HINO NACIONAL
Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
Com água dos rios no meio,
O Brasil está dormindo, coitado
Precisamos colonizar o Brasil.
O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonetes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...
Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.
Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.
Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...
Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão
de seus sofrimentos.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
Carlos Drummond de Andrade, Brejo das almas, 1934
***
O Brasil
em versos: uma análise do poema “Hino Nacional” de Carlos Drummond de Andrade e
a construção da identidade nacional
Brejo das Almas,
além de título da obra, é também o nome de uma pequena cidade de Minas Gerais. Causa-nos
espanto a “epígrafe” do livro, exaltando as potencialidades financeiras dessa
cidade, enquanto seu nome remete a algo ruim, tenebroso. É nessa ideia
dialética que se baseia a obra: através da ironia, na maioria dos poemas, o
poeta revela a ambivalência do mundo e da realidade brasileira.
Quando Drummond publicou Brejo
das Almas, em 1934, o país vivia um clima político que
tinha pretensão de tornar os brasileiros orgulhosos de sua nação. E é nesse
momento que surge o poema que iremos analisar, o “Hino Nacional”. Em meio à
efervescência política da época, o poeta mineiro traz à tona o Brasil e sua
brasilidade.
No poema, Drummond problematiza uma das
inquietudes contemporâneas, a sensível e persistente reivindicação da
identidade nacional, um lugar comum nos escritos da intelectualidade
brasileira. Nomes como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, entre
outros. Entretanto, diferente dos ensaios históricos, o eu-lírico irônico do
poema parece desenhar a inviabilidade dessa representação simbólica do país.
Principalmente se pensando de forma totalizante, como as características dos projetos
românticos, e de certa forma dos modernistas.
À primeira leitura, verificamos que o título
do poema contém grande valor simbólico, algo solene, heróico, histórico, que
nos leva a pensar a identidade nacional, o espírito de nação, no sentido
corrente da palavra. Antes mesmo de iniciar a leitura, o leitor mais afoito,
pode imaginar, que se trata de mais um texto ressaltando a grandeza de nossa
pátria, em seguida, um leitor mais atento, enxerga algo de irônico nas palavras
do poeta. De qualquer forma o poema permite no mínimo duas leituras, uma no sentido
literal e outro no sentido irônico1.
O poema se compõe de oito estrofes
irregulares, onde o jogo semântico é destaque para o desenvolvimento das
ideias. O texto é construído por dois tempos verbais: presente do indicativo e futuro.
Podemos destacar no primeiro o caso, o verbo “Precisamos” grafado na primeira
pessoa do plural, vem sempre acompanhado de um segundo verbo no infinitivo.
Vejamos: precisamos descobrir, colonizar, educar, louvar, adorar e esquecer. A
forma como os vocábulos são dispostos nos remete ao positivo, presente não só
no hino oficial, como na bandeira nacional2.
Em seguida temos os verbos no futuro, também
grafados na primeira pessoa do plural: faremos, compraremos, assimilaremos,
abriremos, subvencionaremos, cuidaremos. É importante chamar a atenção que
todos esses verbos, incluindo o “precisamos”, exprimem ação, movimento, e dão
dinâmica aos textos -agindo no presente e no futuro- ao mesmo tempo em que nos
remete ao passado. Drummond ainda brinca com verbos no gerúndio, que acaba
dando um tom prolongado, acentuando a mansidão presente no texto, e porque não,
no país. Um bom exemplo encontra-se já nos primeiros versos: o Brasil está
dormindo, coitado.
Na primeira estrofe, quando Drummond diz:
Precisamos descobrir o Brasil!/Escondido atrás das florestas, / com a água dos
rios no meio, /o Brasil está dormindo, coitado. / Precisamos colonizar o Brasil.
Em um primeiro momento, nos três primeiros versos, podemos pensar que ele se
refere a um Brasil ainda desconhecido, que até hoje, apesar das depredações,
aparenta ser um enigma. No quarto verso, nota-se uma referência ao Hino
Nacional oficial, “Deitado eternamente em berço esplêndido”, e nitidamente
percebe-se um tom irônico, a palavra “coitado”, uma espécie de “tadinho”,
pobrezinho, uma diminuição daquilo, que ao menos teoricamente, deveria ser
grandioso. No quinto verso, ele dá início a próxima estrofe, e de certa forma
se completa uma fase da história, o Brasil precisa ser descoberto e colonizado.
