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domingo, 24 de julho de 2022

pratica-te como contínua abertura, Herberto Helder


pratica-te como contínua abertura,

o mais atento que custe,

com uma volta sobre ti mesma até eu aparecer no outro lado do rosto,

quando te olhas,

espera que desapareça o ruído em cada palavra,

e agora só a ela se ouça,

e então aumenta tanto quanto possas se escutas

que me aproximo,

a género de abrasadura mulheril,

a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo,

edoi lelia doura,

que o mênstruo coza e a seda escume,

à luz que nasce da roupa,

e os substantivos perfeitos respirem uns dos outros na têmpera

e frescor da língua indestrutível,

e então estendo por ti acima o melhor do meu braço,

se é que posso fulgurar,

e enquanto crio, cria-me, e cria-te como começo de mim mesmo,

isto: que unas o avulso,

se te puderes mover como o ar que respiro, ó

irrepetível, inenarrável, inerente

 

HELDER, Herberto. “A faca não corta o fogo”.

In: Ofício Cantante – poesia completa.

Lisboa: Assírio & Alvim, 2009. p. 537.

 

 

 

TEXTOS DE APOIO

TEXTO 1

 

O verso “edoi lelia doura” serve de título à Antologia das Vozes Comunicantes da Moderna Poesia Portuguesa organizada por Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim,1985).



Edoi lelia doura” é um conhecido refrão da cantiga trovadoresca galego-portuguesa “Eu velida nom dormia”, de Pedro Anes Solaz/Pedr'Eanes Solaz, que teve diferentes interpretações ao longo do tempo:

«Por exemplo, Braga (1878: CII) afirmaba con certa contundencia que se trataba dunha onomatopea galega, mais desde a década de 60 do século XX concluíuse que estaba en árabe, embora as traducións sobre o que o texto árabe (se callar, cun fragmento en romandalusí?) diría foron mudando co tempo. Para Brian Dutton (1964: 1-9) e Olga Novo (2013: 82 e 86) sería sobre a noite que dura e se fai longa, unha idea que ten ligazóns directas con outras composicións dos nosos códices, como as lindísimas «Sen meu amigo manh’eu senlheira» (B 1165 / V 771) e «Aquestas noitas tan longas, que Deus fez en grave dia» (B 1176, V 782), ambas de Juião Bolseiro.

Por outra banda, para Rip Cohen e Federico Corriente o refrán significiaría «it’s my turn» (Cohen & Corriente, 2002: 27), ‘é a miña vez’.»

 

Carlos Callón. SCRIPTA, Revista internacional de literatura i cultura medieval i moderna, núm. 15 / juny 2020 / pp. 1 – 15 ISSN: 2340-4841· doi:10.7203/SCRIPTA.15.17551

 

 



TEXTO 2

 

O verso “edoi lelia doura” aparece no meio do poema, cortando a sequência de imagens sobre o ato de criação. Inscreve, no meio de um diálogo entre um "eu", poeta e criatura textual, e um "tu", musa e texto, uma dupla referência: por um lado, evoca Pedro Eanes Solaz que abre a antologia de "vozes comunicantes". Por outro lado, evocando esta antologia, dialoga não só com o trovador, como também com toda a história da poesia lírica portuguesa, “cálculo lírico”; e claro, H. Helder alude ao seu próprio trabalho de poeta, à sua própria antologia de poesia portuguesa. A citação permite imaginar que o interlocutor do poeta seria uma espécie de arqui-antologia, a própria obra sobre a qual o poeta concentra sua atenção, "o melhor do [seu] braço". A obra é praticada como uma “abertura contínua”, um corpo que “cresce” até um certo tamanho que é medido pelo “desaparecimento” do ruído das palavras, deixando apenas o som da própria palavra.

