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terça-feira, 18 de julho de 2023

Acordo para a morte, Carlos Drummond de Andrade


 

MORTE NO AVIÃO

Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.

Não morrerei agora. Um dia
inteiro se desata à minha frente
Um dia como é longo. Quantos passos
na rua, que atravesso. E quantas coisas
que há no tempo, acumuladas. Sem reparar,
sigo meu caminho. Muitas faces
comprimem-se no caderno de notas.

Visito o banco. Para quê
esse dinheiro azul se algumas horas
mais, vem a polícia retirá-lo
do que foi meu peito e está aberto.
Mas não me vejo cortado e ensangüentado.
Estou limpo, claro, nítido, estivai.
Não obstante caminho para a morte.

Passo nos escritórios. Nos espelhos,
nas mãos que apertam, nos olhos míopes, nas bocas
que sorriem ou simplesmente falam eu desfilo.
Não me despeço, de nada sei, não temo:
a morte dissimula
seu bafo e sua tática.

Almoço. Para quê? Almoço um peixe em ouro e creme
É meu último peixe em meu último
garfo. A boca distingue, escolhe, julga,
absorve. Passa música no doce, um arrepio
de violino ou vento, não sei. Não é a morte.
É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.

Estou na cidade grande e sou um homem
na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer.
Peço passagem aos lentos. Não olho os cafés
que retinem xícaras e anedotas,
como não olho o muro do velho hospital em sombra.
Nem os cartazes. Tenho pressa. Compro um jornal. É pressa,
embora vá morrer.

O dia na sua metade já rota não me avisa
que começo também a acabar. Estou cansado.
Queria dormir, mas os preparativos. O telefone.
A fatura. A carta. Faço mil coisas
que criarão outras mil, aqui, além, nos Estados Unidos.
Comprometo-me ao extremo, combino encontros
a que nunca irei, pronuncio palavras vãs,
minto dizendo: até amanhã. Pois não haverá.

Declino com a tarde, minha cabeça dói, defendo-me,
a mão estende um comprimido: a água
afoga a menos que dor, a mosca,
o zumbido... Disso não morrerei: a morte engana,
como um jogador de futebol a morte engana.
como os caixeiros escolhe
meticulosa, entre doenças e desastres.

Ainda não é a morte, é a sombra
sobre edifícios fatigados, pausa
entre duas corridas. Desfalece o comércio de atacados,
vão repousar os engenheiros, os funcionários, os pedreiros.
Mas continuam vigilantes os motoristas, os garçons,
mil outras profissões noturnas. A cidade
muda de mão, num golpe.

Volto à casa. De novo me limpo.
Que os cabelos se apresentem ordenados
e as unhas não lembrem a antiga criança rebelde.
A roupa sem pó. A mala sintética.
Fecho meu quarto. Fecho minha vida.
O elevador me fecha. Estou sereno.

Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso desistir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem,
ir ao cassino, ler um livro.

Mas tomo o carro. Indico o lugar
onde algo espera. O campo. Refletores.
Passo entre mármores, vidro, aço cromado.
Subo uma escada. Curvo-me. Penetro
no interior da morte.

A morte dispôs poltronas para o conforto
da espera. Aqui se encontram
os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicklets, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.

Ou quase. Primeiro a morte particular,
restrita, silenciosa, do indivíduo.
Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaço de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão perecendo calados.
Somos um em vinte, ramalhete
de sopros robustos prestes a desfazer-se.

E pairamos,
frigidamente pairamos sobre os negócios
e os amores da região.
Ruas de brinquedo se desmancham,
luzes se abafam; apenas
colchão de nuvens, morros se dissolvem,
apenas
um tubo de frio roça meus ouvidos,
um tubo que se obtura: e dentro
da caixa iluminada e tépida vivemos
em conforto e solidão e calma e nada.

Vivo
meu instante final e é como
se vivesse há mui; os anos
antes e depois de hoje,
uma contínua vida irrefreável,
onde não houvesse pausas, síncopes, sonos,
tão macia na noite é esta máquina e tão facilmente ela corta
blocos cada vez maiores de ar.

Sou vinte na máquina
que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metros de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu vôo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.

Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo atmosférico,
golpe vibrado no ar, lâmina de vento
no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.

 

Carlos Drummond de Andrade, A Rosa do Povo, 1945

 

Entre a “vida besta” e o “vasto mundo” há um poeta melancólico

No poema quase crônica “Morte no avião” (OC, 2002, p. 176-179), dado o seu caráter narrativo de um facto do cotidiano, deparamo-nos com a alienação do indivíduo, preso a seus afazeres domésticos, com a consciência próxima do fim. Vivemos uma vida inautêntica no mundo, pois nele somos lançados sem nos terem consultado sobre nossas pretensões e nossos desejos, motivo pelo qual nos coisificamos e nos tornamos angustiados.

O primeiro verso remete-nos ao “Ser-para-a morte”, expressão cunhada pelo filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) que concebia a morte como um fenômeno existencial entranhado ao ser do homem como “ser-no-mundo” e como “ser-de-projeto”.

O mistério e a incerteza caracterizam a morte. Desde que a humanidade existe, pensar a morte é recorrente. Ela é representada em seu sentido mais negativo: monstros em pântanos sombrios, esqueletos e corpos putrefatos. Afinal, o homem é o único animal que tem consciência da própria morte. É também aquele dotado de linguagem. A relação entre linguagem e morte foi estudada pelo filósofo italiano Giorgio Agamben (1942), na obra A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade21 (2006). Ele concebe o homem como um animal dotado da faculdade da linguagem e da consciência da morte, ou melhor, o homem é falante e mortal.

Morrer representa o medo do homem por aquilo que não se pode conhecer; um desafio para as mais diferentes culturas que buscam respostas nos mitos, nas artes, na filosofia e na religião, para tornar compreensível o incompreensível. Para os cristãos e parte dos judeus que acreditavam na ressurreição, a morte era vista como a passagem para uma outra dimensão, a transposição ao eterno sofrimento e a expiação, ou o acesso ao eterno gozo, reservados a um pequeno grupo de bem-aventurados.

A morte é um dos grandes temas de discussão do Existencialismo, corrente filosófica da qual o filosofo alemão Martin Heidegger faz parte. O autor de Ser e tempo (1927) acreditava que é na morte que o homem se totaliza. Ele argumentava que devemos manter um estado de vigília constante em relação a tudo aquilo que nos afeta em nosso cotidiano. Não só. Enquanto “ser-no-mundo”, o homem busca o significado do que é o Ser.

“Morte no avião” é um longo poema formado de treze estrofes de versos livres prosaicos, isto é, “quase se confundindo com o ritmo na prosa, para mostrar que a poesia está na essência no que é dito e na sugestão, ou no choque das palavras escolhidas, não nos recursos formais” (CANDIDO; CASTELLO, 1981, p. 20), aponta para essa totalização com a chegada da morte. O eu lírico narra de forma banal (“Barbeio-me, visto-me, calço-me”) seu último dia de vida: “Almoço. Para quê?”. A terceira estrofe retrata o cotidiano agitado do homem moderno: “O telefone. / A fatura. / A carta. Faço mil coisas / que criarão outras mil coisas [...]”. Produto de guerras, de autoritarismo, como uma mera engrenagem do mundo trabalho, o homem se compromete com várias atividades que o sufocam e, em muitos casos, não consegue realizar.