Mas por um acaso, já fomos descobertos e colonizados! Porque precisamos fazer
isso novamente? O que há de errado com esse Brasil já descoberto e colonizado?
Aqui cabe também a leitura irônica, onde “Não precisamos descobrir e nem
precisamos colonizar”, tudo isso já foi feito.
Na segunda estrofe, o autor diz: O que
faremos importando francesas/muito louras, de pele macia, /alemãs gordas,
russas nostálgicas para/garçonnettes dos restaurantes noturnos. /E virão sírias
fidelíssimas. /Não convém desprezar as japonesas. Logo no primeiro verso, vemos
novamente a ironia do poeta, como colonizar um país com francesas, alemãs,
russas e japonesas? Mas a pergunta do autor é, o que faremos? Se nos remetermos
aos textos de Freyre, lembraremos que esse é um país fruto da hibridação. E se
levarmos em conta a época do poema, lembraremos que nesse tempo, por motivos
históricos, o Brasil recebeu um grande número de estrangeiros, o que nos leva
de volta ao quinto verso da primeira estrofe, precisamos colonizar o Brasil, e
essa nova “invasão” de estrangeiros pode ser encarada como uma nova
colonização. Um novo processo de hibridização.
No entanto, o que há de mais interessante
nessa estrofe, é que as mulheres não são mais índias, muito menos portuguesas,
mas francesas, alemãs, russas, sírias e até japonesas, marcando um percurso de
distanciamento geográfico (da Europa até o extremo oriente). Tal distanciamento
sugere o afastamento entre o eu-lírico e a realidade, fazendo com que ele, o gauche,
crie ironicamente uma realidade torta, que se aproxima da realidade criada por
aqueles que tentam descrever o Brasil sem abandonar o caráter ideológico.
Ainda podemos perceber que as características
dadas às mulheres citadas no poema, também têm um grande apelo histórico, além
de um distanciamento espacial, temos as características dada a cada povo. As
mulheres francesas são retratadas como delicadas, as alemãs gordas, em um país
de clima tenso, onde já nessa época acontecia a perseguição aos judeus.
Interessante notar que, o autor reserva para as russas uma palavra estrangeira
que remete, de certa forma, ao capitalismo, quando ele diz: russas nostálgicas
para/garçonnettes dos restaurantes noturnos; podemos encarar essa frase como
saudade de uma liberdade que não existe mais, trata-se de um país dominado pela
ditadura socialista. Já as mulheres orientais, com diferenças culturais e
físicas mais distantes de nossa realidade, além de geograficamente estarem mais
distantes, não devem ser esquecidas, as sírias são mais que fiéis – talvez
devido a sua religião –, as japonesas, apesar da aparência mais esguia (diferente
do padrão nacional) não merecem ser desprezadas, com certeza porque também
possuem seus encantos.
Percebemos que a ordem dos países citados:
França, Alemanha, Rússia, Síria e Japão - demonstra um passeio pelo mundo, da
jovem América, para o berço da humanidade. Notemos ainda que, a miscigenação se
faz presente em vários momentos da história nacional. Como se a cada momento o Brasil
fosse “re-colonizado”.
Na terceira estrofe, percebe-se a influência
do estrangeirismo na construção do saber nacional. Precisamos educar o Brasil.