O trabalho de abertura, que é o de criação, é também um trabalho circular, “uma volta sobre ti mesma”. O fruto desse trabalho é o "rosto" do eu; então, o próprio "eu" torna-se a obra. Apontamos a estreita relação entre o eu e o texto, especialmente em “A Faca Não Corta o Fogo”. Percebemos que, mais do que uma coincidência de corpos, é uma coincidência entre seu sopro vital e o texto. O pneuma é referido três vezes no poema: as batalhas de "ar e fogo", a respiração dos substantivos e o ar que o poeta respira. Note que o sopro vital é, portanto, o sopro do trabalho, o sopro do texto e o sopro do criador. Trata-se de respirar, às vezes ofegante, às vezes exalação longa, como mostra a oscilação entre versos curtos e versos mais longos. Na penúltima linha antes do final, o poeta enfatiza que a tarefa do interlocutor é reunir o que está separado; em outras palavras, é tarefa da antologia.

 

Daniel Rodrigues. Les démonstrations du corps. L’œuvre poétique de Herberto Helder. Littératures. Université de la Sorbonne nouvelle - Paris III, 2012, pp. 208-210.

 

TEXTO 3

 

O primeiro verso revela-nos uma aspiração, um pedido do sujeito poético: “pratica-te como contínua abertura,”. A quem ele solicita a prática da “contínua abertura”? Temos que ele se refira à arte poética, à poesia. O sujeito almeja a constituição de poemas abertos, ou seja, que aludam a uma totalidade, a um inacabamento que sugira o infinito, o absoluto em poesia. […]

Os versos “com uma volta sobre ti mesma até eu aparecer no outro lado do rosto,/ quando te olhas,” corroboram o exercício da arte poética como uma atividade centrada em si mesma. A expressão “com uma volta sobre ti mesma” enfatiza a metapoesia, sugestionada no emprego do termo circular “volta”, ou seja, daquilo que gira em torno de si mesmo. Na sequência, o sujeito poético indica um trabalho em conjunto entre ele e a obra em processo, pois solicita que ela dê uma volta sobre si mesma até que ele apareça no outro lado “do rosto” ou “do poema” cuja fisionomia já supostamente se entrevê. A questão da metapoesia retorna novamente, pois o verso quarto insiste nela: “quando te olhas”, quando a poesia volta-se sobre si mesma.

Supõe-se que o sujeito poético passa a narrar o processo criativo, e então ele continua: “espera que desapareça o ruído em cada palavra,/ e agora só a ela se ouça,/ e então aumenta tanto quanto possas se escutas/ que me aproximo/ a gênero de abrasadura mulheril,/ a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo,”. O sujeito se dirige à obra em processo, equiparando-a a uma mulher, a saber: “uma volta sobre ti mesma”, “a gênero de abrasadura mulheril”, são expressões que a enquadram no âmbito do feminino. Quando se pede para que espere o desaparecimento do “ruído em cada palavra”, enfatiza-se o processo de depuração da palavra poética. A purificação da palavra atinge o seu ápice no momento em que “só a ela se ouça”, e como o processo criativo envolve o trabalho concomitante do sujeito e da obra, tem-se a reversibilidade do ato de um no outro, de modo que existe uma co-participação fundamental entre os dois e da qual dependerá o futuro poema: “e então aumenta tanto [a voz da obra] quanto possas se escutas/ que me aproximo [o sujeito poético]”.

De que modo deve efetivar-se o entrelaçamento entre obra e autor para que se obtenha o poema? Os versos “a gênero de abrasadura mulheril/ a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo” nos respondem. Primeiramente, com a força do erotismo feminino, visto que se fala em “abrasadura mulheril” – o processo criativo do poema equipara-se ao erotismo-sexual, já que poeta e palavras se aproximam e se entrelaçam, de modo análogo aos corpos dos amantes. Em seguida, encontramos a expressão “cálculo lírico” que, por sua vez, corrobora o sentido do segundo verso “o mais atento que custe”. O termo “cálculo” refere-se ao trabalho “matemático” executado pelo poeta no que diz respeito ao processo compositivo do poema, destacando a importância do papel da dimensão reflexiva. Por fim, este “cálculo lírico” é “infundido”, ou seja, inspirado, o que também aponta para a importância do papel do dom na confeção do texto. Ambos, dom e trabalho atuam de maneira igualmente relevante “nas lides [lutas, combates com as palavras] de ar e fogo”, isto é, no processo poético.

