidos. Agora, é interessante observar que enquanto em Drummond apresenta-se uma loucura crescente, ou seja, uma razão que vai cedendo espaço para a loucura até terminar no último terceto como que já possuído pelo devaneio; tem-se a impressão de que Portinari já o situa neste momento. No desenho ele está fisicamente abrasado, vislumbrando seus sonhos, traduzindo um comportamento de obsessão, como é demonstrado tanto pelo seu desalinho quanto pelo seu desequilíbrio. Percebe-se novamente um rebaixamento presente na actorialização composta pelo corpo e ações.

O diálogo entre as releituras de Cervantes é entretecido pelo jogo de 52 oposições em que Dom Quixote de La Mancha é apresentado, pelos dois artistas, como um sujeito que recusa o mundo da práxis e deixa-se dominar pela imagem ideal do cavaleiro andante, com uma missão cosmogônica de trazer luz e ordem ao mundo.

Em suma, pode-se perceber, neste primeiro conjunto, a visão de cada artista em sua criação. Carlos Drummond de Andrade em “Sol baixe lá das alturas” faz uso de um adynaton, uma figura de linguagem, por meio da qual, segundo Lausberg, a “noção ‘nunca’ é posta em termos concretos pela intervenção de uma ‘impossibilidade’ da Natureza” (2004, p. 149). Destarte, apresenta-se a retórica do impossível, uma vez que não há a possibilidade de que o Sol deixe o seu lugar. Ao lançar mão desta figura de linguagem que remete à figura quixotesca, o poeta deixa transparecer a impossibilidade da realização dos sonhos desta personagem. Quanto a Portinari, ao mesmo tempo em que apresenta um traçado forte, não trabalha muito a profundidade; percebe-se que o espaço do corpo não se encontra totalmente preenchido. Trata-se de uma poética minimalista, que desvela conceitos visuais elementares, que remete a desenhos infantis, onde se destacam a pureza, o ser ingênuo e o primitivo; que se entrega ao devaneio em busca do impossível. Pode-se dizer que poema e desenho se completam, a ponto de a palavra poética sacramentar o discurso plástico-pictórico e vice-e-versa.

Inclusive, o devaneio do sujeito encontra consonância nas três obras tratadas nesta análise. Nota-se, no desenho a expressão de um olhar visionário, como citado anteriormente. No poema, o devaneio é apreendido pelo eu lírico que assume a voz de Dom Quixote e afirma que sua “casa pobre é rica de quimera”: É possível inferir que o devaneio é valorizado a ponto de a personagem não dormir e encontrar-se “abrasado” em uma “fervida obsessão de que enfim a bendita Idade de Ouro e Sol baixe lá das alturas”. Desenho e poema remetem à passagem do texto-fonte em que Dom Quixote é tomado pela loucura – trecho citado na epígrafe desta análise. Foucault, em História da Loucura na Idade Clássica, afirma que a loucura seria, entre outras, a fixação das idéias (1972, p. 318). E é justamente esta a perspectiva que se obtém do sujeito, neste momento, retratado pela intersemioticidade (prosa, desenho e poema).

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1 “A idéia de um paraíso a alcançar, depois, mais tarde, ao fim de alguma coisa – em todo caso, no futuro – ou a intuição de um paraíso perdido, esquecido lá para trás e do qual o homem teria saído ou sido expulso, são as formas mais comuns de manifestação religiosa da vontade utopia.” (COELHO, 1985, p. 15)

 

Devaneio x Realidade: uma leitura intersemiótica de Candido Portinari e de Carlos Drummond de Andrade sobre Dom Quixote de La Mancha, Katya Motta. São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2007




 

O “mosaico de citações” do poeta gauche

[…]

A relação entre Portinari e Drummond torna-se mais próxima ainda, quando em  1972, em virtude de seus 70 anos de idade, Drummond lança um livreto com 21 poemas,  alusivos às 21 gravuras pintadas pelo amigo, no ano de 1956, a pedido da Editora José Olympio  para a provável edição brasileira de D. Quixote, projeto que não se concretizou. A obra foi  publicada em 1973 com o nome: Quixote e Sancho, de Portinari, em As impurezas do branco. Além dos poemas, os desenhos são acompanhados por trechos da obra de Cervantes, que serviram de inspiração para Portinari71.

A construção desses 21 poemas nos revela que Drummond foi um leitor atento de  Dom Quixote de la Mancha (1605), do espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616) e dos  cartões que compõem a série Quixote e Sancho, de Portinari. Ele pode ser lido como um todo  coeso e coerente, ou de forma independente e aleatória, pois se trata de peças únicas. Para  ilustrar essa parceria entre poeta e pintor, poesia e pintura escolhemos o primeiro poema do  livro para conhecer “Soneto da Loucura” (OC, 2002, p. 743).