/Compraremos professores e livros, /assimilaremos finas culturas, /abriremos
dancings e subvencionaremos as elites. Logo no primeiro verso, temos o verbo
educar sustentado por outros verbos como “comprar”, “assimilar”, “abrir” e
“subvencionar”. O clima agora é de seriedade irônica. O primeiro e o último
verbos, assim como a toda a estrofe, dão um efeito de crítica ao capitalismo
que reduz tudo à movimentação financeira. No segundo verso fica claro que temos
uma cultura altamente influenciada pelo o que é estrangeiro, não apenas porque
fomos colonizados por etnias e culturas diferentes, mas também, e
principalmente, porque sempre consideramos o que vem de fora melhor do que o
que é criado aqui. Por isso compramos nosso conhecimento, e assimilamos o que
for fino, porque somos colônia, e o melhor vem de fora, da metrópole. Por
exemplo, no segundo verso, “livros”, que são coisas, são colocados na mesma posição
sintática de “professores”, o que os torna também coisas. No último verso,
notamos, talvez, o início da influência da cultura norte-americana e sua
manutenção cultural as elites brasileiras, principal responsável pela
“importação” cultural brasileira.
Durante todo o poema, podemos perceber um
tipo de discurso politiqueiro, precisamos disso, precisamos daquilo, mas no
quarto parágrafo, essa questão fica um pouco mais clara, o tom irônico do eu-lírico
nos revela algumas promessas utópicas: Cada brasileiro terá sua casa/com fogão
e aquecedor elétrico, piscina, /salão para conferências científicas. /E
cuidaremos do Estado Técnico. Os versos insinuam que todo brasileiro terá o
mesmo padrão de vida, focado em um “Estado técnico” algo que nos remete
novamente a influência positivista, o valor a ciência e a um estado laico, onde
a industrialização e a modernidade estariam presentes. É também o sonho
americano em terras tupiniquins. É uma visão do Brasil como o “país do futuro”,
assim como no Hino Nacional oficial: “em teu futuro espelha essa grandeza”.
É importante ressaltar que durante toda a
construção do poema a frase “Precisamos...”, pode ser encarada em seu sentido
literal, como em um sentido irônico ou contrário à afirmação, “Não precisamos...”.
Na quinta estrofe, Drummond começa com: “Precisamos louvar o Brasil”, ou seja,
no sentido literal, precisamos de apreço e de elogios, enaltecer suas virtudes,
agora, se levarmos em consideração o tom irônico do eu-lírico, teremos: “Não
precisamos louvar o Brasil”, já estamos fartos de elogios. Nos versos seguintes
se diz: Não é só um país sem igual. /Nossas revoluções são bem maiores/do que
quaisquer outras; nossos erros também./E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
/os Amazonas inenarráveis... os incríveis João - Pessoas...
Trata-se de um país diferente, “sem igual”,
um colosso, tudo aqui é maior, mais exagerado, mais intenso. Assim como no hino
oficial: Gigante pela própria natureza, És belo, és forte, impávido colosso, /E
o teu futuro espelha essa grandeza. No terceiro verso ele demonstra isso
falando das revoluções, que segundo o texto são maiores, se nos remetermos ao
hino nacional teremos os seguintes versos: Paz no futuro e glória no passado.
/Mas, se ergues da justiça a clava forte, /Verás que um filho teu não foge à
luta, /Nem teme, quem te adora, a própria morte. No entanto, nunca houve uma
revolução de facto no Brasil, assim como não houve um povo heróico de brado
retumbante, ao menos não de forma literal.
Quando questiona nossas virtudes, o autor
recorre às paixões carnais para destacar o que há de bom e de sublime no país.
Interessante notar que o poeta ignora, propositalmente ou não, o grotesco, particularidade
tão inerente a “identidade nacional”. Na quinta estrofe, as contradições são
colocadas lado a lado ainda por via da ironia. Aqui se reconhece o Hino
Nacional original através do pronome possessivo “nossos”, seguido de nomes
identificáveis ao país. O que antes era “bosques” e “vida”, agora são
“revoluções” (que de facto o Brasil nunca teve...), “erros” e “virtudes”, estes
últimos colocados lado a lado numa antítese que é prolongada até os últimos
versos dessa estrofe: “Amazonas inenarráveis”, com sua imensidão, está no mesmo
plano de “João - Pessoas”, cidade e gentes tão pequenas...
No sexto verso ele faz uma referência a um facto
histórico que pode ser lido de forma dúbia. “Os incríveis João – Pessoas”, que
em um sentido literal pode ser lido como uma referência ao assassinato do
político paraibano3 que deu nome à cidade de João Pessoa, ou em um
sentido irônico uma alusão ao João Ninguém, que de repente se transforma em um
super João Pessoa.