O verso “edoi lelia doura” faz referência a um livro de Herberto Helder, publicado em 1985 e de mesmo nome. Na verdade, a expressão “edoi lelia doura” é encontrada numa cantiga de amigo do século XIII e de autoria do jogral Pedro Eanes Solaz. O poema herbertiano retoma esta cantiga e a coloca como uma espécie de epígrafe ao seu livro de antologia de vozes comunicantes da poesia portuguesa. A expressão “edoi lelia doura” por muito tempo foi compreendida como um refrão onomatopaico, apresentando-se como uma cadeia sonora ou rítmica sem um significado específico. Na década de 60, estudiosos passaram a sugerir que o refrão desta cantiga de amigo se trata, na realidade, de um refrão em língua árabe e que se traduz por “e a noite roda” ou “a noite é longa”. No poema herbertiano, a expressão “edoi lelia doura” alude, portanto, ao encontro do sujeito poético com a faceta noturna do processo criativo e que antecede ao dia: o poema.

Logo a seguir, deparamo-nos com o verso “que o mênstruo coza e a seda escume”, o que novamente transpõe a obra em processo para o âmbito do feminino, em razão do aparecimento do termo “mênstruo”. A mulher que menstrua é potencialmente fértil e o desejo ou ordem para “que o mênstruo coza” denota igualmente o desejo de que a obra em processo resulte no poema. Que o “mênstruo” ou o “sangue da fertilidade” “coza”, isto é, que prepare o poema, que o possibilite. O verso continua e pede-se para que a “seda escume”, que a tessitura do poema aconteça. Continuando a leitura do poema, encontramos “à luz que nasce da roupa”. A palavra “luz” indica o aparecimento do poema, indica o momento em que a mescla de dom e trabalho ou de sujeito e obra é bem-sucedida. No caso, o surgimento do poema encontra-se ainda na esfera do desejo. Na obra herbertiana, o termo “roupa” apresenta-se muito recorrente e tem a ver com poema, na medida em que este é costurado ou tecido como a roupa. O texto poético é um artefacto humano, seda tecida pelas mãos do poeta.

O desejo de que a “luz” nasça da roupa continua a ser narrado, a ser detalhado. Para isso, é preciso que “os substantivos perfeitos respirem uns dos outros na têmpera”, quer dizer, que os “substantivos perfeitos” - a palavra poética, os nomes – entrelacem-se, “respirem” uns nos outros do modo mais exato, vital. Que as palavras entrem em pleno acordo, que as conexões entre elas sejam as mais eficazes possíveis. Como o poema é um animal, um corpo, um ser vivente, natural que as palavras “respirem” umas nas outras. Para tal intento, o poeta deve conferir o “tratamento térmico” adequado para que o poema surja. Se lembrarmos de que a figura do poeta pode ser, entre tantas, a do forjador de metais, temos que ele trabalha o metal, principalmente o aço, conferindo-lhe a consistência desejada por meio da operação de “têmpera”. Torna então o metal mais consistente, submetendo-o a um banho que consiste num choque térmico. Sob este aspecto, o poeta realiza a operação de “têmpera” sobre as palavras, tornando-as mais consistentes ou “substantivos perfeitos”, resultando desta operação “o frescor da língua indestrutível”, tal como o aço.

Narrando ainda a experiência poética, o sujeito poético enuncia “e então estendo por ti acima o melhor do meu braço,/ se é que posso fulgurar,”. Disto, depreende-se que o sujeito faz o melhor que pode para que surja o poema, pois estende o melhor do seu “braço” para a obra em processo, se bem que ele não possui a certeza de que o seu esforço será suficiente para a consecução do poema e, por isso, o verso “se é que posso fulgurar”. Não sabe se a luz, se o brilho, se a fulguração advirá do processo criativo.

Aventando a hipótese do resultado frutífero, o sujeito poético continua e finaliza a sua narração sobre a experiência poética: “e enquanto crio, cria-me, e cria-te como o começo de mim mesmo,/ isto: que unas o avulso,/ se te puderes mover como o ar que respiro, ó/ irrepetível, inenarrável, inerente”.