É perceptível o vazio que domina essa voz que narra seu dia (presente) com o pensamento preso em sua morte (futuro). O eu lírico ainda olha a cidade e ainda tem a oportunidade de “adiar a morte”. Somos regidos pelo livre arbítrio, ou melhor, em tudo o que fazemos temos escolhas. A viagem rumo à morte, como uma simples etapa da vida, é triste e instaura um sentimento de vazio na alma humana, motivo pelo qual o eu-lírico questiona: “Por que nascemos para amar, se vamos morrer?” (OC, 2002, p. 1242). A morte em Drummond não é vista como algo mórbido, triste ou fantasmagórico. É tão somente uma travessia.

Heidegger afirmava que “a essência da linguagem nos intima e nos alcança e, com isso, nos sustenta, se é que a morte faz parte do que nos intima” (2003, p. 170). O filósofo acreditava que a morte não deveria ser tratada como um fenômeno natural, mas como um fenômeno existencial, ou seja, inerente ao homem. A morte não é sinônimo de morbidez ou desesperança. O “ser-para-a-morte” entende que ela não é um desejo ou uma escolha, mas uma condição irreversível e intransferível. Ele compreende que ela é libertação e completude da existência humana.

O homem moderno tem em si a sensação do desamparo, pois está inserido em ambiente apartado de elementos sagrados. Esse “ser-para-a-morte” é o único que tem experiência com a linguagem. É através dela que se expressa e, dessa forma, nos possibilita conhecê-lo.

Nessa busca pelo entendimento das questões que envolvem a natureza humana, morte e poesia, Martin Heidegger valeu-se do questionamento de um outro alemão, o poeta Friedrich Hölderlin22 (1770-1843) - “Y para qué poetas en tempos de penuria?” – para refletir sobre “a la era a la que nosotros mismos pertenecemos todavía”23 (HEIDEGGER, 2010, p.199). Com o desaparecimento de “Hércules, Dioniso y Cristo” (idem, p.199), a noite e a escuridão abateram-se sobre os homens, pois houve um apagamento de “un esplendor de divinidad”24(idem, p.199). Trata-se, pois, de um período tão pobre da humanidade que “cada vez se torna más indigente”25 (idem, ibidem) que, nem mesmo se consegue sentir a falta de Deus e o mundo “queda privado del fundamento como aquel que funda”26 (idem, ibidem), como por exemplo, “Amar Deus sobre todas as coisas”, já que “Deus só pede nosso amor” (BIBLIA SAGRADA, Mt. 22, 34-40, 1994, p. 1058-1059). Uma sociedade sem princípios, valores e fundamentos é uma sociedade suspensa em um precipício. Quando os homens se afastam da dimensão do sagrado, eles adentram para outra: a do desengano, da solidão e do desamparo. A morte passa, então, a ser um desejo vital, como expresso no poema “Morte no avião”. Ela passa a ser interpretada como um processo de salvação do homem em meio a um ambiente impregnado pela escuridão.

Um poeta moderno como Drummond cantou a morte, porque experienciou um tempo de penúria, indigência, desigualdades e fuga dos deuses. Sua arte volta-se para si mesma, porque a reflexão é o caminho mais viável para compreender uma sociedade em meio à falta e à ausência de valores que possam nortear a humanidade. Em um ambiente marcado por tensões, conflitos e combates, em que grupos querem fazer da Ditadura uma regra e não um “estado de exceção”, a morte é cantada, portanto, como uma solução para sair de um mundo em que a indigência prevalece.

Uma pergunta ainda carece de ser respondida: para que poetas em tempos de penúria? Heidegger responde-nos: cantar, “prestar atención al rastro de los deuses huidos”27

(idem, p. 201). O canto é o único meio que o poeta dispõe, mas em Drummond “Ele é tão baixo que sequer o escuta / ouvido rente ao chão”. Ao mesmo tempo “é tão alto / que as pedras o absorvem” (OC, 2002, p.115-116). Os poetas eternizam sentimentos e pessoas, relevam opressões, criam espaços de fabulação, provocam os leitores, comovem e fazem refletir por meio da palavra, mas sobretudo resgatam a consciência daqueles que perderam a esperança de um mundo mais justo. “Es por eso por lo que los poetas en tiempos de penuria deben decir expresa y poéticamente la esencia de la poesía. Donde ocurre esto se puede presumir una poesía que se acomoda al destino de la era”28 (idem, p. 201-202). A poesia drummondiana foi uma voz reflexiva no século XX.

Além do trabalho com a palavra, condição sine qua non para ser poeta, Drummond a usou para interrogar os homens e suas ações, para ponderar seu estar no mundo, para exaltar os excluídos, para se opor às injustiças e denunciar o “medo da morte e o medo de depois da morte” (OC, 2002, p. 73). Embora seja uma tarefa penosa o retorno às raízes primitivas humanas - esperança, solidariedade, amor ao próximo, comunhão com a natureza – ainda é possível mediante a reflexão filosófica da poesia. Como a humanidade não está pronta ou acabada no continuum da história, o poeta mesmo depois de morto tem no seu canto seu bem mais precioso, capaz de humanizar seus semelhantes.

As reflexões drummondianas se dão por meio da linguagem e o trabalho erigido com ela impressiona, por isso, é imprescindível destacá-lo, já que a linguagem está em toda parte e fala, ela é, portanto, a matéria-prima da poesia e do poeta. Somos animais racionais, simbólicos e detentores de linguagem. E mais do que ninguém, os poetas são criadores de palavras, contempladores sensíveis e críticos do mundo e produtores do pensar poético.

Em Carta sobre o humanismo (2005), Heidegger declara que estamos longe de pensar o agir e que sua essência é o consumar. Somente se pode consumir aquilo que já é – o ser. O pensar é, então, o mecanismo que “consuma a relação do ser com a essência do homem” (p. 7), ou seja, o pensamento é “um compromisso do ser”, tal compromisso se efetiva na ação para a verdade do Ser.

O pensar não produz, tampouco efetua esta relação, mas é através dele que o ser tem acesso à linguagem. “A linguagem é a casa do ser. Nesta habitação do ser mora o homem” (idem, p.8). Sendo assim, a linguagem faz parte da dimensão constitutiva do ser, é o homem, pois, o único animal dotado de linguagem. Tudo aquilo que existe, só existe porque pode ser dito. São os intelectuais e os poetas que nos dizem e nos clamam a também dizer, eles são os responsáveis por manter e preservar esta habitação. Isso porque “a linguagem cai sob a ditadura da opinião pública. Esta decide o que é compreensível e o que deve ser desprezado como incompreensível” (idem, p.14). Depois que os meios de comunicação legitimam ou não uma dada linguagem é difícil desconstruí-la.