A sexta estrofe é marcada por dois momentos
de meditação. No primeiro verso o autor continua dizendo, se considerarmos o
sentido literal, que “Precisamos adorar o Brasil”, ou seja, mais que amá-lo temos
que adorá-lo, reverenciá-lo. Nos outros cinco versos do poema, Drummond se vale
de uma estrutura anafórica para expressar um momento mais meditativo, com a
frase “Se bem que”, ele introduz uma modulação lógica.
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e
tanta solidão/no pobre coração já cheio de compromissos... /se bem que seja
difícil compreender o que querem esses homens, /por que motivo eles se
ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
Quem são esses homens a que se refere o eu -
lírico? Seriam os pensadores, que tentam de todas as formas “encontrar ou
construir” uma identidade nacional? Ou então os políticos que tentam criar uma nação
enaltecida? Ou ambos, que por motivos diferentes ou não, querem ver o Brasil
enquanto nação. Estaria ele falando dos modernistas, de Oswald e do Manifesto
Antropófago? Ou estaria Drummond falando dele próprio e
de todos nós? A frase deixa esse questionamento, não se fechando com qualquer
resposta.
Na última estrofe, chegamos a um momento de
dúvida, de ceticismo por parte do autor. Após descobrir, colonizar, educar,
louvar e adorar, é chegada à hora de esquecer o Brasil, para isso ele enfatiza repetindo
o verbo “precisamos” duas vezes. É um momento de reflexão, o que antes parecia
ser uma exaltação, a um canto em louvor da nação, agora mostra-se como algo que
devora.
Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os
brasileiros?
É nesse ponto que Drummond tece sua mais
árdua crítica. Logo no primeiro verso, quando enfatiza que é necessário que
esqueçamos o Brasil, o poeta refere-se ao Brasil dos livros, dos sociólogos e
de todos outros pesquisadores. O Brasil grande, colossal, de infinita beleza,
tão bem retratado em seu hino oficial, assim como em seus livros de histórias. Chega
desses carinhos, dessa louvação, adoração, dessa construção romântica (ou
romanceada). No quarto verso: O Brasil não nos quer! Está farto de nós! – o
Brasil está farto dessa obsessão em construir esse espírito nacional único,
fechado, delimitado.
No sexto verso, mais provocação. “Nosso
Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil”. É nesse ponto que fica clara uma
questão recorrente no texto, o Brasil oficial não coincide com o Brasil real,
logo ele não existe. É no famigerado último verso, que se reserva a mais
polêmica frase. “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”.
Segundo Raul Antelo4 “não é que o Brasil não exista. Não existe qualquer
identidade como matéria. Toda identidade é um desenho imaginário que produz
efeitos simbólicos5”.
Há um Brasil que
precede o Estado e, consequentemente, não pode ser reduzido à imagem oficial. É
como se o Brasil fosse um signo tão pleno de sentido que não pudesse ser apreendido
por uma simples operação hermenêutica. O velho clichê parece prevalecer nessa leitura:
tão exuberante quanto sua natureza, o Brasil, o Brasil em si mesmo, o Brasil
bem brasileiro das declarações ufanistas, só pode ser sentido com o coração e
não interpretado racionalmente, pois, ante a plenitude do objeto, a linguagem
parece incapaz de expressá-lo (ROCHA).6
“Nenhum Brasil existe”, porque existem vários
brasis, e não apenas um. Sua origem é feita de pluralidade, enquanto o mundo
corre atrás para entender a diversidade, o Brasil, há décadas, tenta fazer o
caminho contrário, em busca de sua identidade. Talvez, o que muitos ainda não
tenham entendido é que, talvez, nossa identidade, seja não ter uma identidade
fixa e única, e sim diversa, “multi”. Por isso, de forma geral e genérica,
podemos dizer que, o que hoje se vive com a globalização cultural já acontecia
aqui, em proporções bem menores é claro, uma vez que nossa colonização se deu com
a mistura cultural e étnica. Não falamos um único português, falamos sim
variações do português.