Trata-se de uma parte crucial do poema, pois aqui os versos evidenciam a reversibilidade entre as categorias de sujeito e objeto. Ambos, sujeito e obra ocupam os dois polos da clássica dicotomia a ponto de não mais podermos distingui-los. […]

Portanto, o papel do trabalho poético consiste em “soldar” esta experiência vivenciada de modo mais integral e repentino pela consciência, soldando os fragmentos que se apresentaram por conta desta experiência sensível: “isto, que unas o avulso,”. Nos poemas herbertianos, constantemente a afirmação da busca da unidade entre as coisas fundamenta o canto poético. O poeta deve unir o avulso, soldar os fragmentos a fim de compor o poema, empregando a linguagem analógica. Quando Herberto Helder publica o seu prefácio para o livro de António José Forte, temos que ele tece um comentário que vale para a sua própria poética:

 

Como muita poesia surrealista ou afim, a de Forte molda-se num corpus de fragmentos soldados por pontos magnéticos de analogia imagística ou verbal, por enlaces rítmicos: uma colagem orgânica de fragmentos. O continuum, sempre perfeito, denota a ágil intuição dos recursos de escrita, uma oficina atenta. (HELDER, Herberto. “Nota inútil”. In: FORTE, António José. Uma faca nos dentes. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2003. p. 14.)

 

Portanto, a finalidade é conectar, soldar o avulso, confecionando a “colagem orgânica de fragmentos”, ou melhor, o poema. Eis a linguagem analógica, a que procura entrever semelhanças entre os heterogêneos. Tudo o que se encontra comumente fragmentado ou separado pode servir de matéria para o espaço do poema, desvelando as relações secretas entre as coisas:

 

(...) o sentido não-intelectual, supra-racional, corporal, do poder da imaginação poética para animar o universo e identificar tudo com tudo. A cultura moderna tornou-se incapaz de tal ênfase, pois trata-se de uma cultura alimentada pelo racionalismo, a investigação e o utilitarismo. Se se pedir à cultura moderna para considerar o espírito enfático da magia, a identificação do nosso corpo com a matéria e as formas, toda a modernidade desaba (...). É forçoso ir longe, aos recônditos do tempo, ir beber nas noites ocultas. Parece que a física, agora, começa a trabalhar no sentido da pergunta poética: as coisas têm entre si relações de mistério, não relações de causa e efeito. Abre-se caminho através da obscuridade, inquirindo, seguindo adiante. (HELDER, Helder. “Herberto Helder: entrevista”. In: Inimigo Rumor, n.º 11. 2.º semestre de 2001, p. 193)

 

O excerto herbertiano supracitado corrobora a relevância da linguagem analógica para a poesia: “identificar tudo com tudo”. Dele, depreende-se que a cultura moderna valoriza demasiadamente uma racionalidade estrita, uma razão do tipo obtusa. Sendo assim, a linguagem analógica bebe de outras fontes que não o racionalismo e o utilitarismo, bebe “nas noites ocultas”, na imaginação produtora. Contrapõe-se assim a cultura moderna fundada na razão e a poesia.

Aliás, a palavra “noite” e suas correlatas têm uma função pontual na obra herbertiana: apontar para o contato do sujeito poético com o campo pré-reflexivo. É sabido que Novalis engendrou uma poética noturna, sendo a obra Hinos à noite sobejamente conhecida. Entre outras razões, o espaço da “noite” é valorizado na poética novalisiana, dado que a “noite” simboliza esse caos fecundante em que as coisas se unem e se apresentam sem distinção por conta da escuridão, enquanto que o “dia” tem a conotação da racionalidade que separa e que distingue tudo em razão de sua luminosidade apolínea.

Para a obra de Herberto Helder, tanto o “dia” quanto a “noite” têm conotações positivas e constituem etapas imprescindíveis do processo criativo, pois enquanto a “noite” aponta para o caos fecundante do campo pré-reflexivo, tem-se que o “dia” ou qualquer outra forma de luminosidade apontam para a possibilidade do surgimento do poema, indicando que o vínculo entre dom e trabalho ao menos parece bem-sucedido. E esta conotação positiva a respeito do “dia” se deve muito ao diálogo da poética herbertiana para com o cinema e a fotografia, tecnologias em que a luz possui um papel técnico fundamental na composição da imagem. Como veremos no capítulo II, esta faceta noturna do processo criativo e que se converte no dia tem também a sua relação com a obra do poeta Hölderlin.