O indivíduo moderno, múltiplo e contraditório, diante dos confrontos com a vida,  vê-se diante de sensações e sentimentos que fogem ao seu controle. Tudo aquilo que não se  entende, não se domina e foge aos padrões sociais é conhecido como loucura. Nossa sociedade  forjou eminentemente homens pragmáticos e condena se não o for. O mundo precisa de loucos, não estamos falando de doentes mentais, mas de sujeitos ousados, irreverentes e audazes que  busquem caminhos menos burocráticos para se viver. A previsibilidade e a individualidade são  marcas de nosso século. Precisamos de loucos, sobretudo daqueles que fazem uso da palavra  como os poetas, capazes de inovar, quebrar barreiras, criar pontes entre culturas distantes e  exaltar a palavra. 

O poema de versos alexandrinos apresenta uma estrutura de ordem narrativa. A  loucura da personagem Quixote é a mesma usada pela poesia drummondiana. Pressupomos que  Drummond conhecia a prosa quixotesca, leu-a e reescreveu, em forma de poesia, o que  Cervantes já havia narrado séculos antes. É que às vezes, o poeta, fica tão impressionado com  a natureza do que lê, que se sente impelido a reescrever, a partir de sua percepção e de seus  valores. Ele só precisa tomar cuidado para recriar e não imitar seu antecessor.

O sujeito lírico inicia descrevendo a sua morada: uma casa “pobre”, mas rica de  “quimera”, em que ele sai pelo mundo “sem destino” com o propósito de “trovejar espantos”,  isto é, levar para longe coisas ruins. É um típico cavaleiro andante. Sua façanha será tão  grandiosa que seu nome se tornará conhecido “tal qual Pentapolim, o rei dos Garamantas”.

A cabeça desse sujeito é pura imaginação e por meio dela fervilham batalhas  “jamais vistas no chão ou no mar ou no inferno”. O desejo de todo escritor é escrever sobre  fatos que nunca foram lidos. Ele pode até reescrever, mas terá que ser sob sua pespectiva. É  dessa forma que ele espera alcançar a originalidade. Se a realidade tem “cheiro de alho” e afastalhe  de seus devaneios, o que é recolhido é tão somente “o olor da glória eterna”, ou seja, o  aroma da vitória. É preciso desejá-la, seja durante o processo criativo, seja na realidade do  cotidiano.

No primeiro terceto, o eu lírico assume a condição de cavalheiro que parte para  salvar milhares de donzelas que há pelo planeta, junto com seus instrumentos: “rocim, corisco,  espada” e o “grito”, pois caso nada funcione para sua defesa é preciso correr e gritar. A  ludicidade de tais instrumentos unidos ao elemento de fina ironia “grito” dão a tônica do poema.  Coincidência ou não, seu companheiro de viagem tem uma característica igual ao eu lírico  drummondiano: é torto e tem ferro em sua composição. O sujeito que narra a sua trajetória, que  se alimenta de “nuvens”, e seu companheiro reconhecem-se em suas tortuosidades e devaneios  esperam, sem dormir, pela “Idade do Ouro” - período do início da humanidade em que  predominava, quando o homem era puro e vivia em meio a paz, harmonia e a prosperidade.

É preciso observar que para além da coerência com as vinte e uma imagens de  Portinari, os poemas mantêm uma relação cronológica com a narrativa (“Soneto da Loucura” é  um exemplo), revelando uma maneira drummondiana de desler Cervantes.

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71 Há edições especiais desses poemas e desenhos. CERVANTES. PORTINARI, DRUMMOND. D. Quixote. Rio de Janeiro, Fontana, 1978.

CERVANTES. PORTINARI, DRUMMOND. D. Quixote. Rio de Janeiro: Sul América Seguros, 1987.

Carlos Drummond de Andrade: O poeta na condição de leitor, Luciana Silva. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2021.

 

terça-feira, 18 de julho de 2023

Acordo para a morte, Carlos Drummond de Andrade


 

MORTE NO AVIÃO

Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.

Não morrerei agora. Um dia
inteiro se desata à minha frente
Um dia como é longo. Quantos passos
na rua, que atravesso. E quantas coisas
que há no tempo, acumuladas. Sem reparar,
sigo meu caminho. Muitas faces
comprimem-se no caderno de notas.

Visito o banco. Para quê
esse dinheiro azul se algumas horas
mais, vem a polícia retirá-lo
do que foi meu peito e está aberto.
Mas não me vejo cortado e ensangüentado.
Estou limpo, claro, nítido, estivai.
Não obstante caminho para a morte.

Passo nos escritórios. Nos espelhos,
nas mãos que apertam, nos olhos míopes, nas bocas
que sorriem ou simplesmente falam eu desfilo.
Não me despeço, de nada sei, não temo:
a morte dissimula
seu bafo e sua tática.

Almoço. Para quê? Almoço um peixe em ouro e creme
É meu último peixe em meu último
garfo. A boca distingue, escolhe, julga,
absorve. Passa música no doce, um arrepio
de violino ou vento, não sei. Não é a morte.
É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.