No fim do poema, o tom de ironia começa a se
dissolver, dando lugar ao lirismo pessoal do eu - lírico. Após uma série de
sucessivas “brincadeiras” acerca do cenário brasileiro, ele começa a divagar
sobre a realidade que percebe com seu olhar gauche.
Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos...
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.
A introdução da subjetividade é garantida
pelo subjuntivo do verbo “ser” (seja).
A exclamação, abandonada desde o primeiro verso, retorna para contrastar com o
tom de seriedade e subjetividade que essa estrofe contém. Os versos são
maiores, mais densos, gerando uma tensão que explodirá na última estrofe:
[...] Precisamos, precisamos esquecer o
Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?
Nesse momento já não predomina a ironia; o
poeta adquire um tom sério e tenso. É o momento do questionamento de todas as
divagações feitas a respeito do que é o Brasil e como são os brasileiros, ao
longo de toda a sua História. O que antes era apenas “o” Brasil, agora aparece
também como “nosso” Brasil, “este” Brasil, e, por fim, “nenhum” Brasil. O nome
do país adquire novos sentidos; não se trata de um Brasil físico, pois se assim
o fosse, chegaríamos à conclusão de que o poeta estava delirando (no sentido
literal do termo) ao compor o poema. Trata-se das ideologias formuladas acerca deste
país, do Brasil dos livros e dos ideólogos, que fundiu um “hiato” de si com a
realidade, como relatou Marlise Meyer (2001).
Luiz Costa Lima (1968) revelou a existência
de um “princípio-corrosão” na poesia de Drummond: “Corrosão, como a empregamos,
não se confunde com derrotismo ou absenteísmo. Ao contrário, no contexto
drummondiano ela aparece como a maneira de assumir a História, de se pôr com
ela em relação aberta” (p. 136).
Assim, ao analisar “Hino Nacional”, ele
afirma que a corrosão atua na medida em que o tom de blague
das primeiras estrofes se finda com a
seriedade das últimas. Isso nos faz pensar que a blague
não basta para explicar a realidade; mas
também não quer dizer que ela seja totalmente ineficiente. Corrosão, como
explicou Costa Lima, não é simples destruição, mas sim reinvenção. O eu-lírico
ironiza o próprio discurso patriótico modernista, que, em alguns momentos,
atribui rótulos deficientes ao caráter do brasileiro.
A ironia abarca em si as antíteses e
ambivalências presentes em todo o poema, pois ela também é um instrumento
ambivalente. Sant’anna argumenta que
Por sua origem, a
ironia é um instrumento de defesa e funciona como elemento reparador nas
relações entre o indivíduo e o grupo social. Possui natureza dupla: sendo sinal
de desajustamento do indivíduo em relação ao grupo de pessoas (ou pessoa), é
também elemento de comunicação entre eles, funcionando como “correction”.
[...] O humor é a válvula de escape de tensões numa relação (1972, p.
61).
Partindo desse ponto, chegamos à conclusão de
que a linha irônica que se traça no decorrer do poema, divide-o em várias
perspectivas, alimentando as oposições, as contradições, as antíteses. Por outro
lado, o humor, sendo uma “válvula de escape”, permite obter, através da
palavra, uma transformação que se realize de alguma forma na realidade.
O desfecho do poema é dado com uma
interrogação que pode ser transcrita de outras formas: o que é ser brasileiro?
O que é o Brasil? Tais questões são sugeridas não para serem respondidas, o que
resultaria em sua eliminação. Ao contrário, o poema propõe que elas estejam
sempre presentes em qualquer tentativa de caracterização da identidade
nacional, tentativas que não se devem cessar, já que são elas que alimentam a
vida cultural de um povo.
Notas:
1
Falaremos disso mais adiante.
2
“Gigante pela própria natureza, é belo, és forte impávido
colosso...”; “Ordem e Progresso”.
