quarta-feira, 11 de abril de 2007

LITERATURA ORAL TRADICIONAL

  
         



        
Na Literatura Oral Tradicional integram-se enunciados cuja divulgação se faz por via da transmissão oral, por vezes durante séculos, de geração para geração, de comunidade para comunidade, de indivíduo para indivíduo — os contos e as quadras populares, as cantigas infantis, os provérbios, as adivinhas, as anedotas (o género mais vivo) são alguns desses enunciados de que todos nós, certamente, já fomos um dia transmissores.
            
De origem mais ou menos remota e o maior número das vezes de autor anónimo, estes enunciados registam-se na memória dos povos e fazem parte do conjunto das tradições, usos e costumes populares de um país. Podemos dizer que integram um conjunto vasto de tradições a par das festas, das danças, dos jogos, das crenças e das superstições, das rezas, daculinária... A produção e transmissão dos textos da literatura oral encontram-se, normalmente, associadas a outras práticas populares e quotidianas: pensemos, por exemplo, nas quadras “à desgarrada” em festas de aldeia, nas “Janeiras” cantadas de porta em porta em certas regiões, nas “rezas” entoadas em dia de trovoada, nos “romances” recitados por grupos de ceifeiros, ritmando o trabalho, nos contos de fadas que nos embalavam à hora de adormecer ou nas anedotas que contamos numa reunião de amigos. (Guia de Aprendizagem. Português. Ensino Secundário, Ed. ME, 1996 - adaptado)
             
Segundo Manuel Viegas Guerreiro, a “obra literária começa por ter um autor, letrado ou iletrado; depois de boca, cedo se torna anónima. […] Mantém-se o tema fundamental, mas os acidentes mudam e de tal sorte se pode afirmar que, a cada exibição, a peça se recria, o que não significa que ganhe sempre em perfeição. Só neste sentido a temos por colectiva; por outras palavras: uma sucessão de variantes em que muitos colaboram, cada um por sua vez, sem lhes pôr assinatura. E assim se perpetuam, actualizando-se, os temas universais.” (in Para a História da Literatura Popular Portuguesa, Biblioteca Breve, ICP, 1978)
            
Literatura Oral Tradicional integra-se num corpus mais vasto a que se dá o nome de Literatura Popular.


            
          

           



A RECOLHA
             
Qualquer um de nós pode ser prospector de composições orais da tradição popular. Para o efeito, é conveniente que o colector vá munido de um gravador áudio ou, preferencialmente, de câmara de filmar. Depois, deve registar por escrito a produção oral, mas de forma fidedigna, isto é, sem a contaminar com preconceitos de índole erudita que aproximaria por demais o típico enunciado oral de um enunciado escrito normativo. Cabe também ao operador da prospecção registar as seguintes informações:
           
Nome do informador
Naturalidade
Idade
Habilitações literárias
Local
Ano da recolha
Nome do colector
             
Se possível, é bom que se tente também categorizar o género a que pertence a composição recolhida da literatura popular. Neste sentido, veja-se a seguinte proposta de divisão da literatura popular por géneros:
            


             
GÉNEROS DA LITERATURA POPULAR
             
I – LITERATURA POPULAR TRADICIONAL:
             
1.       Literatura Popular Tradicional ORAL:
1.1. Composições líricas:
1.1.1.        Composições de carácter prático-utilitário:
1.1.1.1.              De intenção mágica e religiosa:
a)       Rezas;
b)       Ensalmos, benzeduras, exorcismos;
c)       Cantigas de embalar/ ninar/ de berço.
1.1.1.2.              De sabedoria:
a)       Provérbios, sentenças, máximas...;
b)       Ditos/ expressões esteretipadas.
1.1.1.3.              De intenção meramente utilitária:
· Pregões.
                
1.1.2.        Composições de carácter lúdico:
a)       Fórmulas encantatórias;
b)       Rimas infantis (lengalengas, anfiguris, trava-línguas);
c)       Cantigas;
d)       Adivinhas.
             
1.2. Composições narrativo-dramáticas:
1.2.1.        Mitos;
1.2.2.        Lendas;
1.2.3.        Fábulas;
1.2.4.        Romances (tradicionais);
1.2.5.        Anedotas;
1.2.6.        Varia
          
1.3. Composições dramáticas:
1.3.1.        Tragédias, comédias, autos;
1.3.2.        Testamentos, cegadas;
1.3.3.        Diálogos;
1.3.4.        Varia.
            
2.       Literatura Popular Tradicional ESCRITA:
2.1. Composições de carácter didáctico:
2.1.1.        Almanaques;
2.1.2.        Oráculos, “livros de sonhos”, “modelos de cartas”;
2.1.3.        Varia
2.2. Composições de carácter narrativo-dramático:
· Os “cinco livros do Povo” + 1:
· Princesa Magalona;
· Imperatriz Porcina;
· Donzela Teodora;
· João de Calais;
· Roberto do Diabo;
          
            mais:
· História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França.
2.3. Varia.
           