A rosa do povo (1945) foi um esmerado e profundo trabalho com a linguagem e sua publicação se deu em um dos momentos mais tristes de nossa História, período em que os fluxos comunicativos eram filtrados, domesticados e manipulados pela classe dominante. Torna-se preocupante, assim, o esvaziamento e a corrosão da linguagem em si. A consequência desse facto é drástica: “[...] uma ameaça à essência do homem” (idem, p. 15). Sem linguagem, perderíamos nossa condição humana, já que ela é uma instância de mediação entre o homem e o mundo. Falar em linguagem artística é nos encaminharmos para a compreensão da existência humana. O pensamento é o elo entre o Ser com a essência do homem e esse encontro só é possível por meio da linguagem.

[…]

____________

21 Nesta obra, Giorgio Agamben, parte da ideia de que o homem é falante e mortal. Para embasar sua teoria recorre ao Dasein (ser-para-a-morte), ser projetado de Martin Heidegger, em que é através da experiência da morte que o homem encontra suas possibilidades de existência, já que a morte não é apenas um fator biológico, mas uma passagem, e por meio dela a vida inautêntica de extingue. A negatividade advém do não sentido existencial do ser que será lançado para o desconhecido. A negatividade da linguagem é, portanto, fruto da própria negatividade do ser preservando cada um (homem e linguagem) e sua própria voz.

22 Martin Heidegger, em 1936, escreveu Hölderlin e a Essência da Poesia, além de inúmeros ensaios, dentre eles “Para que poetas?”, presente coletânea Holzwege (1950). O interesse pela poesia de Friedrich Hölderlin, poeta alemão, que cantou o mito grego do mediador entre o homem e o sagrado. Postumamente, foi publicado um volume das obras completas que o filósofo alemão dedicou ao poeta: Zu Hölderlin Griechenlandreisen.

23 “E para que poetas em tempos difíceis?” - para refletir sobre “a era que nós próprios ainda pertencemos”. (Tradução nossa)

24 “ um esplendor da divindade” (Tradução nossa)

25 “ cada vez se torna mais pobre” (Tradução nossa)

26 “é privado do fundamento daquele que cria” (Tradução nossa)

27 “ficar atento ao rastro dos deuses em fuga” ( Tradução nossa)

28 “É por isso que os poetas em tempos de pobreza devem dizer expressa e poeticamente a essência da poesia. Quando isso acontece, entende-se que a poesia retrata o destino de uma época” (Tradução nossa)

 

Ler mais em: Carlos Drummond de Andrade: O poeta na condição de leitor, Luciana Silva. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2021.

 

***

 

O horror calculado: violência e autoritarismo em “Morte no avião”

Na presente análise do poema “Morte no avião”, nosso objetivo central será a  discussão de alguns traços formais que guardem pontos de contato com o problema do autoritarismo. A hipótese defendida sustenta que o poema constitui-se em uma aguda e  inquietante reflexão do sujeito lírico sobre sua condição fragmentária frente à vida homogeneizada do Estado Novo e, de um modo geral, frente aos impasses do processo  capitalista no Brasil. Nesse sentido, “Morte no avião”, assim como outros poemas de A rosa  do povo, permite uma interpretação que, em termos alegóricos, dialoga diretamente com as  condições sociais e políticas dos anos 30 e 40. 

Adentremos o poema “Morte no avião”. O texto narra um dia comum de um homem  em uma grande cidade, que irá pegar um avião ao final da tarde; o assunto não traria em si  nenhuma novidade não fosse um detalhe central intencionalmente explícito: ele irá morrer, o  avião irá explodir e ele tem consciência do fato desde o primeiro verso, o qual causa um efeito  de choque no leitor:

Acordo para a morte. 
Barbeio-me, visto-me, calço-me. 
É meu último dia: 
um dia cortado de nenhum pressentimento. 
Tudo funciona como sempre. Saio para a rua. Vou morrer.

Pelo trecho citado, vemos, desde o princípio, uma contínua marcha do sujeito- lírico rumo à destruição de maneira demarcada: “Acordo para a morte”, “Vou morrer”. O próprio “enredo”, por assim dizer, nos parece estranho, inverosímil, na medida em que seu desenvolvimento é repleto não de tentativas de evitar a morte, mas de um caminhar ininterrupto e consciente para ela. O horror é tratado em tom burocrático, sem alterações de tom, como indica a ausência de recursos capazes de revelar tensão, a exemplo de pontos de exclamação ou interjeições.

O fim da existência, apontado friamente pela futura vítima, é marcado por uma consciência por demais lúcida frente a sua própria ruína, resultando em uma indiferença à vida, como se esta em nada fosse diversa da morte. Trata-se de um comportamento estranho, por não haver dados no texto capazes de mostrar sequer um desejo de suicídio, ato significativo diante do desajuste do mundo e do ser frente ao mundo desajustado; mas, para nossa sorte (ou azar) em nossa análise, nem de longe o suicídio se apresentaria em “Morte no avião” como hipótese interpretativa180, pois a morte não é tomada como superação, solução ou interrupção dos problemas trazidos pelo sujeito lírico. Os passos narrados daquele homem sobre seu cotidiano não alcançam um final na explosão da aeronave; percebe-se que dia-a-dia vida e morte se assemelham assustadoramente, característica que causa choque nos leitores.

Assim, ao longo de suas dezasseis estrofes, de versos sem rima e sem metrificação, tarefas corriqueiras são, como tais, refeitas durante mais um dia, como se nada fosse ocorrer, embora aquele que as realiza saiba de antemão o desfecho trágico e o antecipe para os leitores. Interessante que as únicas estrofes a demonstrarem uma mudança no comportamento do sujeito lírico frente ao fim, mudança em seu cotidiano, são as relativas aos preparativos para a morte, como é o caso da sétima estrofe:

Volto à casa. De novo me limpo.
Que os cabelos se apresentem ordenados
e as unhas não lembrem a criança rebelde.
A roupa sem pó. A mala sintética.
Fecho meu quarto. Fecho minha vida.
O elevador me fecha estou sereno.

Seu comportamento rompe bruscamente com nossas expectativas sobre os valores dados à vida, estimada como um bem que deve ser tratado com todos os cuidados, e à morte, vista como algo contra o que devemos lutar e fugir. O problema reside no fato de que no poema não se enaltece a vida, não se foge da vida, ao mesmo tempo em que também não se valoriza a morte como uma saída para o fastio proporcionado pela existência vazia da modernidade. As referências comuns do leitor são rompidas bruscamente, e não seria exagero notar pontos em comum com situações estranhas, próximas das narrativas de Franz Kafka no tocante ao jogo entre o absurdo e o inverosímil. Exemplo dessa visão inusitada aparece na segunda estrofe, na qual nos deparamos com a ansiedade do sujeito lírico pela hora do vôo, desejo este que nos causa um mal estar ainda maior:

Não morrerei agora. Um dia
inteiro se desata à minha frente.
Um dia como é longo.
[...]
Estou na cidade grande e sou um homem
na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer.
Peço passagem aos lentos.

Tais exemplos demonstram uma narração cujo protagonista conhece o desenlace pelo qual irá passar, no caso, sua destruição. Como afirmado, esta primeira característica rompe logo no início do poema com um possível entendimento da morte como transcendência e, por conseguinte, superação dos impasses da vida.

