sexta-feira, 27 de julho de 2012

AUTORRETRATO DE NATÁLIA CORREIA

Natália Correia, Autorretrato. DR
   
     
    
    
    
AUTORRETRATO
    
Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea . Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.
   
Natália Correia, Poemas, 1955
        
   
       
TEXTO DE APOIO
       
Ao mesmo tempo em que o prefixo “auto” faz remissão ao ego e designa atenção a traços comportamentais do ser, o substantivo “retrato” conduz a detalhes relacionados à imagem externa desse ser, promovendo no nome composto uma passagem do interior para o exterior, como se fosse uma autorrepresentação.

No poema “Auto-retrato” também se instaura uma situação de dúvida, de incerteza quanto à figura focalizada. Em vez de um aprofundamento na constituição do corpo, desvendando seus mistérios, em “Auto-retrato” é construída uma moldura do que pode ser o objeto. O poema constitui-se de três momentos: a descrição de traços físicos, como costas, braços e olhos; a indicação da variação da identidade do ser; e a comparação do ser com elementos que têm as particularidades do corpo desse ser.

O texto condensa em uma só estrofe a contemplação do objeto e apresenta rimas ao fim de cada verso (“palpitantes”, “cintilantes” e “emigrantes”; “cobardia”, “dia” e “magia”; “monja” e “esponja”; “ardis” e “infantis”), detalhe recorrente em outras obras de Natália. Isolados, tais signos chamam a atenção para os aspetos de magia e ardil, remetendo à imagem da feiticeira na poesia de Natália. O poema todo corresponde, em suas correlações insólitas, à astúcia daquela que faz magia.

É somente depois de apreender o sentido das associações entre sintagmas como “exílio dum corpo” e “comboio da alma”, por exemplo, que se chegará ao ponto de confluência das imagens do poema. “Aranha de ouro” sustenta uma comparação entre o ser feminino identificado em “fêmea” e “monja” e o animal que fabrica a teia, o elemento que prende. O ser indefinido em torno do qual os versos se constroem prende-se a uma situação de angústia, de choro, de falta de coragem para livrar-se daquele momento de prisão, de negatividade, verificável em “navio da pálpebra”, uma metáfora para a abundância de lágrimas, uma iconização do formato de meia-lua do olho, que carrega lágrimas. Pelo facto de vincular-se a um ambiente aquático (o mar), o navio introduzido no poema estabelece uma aproximação entre as lágrimas e o olho e o mar e o navio. O líquido lacrimal, formando-se em uma região do rosto ao redor dos olhos e depois caindo por esse canal, lembra as águas do mar em contato com o navio. A impossibilidade de o navio afastar-se do mar e continuar realizando suas funções enquanto tal é a mesma que justifica a impossibilidade de um olho separar-se das lágrimas. Os traços típicos de cada elemento levam à associação entre dois deles e à aproximação entre os pares formados.

De um verso para outro, há uma quebra entre sintagmas, de modo que determinados elementos são separados de seus respetivos adjuntos adverbiais. Deste modo, “Os braços calhas cintilantes” são separados de “para o comboio da alma”; “E os olhos emigrantes”, de “no navio da pálpebra”; “Molusco. Esponja”, de “Embebida um filtro de magia”. Essa forma poética conduz a comparações, como se, na divisão entre as partes, estivesse implícita a conjunção “como”: isso é como aquilo ou isso leva à ideia daquilo.

As associações criadas pela poeta e os sentidos delas projetados não se manifestam apenas por meio das imagens suscitadas, mas pelo trabalho com a sintaxe. Há uma condensação de sentidos no poema, à medida que a forma contribui para a sequenciação de associações imagéticas. A aranha, ao ser presa por sua própria teia, passa por um momento parecido com o do ser descrito no poema, amarrado a seus “ardis”, realizados por “atitudes infantis”.
      