             
II – LITERATURA POPULAR TRADICIONALISTA:
                
1.       Literatura Popular Tradicionalista ORAL:
1.1. Composições de carácter lírico:
· “Repentistas”;
1.2. Composições de carácter narrativo:
· “Repentistas”;
1.3. Composições de carácter dramático:
· “Despiques”, “cantigas ao desafio”.
1.4. Varia.
              
2.       Literatura Popular Tradicionalista ESCRITA:
2.1. Composições de carácter lírico:
· “Poetas populares” (A. Aleixo, M. Pardal);
2.2. Composições de carácter narrativo-dramático:
· Poetas da “literatura de cordel” (B. Dias).
                
(Proposta de João David Pinto-Correia in Os Romances Carolíngios da Tradição Oral PortuguesaINIC, capº 2  e desenvolvida na publicação: Literatura Oral Tradicional . Conceitos, Problemas, Perspectivas.)
           
               


             
               POETAS POPULARES
             
                            

António Aleixo (1899-1949)
                
                
Ser artista é ser alguém!
Que bonito é ser artista...
Ver as coisas mais além
Do que alcança a nossa vista!
              
                      
              António Aleixo em resposta quando alguém o chamou de “poeta”:
                 
Poeta, não, camarada,
Eu também sou cauteleiro;
Ser poeta não dá nada,
Vender jogo dá dinheiro.
                   
             
               
Catarina Chitas (Ti Chitas), 1913
                 


                  
Toda a vida fui pastora / e sou muito de vontade
Eu nasci p’ra camponesa / não foi p’ra ir pr’à cidade
Guardo as minhas cabrinhas / é uma vida que me encanta
Eu nasci p’ra pastorinha / não foi para ser estudanta
Guardo as minhas cabrinhas / é a minha profissão
Sempre cantando e rindo / estudando a minha canção
Estudando a minha canção / com prazer e alegria
Guardo as minhas cabrinhas / no rochedo de Penha Garcia
Guardo as minhas cabrinhas / com bom leite e bons queijinhos
Passo o meu resto do tempo / a brincar com os chibinhos
E a brincar com os chibinhos / é uma vida que é modesta
O la lai lari ló léla, / não há vida como esta.
               
                 


             
            RELATO DE UMA RECOLHA
                 
No mês de Dezembro de 1992, fiz a recolha de um pequeno corpus de Literatura Oral Tradicional.
            
Ao expressar a vontade de fazer tal recolha a meus pais, estes indicaram-me um meu tio-avô, o mais velho da freguesia, que costumava saber histórias antigas – embora não tantas quanto o seu irmão (que vem a ser o meu avô materno, Dionísio de Aguiar). Esse tio-avô, de 89 anos, e de nome Joaquim Mendonça de Aguiar, sempre viveu na freguesia. Aos dezanove anos aprendeu a ler e a escrever, à noite, durante a época de Inverno, momento do ano em que há menos trabalho. Na tropa já escrevia à família.
                
Numa tarde de Domingo (dia 20), fui à casa desse familiar. Comigo ia a minha irmã que, por viver na freguesia a tempo inteiro, de algum modo, poderia tirar maior partido da convivência que mantinha com a população. De facto, foi uma ajuda importante na recolha, não só pelo à vontade com que abordou o informador, como também me ajudou no discernimento das palavras que o informador proferia, porque, muitas vezes, eram imperceptíveis devido ao cansaço causado pela idade avançada, falta da maior parte dos dentes e uso ‘cerrado’ da pronúncia micaelense.
                    
Fui munido apenas com o gravador-audio, cassetes e duas folhas de papel A4 para tomar eventuais notas. Contudo, no início da entrevista reparei que seria difícil, senão impossível, transcrever algumas das partes, pelo que recorri à transcrição imediata daquilo que o meu tio-avô me ditava. Aliás, este, por desconhecer que a sua voz estava a ser gravada, achou por bem que eu tomasse as devidas notas, pois, tão naturalmente, concluiu que eu não poderia fixar na memória todas as quadras que me dizia.
                   
Numa segunda ida a casa de meu tio, já fui sozinho. Distou cerca de uma semana entre a primeira e a segunda recolha (que foi no dia 28).
                 
Se antes o tio Joaquim algumas vezes se mostrava esquecido, não sendo capaz de contar as ‘histórias’ até ao fim, da segunda vez agravou-se essa dificuldade, porque, nessa tarde de segunda-feira, o tio encontrava-se a cavar num pequeno quintal adjacente à sua casa e, por isso, estava cansado.
                
Ainda descansámos algum tempo antes de ele começar a dizer as suas quadras.
              
