QUÁSI
Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quási vivido...
Quási o amor, quási o triunfo e a chama,
Quási o princípio e o fim – quási a expansão...
Mas na minh’alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo... e tudo errou...
– Ai a dor de ser-quási, dor sem fim... –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos d’alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos d’herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
...................................................................
...................................................................
Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa...
Se ao menos eu permanecesse
aquém...
Mário de Sá-Carneiro,
Paris, 13 de maio de 1913
GLOSSÁRIO
elançou (verso 16) – ergueu.
entanto (verso 12) – no entanto.
ogivas (verso 22) – em arquitetura, figuras formadas por dois arcos iguais
que se cortam na parte superior, formando um ângulo agudo.
quebranto (verso 25) – abatimento
físico, cansaço ou prostração.
.
QUASE: A
TORTURA DO INCOMPLETO
Inserido na
obra intitulada Dispersão, esse poema reflete a dor que esteve mais presente na
lírica do referido poeta português: a dor do incompleto. Tendo como
vocábulo-chave o advérbio quase, exposto já no título, o poema configura essa
dor através de um eu lírico que ocupa uma posição existencial intermediada por
dois polos opostos: o além, representando o desejo de atingir um ideal, e o
aquém, expressando a frustração desse desejo.
Ler
mais: Moama Lorena de Lacerda Marques, Graphos. João Pessoa, v. 8, n. 1, Jan./Jul./2006 – ISSN
1516-1536
*
Vemos, nas metáforas desta poesia, a aflição e a dor
daquele que, se achando parte de uma fratria se percebe não sendo parte de
nada; que querendo ser ótimo se vê constantemente jogado no lugar do nada, do
dejeto, se percebendo um blefe de ser. Vemos, na gradação crescente das
metáforas, a angústia que aflora e assola o neurótico obsessivo diante da paralisia
dos rituais, diante da angústia que o desejo causa quando este aflora na sua
forma viva, sem estar dissociado, racionalizado, ressecado. Um obsessivo é um
quase, titubeando entre uma imagem idealizada de completude e de excelência e a
certeza interna de que ninguém jamais é assim, logo ele é um passo que faltou
para poder ser tudo ou todo... Como nos diz Sá- Carneiro, o neurótico obsessivo
seria o grande sonho – ó dor! – quase vivido, o grande sonho despertado em
bruma, o quase amor, quase triunfo e a chama, quase o princípio e o fim, quase
expansão e, diante do quase, o obsessivo foi só ilusão! O obsessivo, portanto,
é aquele que diz de si “eu falhei-me entre os mais, falhei em mim... para
atingir faltou-me um golpe de asas, se ao menos eu permanecesse aquém”, mesmo
que este “ser aquém” real esteja recoberto nos entulhos das defesas obsessivas,
mesmo que esteja camuflado ou transmutado em excelência falseada
“O anel que tu me destes era vidro e se quebrou, o amor que tu
me tinhas era pouco e se acabou: Quando o Desejo se Degrada em Necessidade.
Reflexões Psicanalíticas sobre a Neurose Obsessiva”, Maria Vitória Mamede
Maia e Nadja Nara Barbosa Pinheiro. In: Interação
em Psicologia, Curitiba, jan./jun. 2008, 12(1), p. 125-131.
QUESTIONÁRIO
Apresente,
de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.
1. No poema, assiste-se a um drama que a palavra
«quási» sintetiza.
Explique,
de acordo com o sentido do poema, em que consiste esse drama vivido pelo
sujeito poético.
2. Estabeleça a relação de sentido entre o verso «Eu
falhei-me entre os mais, falhei em mim» (v. 15) e o verso «Asa que se elançou
mas não voou...» (v. 16).
3. Releia os dois versos iniciais da primeira e da
última estrofes.
Explicite
a alteração de sentido que é produzida pela mudança de tempo verbal.
4. Indique quatro dos processos utilizados para
marcar o ritmo do poema, fundamentando a resposta com elementos do texto.
Teste Intermédio de Português 12º Ano, Decreto-Lei n.º 74/2004, de 26 de março. GAVE, 2012-02-27
http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/EEspecial/teste_interm_port_12_ano_fev2012.pdf
http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/EEspecial/teste_interm_port_12_ano_fev2012.pdf
CENÁRIO
DE RESPOSTAS:
1. A
palavra «quási» simboliza a frustração do sujeito poético. Esta frustração:
– resulta da
impossibilidade de atingir a plenitude – «Um pouco mais de sol – eu era brasa /
Um pouco mais de azul – eu era além.» (vv. 1 e 2);
– consiste na
incapacidade de viver o sonho – «O grande sonho – ó dor! – quási vivido...» (v.
8);
– manifesta-se
pela sensação de ficar a meio, nem «além» (vv. 2 e 30) nem «aquém» (vv. 4 e
32);
– configura uma
inabilidade radical – «falhei em mim» (v. 15).
2. No
verso 15, «Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim», o sujeito poético revela
consciência de um percurso marcado pela incapacidade de cumprir o seu objetivo.
Tal consciência é
ilustrada pela imagem presente no verso 16, que representa o esforço da ave que
se lança para o ar, mas não consegue levantar voo.
3. A
mudança de tempo verbal (do pretérito imperfeito do modo indicativo para o
pretérito mais-que-perfeito do modo indicativo) acentua a consciência da
incapacidade e aponta para a desistência final:
– na primeira
estrofe, o uso da forma verbal «era» evoca um tempo em que houve a
possibilidade de alcançar a plenitude;
– na última
estrofe, o uso da forma verbal «fora» exprime a impossibilidade, já verificada,
de alcançar essa plenitude.
Nota – Não é
obrigatório que o aluno identifique os tempos verbais.
4. O
ritmo do poema é marcado pela utilização de processos como:
– a anáfora (por
exemplo, vv. 1-2; 9-10; 29-30);
– as repetições
lexicais (por exemplo, «quási», «falhei»);
– a circularidade
na construção (a primeira e a última estrofes);
– o predomínio de
uma estrutura binária (por exemplo, vv. 15, 16, 21, 22);
– a enumeração
(por exemplo, vv. 17 a 20);
– a pontuação que
assinala pausas prolongadas (travessão, reticências…);
– as interjeições
(vv. 8 e 14);
– a alternância
entre rima cruzada e interpolada;
– o uso de uma
métrica regular (versos decassílabos).
Critérios de
Correção do Teste Intermédio de Português 12º Ano, GAVE, 2012-02-27
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