Estou na cidade grande e sou um homem
na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer.
Peço passagem aos lentos. Não olho os cafés
que retinem xícaras e anedotas,
como não olho o muro do velho hospital em sombra.
Nem os cartazes. Tenho pressa. Compro um jornal. É pressa,
embora vá morrer.

O dia na sua metade já rota não me avisa
que começo também a acabar. Estou cansado.
Queria dormir, mas os preparativos. O telefone.
A fatura. A carta. Faço mil coisas
que criarão outras mil, aqui, além, nos Estados Unidos.
Comprometo-me ao extremo, combino encontros
a que nunca irei, pronuncio palavras vãs,
minto dizendo: até amanhã. Pois não haverá.

Declino com a tarde, minha cabeça dói, defendo-me,
a mão estende um comprimido: a água
afoga a menos que dor, a mosca,
o zumbido... Disso não morrerei: a morte engana,
como um jogador de futebol a morte engana.
como os caixeiros escolhe
meticulosa, entre doenças e desastres.

Ainda não é a morte, é a sombra
sobre edifícios fatigados, pausa
entre duas corridas. Desfalece o comércio de atacados,
vão repousar os engenheiros, os funcionários, os pedreiros.
Mas continuam vigilantes os motoristas, os garçons,
mil outras profissões noturnas. A cidade
muda de mão, num golpe.

Volto à casa. De novo me limpo.
Que os cabelos se apresentem ordenados
e as unhas não lembrem a antiga criança rebelde.
A roupa sem pó. A mala sintética.
Fecho meu quarto. Fecho minha vida.
O elevador me fecha. Estou sereno.

Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso desistir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem,
ir ao cassino, ler um livro.

Mas tomo o carro. Indico o lugar
onde algo espera. O campo. Refletores.
Passo entre mármores, vidro, aço cromado.
Subo uma escada. Curvo-me. Penetro
no interior da morte.

A morte dispôs poltronas para o conforto
da espera. Aqui se encontram
os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicklets, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.

Ou quase. Primeiro a morte particular,
restrita, silenciosa, do indivíduo.
Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaço de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão perecendo calados.
Somos um em vinte, ramalhete
de sopros robustos prestes a desfazer-se.

E pairamos,
frigidamente pairamos sobre os negócios
e os amores da região.
Ruas de brinquedo se desmancham,
luzes se abafam; apenas
colchão de nuvens, morros se dissolvem,
apenas
um tubo de frio roça meus ouvidos,
um tubo que se obtura: e dentro
da caixa iluminada e tépida vivemos
em conforto e solidão e calma e nada.

Vivo
meu instante final e é como
se vivesse há mui; os anos
antes e depois de hoje,
uma contínua vida irrefreável,
onde não houvesse pausas, síncopes, sonos,
tão macia na noite é esta máquina e tão facilmente ela corta
blocos cada vez maiores de ar.

Sou vinte na máquina
que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metros de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu vôo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.

Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo atmosférico,
golpe vibrado no ar, lâmina de vento
no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.

 

Carlos Drummond de Andrade, A Rosa do Povo, 1945

 

Entre a “vida besta” e o “vasto mundo” há um poeta melancólico

No poema quase crônica “Morte no avião” (OC, 2002, p. 176-179), dado o seu caráter narrativo de um facto do cotidiano, deparamo-nos com a alienação do indivíduo, preso a seus afazeres domésticos, com a consciência próxima do fim. Vivemos uma vida inautêntica no mundo, pois nele somos lançados sem nos terem consultado sobre nossas pretensões e nossos desejos, motivo pelo qual nos coisificamos e nos tornamos angustiados.

O primeiro verso remete-nos ao “Ser-para-a morte”, expressão cunhada pelo filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) que concebia a morte como um fenômeno existencial entranhado ao ser do homem como “ser-no-mundo” e como “ser-de-projeto”.

O mistério e a incerteza caracterizam a morte. Desde que a humanidade existe, pensar a morte é recorrente. Ela é representada em seu sentido mais negativo: monstros em pântanos sombrios, esqueletos e corpos putrefatos. Afinal, o homem é o único animal que tem consciência da própria morte. É também aquele dotado de linguagem. A relação entre linguagem e morte foi estudada pelo filósofo italiano Giorgio Agamben (1942), na obra A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade21 (2006). Ele concebe o homem como um animal dotado da faculdade da linguagem e da consciência da morte, ou melhor, o homem é falante e mortal.

Morrer representa o medo do homem por aquilo que não se pode conhecer; um desafio para as mais diferentes culturas que buscam respostas nos mitos, nas artes, na filosofia e na religião, para tornar compreensível o incompreensível. Para os cristãos e parte dos judeus que acreditavam na ressurreição, a morte era vista como a passagem para uma outra dimensão, a transposição ao eterno sofrimento e a expiação, ou o acesso ao eterno gozo, reservados a um pequeno grupo de bem-aventurados.