Ora, é de se perguntar um dos possíveis sentidos implícitos nessa perspectiva inovadora em “Morte no avião”. Um caminho talvez esteja em perceber a profusão de imagens, indubitavelmente ligadas ao cotidiano do espaço urbano moderno, povoado e solitário, a um só tempo funcional e sem significação de experiência para o sujeito lírico: “Saio para a rua”; “Quantos passos/ na rua, que atravesso”; “Visito o banco”; “Passo nos escritórios.”; “Ainda não é a morte, é a sombra/ sobre edifícios fatigados,[...]”.

O ritmo contínuo, duro, do poema se casa com as ações do homem que vai rumo à morte; a predominância de orações simples e coordenadas, crueza rítmica recheada por frases nominais (“O telefone./A fatura. A carta.”), sobre uma estrutura básica de sujeito, verbo e objeto, dão-lhe um movimento repetido e maquinal, semelhante à rápida passante baudelaireana181, cuja duração nos olhos do sujeito é de apenas uns poucos segundos, instantes imprecisos melhor dizendo:

Declino com a tarde, minha cabeça dói, defendo-me,
a mão estende um comprimido: a água
afoga menos que dor, a mosca,
o zumbido... Disso não morrerei: a morte engana,
como um jogador de futebol a morte engana,
como os caixeiros escolhe
meticulosa, entre doenças e desastres.

A ultra-consciência no tocante à chegada da morte (que, reiteramos, não deve ser entendida como final da existência) causa uma cegueira devido ao grau de conhecimento sobre os meandros destrutivos do modus vivendi no qual ele se encontra; na profusão de cenas burocráticas e assustadoras, surgem, na quinta estrofe, dois versos notáveis pelo seu tom didático: “Estou na cidade grande e sou um homem/na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer”.

O trecho confirma o esvaziamento da possibilidade de existir por meio experiências significativas, de onde a ausência de diferenças entre estar vivo e morrer; encontramos, pois, em um primeiro plano, uma situação fantasmagórica das relações entre ser humano e trabalho, a mais importante, a nosso ver, da reificação182 a que a vida social e biológica se transforma dentro da máquina à qual ela serve.

O excerto destaca-se por, ao contrário dos demais versos, não conter ações, mas explicações; ele carrega, de algum modo, uma função didática sobre os motivos para a coisificação da vida. Com sua clareza “o homem que está na cidade grande e na engrenagem” destoa de ações quase kafkianas, que se desenrolam na primeira estrofe:

Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.

A ruptura com a idéia de uma constituição plena é confirmada também por não haver na voz lírica sinais de desespero, tristeza ou mesmo alívio devido ao desastre. Essa consciência in extremis, passível de ser intitulada de fria, aparece em relevo através de adjetivos que conotam serenidade e lucidez, posto que o sujeito lírico já sabia de todo o desfecho de seu dia sem nenhum pressentimento, outra razão pela qual ele dispensa sentimentos de desespero, posse ou desejo de prolongamento da vida justamente na concretização da morte, ou seja, nas imagens de dilaceramento de seu corpo e dos demais passageiros. Seu discurso, do verso inicial ao encerramento, assemelha-se a uma profecia que se realizará inevitavelmente, uma vez que nada o demoverá:

Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaços de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão perecendo calados.
E mais adiante:
Sou vinte na máquina
que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metros de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu vôo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.

Realça-se no trecho acima o despreendimento do sujeito para com a “vida menor”, que se espraia em elementos concretos (corpos, materiais do avião, lugares); a imagem causa uma sensação de profundo estranhamento por beirar, na sua configuração, uma situação non-sense, semelhante a quadros surrealistas de Salvador Dali. Contudo, se a forma guarda pontos de contato com experimentações estéticas de vanguarda, seu poder de impacto se dá para além da capacidade de romper com valores e preceitos de determinado contexto de produção conservador, como o fizeram as diversas correntes de vanguarda na Europa da primeira metade do século XX. No caso de “Morte no avião”, o contraste advém de uma resposta, menos à literatura brasileira ou a seus pares mais próximos (poetas seus contemporâneos), e mais à aberração a que a vida foi transformada no mundo de mercadorias e melancolias, na conhecida imagem final de “A flor e a náusea”, terceiro poema de A rosa do povo: “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o tédio.”

O fundamental de “Morte no avião” é o mal estar que ele traz, não por seus versos apelarem para a dor, mas sim, e aí resida seu traço ímpar, pela ausência de dor frente à morte iminente e ao doloroso contexto de produção; a resistência se dá pela anestesia; morrer nada significa diante da vida danificada. Ainda que no poema o sujeito lírico tenha consciência disso, ele apenas expressa a tragédia que já se processa no próprio cotidiano; os impasses que ele aponta com sua narração da vida controlada demonstram que esta se tornou fantasmagórica, problema que não diz respeito a um indivíduo somente, no caso, de nosso sujeito lírico, mas a toda uma coletividade:

A morte dispôs poltronas para o conforto
da espera. Aqui se encontram
os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos
,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.

Passando a outras questões formais, podemos afirmar que o poema se debate com o controle da vida, cujo resultado constante é o esvaziamento simbólico e político do ser humano — a ponto de a morte se tornar alegoricamente a concretização do que não existe e não existirá neste jogo de cartas marcadas, ou seja, plenitude, totalidade, felicidade em vida. Nesse ponto, concordamos com Antonio Candido, quando afirma que “Morte no avião”, “Morte do leiteiro” e “Desaparecimento de Luísa Porto” conseguem “extrair do acontecimento ainda quente uma vibração profunda que o liberta do transitório, inscrevendo-o no campo da expressão”183.

O controle do indivíduo pelo capital se apresenta no tema, finamente casado com o ritmo do poema; com seu tom narrativo, “Morte no avião” dispensa rimas ou metrificação, seu andamento é construído por meio de orações curtas, marcadas por intensa pontuação, construindo um andamento controlado, tenso. Necessário lembrar o conteúdo:

Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso desistir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem
ir ao cassino, ler um livro.

Há poucas orações subordinadas, seu modo de composição predominante é a coordenação, o que, devido ao fato de o poema ser narrativo, soa como uma de justaposição de atos, o que dá ao poema um ritmo constante, organizado e de pouca variação:

Almoço. Para quê? Almoço um peixe em ouro e creme.
É meu último peixe em meu último
garfo. A boca distingue, escolhe, julga,
absorve. Passa música no doce, um arrepio,
de violino ou vento, não sei. Não é a morte.
É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.

No trecho acima, encontramos diversas imagens em seqüência construídas por frases nominais muito curtas: “É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.”, as quais aumentam ainda mais a tensão advinda do controle sobre o sujeito lírico. Em alguns momentos, o ritmo chega a ser tão preso que diversas frases são subitamente interrompidas: “Não tomar esse carro. Não seguir para.” Não é à toa que, estrofes antes, ele afirmara: “Estou na cidade grande e sou um homem/na engrenagem.” Há aqui uma ruptura no plano não apenas das expectativas do conteúdo, mas também de linguagem. A sintaxe comum do leitor não é utilizada, mas quebrada pelo sujeito lírico.

