sábado, 28 de março de 2015

Um pouco mais de sol - eu era brasa (Mário de Sá-Carneiro)

[Mário+de+Sá+Carneiro+II++]




QUÁSI

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quási vivido...

Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princípio e o fim – quási a expansão...
Mas na minh’alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
– Ai a dor de ser-quási, dor sem fim... –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos d’alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos d’herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

...................................................................
...................................................................

Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Mário de Sá-Carneiro, Paris, 13 de maio de 1913


GLOSSÁRIO
elançou (verso 16) – ergueu.
entanto (verso 12) – no entanto.
ogivas (verso 22) – em arquitetura, figuras formadas por dois arcos iguais que se cortam na parte superior, formando um ângulo agudo.
quebranto (verso 25) – abatimento físico, cansaço ou prostração.





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QUASE: A TORTURA DO INCOMPLETO

Inserido na obra intitulada Dispersão, esse poema reflete a dor que esteve mais presente na lírica do referido poeta português: a dor do incompleto. Tendo como vocábulo-chave o advérbio quase, exposto já no título, o poema configura essa dor através de um eu lírico que ocupa uma posição existencial intermediada por dois polos opostos: o além, representando o desejo de atingir um ideal, e o aquém, expressando a frustração desse desejo.

Ler mais: Moama Lorena de Lacerda Marques, Graphos. João Pessoa, v. 8, n. 1, Jan./Jul./2006 – ISSN 1516-1536

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Vemos, nas metáforas desta poesia, a aflição e a dor daquele que, se achando parte de uma fratria se percebe não sendo parte de nada; que querendo ser ótimo se vê constantemente jogado no lugar do nada, do dejeto, se percebendo um blefe de ser. Vemos, na gradação crescente das metáforas, a angústia que aflora e assola o neurótico obsessivo diante da paralisia dos rituais, diante da angústia que o desejo causa quando este aflora na sua forma viva, sem estar dissociado, racionalizado, ressecado. Um obsessivo é um quase, titubeando entre uma imagem idealizada de completude e de excelência e a certeza interna de que ninguém jamais é assim, logo ele é um passo que faltou para poder ser tudo ou todo... Como nos diz Sá- Carneiro, o neurótico obsessivo seria o grande sonho – ó dor! – quase vivido, o grande sonho despertado em bruma, o quase amor, quase triunfo e a chama, quase o princípio e o fim, quase expansão e, diante do quase, o obsessivo foi só ilusão! O obsessivo, portanto, é aquele que diz de si “eu falhei-me entre os mais, falhei em mim... para atingir faltou-me um golpe de asas, se ao menos eu permanecesse aquém”, mesmo que este “ser aquém” real esteja recoberto nos entulhos das defesas obsessivas, mesmo que esteja camuflado ou transmutado em excelência falseada

O anel que tu me destes era vidro e se quebrou, o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou: Quando o Desejo se Degrada em Necessidade. Reflexões Psicanalíticas sobre a Neurose Obsessiva”, Maria Vitória Mamede Maia e Nadja Nara Barbosa Pinheiro. In: Interação em Psicologia, Curitiba, jan./jun. 2008, 12(1), p. 125-131.






QUESTIONÁRIO

Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. No poema, assiste-se a um drama que a palavra «quási» sintetiza.
Explique, de acordo com o sentido do poema, em que consiste esse drama vivido pelo sujeito poético.
2. Estabeleça a relação de sentido entre o verso «Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim» (v. 15) e o verso «Asa que se elançou mas não voou...» (v. 16).
3. Releia os dois versos iniciais da primeira e da última estrofes.
Explicite a alteração de sentido que é produzida pela mudança de tempo verbal.
4. Indique quatro dos processos utilizados para marcar o ritmo do poema, fundamentando a resposta com elementos do texto.

Teste Intermédio de Português 12º Ano, Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março. GAVE, 2012-02-27
http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/EEspecial/teste_interm_port_12_ano_fev2012.pdf 

CENÁRIO DE RESPOSTAS:

1. A palavra «quási» simboliza a frustração do sujeito poético. Esta frustração:
– resulta da impossibilidade de atingir a plenitude – «Um pouco mais de sol – eu era brasa / Um pouco mais de azul – eu era além.» (vv. 1 e 2);
– consiste na incapacidade de viver o sonho – «O grande sonho – ó dor! – quási vivido...» (v. 8);
– manifesta-se pela sensação de ficar a meio, nem «além» (vv. 2 e 30) nem «aquém» (vv. 4 e 32);
– configura uma inabilidade radical – «falhei em mim» (v. 15).

2. No verso 15, «Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim», o sujeito poético revela consciência de um percurso marcado pela incapacidade de cumprir o seu objetivo.
Tal consciência é ilustrada pela imagem presente no verso 16, que representa o esforço da ave que se lança para o ar, mas não consegue levantar voo.

3. A mudança de tempo verbal (do pretérito imperfeito do modo indicativo para o pretérito mais-que-perfeito do modo indicativo) acentua a consciência da incapacidade e aponta para a desistência final:
– na primeira estrofe, o uso da forma verbal «era» evoca um tempo em que houve a possibilidade de alcançar a plenitude;
– na última estrofe, o uso da forma verbal «fora» exprime a impossibilidade, já verificada, de alcançar essa plenitude.
Nota – Não é obrigatório que o aluno identifique os tempos verbais.

4. O ritmo do poema é marcado pela utilização de processos como:
– a anáfora (por exemplo, vv. 1-2; 9-10; 29-30);
– as repetições lexicais (por exemplo, «quási», «falhei»);
– a circularidade na construção (a primeira e a última estrofes);
– o predomínio de uma estrutura binária (por exemplo, vv. 15, 16, 21, 22);
– a enumeração (por exemplo, vv. 17 a 20);
– a pontuação que assinala pausas prolongadas (travessão, reticências…);
– as interjeições (vv. 8 e 14);
– a alternância entre rima cruzada e interpolada;
– o uso de uma métrica regular (versos decassílabos).

Critérios de Correção do Teste Intermédio de Português 12º Ano, GAVE, 2012-02-27



Poderá também gostar:

"O suicida acidental", Luís Miguel Queirós. In: Ípsilon, 2015-12-25.


As cartas de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, agora publicadas numa edição crítica, mostram um poeta activo nas vanguardas do seu tempo — e com uma energia criativa e um sentido de humor pouco compatíveis com o estereótipo do suicida predestinado.


                                              

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