A morte é um dos grandes temas de discussão do Existencialismo, corrente filosófica da qual o filosofo alemão Martin Heidegger faz parte. O autor de Ser e tempo (1927) acreditava que é na morte que o homem se totaliza. Ele argumentava que devemos manter um estado de vigília constante em relação a tudo aquilo que nos afeta em nosso cotidiano. Não só. Enquanto “ser-no-mundo”, o homem busca o significado do que é o Ser.

“Morte no avião” é um longo poema formado de treze estrofes de versos livres prosaicos, isto é, “quase se confundindo com o ritmo na prosa, para mostrar que a poesia está na essência no que é dito e na sugestão, ou no choque das palavras escolhidas, não nos recursos formais” (CANDIDO; CASTELLO, 1981, p. 20), aponta para essa totalização com a chegada da morte. O eu lírico narra de forma banal (“Barbeio-me, visto-me, calço-me”) seu último dia de vida: “Almoço. Para quê?”. A terceira estrofe retrata o cotidiano agitado do homem moderno: “O telefone. / A fatura. / A carta. Faço mil coisas / que criarão outras mil coisas [...]”. Produto de guerras, de autoritarismo, como uma mera engrenagem do mundo trabalho, o homem se compromete com várias atividades que o sufocam e, em muitos casos, não consegue realizar.

É perceptível o vazio que domina essa voz que narra seu dia (presente) com o pensamento preso em sua morte (futuro). O eu lírico ainda olha a cidade e ainda tem a oportunidade de “adiar a morte”. Somos regidos pelo livre arbítrio, ou melhor, em tudo o que fazemos temos escolhas. A viagem rumo à morte, como uma simples etapa da vida, é triste e instaura um sentimento de vazio na alma humana, motivo pelo qual o eu-lírico questiona: “Por que nascemos para amar, se vamos morrer?” (OC, 2002, p. 1242). A morte em Drummond não é vista como algo mórbido, triste ou fantasmagórico. É tão somente uma travessia.

Heidegger afirmava que “a essência da linguagem nos intima e nos alcança e, com isso, nos sustenta, se é que a morte faz parte do que nos intima” (2003, p. 170). O filósofo acreditava que a morte não deveria ser tratada como um fenômeno natural, mas como um fenômeno existencial, ou seja, inerente ao homem. A morte não é sinônimo de morbidez ou desesperança. O “ser-para-a-morte” entende que ela não é um desejo ou uma escolha, mas uma condição irreversível e intransferível. Ele compreende que ela é libertação e completude da existência humana.

O homem moderno tem em si a sensação do desamparo, pois está inserido em ambiente apartado de elementos sagrados. Esse “ser-para-a-morte” é o único que tem experiência com a linguagem. É através dela que se expressa e, dessa forma, nos possibilita conhecê-lo.

Nessa busca pelo entendimento das questões que envolvem a natureza humana, morte e poesia, Martin Heidegger valeu-se do questionamento de um outro alemão, o poeta Friedrich Hölderlin22 (1770-1843) - “Y para qué poetas en tempos de penuria?” – para refletir sobre “a la era a la que nosotros mismos pertenecemos todavía”23 (HEIDEGGER, 2010, p.199). Com o desaparecimento de “Hércules, Dioniso y Cristo” (idem, p.199), a noite e a escuridão abateram-se sobre os homens, pois houve um apagamento de “un esplendor de divinidad”24(idem, p.199). Trata-se, pois, de um período tão pobre da humanidade que “cada vez se torna más indigente”25 (idem, ibidem) que, nem mesmo se consegue sentir a falta de Deus e o mundo “queda privado del fundamento como aquel que funda”26 (idem, ibidem), como por exemplo, “Amar Deus sobre todas as coisas”, já que “Deus só pede nosso amor” (BIBLIA SAGRADA, Mt. 22, 34-40, 1994, p. 1058-1059). Uma sociedade sem princípios, valores e fundamentos é uma sociedade suspensa em um precipício. Quando os homens se afastam da dimensão do sagrado, eles adentram para outra: a do desengano, da solidão e do desamparo. A morte passa, então, a ser um desejo vital, como expresso no poema “Morte no avião”. Ela passa a ser interpretada como um processo de salvação do homem em meio a um ambiente impregnado pela escuridão.

Um poeta moderno como Drummond cantou a morte, porque experienciou um tempo de penúria, indigência, desigualdades e fuga dos deuses. Sua arte volta-se para si mesma, porque a reflexão é o caminho mais viável para compreender uma sociedade em meio à falta e à ausência de valores que possam nortear a humanidade. Em um ambiente marcado por tensões, conflitos e combates, em que grupos querem fazer da Ditadura uma regra e não um “estado de exceção”, a morte é cantada, portanto, como uma solução para sair de um mundo em que a indigência prevalece.