Estes traços de composição, marcados pelo controle, se alinham ao conteúdo também atravessado pelo signo da vida reificada. O ápice deste controle está no final do poema, quando, mesmo após a explosão da nave, o eu lírico continua a narrar e mostra que a tragédia dele e de tantas outras pessoas se transforma em notícia, ou seja, em produto venal, mercadoria. A existência se transforma, por um lado, em um simples repetir mecânico, alienado, enquanto a morte rende dividendos aos que se crêem vivos, no caso, os meios de comunicação. Tendo em vista os versos aqui brevemente discutidos, observa-se uma história terrível que, no contexto da modernização conservadora brasileira, se transforma em um ‘horror calculado’.

Concluímos, portanto, que a morte neste poema é apenas um detalhe, uma espécie de fato esperado e inócuo na vida automatizada; na verdade, se fizermos uma leitura alegórica deste poema com seu contexto de produção e recepção, veremos que seu alcance crítico é enorme. Seu caráter de “resistência”184 figura muito além da história do avião em si; seu diálogo se trava de maneira tensa com o Brasil autoritário dos anos 30 e 40 e de séculos antes, o qual leva as pessoas a um cotidiano desvinculado de espaços simbólicos, de criação ou debate políticos, enfim, ações capazes de nos tornar bem mais interessante do que consumidores com direitos garantidos em um cemitério vivaz de mercadorias humanas.

 

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180 Cf. o perspicaz trabalho de A. Alvarez sobre o assunto, em especial, a Parte IV, Suicídio e literatura. In: _____ . O deus selvagem: um estudo sobre o suicídio. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

181 “[...] Um relâmpago, e após a noite! — Aérea beldade,/E cujo olhar me fez renascer de repente,/Só te verei um dia e já na eternidade?//Bem longe, tarde, além jamais provavelmente!/Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,/Tu que eu teria amado — e o sabias demais!” (BAUDELAIRE, Charles. A uma passante. In: ______. As flores do mal. São Paulo: Círculo do livro, s/d).

182 MARX, Karl. Fetichismo e reificação. In: IANNI, Octavio. (Org.). Marx. 7.ed. São Paulo: Ática, 1992.

183 CANDIDO. Antonio. Inquietudes na poesia de Drummond. In: _____ . Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995, p.129.

184 BOSI, Alfredo. Poesia resistência. In: _____. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1983.

 

Lírica e autoritarismo em A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, Cristiano Jutgla. São Paulo, Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas - Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, 2008

 

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Hino Nacional, Carlos Drummond de Andrade


 

HINO NACIONAL


Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
Com água dos rios no meio,
O Brasil está dormindo, coitado
Precisamos colonizar o Brasil.

O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonetes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...

Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...

Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão
de seus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

 

Carlos Drummond de Andrade, Brejo das almas, 1934

 

***

 

O Brasil em versos: uma análise do poema “Hino Nacional” de Carlos Drummond de Andrade e a construção da identidade nacional

 

Brejo das Almas, além de título da obra, é também o nome de uma pequena cidade de Minas Gerais. Causa-nos espanto a “epígrafe” do livro, exaltando as potencialidades financeiras dessa cidade, enquanto seu nome remete a algo ruim, tenebroso. É nessa ideia dialética que se baseia a obra: através da ironia, na maioria dos poemas, o poeta revela a ambivalência do mundo e da realidade brasileira.

Quando Drummond publicou Brejo das Almas, em 1934, o país vivia um clima político que tinha pretensão de tornar os brasileiros orgulhosos de sua nação. E é nesse momento que surge o poema que iremos analisar, o “Hino Nacional”. Em meio à efervescência política da época, o poeta mineiro traz à tona o Brasil e sua brasilidade.

No poema, Drummond problematiza uma das inquietudes contemporâneas, a sensível e persistente reivindicação da identidade nacional, um lugar comum nos escritos da intelectualidade brasileira. Nomes como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, entre outros. Entretanto, diferente dos ensaios históricos, o eu-lírico irônico do poema parece desenhar a inviabilidade dessa representação simbólica do país. Principalmente se pensando de forma totalizante, como as características dos projetos românticos, e de certa forma dos modernistas.

À primeira leitura, verificamos que o título do poema contém grande valor simbólico, algo solene, heróico, histórico, que nos leva a pensar a identidade nacional, o espírito de nação, no sentido corrente da palavra. Antes mesmo de iniciar a leitura, o leitor mais afoito, pode imaginar, que se trata de mais um texto ressaltando a grandeza de nossa pátria, em seguida, um leitor mais atento, enxerga algo de irônico nas palavras do poeta. De qualquer forma o poema permite no mínimo duas leituras, uma no sentido literal e outro no sentido irônico1.

O poema se compõe de oito estrofes irregulares, onde o jogo semântico é destaque para o desenvolvimento das ideias. O texto é construído por dois tempos verbais: presente do indicativo e futuro. Podemos destacar no primeiro o caso, o verbo “Precisamos” grafado na primeira pessoa do plural, vem sempre acompanhado de um segundo verbo no infinitivo. Vejamos: precisamos descobrir, colonizar, educar, louvar, adorar e esquecer. A forma como os vocábulos são dispostos nos remete ao positivo, presente não só no hino oficial, como na bandeira nacional2.

Em seguida temos os verbos no futuro, também grafados na primeira pessoa do plural: faremos, compraremos, assimilaremos, abriremos, subvencionaremos, cuidaremos. É importante chamar a atenção que todos esses verbos, incluindo o “precisamos”, exprimem ação, movimento, e dão dinâmica aos textos -agindo no presente e no futuro- ao mesmo tempo em que nos remete ao passado. Drummond ainda brinca com verbos no gerúndio, que acaba dando um tom prolongado, acentuando a mansidão presente no texto, e porque não, no país. Um bom exemplo encontra-se já nos primeiros versos: o Brasil está dormindo, coitado.

Na primeira estrofe, quando Drummond diz: Precisamos descobrir o Brasil!/Escondido atrás das florestas, / com a água dos rios no meio, /o Brasil está dormindo, coitado. / Precisamos colonizar o Brasil. Em um primeiro momento, nos três primeiros versos, podemos pensar que ele se refere a um Brasil ainda desconhecido, que até hoje, apesar das depredações, aparenta ser um enigma. No quarto verso, nota-se uma referência ao Hino Nacional oficial, “Deitado eternamente em berço esplêndido”, e nitidamente percebe-se um tom irônico, a palavra “coitado”, uma espécie de “tadinho”, pobrezinho, uma diminuição daquilo, que ao menos teoricamente, deveria ser grandioso. No quinto verso, ele dá início a próxima estrofe, e de certa forma se completa uma fase da história, o Brasil precisa ser descoberto e colonizado. Mas por um acaso, já fomos descobertos e colonizados! Porque precisamos fazer isso novamente? O que há de errado com esse Brasil já descoberto e colonizado? Aqui cabe também a leitura irônica, onde “Não precisamos descobrir e nem precisamos colonizar”, tudo isso já foi feito.

Na segunda estrofe, o autor diz: O que faremos importando francesas/muito louras, de pele macia, /alemãs gordas, russas nostálgicas para/garçonnettes dos restaurantes noturnos. /E virão sírias fidelíssimas. /Não convém desprezar as japonesas. Logo no primeiro verso, vemos novamente a ironia do poeta, como colonizar um país com francesas, alemãs, russas e japonesas? Mas a pergunta do autor é, o que faremos? Se nos remetermos aos textos de Freyre, lembraremos que esse é um país fruto da hibridação. E se levarmos em conta a época do poema, lembraremos que nesse tempo, por motivos históricos, o Brasil recebeu um grande número de estrangeiros, o que nos leva de volta ao quinto verso da primeira estrofe, precisamos colonizar o Brasil, e essa nova “invasão” de estrangeiros pode ser encarada como uma nova colonização. Um novo processo de hibridização.