3
Os defensores de João Pessoa alegam que ele foi um combatente das
oligarquias locais e se contrapunha aos interesses de grupos tradicionais,
embora ele mesmo proviesse de família de oligarcas. Seu assassinato foi
considerado o estopim da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Pessoa_Cavalcanti_de_Albuquerque/>.
Acesso em: 06/07/08.
4
Professor da UFSC.
5
Diz Raul, em um de seus ensaios escritos para o jornal O
Estado de São Paulo .
6
Autor do prefácio do livro Nenhum
Brasil Existe.
Referências:
ANDRADE,
Carlos Drummond de. Brejo das almas.
Rio de Janeiro: Record, 2001.
BARROS,
Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto.
São Paulo: Ática, 1990.
BOSI,
Alfredo. História concisa da literatura
brasileira. São Paulo:
Cultrix, 1995.
CANDIDO,
Antonio. O estudo analítico do poema.
São Paulo: EdUSP, 1994.
DAMATTA,
Roberto. O que faz do Brasil, Brasil?.
Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
FREYRE,
Gilberto. Casa grande & senzala.
Rio de Janeiro: Record, 2001.
GOMES,
Ângela Maria de Castro. Confronto e compromisso no processo de
constitucionalização (1930-1935). In: O Brasil
republicano. Vol. 3.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, p. 7-72.
HOLANDA,
Sérgio Buarque. Raízes do Brasil.
Rio de Janeiro: Cia. das Letras, 2001.
LEITE,
Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro:
história de uma ideologia. São Paulo: Ed. Unesp,
2002.
LIMA,
Luiz Costa. Lira e antilira.
Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
MEYER,
Marlise. Um eterno retorno: as descobertas do Brasil. In: Caminhos
do imaginário no Brasil. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2001, p. 19-46.
ROCHA,
João Cezar de Castro. Nenhum Brasil existe.
Ed. Topbooks, 2001.
SANT’ANNA,
Affonso Romano de. O gauche no tempo.
Rio de Janeiro: Lia, INL, 1972.
Juliana
Nascimento, Revista FACEVV | Vila Velha | Número 5 | Jul./Dez. 2010 |
p. 68-75
***
Outra
análise do poema “Hino Nacional”, de Carlos Drummond de Andrade
No poema “Hino Nacional” (OC, 2002, p.
51-52), extraído de Brejo das almas (1934), o poeta traz à tona o
Brasil e sua brasilidade de forma crítico-reflexiva, irônica e bem-humorada.
O título do poema é uma alusão ao Hino
Nacional brasileiro, um dos quatro símbolos da República Federativa do Brasil,
cuja letra é de Joaquim Osório Duque Estrada (1870- 1927) e música de Francisco
Manuel da Silva (1795- 1865). Seu caráter laudatório difere do poema em análise
de tom crítico, reflexivo e contestatório. Antonio Cândido declara que a Literatura
Brasileira assume um compromisso com a construção de uma nação: “[...] A literatura
do Brasil, como a dos outros países latino-americanos, é marcada por este compromisso
com a vida nacional no seu conjunto, circunstância que inexiste nas literaturas
dos países de velha cultura” (1975, p. 18). Além da tonalidade do humor
e da ironia, a poesia drummondiana apresenta um olhar arguto, perspicaz e
comprometido com seu tempo em que “As leis não bastam”, por isso são
necessárias palavras “roucas e duras, / irritadas, enérgicas” (OC, 2002, p.
125-130).
O poema “Hino Nacional”, composto de
oito estrofes irregulares, é construído a partir de dois tempos verbais:
presente do indicativo seguido de um verbo no infinitivo – “Precisamos
descobrir”, “Precisamos colonizar”, “Precisamos educar”, “Precisamos louvar”, “Precisamos
adorar” e Precisamos, precisamos esquecer”; futuro – “O que faremos importando francesas”,
“Compraremos professores e livros”, “E cuidaremos do Estado Técnico”. Os verbos
estão na primeira pessoa do plural, conferindo a ideia de que todos nós, poeta
e leitores, reflitamos sobre Brasil e nosso papel em sua construção. O poeta
brinca, ainda, com os verbos no gerúndio - “O Brasil está dormindo, coitado” -
para conferir ao texto um tom de prolongamento e de mansidão. O país precisa
ser conhecido e potencializado. Não pode e não deve permanecer “Deitado
eternamente em berço esplêndido”.