Uma pergunta ainda carece de ser respondida: para que poetas em tempos de penúria? Heidegger responde-nos: cantar, “prestar atención al rastro de los deuses huidos”27

(idem, p. 201). O canto é o único meio que o poeta dispõe, mas em Drummond “Ele é tão baixo que sequer o escuta / ouvido rente ao chão”. Ao mesmo tempo “é tão alto / que as pedras o absorvem” (OC, 2002, p.115-116). Os poetas eternizam sentimentos e pessoas, relevam opressões, criam espaços de fabulação, provocam os leitores, comovem e fazem refletir por meio da palavra, mas sobretudo resgatam a consciência daqueles que perderam a esperança de um mundo mais justo. “Es por eso por lo que los poetas en tiempos de penuria deben decir expresa y poéticamente la esencia de la poesía. Donde ocurre esto se puede presumir una poesía que se acomoda al destino de la era”28 (idem, p. 201-202). A poesia drummondiana foi uma voz reflexiva no século XX.

Além do trabalho com a palavra, condição sine qua non para ser poeta, Drummond a usou para interrogar os homens e suas ações, para ponderar seu estar no mundo, para exaltar os excluídos, para se opor às injustiças e denunciar o “medo da morte e o medo de depois da morte” (OC, 2002, p. 73). Embora seja uma tarefa penosa o retorno às raízes primitivas humanas - esperança, solidariedade, amor ao próximo, comunhão com a natureza – ainda é possível mediante a reflexão filosófica da poesia. Como a humanidade não está pronta ou acabada no continuum da história, o poeta mesmo depois de morto tem no seu canto seu bem mais precioso, capaz de humanizar seus semelhantes.

As reflexões drummondianas se dão por meio da linguagem e o trabalho erigido com ela impressiona, por isso, é imprescindível destacá-lo, já que a linguagem está em toda parte e fala, ela é, portanto, a matéria-prima da poesia e do poeta. Somos animais racionais, simbólicos e detentores de linguagem. E mais do que ninguém, os poetas são criadores de palavras, contempladores sensíveis e críticos do mundo e produtores do pensar poético.

Em Carta sobre o humanismo (2005), Heidegger declara que estamos longe de pensar o agir e que sua essência é o consumar. Somente se pode consumir aquilo que já é – o ser. O pensar é, então, o mecanismo que “consuma a relação do ser com a essência do homem” (p. 7), ou seja, o pensamento é “um compromisso do ser”, tal compromisso se efetiva na ação para a verdade do Ser.

O pensar não produz, tampouco efetua esta relação, mas é através dele que o ser tem acesso à linguagem. “A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem” (idem, p.8). Sendo assim, a linguagem faz parte da dimensão constitutiva do ser, é o homem, pois, o único animal dotado de linguagem. Tudo aquilo que existe, só existe porque pode ser dito. São os intelectuais e os poetas que nos dizem e nos clamam a também dizer, eles são os responsáveis por manter e preservar esta habitação. Isso porque “a linguagem cai sob a ditadura da opinião pública. Esta decide o que é compreensível e o que deve ser desprezado como incompreensível” (idem, p.14). Depois que os meios de comunicação legitimam ou não uma dada linguagem é difícil desconstruí-la.

A rosa do povo (1945) foi um esmerado e profundo trabalho com a linguagem e sua publicação se deu em um dos momentos mais tristes de nossa História, período em que os fluxos comunicativos eram filtrados, domesticados e manipulados pela classe dominante. Torna-se preocupante, assim, o esvaziamento e a corrosão da linguagem em si. A consequência desse facto é drástica: “[...] uma ameaça à essência do homem” (idem, p. 15). Sem linguagem, perderíamos nossa condição humana, já que ela é uma instância de mediação entre o homem e o mundo. Falar em linguagem artística é nos encaminharmos para a compreensão da existência humana. O pensamento é o elo entre o Ser com a essência do homem e esse encontro só é possível por meio da linguagem.

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21 Nesta obra, Giorgio Agamben, parte da ideia de que o homem é falante e mortal. Para embasar sua teoria recorre ao Dasein (ser-para-a-morte), ser projetado de Martin Heidegger, em que é através da experiência da morte que o homem encontra suas possibilidades de existência, já que a morte não é apenas um fator biológico, mas uma passagem, e por meio dela a vida inautêntica de extingue. A negatividade advém do não sentido existencial do ser que será lançado para o desconhecido. A negatividade da linguagem é, portanto, fruto da própria negatividade do ser preservando cada um (homem e linguagem) e sua própria voz.

22 Martin Heidegger, em 1936, escreveu Hölderlin e a Essência da Poesia, além de inúmeros ensaios, dentre eles “Para que poetas?”, presente coletânea Holzwege (1950). O interesse pela poesia de Friedrich Hölderlin, poeta alemão, que cantou o mito grego do mediador entre o homem e o sagrado. Postumamente, foi publicado um volume das obras completas que o filósofo alemão dedicou ao poeta: Zu Hölderlin Griechenlandreisen.