No entanto, o que há de mais interessante nessa estrofe, é que as mulheres não são mais índias, muito menos portuguesas, mas francesas, alemãs, russas, sírias e até japonesas, marcando um percurso de distanciamento geográfico (da Europa até o extremo oriente). Tal distanciamento sugere o afastamento entre o eu-lírico e a realidade, fazendo com que ele, o gauche, crie ironicamente uma realidade torta, que se aproxima da realidade criada por aqueles que tentam descrever o Brasil sem abandonar o caráter ideológico.

Ainda podemos perceber que as características dadas às mulheres citadas no poema, também têm um grande apelo histórico, além de um distanciamento espacial, temos as características dada a cada povo. As mulheres francesas são retratadas como delicadas, as alemãs gordas, em um país de clima tenso, onde já nessa época acontecia a perseguição aos judeus. Interessante notar que, o autor reserva para as russas uma palavra estrangeira que remete, de certa forma, ao capitalismo, quando ele diz: russas nostálgicas para/garçonnettes dos restaurantes noturnos; podemos encarar essa frase como saudade de uma liberdade que não existe mais, trata-se de um país dominado pela ditadura socialista. Já as mulheres orientais, com diferenças culturais e físicas mais distantes de nossa realidade, além de geograficamente estarem mais distantes, não devem ser esquecidas, as sírias são mais que fiéis – talvez devido a sua religião –, as japonesas, apesar da aparência mais esguia (diferente do padrão nacional) não merecem ser desprezadas, com certeza porque também possuem seus encantos.

Percebemos que a ordem dos países citados: França, Alemanha, Rússia, Síria e Japão - demonstra um passeio pelo mundo, da jovem América, para o berço da humanidade. Notemos ainda que, a miscigenação se faz presente em vários momentos da história nacional. Como se a cada momento o Brasil fosse “re-colonizado”.

Na terceira estrofe, percebe-se a influência do estrangeirismo na construção do saber nacional. Precisamos educar o Brasil. /Compraremos professores e livros, /assimilaremos finas culturas, /abriremos dancings e subvencionaremos as elites. Logo no primeiro verso, temos o verbo educar sustentado por outros verbos como “comprar”, “assimilar”, “abrir” e “subvencionar”. O clima agora é de seriedade irônica. O primeiro e o último verbos, assim como a toda a estrofe, dão um efeito de crítica ao capitalismo que reduz tudo à movimentação financeira. No segundo verso fica claro que temos uma cultura altamente influenciada pelo o que é estrangeiro, não apenas porque fomos colonizados por etnias e culturas diferentes, mas também, e principalmente, porque sempre consideramos o que vem de fora melhor do que o que é criado aqui. Por isso compramos nosso conhecimento, e assimilamos o que for fino, porque somos colônia, e o melhor vem de fora, da metrópole. Por exemplo, no segundo verso, “livros”, que são coisas, são colocados na mesma posição sintática de “professores”, o que os torna também coisas. No último verso, notamos, talvez, o início da influência da cultura norte-americana e sua manutenção cultural as elites brasileiras, principal responsável pela “importação” cultural brasileira.

Durante todo o poema, podemos perceber um tipo de discurso politiqueiro, precisamos disso, precisamos daquilo, mas no quarto parágrafo, essa questão fica um pouco mais clara, o tom irônico do eu-lírico nos revela algumas promessas utópicas: Cada brasileiro terá sua casa/com fogão e aquecedor elétrico, piscina, /salão para conferências científicas. /E cuidaremos do Estado Técnico. Os versos insinuam que todo brasileiro terá o mesmo padrão de vida, focado em um “Estado técnico” algo que nos remete novamente a influência positivista, o valor a ciência e a um estado laico, onde a industrialização e a modernidade estariam presentes. É também o sonho americano em terras tupiniquins. É uma visão do Brasil como o “país do futuro”, assim como no Hino Nacional oficial: “em teu futuro espelha essa grandeza”.

É importante ressaltar que durante toda a construção do poema a frase “Precisamos...”, pode ser encarada em seu sentido literal, como em um sentido irônico ou contrário à afirmação, “Não precisamos...”. Na quinta estrofe, Drummond começa com: “Precisamos louvar o Brasil”, ou seja, no sentido literal, precisamos de apreço e de elogios, enaltecer suas virtudes, agora, se levarmos em consideração o tom irônico do eu-lírico, teremos: “Não precisamos louvar o Brasil”, já estamos fartos de elogios. Nos versos seguintes se diz: Não é só um país sem igual. /Nossas revoluções são bem maiores/do que quaisquer outras; nossos erros também./E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões... /os Amazonas inenarráveis... os incríveis João - Pessoas...

Trata-se de um país diferente, “sem igual”, um colosso, tudo aqui é maior, mais exagerado, mais intenso. Assim como no hino oficial: Gigante pela própria natureza, És belo, és forte, impávido colosso, /E o teu futuro espelha essa grandeza. No terceiro verso ele demonstra isso falando das revoluções, que segundo o texto são maiores, se nos remetermos ao hino nacional teremos os seguintes versos: Paz no futuro e glória no passado. /Mas, se ergues da justiça a clava forte, /Verás que um filho teu não foge à luta, /Nem teme, quem te adora, a própria morte. No entanto, nunca houve uma revolução de facto no Brasil, assim como não houve um povo heróico de brado retumbante, ao menos não de forma literal.

Quando questiona nossas virtudes, o autor recorre às paixões carnais para destacar o que há de bom e de sublime no país. Interessante notar que o poeta ignora, propositalmente ou não, o grotesco, particularidade tão inerente a “identidade nacional”. Na quinta estrofe, as contradições são colocadas lado a lado ainda por via da ironia. Aqui se reconhece o Hino Nacional original através do pronome possessivo “nossos”, seguido de nomes identificáveis ao país. O que antes era “bosques” e “vida”, agora são “revoluções” (que de facto o Brasil nunca teve...), “erros” e “virtudes”, estes últimos colocados lado a lado numa antítese que é prolongada até os últimos versos dessa estrofe: “Amazonas inenarráveis”, com sua imensidão, está no mesmo plano de “João - Pessoas”, cidade e gentes tão pequenas...

No sexto verso ele faz uma referência a um facto histórico que pode ser lido de forma dúbia. “Os incríveis João – Pessoas”, que em um sentido literal pode ser lido como uma referência ao assassinato do político paraibano3 que deu nome à cidade de João Pessoa, ou em um sentido irônico uma alusão ao João Ninguém, que de repente se transforma em um super João Pessoa.

A sexta estrofe é marcada por dois momentos de meditação. No primeiro verso o autor continua dizendo, se considerarmos o sentido literal, que “Precisamos adorar o Brasil”, ou seja, mais que amá-lo temos que adorá-lo, reverenciá-lo. Nos outros cinco versos do poema, Drummond se vale de uma estrutura anafórica para expressar um momento mais meditativo, com a frase “Se bem que”, ele introduz uma modulação lógica.

Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão/no pobre coração já cheio de compromissos... /se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens, /por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

Quem são esses homens a que se refere o eu - lírico? Seriam os pensadores, que tentam de todas as formas “encontrar ou construir” uma identidade nacional? Ou então os políticos que tentam criar uma nação enaltecida? Ou ambos, que por motivos diferentes ou não, querem ver o Brasil enquanto nação. Estaria ele falando dos modernistas, de Oswald e do Manifesto Antropófago? Ou estaria Drummond falando dele próprio e de todos nós? A frase deixa esse questionamento, não se fechando com qualquer resposta.

Na última estrofe, chegamos a um momento de dúvida, de ceticismo por parte do autor. Após descobrir, colonizar, educar, louvar e adorar, é chegada à hora de esquecer o Brasil, para isso ele enfatiza repetindo o verbo “precisamos” duas vezes. É um momento de reflexão, o que antes parecia ser uma exaltação, a um canto em louvor da nação, agora mostra-se como algo que devora.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão
os brasileiros?

É nesse ponto que Drummond tece sua mais árdua crítica. Logo no primeiro verso, quando enfatiza que é necessário que esqueçamos o Brasil, o poeta refere-se ao Brasil dos livros, dos sociólogos e de todos outros pesquisadores. O Brasil grande, colossal, de infinita beleza, tão bem retratado em seu hino oficial, assim como em seus livros de histórias. Chega desses carinhos, dessa louvação, adoração, dessa construção romântica (ou romanceada). No quarto verso: O Brasil não nos quer! Está farto de nós! – o Brasil está farto dessa obsessão em construir esse espírito nacional único, fechado, delimitado.

No sexto verso, mais provocação. “Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil”. É nesse ponto que fica clara uma questão recorrente no texto, o Brasil oficial não coincide com o Brasil real, logo ele não existe. É no famigerado último verso, que se reserva a mais polêmica frase. “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”. Segundo Raul Antelo4 “não é que o Brasil não exista. Não existe qualquer identidade como matéria. Toda identidade é um desenho imaginário que produz efeitos simbólicos5”.

Há um Brasil que precede o Estado e, consequentemente, não pode ser reduzido à imagem oficial. É como se o Brasil fosse um signo tão pleno de sentido que não pudesse ser apreendido por uma simples operação hermenêutica. O velho clichê parece prevalecer nessa leitura: tão exuberante quanto sua natureza, o Brasil, o Brasil em si mesmo, o Brasil bem brasileiro das declarações ufanistas, só pode ser sentido com o coração e não interpretado racionalmente, pois, ante a plenitude do objeto, a linguagem parece incapaz de expressá-lo (ROCHA).6

“Nenhum Brasil existe”, porque existem vários brasis, e não apenas um. Sua origem é feita de pluralidade, enquanto o mundo corre atrás para entender a diversidade, o Brasil, há décadas, tenta fazer o caminho contrário, em busca de sua identidade. Talvez, o que muitos ainda não tenham entendido é que, talvez, nossa identidade, seja não ter uma identidade fixa e única, e sim diversa, “multi”. Por isso, de forma geral e genérica, podemos dizer que, o que hoje se vive com a globalização cultural já acontecia aqui, em proporções bem menores é claro, uma vez que nossa colonização se deu com a mistura cultural e étnica. Não falamos um único português, falamos sim variações do português.

No fim do poema, o tom de ironia começa a se dissolver, dando lugar ao lirismo pessoal do eu - lírico. Após uma série de sucessivas “brincadeiras” acerca do cenário brasileiro, ele começa a divagar sobre a realidade que percebe com seu olhar gauche.

Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos...
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

A introdução da subjetividade é garantida pelo subjuntivo do verbo “ser” (seja). A exclamação, abandonada desde o primeiro verso, retorna para contrastar com o tom de seriedade e subjetividade que essa estrofe contém. Os versos são maiores, mais densos, gerando uma tensão que explodirá na última estrofe:

[...] Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

Nesse momento já não predomina a ironia; o poeta adquire um tom sério e tenso. É o momento do questionamento de todas as divagações feitas a respeito do que é o Brasil e como são os brasileiros, ao longo de toda a sua História. O que antes era apenas “o” Brasil, agora aparece também como “nosso” Brasil, “este” Brasil, e, por fim, “nenhum” Brasil. O nome do país adquire novos sentidos; não se trata de um Brasil físico, pois se assim o fosse, chegaríamos à conclusão de que o poeta estava delirando (no sentido literal do termo) ao compor o poema. Trata-se das ideologias formuladas acerca deste país, do Brasil dos livros e dos ideólogos, que fundiu um “hiato” de si com a realidade, como relatou Marlise Meyer (2001).

Luiz Costa Lima (1968) revelou a existência de um “princípio-corrosão” na poesia de Drummond: “Corrosão, como a empregamos, não se confunde com derrotismo ou absenteísmo. Ao contrário, no contexto drummondiano ela aparece como a maneira de assumir a História, de se pôr com ela em relação aberta” (p. 136).

Assim, ao analisar “Hino Nacional”, ele afirma que a corrosão atua na medida em que o tom de blague das primeiras estrofes se finda com a seriedade das últimas. Isso nos faz pensar que a blague não basta para explicar a realidade; mas também não quer dizer que ela seja totalmente ineficiente. Corrosão, como explicou Costa Lima, não é simples destruição, mas sim reinvenção. O eu-lírico ironiza o próprio discurso patriótico modernista, que, em alguns momentos, atribui rótulos deficientes ao caráter do brasileiro.

A ironia abarca em si as antíteses e ambivalências presentes em todo o poema, pois ela também é um instrumento ambivalente. Sant’anna argumenta que

Por sua origem, a ironia é um instrumento de defesa e funciona como elemento reparador nas relações entre o indivíduo e o grupo social. Possui natureza dupla: sendo sinal de desajustamento do indivíduo em relação ao grupo de pessoas (ou pessoa), é também elemento de comunicação entre eles, funcionando como “correction”. [...] O humor é a válvula de escape de tensões numa relação (1972, p. 61).

Partindo desse ponto, chegamos à conclusão de que a linha irônica que se traça no decorrer do poema, divide-o em várias perspectivas, alimentando as oposições, as contradições, as antíteses. Por outro lado, o humor, sendo uma “válvula de escape”, permite obter, através da palavra, uma transformação que se realize de alguma forma na realidade.

O desfecho do poema é dado com uma interrogação que pode ser transcrita de outras formas: o que é ser brasileiro? O que é o Brasil? Tais questões são sugeridas não para serem respondidas, o que resultaria em sua eliminação. Ao contrário, o poema propõe que elas estejam sempre presentes em qualquer tentativa de caracterização da identidade nacional, tentativas que não se devem cessar, já que são elas que alimentam a vida cultural de um povo.

 

Notas:

1 Falaremos disso mais adiante.

2 “Gigante pela própria natureza, é belo, és forte impávido colosso...”; “Ordem e Progresso”.

