quarta-feira, 14 de maio de 2025

Blogue, Fernando Pinto do Amaral

 

Fernando Pinto do Amaral

Blogue

 

Mantivera no fim da adolescência

aquilo a que chamava simplesmente

o seu diário íntimo:

páginas manuscritas onde ardiam

rastilhos1 de mil sonhos que rasgavam

as mordaças da angústia social,

a timidez tão própria da idade.

 

Nessa caligrafia cuja cor

fora ainda a do sangue

colheu a energia necessária

para atravessar como um sonâmbulo

o ordálio2 daquela juventude,

o seu incandescente calendário

de amizades vorazes3, tão velozes

como os amores que julgava eternos

e outras feridas mal cauterizadas4.

 

Hoje quase não volta a essas páginas:

estamos no século XXI

e em vez do diário de outros tempos

mantém agora um blogue

onde todos os dias extravasa5

recados, atitudes, confissões,

coisas no fundo tão inofensivas

como o fogo que outrora lhe acendia

as frases lancinantes6

– embora hoje em dia quando escreve

tenha por um momento a ilusão

de que as suas palavras continuam

a propagar ainda o mesmo vírus,

e a alimentar, quem sabe, os mesmos

sonhos

sempre que alguém desconhecido as ler

como quem só assim então escutasse

um segredo na noite do mundo.

 

Mas, apesar de todo o entusiasmo

que o mantém acordado por noites sem fim,

ele adivinha que também virá

um dia a abandonar sem saber como

o seu atual vício solitário

e dentro de alguns anos, ao reler

as frases arquivadas no computador,

talvez tudo isso lhe pareça então

fruto de gestos tão adolescentes

como os que antigamente preenchiam

esses cadernos amarelecidos

e hoje sepultados para sempre

em esquecidas gavetas de outro século.

 

Fernando Pinto do Amaral, Poemas Escolhidos (1990-2007), Dom Quixote, 2009

 

Notas:

1. rastilhos: canudos ou fios de pólvora. 2. ordálio: sofrimento. 3. vorazes: passageiras. 4. cauterizadas: cicatrizadas. 5. extravasa: derrama, despeja, produz em abundância. 6. lancinantes: dolorosas, pungentes.

 

Linhas de leitura:

-  Que transformações ocorrem na forma como o sujeito poético expressa os seus sentimentos ao longo do tempo?
(Explora a passagem do diário manuscrito para o blogue e o que isso revela sobre crescimento e mudança.)

-  De que forma a escrita serve como libertação emocional nas diferentes fases da vida do sujeito?
(Reflete sobre o papel da escrita na adolescência e na idade adulta.)

-  O que simboliza a expressão “caligrafia cuja cor fora ainda a do sangue”?
(Pensa na intensidade emocional associada à juventude.)

-  Que críticas ou reflexões o poema sugere sobre a exposição das emoções nas plataformas digitais?
(Analisa a diferença entre o íntimo (diário) e o público (blogue).)

-  Como é retratada a juventude neste poema e que marcas ela deixa no sujeito poético?
(Observa a linguagem usada para descrever amizades, amores e angústias.)

-  O “ele” do poema representa um indivíduo específico ou uma geração? Que pistas textuais sustentam essa leitura?
(Interpreta o valor simbólico do sujeito descrito.)

 


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