23 “E para que poetas em tempos difíceis?” - para refletir sobre “a era que nós próprios ainda pertencemos”. (Tradução nossa)

24 “ um esplendor da divindade” (Tradução nossa)

25 “ cada vez se torna mais pobre” (Tradução nossa)

26 “é privado do fundamento daquele que cria” (Tradução nossa)

27 “ficar atento ao rastro dos deuses em fuga” ( Tradução nossa)

28 “É por isso que os poetas em tempos de pobreza devem dizer expressa e poeticamente a essência da poesia. Quando isso acontece, entende-se que a poesia retrata o destino de uma época” (Tradução nossa)

 

Ler mais em: Carlos Drummond de Andrade: O poeta na condição de leitor, Luciana Silva. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2021.

 

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O horror calculado: violência e autoritarismo em “Morte no avião”

Na presente análise do poema “Morte no avião”, nosso objetivo central será a  discussão de alguns traços formais que guardem pontos de contato com o problema do autoritarismo. A hipótese defendida sustenta que o poema constitui-se em uma aguda e  inquietante reflexão do sujeito lírico sobre sua condição fragmentária frente à vida homogeneizada do Estado Novo e, de um modo geral, frente aos impasses do processo  capitalista no Brasil. Nesse sentido, “Morte no avião”, assim como outros poemas de A rosa  do povo, permite uma interpretação que, em termos alegóricos, dialoga diretamente com as  condições sociais e políticas dos anos 30 e 40. 

Adentremos o poema “Morte no avião”. O texto narra um dia comum de um homem  em uma grande cidade, que irá pegar um avião ao final da tarde; o assunto não traria em si  nenhuma novidade não fosse um detalhe central intencionalmente explícito: ele irá morrer, o  avião irá explodir e ele tem consciência do fato desde o primeiro verso, o qual causa um efeito  de choque no leitor:

Acordo para a morte. 
Barbeio-me, visto-me, calço-me. 
É meu último dia: 
um dia cortado de nenhum pressentimento. 
Tudo funciona como sempre. Saio para a rua. Vou morrer.

Pelo trecho citado, vemos, desde o princípio, uma contínua marcha do sujeito- lírico rumo à destruição de maneira demarcada: “Acordo para a morte”, “Vou morrer”. O próprio “enredo”, por assim dizer, nos parece estranho, inverosímil, na medida em que seu desenvolvimento é repleto não de tentativas de evitar a morte, mas de um caminhar ininterrupto e consciente para ela. O horror é tratado em tom burocrático, sem alterações de tom, como indica a ausência de recursos capazes de revelar tensão, a exemplo de pontos de exclamação ou interjeições.

O fim da existência, apontado friamente pela futura vítima, é marcado por uma consciência por demais lúcida frente a sua própria ruína, resultando em uma indiferença à vida, como se esta em nada fosse diversa da morte. Trata-se de um comportamento estranho, por não haver dados no texto capazes de mostrar sequer um desejo de suicídio, ato significativo diante do desajuste do mundo e do ser frente ao mundo desajustado; mas, para nossa sorte (ou azar) em nossa análise, nem de longe o suicídio se apresentaria em “Morte no avião” como hipótese interpretativa180, pois a morte não é tomada como superação, solução ou interrupção dos problemas trazidos pelo sujeito lírico. Os passos narrados daquele homem sobre seu cotidiano não alcançam um final na explosão da aeronave; percebe-se que dia-a-dia vida e morte se assemelham assustadoramente, característica que causa choque nos leitores.

Assim, ao longo de suas dezasseis estrofes, de versos sem rima e sem metrificação, tarefas corriqueiras são, como tais, refeitas durante mais um dia, como se nada fosse ocorrer, embora aquele que as realiza saiba de antemão o desfecho trágico e o antecipe para os leitores. Interessante que as únicas estrofes a demonstrarem uma mudança no comportamento do sujeito lírico frente ao fim, mudança em seu cotidiano, são as relativas aos preparativos para a morte, como é o caso da sétima estrofe:

Volto à casa. De novo me limpo.
Que os cabelos se apresentem ordenados
e as unhas não lembrem a criança rebelde.
A roupa sem pó. A mala sintética.
Fecho meu quarto. Fecho minha vida.
O elevador me fecha estou sereno.

Seu comportamento rompe bruscamente com nossas expectativas sobre os valores dados à vida, estimada como um bem que deve ser tratado com todos os cuidados, e à morte, vista como algo contra o que devemos lutar e fugir. O problema reside no fato de que no poema não se enaltece a vida, não se foge da vida, ao mesmo tempo em que também não se valoriza a morte como uma saída para o fastio proporcionado pela existência vazia da modernidade. As referências comuns do leitor são rompidas bruscamente, e não seria exagero notar pontos em comum com situações estranhas, próximas das narrativas de Franz Kafka no tocante ao jogo entre o absurdo e o inverosímil. Exemplo dessa visão inusitada aparece na segunda estrofe, na qual nos deparamos com a ansiedade do sujeito lírico pela hora do vôo, desejo este que nos causa um mal estar ainda maior:

Não morrerei agora. Um dia
inteiro se desata à minha frente.
Um dia como é longo.
[...]
Estou na cidade grande e sou um homem
na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer.
Peço passagem aos lentos.