3 Os defensores de João Pessoa alegam que ele foi um combatente das oligarquias locais e se contrapunha aos interesses de grupos tradicionais, embora ele mesmo proviesse de família de oligarcas. Seu assassinato foi considerado o estopim da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Pessoa_Cavalcanti_de_Albuquerque/>. Acesso em: 06/07/08.

4 Professor da UFSC.

5 Diz Raul, em um de seus ensaios escritos para o jornal O Estado de São Paulo .

6 Autor do prefácio do livro Nenhum Brasil Existe.

 

Referências:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Brejo das almas. Rio de Janeiro: Record, 2001.

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1995.

CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: EdUSP, 1994.

DAMATTA, Roberto. O que faz do Brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 2001.

GOMES, Ângela Maria de Castro. Confronto e compromisso no processo de constitucionalização (1930-1935). In: O Brasil republicano. Vol. 3. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, p. 7-72.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 2001.

LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro: história de uma ideologia. São Paulo: Ed. Unesp,

2002.

LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

MEYER, Marlise. Um eterno retorno: as descobertas do Brasil. In: Caminhos do imaginário no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 19-46.

ROCHA, João Cezar de Castro. Nenhum Brasil existe. Ed. Topbooks, 2001.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O gauche no tempo. Rio de Janeiro: Lia, INL, 1972.

 

Juliana Nascimento, Revista FACEVV | Vila Velha | Número 5 | Jul./Dez. 2010 | p. 68-75

 

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Outra análise do poema “Hino Nacional”, de Carlos Drummond de Andrade

 

No poema “Hino Nacional” (OC, 2002, p. 51-52), extraído de Brejo das almas (1934), o poeta traz à tona o Brasil e sua brasilidade de forma crítico-reflexiva, irônica e bem-humorada.

O título do poema é uma alusão ao Hino Nacional brasileiro, um dos quatro símbolos da República Federativa do Brasil, cuja letra é de Joaquim Osório Duque Estrada (1870- 1927) e música de Francisco Manuel da Silva (1795- 1865). Seu caráter laudatório difere do poema em análise de tom crítico, reflexivo e contestatório. Antonio Cândido declara que a Literatura Brasileira assume um compromisso com a construção de uma nação: “[...] A literatura do Brasil, como a dos outros países latino-americanos, é marcada por este compromisso com a vida nacional no seu conjunto, circunstância que inexiste nas literaturas dos países de velha cultura” (1975, p. 18). Além da tonalidade do humor e da ironia, a poesia drummondiana apresenta um olhar arguto, perspicaz e comprometido com seu tempo em que “As leis não bastam”, por isso são necessárias palavras “roucas e duras, / irritadas, enérgicas” (OC, 2002, p. 125-130).

O poema “Hino Nacional”, composto de oito estrofes irregulares, é construído a partir de dois tempos verbais: presente do indicativo seguido de um verbo no infinitivo – “Precisamos descobrir”, “Precisamos colonizar”, “Precisamos educar”, “Precisamos louvar”, “Precisamos adorar” e Precisamos, precisamos esquecer”; futuro – “O que faremos importando francesas”, “Compraremos professores e livros”, “E cuidaremos do Estado Técnico”. Os verbos estão na primeira pessoa do plural, conferindo a ideia de que todos nós, poeta e leitores, reflitamos sobre Brasil e nosso papel em sua construção. O poeta brinca, ainda, com os verbos no gerúndio - “O Brasil está dormindo, coitado” - para conferir ao texto um tom de prolongamento e de mansidão. O país precisa ser conhecido e potencializado. Não pode e não deve permanecer “Deitado eternamente em berço esplêndido”.

Na segunda estrofe, o eu lírico questiona o que faremos importando francesas louras, alemãs gordas, russas nostálgicas, sírias fidelíssimas e as japonesas. O período da escritura de Brejo das almas (1934) é também o período mais intenso da imigração em solo brasileiro. Além disso, somos frutos de um processo de hibridação. A chegada de mais estrangeiros, leva-nos a pensar em um novo processo de colonização. Notar que as mulheres que chegam não são índias, tampouco portuguesas, marcando um distanciamento geográfico entre Europa e Oriente. Esse distanciamento é o mesmo vivenciado pelo eu lírico gauche e a realidade no qual ele está inserido.

Na estrofe seguinte, “Precisamos educar o Brasil”, o verbo educar vem acompanhado de outros, como comprar, assimilar, abrir e subvencionar. “Professores e livros” serão comprados. Na era da industrialização, pessoas são reduzidas à movimentação financeira. No quarto verso “assimilaremos finas culturas, / abriremos dancings e subvencionaremos as elites” a cultura-americana e as elites brasileiras são criticadas. Essa mesma análise já havia sido realizada pelos modernistas paulistas, sobretudo por Oswald de Andrade (1890-1954) em seu “Manifesto Antropofágico” publicado na Revista Antropofagia (1928-1929). Enquanto Drummond faz uma crítica à cultura estrangeira e às elites que a solidificam, Oswald apresenta uma proposta mais radical: devorar a cultura estrangeira e criar uma cultura nacional. Seria uma inversão de papéis: evoluiríamos da condição de devorado para devorador. O passado cultural seria engolido, um (novo) presente, construído. Atente-se, ainda, ao facto de que, ao longo do poema, o poeta diz do que precisamos e do que não precisamos.

Na quarta estrofe, em tom político, explicita-se uma (quase) promessa: “Cada brasileiro terá sua casa / com fogão e aquecedor elétricos, piscina, [...]”. Até os dias de hoje, é insinuado pelos governantes que cada brasileiro terá o mesmo padrão de vida, dentro de um estado laico, moderno e industrializado. O verso “E cuidaremos do Estado Técnico” remete-nos à influência científica e positivista que dominou o século XIX.

Somos uma “terra de sublimes paixões [...]”. Nesse instante, outra alusão é feita ao Hino Nacional “Nossos bosques têm mais vida / Nossa vida no teu seio mais amores”. Se palavra puxa palavra, diríamos que música/poema puxa poema, porque nos faz lembrar de “Canção do Exílio”*, do poeta Gonçalves Dias (1823-1864) “Nosso céu temais estrelas, / Nossas várzeas têm mais flores, / Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida mais amores”. O Hino Nacional traz em seu bojo os elogios que faltam ao poema drummondiano: “Gigante pela própria natureza / És belo, és forte, impávido colosso / E o teu futuro espelha essa grandeza” [...]. Somos uma nação apaixonada pelo samba e pelo futebol.

 

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* “Canção do Exílio” foi um poema escrito em 1843 e integra a obra lírica Primeiros Cantos (1843), composta pelo poeta romântico Gonçalves Dias; produzida em um momento de intenso nacionalismo, devido à recente separação entre a colônia brasileira e a metrópole portuguesa. A ordem é exaltar os valores naturais do Brasil. Quando o texto foi escrito, Dias cursava Faculdade de Direito em Coimbra. Vivia um exílio geográfico. Além de fazer alusão ao Hino Nacional, o poema alude à Canção Militar do Expedicionário (no trecho) “Por mais terras que eu percorra, não permita Deus que eu morra; Sem que volte para lá”.

 

Carlos Drummond de Andrade: O poeta na condição de leitor, Luciana Silva. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Letras, 2021.