Discurso crítico e posicionamento lírico em Orides Fontela e Natália Correia, Priscila Pereira Paschoa. São José do Rio Preto, Universidade Estadual Paulista - Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, 2006, pp. 101-103.
        


 



       
EXERCÍCIO DE LEITURA DO POEMA
       
1. Aponte os elementos físicos referenciados no poema de Natália Correia.

1.1. Em sua opinião são, de facto, componentes de um retrato físico? Justifique.

2. Exponha, por palavras próprias, três traços psicológicos sugeridos pelas metáforas, nesse poema.
       


CHAVE DE RESPOSTAS
       
1. "Espáduas brancas, palpitantes", “os braços calhas cintilantes ...", "olhos emigrantes...", "fêmea",
"(corpo de) molusco",
       
1.1 Estes elementos não compõem, nem sugerem sequer, um retrato físico, porque as características que os definem são metáforas que não apontam para aspetos físicos.
       
2. A inquietude, a ânsia permanente de procura e desejo de ser livre são traços psicológicos sugeridos pelas metáforas que referem os "ombros" como asas que não podem voar, porque estão "exiladas" no corpo, os "braços" como calhas preparadas para a viagem do comboio interior e os "olhos” sempre prontos a emigrar num navio (pálpebras) que não parte.
       
(Plural 10, Elisa C. Pinto, Paula Fonseca e Vera S. Baptista, Lisboa, Lisboa Editora, 2010, p. 137)
       


       
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Apresentação crítica, seleção, notas e sugestões para análise literária de textos de Natália Correia, por José Carreiro. In: Lusofonia – plataforma de apoio ao estudo da língua portuguesa no mundo. Disponível em: https://sites.google.com/site/ciberlusofonia/PT/Lit-Acoriana/Natalia_Correia 



[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/07/27/NATALIACORREIAautorretrato.aspx] 

quarta-feira, 25 de julho de 2012

LEVOU-S'A LOUÇANA, LEVOU-S'A VELIDA (PERO MEOGO)



      


      


[Levou-s’a louçana], levou-s’a velida:


vai lavar cabelos, na fontana fria.


Leda dos amores, dos amores leda.


     


Levou-se: levantou-se


Louçana/velida: bela, formosa



    


    


[levou-s’a velida], Levou-s’a louçana:


vai lavar cabelos, na fria fontana.


Leda dos amores, dos amores leda.


    


    


Fontana: fonte


    


    


Vai lavar cabelos, na fontana fria:


passou seu amigo, que lhi bem queria.


Leda dos amores, dos amores leda.


    










Vai lavar cabelos, na fria fontana:


passa seu amigo, que a muit’amava.


Leda dos amores, dos amores leda.


    










Passa seu amigo, que lhi bem queria:


o cervo do monte a augua volvia.


Leda dos amores, dos amores leda.


    










Passa seu amigo, que a muit’amava:


o cervo do monte volvia a augua.


Leda dos amores, dos amores leda








    


Pero Meogo, CBN 1188/ CV 793

      

ANÁLISE DE UM POEMA MEDIEVAL

Esta cantiga de amigo, paralelística perfeita, constituída por três pares de dísticos hendecassilábicos graves, monórrimos (a última palavra é grave) e refrão monóstico, é, ao mesmo tempo, uma alba, alva ou alvorada («Levou-se», isto é, «levantou-se») que canta o momento do levantar, ao nascer do sol, e um ritual protalâmico, ou de noivado.
          As três sequências narrativas (o levantar, o caminhar para a fonte, onde a donzela lavará os cabelos, e o encontro amoroso com o amigo) da cantiga são portadoras de uma carga afetiva sedutora e fascinante que o refrão veicula e inculca insistentemente, numa feliz aliança entre modo narrativo e lírico: «leda dos amores, dos amores leda».
          Fascina-nos, de facto, como num ecrã mágico, a beleza da jovem: «louçana», «velida», erguendo o seu corpo, levantando-se. Fascina-nos o gesto lento e ritual da lavagem dos cabelos, elemento erótico fundamental do corpo feminino, ritual de purificação, exigido não apenas por necessidades higiénicas e cosméticas, mas também por costumes ancestrais. Fascina-nos, em contraste com este calor do corpo, o frio da água, a «fria fontana», extremos térmicos que conotam o pulsar de uma paixão. Fascina-nos a caracterização interior, ou psicológica, da donzela, na alegria pura do seu primeiro amor: «leda dos amores». Fascina-nos, mesmo, a sua virgindade, simbolizada pela água que vai ser revolvida, suja, pelos cervos do monte, símbolo masculino, responsável pelo brusco quebrar dessa virgindade.
Por um lado, como que se perde o encanto mágico de um mito. Por outro, mais não acontece do que um simples rito de iniciação que inaugura a passagem a uma nova condição:

«Passa seu amigo, que lhi ben queria»;
«Passa seu amigo que a muito amava».

O quadro pintado, num cenário natural, diríamos hoje ecológico, é uma representação intemporal da união sexual entre homem e mulher, na delicadeza poética de quem canta a transcendência idealista dos gestos e dos sentimentos mais simples e, ao mesmo tempo, mais profundos, do ser humano.
                
(Análise de um poema medieval por António Moniz e Olegário Paz,
Ler para ser – percursos em português B, Lisboa, Editorial Presença, 1994, p. 105)
       


QUESTIONÁRIO

1. Compare a cantiga com outras já estudadas, no que diz respeito ao sujeito de enunciação. 

2. Saliente a estrutura narrativa do poema, atentando nos tempos verbais utilizados e na sequência das acções.

3. Explique a simbologia de «fontana», «água», «lavar cabelos» e «cervo».

4. Indique de que modo o penúltimo verso pode ser considerado o desfecho da pequena narrativa que o poema integra.
     



PROPOSTA DE RESOLUÇÃO DE QUESTIONÁRIO

1. Nesta cantiga o sujeito de enunciação é um narrador de 3ª pessoa; nas outras cantigas é uma donzela ou a mãe.

2. O poema tem estrutura narrativa, por causa da abundância de verbos de acção, isto é, ligados a gestos e movimentos que provocam uma visão dinâmica e actuante da realidade.
O presente do indicativo é um tempo cujo modo é o da realidade, do que acontece (presente histórico).
A perifrástica IR + INFINITIVO tem o valor aspectual de realização futura da acção, que pode se imediata ou não (e pode ter também o valor aspectual de realização gradual da acção).
Há também uma sequência de acções própria da narrativa: 1.ª) a donzela levantou-se, 2.ª) vai lavar cabelos, 3.ª) passa seu amigo, 4.ª) o cervo do monte volvia a água.

3. Simbologia:
FONTANA, fonte, local de encontro, símbolo de pureza (nitidez do amor); símbolo de maternidade; nas culturas tradicionais simboliza a origem da vida, do génio, do poder, da graça e da felicidade. Para os gauleses, as fontes eram as divindades que tinham como propriedades curar as feridas e reanimar os guerreiros mortos (cf. Dicionário de Símbolos).
ÁGUA, pureza, inocência; harmonia amorosa entre os dois amados.
LAVAR CABELOS, prefigura o banho nupcial e simboliza a expectativa íntima da moça. Lavar cabelo (ou camisas) em água é uma manifestação da sensualidade feminina, assim como desatar os cabelos tem uma conotação afrodisíaca.
CERVO, veado, símbolo do ardor amoroso, da potência viril e da fecundidade é uma referência ao amigo.

4. O cervo ao volver a água turva-a. Simbolicamente é o amigo que ao passar e ao demorar-se (a conversar?) deixa perturbada até ao fundo a límpida sensualidade inexperiente da amiga.
    
         
          
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[Post original: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2012/07/25/PeroMeogo.aspx]