Tais exemplos demonstram uma narração cujo protagonista conhece o desenlace pelo qual irá passar, no caso, sua destruição. Como afirmado, esta primeira característica rompe logo no início do poema com um possível entendimento da morte como transcendência e, por conseguinte, superação dos impasses da vida.

Ora, é de se perguntar um dos possíveis sentidos implícitos nessa perspectiva inovadora em “Morte no avião”. Um caminho talvez esteja em perceber a profusão de imagens, indubitavelmente ligadas ao cotidiano do espaço urbano moderno, povoado e solitário, a um só tempo funcional e sem significação de experiência para o sujeito lírico: “Saio para a rua”; “Quantos passos/ na rua, que atravesso”; “Visito o banco”; “Passo nos escritórios.”; “Ainda não é a morte, é a sombra/ sobre edifícios fatigados,[...]”.

O ritmo contínuo, duro, do poema se casa com as ações do homem que vai rumo à morte; a predominância de orações simples e coordenadas, crueza rítmica recheada por frases nominais (“O telefone./A fatura. A carta.”), sobre uma estrutura básica de sujeito, verbo e objeto, dão-lhe um movimento repetido e maquinal, semelhante à rápida passante baudelaireana181, cuja duração nos olhos do sujeito é de apenas uns poucos segundos, instantes imprecisos melhor dizendo:

Declino com a tarde, minha cabeça dói, defendo-me,
a mão estende um comprimido: a água
afoga menos que dor, a mosca,
o zumbido... Disso não morrerei: a morte engana,
como um jogador de futebol a morte engana,
como os caixeiros escolhe
meticulosa, entre doenças e desastres.

A ultra-consciência no tocante à chegada da morte (que, reiteramos, não deve ser entendida como final da existência) causa uma cegueira devido ao grau de conhecimento sobre os meandros destrutivos do modus vivendi no qual ele se encontra; na profusão de cenas burocráticas e assustadoras, surgem, na quinta estrofe, dois versos notáveis pelo seu tom didático: “Estou na cidade grande e sou um homem/na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer”.

O trecho confirma o esvaziamento da possibilidade de existir por meio experiências significativas, de onde a ausência de diferenças entre estar vivo e morrer; encontramos, pois, em um primeiro plano, uma situação fantasmagórica das relações entre ser humano e trabalho, a mais importante, a nosso ver, da reificação182 a que a vida social e biológica se transforma dentro da máquina à qual ela serve.

O excerto destaca-se por, ao contrário dos demais versos, não conter ações, mas explicações; ele carrega, de algum modo, uma função didática sobre os motivos para a coisificação da vida. Com sua clareza “o homem que está na cidade grande e na engrenagem” destoa de ações quase kafkianas, que se desenrolam na primeira estrofe:

Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.

A ruptura com a idéia de uma constituição plena é confirmada também por não haver na voz lírica sinais de desespero, tristeza ou mesmo alívio devido ao desastre. Essa consciência in extremis, passível de ser intitulada de fria, aparece em relevo através de adjetivos que conotam serenidade e lucidez, posto que o sujeito lírico já sabia de todo o desfecho de seu dia sem nenhum pressentimento, outra razão pela qual ele dispensa sentimentos de desespero, posse ou desejo de prolongamento da vida justamente na concretização da morte, ou seja, nas imagens de dilaceramento de seu corpo e dos demais passageiros. Seu discurso, do verso inicial ao encerramento, assemelha-se a uma profecia que se realizará inevitavelmente, uma vez que nada o demoverá:

Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaços de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão perecendo calados.
E mais adiante:
Sou vinte na máquina
que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metros de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu vôo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.

Realça-se no trecho acima o despreendimento do sujeito para com a “vida menor”, que se espraia em elementos concretos (corpos, materiais do avião, lugares); a imagem causa uma sensação de profundo estranhamento por beirar, na sua configuração, uma situação non-sense, semelhante a quadros surrealistas de Salvador Dali. Contudo, se a forma guarda pontos de contato com experimentações estéticas de vanguarda, seu poder de impacto se dá para além da capacidade de romper com valores e preceitos de determinado contexto de produção conservador, como o fizeram as diversas correntes de vanguarda na Europa da primeira metade do século XX. No caso de “Morte no avião”, o contraste advém de uma resposta, menos à literatura brasileira ou a seus pares mais próximos (poetas seus contemporâneos), e mais à aberração a que a vida foi transformada no mundo de mercadorias e melancolias, na conhecida imagem final de “A flor e a náusea”, terceiro poema de A rosa do povo: “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o tédio.”