Desta vez optei por mostrar o gravador-audio a meu tio, porque ficara com a impressão de que o tio Joaquim era bastante solícito e, até, gostava de dar a conhecer o seu manancial de Literatura Oral Tradicional. Não iria, portanto, inibir-se perante o facto de estar a ser gravada a sua voz. Ele referiu mesmo o agradável caso de um dia, durante uma consulta com a sua médica, ter-lhe citado algumas quadras. No final da recolha, meu tio insistiu em ouvir a sua voz desde o início da fita.
              
Da recolha resultaram enunciados fragmentários, cujo computo geral foi o seguinte: três "dramas", dois "contos", uma "cantiga", quatro "cantigas narrativas", uma "cantiga de tipo dramático", uma "trova" ("varia"), uma "rima-fábula" e cinco "quadras".
               
Eis algumas quadras soltas recolhidas:
              
O Inferno já está cheio
De fora até número um.
É pra quem arma enredos
Às filhas de cada um
              
O atemilho tesourado
Arrebenta com sustança,
Se o teu coração está firme
Este meu não tem mudança.
                
Já se acabou o chá
Que caiu na nossa roça
Estava bom pra apuxar
No arado de uma carroça.
             
Onde eu sonho que me piso
Acordo naquele riso
Apego-me à cabeceira
Durmo daquela maneira.
           
               
Informador: Joaquim Mendonça de Aguiar
Naturalidade: Achada (freguesia), Feteira Grande (lugar)
Idade: 89
Sem habilitações literárias formais, mas possuidor de alguns conhecimentos básicos
Local da recolha: Santana (freguesia), Feteira Grande (lugar)
Ano da recolha: 1992
Colector: José Maria de Aguiar Carreiro
                    


                    

           
              


No Boletim Cultural nº2, de 1986, editado pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, propõe-se uma útil grelha para usar aquando do levantamento de literatura popular:
                      
LEVANTAMENTO DE HISTÓRIAS/NARRATIVAS/LENDAS
Local
Freguesia
Tema
Título
Situação em que é contada
História/narrativa/lenda
              
               
             
Nome do informador
Idade
Profissão
Habilitações
Origem
Há quanto tempo vive na zona
Onde/de quem aprendeu a história/narrativa/lenda
Conhecida e citada por: ¨ velhos/ ¨ crianças / ¨ jovens/ ¨ mulheres/ ¨ homens
¨ É de citação corrente na zona
¨ Ajusta-se aos usos e costumes locais do presente
Há quanto tempo se julga ser conhecido?
Obs. gerais/significado de palavras/interpretação
              
                
                
Acção
Operador (colector)
Data
                  
                    
LEVANTAMENTO DE BRUXEDOS/MAGIAS/REZAS/BENZEDURAS
Local
Freguesia
Nome do bruxedo/magia/reza/benzedura
Doença/mal
Bruxedo/magia/reza/benzedura
          
         
         
Preceitos de utilização
           
        
O tratamento é acompanhado de uma receita:  ¨ não / ¨ sim (v. doc.)
Nome do informador
Idade
Profissão
Habilitações
Origem
Há quanto tempo vive na zona
Onde/de quem aprendeu o bruxedo/magia/reza/benzedura
Conhecida e praticado por:
¨ velhos/ ¨ crianças / ¨ jovens/ ¨ curandeiros/ ¨ mulheres/ ¨ homens
Relação entre a comunidade e a pessoa que conhece e pratica:
Pagamento utilizado na compra do serviço
¨ É de citação corrente na zona
¨ Ajusta-se aos usos e costumes locais do presente
Há quanto tempo se julga ser conhecido?
Obs. gerais/significado de palavras/interpretação
       
          
            
Acção
Operador (colector)
Data
                  
                 
LEVANTAMENTO DE PROVÉRBIOS/DITADOS/DITOS
Local
Freguesia
Tema
Título
Situação em que é contada
Provérbio/ditado/dito
         
          
             
História(s) a propósito/Fundamento
         
          
          
Nome do informador
Idade
Profissão
Habilitações
Origem
Há quanto tempo vive na zona
Onde/de quem aprendeu o provérbio/ditado/dito
Conhecida e citada por: ¨ velhos/ ¨ crianças / ¨ jovens/ ¨ mulheres/ ¨ homens
¨ É de citação corrente na zona
¨ Ajusta-se aos usos e costumes locais do presente
Há quanto tempo se julga ser conhecido?
Obs. gerais/significado de palavras/interpretação
             
           
              
Acção
Operador (colector)
Data
                  
                
              
                     
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CARREIRO, José. “Literatura Oral Tradicional”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 11-04-2007. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2007/04/literatura-oral-tradicional.html (2.ª edição) (1.ª edição: http://comunidade.sol.pt/blogs/josecarreiro/archive/2007/04/11/LOT.aspx)



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