No intuito de finalizar a análise do poema, vimos que o verso “isto: que unas o avulso” suscitou-nos uma grande discussão de cunho teórico para que entendêssemos que a linguagem analógica rege a construção dos poemas herbertianos, deixando-os propositadamente e necessariamente obscuros.

O poema termina com os versos “se te puderes mover como o ar que respiro, ó/irrepetível, inenarrável, inerente”. Caso sujeito poético e obra em processo entrem em concordância, caso estejam na mesma sintonia, tem-se o “irrepetível, inenarrável, inerente”: o poema.

 

Árvore do ouro, árvore da carne: problematização da unidade na obra de Herberto Helder. Análise de poemas d'A faca não corta o fogo, Tatiana Aparecida Picosque. São Paulo: FFLCH/SBD, 2012, pp. 106-117.

  


CARREIRO, José. “pratica-te como contínua abertura, Herberto Helder”. Portugal, Folha de Poesia, 24-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/pratica-te-como-continua-abertura.html



quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Como falar de Herberto Helder? – Crónica de Eduardo Prado Coelho



COMO FALAR DE HERBERTO HELDER?

1. Em parte, é claro, pela altíssima qualidade desta poesia, mas também pelo halo de silêncio com que o autor a rodeia, e que nem exclui o recurso ao arame farpado, a verdade é que leitores e críticos sentem uma espécie de pânico, ou terror, em falarem ou escreverem de Herbert Helder. Talvez o problema resida neste "sobre". A poesia de Herbert Helder desaloja qualquer posição de sobranceria ou arrogância em relação ao texto. O resultado desta humilhação consentida é uma espécie de afasia. Poderemos resolver a questão dizendo que se escreve "a partir de Herberto Helder", ou então, num ombro a ombro incerto, numa fraternidade de escrita forçosamente assimétrica, “com Herberto Helder''? Experimentemos.
2. Um texto recente de José F. Salgado, "Herberto Helder e a Arte d'os Selos: apontamentos para uma poética herbertiana", publicado no magnífico volume I dos "Santa Barbara Portuguesa Studies", coloca muito bem as coisas:"Na sua condição de híbrido irredutível - nem inocência, nem demoníaco, 'nem música nem cantaria'- a poesia escapa a qualquer tentativa de totalização, a qualquer esforço de interpretação. Como assinala Lindeza Diogo, 'o texto herbertiano é muito crítico do leitor, porque este, interessado na captação de energia através de representações significativas, leva para o meio dos enigmas um medo menor'. Trata-se de uma poesia resistente, reticente, à leitura. Porventura, mesmo à de Deus. 'Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos?’”.
Donde, o leitor deve levar para o meio dos enigmas um medo maior. Mas como falar com a boca selada de pavor?
3. A inibição crítica começa por ser o reconhecimento da impossibilidade da totalização. Isso nos é dito desde o título: na sua talha clássica, "do mundo" dá-nos a indicação de uma linha de fuga. Não "o mundo", entidade composta e fixada, mas "do mundo", fala ostensivamente em hemorragia e disseminação. Talvez por isso mesmo o crítico, ou, mais modestamente, o leitor-comentador, deveria falar, quando fala de Herberto Helder, em falar "de Herberto Helder" - à semelhança "do mundo". Em pura perda de sentido e de si. Em desequilíbrio: um "do" a mais, um "de" a mais, e tudo se perde, ou de nós foge.
4. "Do Mundo" apresenta-se como o prolongamento de um conjunto anterior, "Os Selos", e como a (re)escrita de um outro livro, "Retrato em Movimento", aqui recuperado naquilo "que foi possível fragmentariamente salvar". Este implacável rigor em relação a si mesmo, esta capacidade de devastação generalizada a que apenas escapam provisoriamente alguns destroços luminosos, não pode deixar de contribuir para aumentar o terror nas letras, e imobilizar sadicamente o leitor. Necessidade de ler sobre um horizonte de morte e destruição, com palavras sobreviventes e gestos náufragos. Política de terra queimada - onde tentaremos dar alguns passos hesitantes. Em desequilíbrio, em queda.