O fundamental de “Morte no avião” é o mal estar que ele traz, não por seus versos apelarem para a dor, mas sim, e aí resida seu traço ímpar, pela ausência de dor frente à morte iminente e ao doloroso contexto de produção; a resistência se dá pela anestesia; morrer nada significa diante da vida danificada. Ainda que no poema o sujeito lírico tenha consciência disso, ele apenas expressa a tragédia que já se processa no próprio cotidiano; os impasses que ele aponta com sua narração da vida controlada demonstram que esta se tornou fantasmagórica, problema que não diz respeito a um indivíduo somente, no caso, de nosso sujeito lírico, mas a toda uma coletividade:

A morte dispôs poltronas para o conforto
da espera. Aqui se encontram
os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos
,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.

Passando a outras questões formais, podemos afirmar que o poema se debate com o controle da vida, cujo resultado constante é o esvaziamento simbólico e político do ser humano — a ponto de a morte se tornar alegoricamente a concretização do que não existe e não existirá neste jogo de cartas marcadas, ou seja, plenitude, totalidade, felicidade em vida. Nesse ponto, concordamos com Antonio Candido, quando afirma que “Morte no avião”, “Morte do leiteiro” e “Desaparecimento de Luísa Porto” conseguem “extrair do acontecimento ainda quente uma vibração profunda que o liberta do transitório, inscrevendo-o no campo da expressão”183.

O controle do indivíduo pelo capital se apresenta no tema, finamente casado com o ritmo do poema; com seu tom narrativo, “Morte no avião” dispensa rimas ou metrificação, seu andamento é construído por meio de orações curtas, marcadas por intensa pontuação, construindo um andamento controlado, tenso. Necessário lembrar o conteúdo:

Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso desistir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem
ir ao cassino, ler um livro.

Há poucas orações subordinadas, seu modo de composição predominante é a coordenação, o que, devido ao fato de o poema ser narrativo, soa como uma de justaposição de atos, o que dá ao poema um ritmo constante, organizado e de pouca variação:

Almoço. Para quê? Almoço um peixe em ouro e creme.
É meu último peixe em meu último
garfo. A boca distingue, escolhe, julga,
absorve. Passa música no doce, um arrepio,
de violino ou vento, não sei. Não é a morte.
É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.

No trecho acima, encontramos diversas imagens em seqüência construídas por frases nominais muito curtas: “É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.”, as quais aumentam ainda mais a tensão advinda do controle sobre o sujeito lírico. Em alguns momentos, o ritmo chega a ser tão preso que diversas frases são subitamente interrompidas: “Não tomar esse carro. Não seguir para.” Não é à toa que, estrofes antes, ele afirmara: “Estou na cidade grande e sou um homem/na engrenagem.” Há aqui uma ruptura no plano não apenas das expectativas do conteúdo, mas também de linguagem. A sintaxe comum do leitor não é utilizada, mas quebrada pelo sujeito lírico.

Estes traços de composição, marcados pelo controle, se alinham ao conteúdo também atravessado pelo signo da vida reificada. O ápice deste controle está no final do poema, quando, mesmo após a explosão da nave, o eu lírico continua a narrar e mostra que a tragédia dele e de tantas outras pessoas se transforma em notícia, ou seja, em produto venal, mercadoria. A existência se transforma, por um lado, em um simples repetir mecânico, alienado, enquanto a morte rende dividendos aos que se crêem vivos, no caso, os meios de comunicação. Tendo em vista os versos aqui brevemente discutidos, observa-se uma história terrível que, no contexto da modernização conservadora brasileira, se transforma em um ‘horror calculado’.

Concluímos, portanto, que a morte neste poema é apenas um detalhe, uma espécie de fato esperado e inócuo na vida automatizada; na verdade, se fizermos uma leitura alegórica deste poema com seu contexto de produção e recepção, veremos que seu alcance crítico é enorme. Seu caráter de “resistência”184 figura muito além da história do avião em si; seu diálogo se trava de maneira tensa com o Brasil autoritário dos anos 30 e 40 e de séculos antes, o qual leva as pessoas a um cotidiano desvinculado de espaços simbólicos, de criação ou debate políticos, enfim, ações capazes de nos tornar bem mais interessante do que consumidores com direitos garantidos em um cemitério vivaz de mercadorias humanas.

 

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180 Cf. o perspicaz trabalho de A. Alvarez sobre o assunto, em especial, a Parte IV, Suicídio e literatura. In: _____ . O deus selvagem: um estudo sobre o suicídio. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

181 “[...] Um relâmpago, e após a noite! — Aérea beldade,/E cujo olhar me fez renascer de repente,/Só te verei um dia e já na eternidade?//Bem longe, tarde, além jamais provavelmente!/Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,/Tu que eu teria amado — e o sabias demais!” (BAUDELAIRE, Charles. A uma passante. In: ______. As flores do mal. São Paulo: Círculo do livro, s/d).

182 MARX, Karl. Fetichismo e reificação. In: IANNI, Octavio. (Org.). Marx. 7.ed. São Paulo: Ática, 1992.

183 CANDIDO. Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: _____ . Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p.129.

184 BOSI, Alfredo. Poesia resistência. In: _____. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1983.

 

Lírica e autoritarismo em A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, Cristiano Jutgla. São Paulo, Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas - Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, 2008