Na segunda estrofe, o eu lírico
questiona o que faremos importando francesas louras, alemãs gordas, russas
nostálgicas, sírias fidelíssimas e as japonesas. O período da escritura de Brejo
das almas (1934) é também o período mais intenso da imigração em
solo brasileiro. Além disso, somos frutos de um processo de hibridação. A chegada
de mais estrangeiros, leva-nos a pensar em um novo processo de colonização.
Notar que as mulheres que chegam não são índias, tampouco portuguesas, marcando
um distanciamento geográfico entre Europa e Oriente. Esse distanciamento é o
mesmo vivenciado pelo eu lírico gauche e a realidade no qual ele está
inserido.
Na estrofe seguinte, “Precisamos educar
o Brasil”, o verbo educar vem acompanhado de outros, como comprar, assimilar,
abrir e subvencionar. “Professores e livros” serão comprados. Na era da industrialização,
pessoas são reduzidas à movimentação financeira. No quarto verso “assimilaremos
finas culturas, / abriremos dancings e subvencionaremos as elites” a
cultura-americana e as elites brasileiras são criticadas. Essa mesma análise já
havia sido realizada pelos modernistas paulistas, sobretudo por Oswald de
Andrade (1890-1954) em seu “Manifesto Antropofágico” publicado na Revista
Antropofagia (1928-1929). Enquanto Drummond faz uma crítica à cultura
estrangeira e às elites que a solidificam, Oswald apresenta uma proposta mais
radical: devorar a cultura estrangeira e criar uma cultura nacional. Seria uma inversão
de papéis: evoluiríamos da condição de devorado para devorador. O passado
cultural seria engolido, um (novo) presente, construído. Atente-se, ainda, ao
facto de que, ao longo do poema, o poeta diz do que precisamos e do que não
precisamos.
Na quarta estrofe, em tom político,
explicita-se uma (quase) promessa: “Cada brasileiro terá sua casa / com fogão e
aquecedor elétricos, piscina, [...]”. Até os dias de hoje, é insinuado pelos
governantes que cada brasileiro terá o mesmo padrão de vida, dentro de um estado
laico, moderno e industrializado. O verso “E cuidaremos do Estado Técnico”
remete-nos à influência científica e positivista que dominou o século XIX.
Somos uma “terra de sublimes paixões
[...]”. Nesse instante, outra alusão é feita ao Hino Nacional “Nossos bosques
têm mais vida / Nossa vida no teu seio mais amores”. Se palavra puxa palavra,
diríamos que música/poema puxa poema, porque nos faz lembrar de “Canção do
Exílio”*, do poeta
Gonçalves Dias (1823-1864) “Nosso céu temais estrelas, / Nossas várzeas têm
mais flores, / Nossos bosques têm mais vida, / Nossa vida mais amores”. O Hino
Nacional traz em seu bojo os elogios que faltam ao poema drummondiano: “Gigante
pela própria natureza / És belo, és forte, impávido colosso / E o teu futuro
espelha essa grandeza” [...]. Somos uma nação apaixonada pelo samba e pelo
futebol.
_________
*
“Canção do Exílio” foi um poema escrito em 1843 e integra a obra lírica Primeiros
Cantos (1843), composta pelo poeta romântico Gonçalves Dias; produzida em
um momento de intenso nacionalismo, devido à recente separação entre a colônia
brasileira e a metrópole portuguesa. A ordem é exaltar os valores naturais do
Brasil. Quando o texto foi escrito, Dias cursava Faculdade de Direito em
Coimbra. Vivia um exílio geográfico. Além de fazer alusão ao Hino Nacional, o
poema alude à Canção Militar do Expedicionário (no trecho) “Por mais terras que
eu percorra, não permita Deus que eu morra; Sem que volte para lá”.
Carlos Drummond de Andrade: O poeta na condição de leitor, Luciana Silva. Fortaleza,
Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação
em Letras, 2021.
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