5. Toda esta poesia nos ajuda a aprender a arte do desequilíbrio. E, sobretudo, de como fazer desse desequilíbrio uma forma de andar, um diálogo com o vento, uma prática do "surf” poético: aprendizagem do uso produtivo da vaga, ou da memória bíblica de caminhar sobre as águas. O desequilíbrio como "miraculação do mundo".
Ao começar no desequilíbrio que move as próprias palavras. Leia-se na página 29: "a uma devagarosa mulher com cinco dedos potentes". Um "de" enreda a palavra para dentro de si mesma, mas, no processo de fragmentação interior, emerge, na permanente vacilação entre o nome comum (será que existe?) e o nome próprio, a palavra "rosa". Na página 37, "rosas divagadas pelas roseiras" imprimem o vago no cerne do vagar. No mesmo poema, o importante é a rosa no seu esplendor de corpo e nome: "E esperar que a lepra cubra os dedos, escrever: Rosa - I encadeado na rotação do nome. / Ir colher ao último alfabeto a rosa extremamente escrita." Repare-se mais uma vez na importância dos advérbios de modo. Na sua reticência, no seu retardamento, no seu retesamento, eles servem para "devagarar" os versos, fazendo que a demora se deixe habitar por uma expectativa erótica, femininamente intensificada.
6. Compreender também que tudo é lugar. Numa formulação pedante e pedestre, diríamos que há um processo expansivo de topologização. Não são apenas as coisas que funcionam como lugares - são também as palavras. Veja-se um exemplo da página 31: "as crianças entram no sono que as aguardava como uma sala". Portanto, as crianças não "adormecem", mas "entram no sono", e o sono é como uma sala (a aliteração ajuda a convecer-nos). Note-se ainda que a sala não "aguarda", mas "aguardava”, isto é, espetava desde sempre, intemporalidade do sono, as crianças que aí entram. Sala vazia, forrada de inconsciente e memória do mundo.
Veja-se agora na página 45 o verso em que se diz: "glicínias em declive pelo perfume dentro". Primeiro, a reversibilidade: não é o perfume que está nas glicínias, são as glicínias que estão no perfume. Segundo, estão "em declive".
Este ponto é importante. Ele permite-nos notar os principais eixos de deslocação no espaço da poesia de Herberto Helder: na zona mais forte, a verticalidade ascensional e eufórica ("este que chegou ao seu poema pelo mais alto que os poemas têm"), e que tende sempre a funcionar como uma explosão, uma abertura para o exterior; em contrapartida, a queda, a vertigem de cair no interior de si mesmo: processo de concentração, área de implosão e acumulação noturna de energias; por fim, a declinação dos corpos, o declive, a inclinação amorosa: “Beleza ou ciência: uma nova maneira súbita/ - os frutos unidos à sua árvore, / precipícios,I as mãos embriagadas.I E os animais aprofundam-se, encurvam-se os dias,I as pêras brilham,I o teu vestido é grande se te olho devagar.I O teu corpo transmite-se ao vestido.I Penso na glória do teu corpo./ E inclina-se a luz até os dias caírem dentro dos dias invisíveis./ A terra move-se sobre os lados, ensinas-me/ o que não saberei nunca: a água ronda".
Notar que, neste feixe de correntes, o que se omite é a horizontalidade - homenagem ao desequilíbrio, evidentemente. A não ser sob a forma de círculo (os passos em volta, a água ronda, a forma redonda da iluminação) que aparece como emanação transparente do núcleo mais puro das coisas.
Porque coisas e pessoas (qual a diferença em termos de amor?) adensam-se e soltam-se em sístoles e diástoles que correspondem à pulsação do mundo. Privilégio das crianças e dos animais. Nesse ponto, os comentários de José F. Salgado são extremamente pertinentes: "A localização do animal é indeterminável, indecidível: entre a objetividade da coisa e a subjetividade do humano, o animal põe em causa a oposição humano/coisa, é o meio termo intangível entre a familiaridade da subjetividade absoluta e a absoluta distância da coisa irremediavelmente estranha. Nem Absoluto Outro nem Mesmo, o animal faz desmoronar-se a aparente polidez dos lugares do sujeito e do objeto."
Os animais, sem dúvida, mas também as crianças -todos os seres que sabem toccar no centro de si próprios. Tocar - como o pé toca a água, no milagre da poesia que caminha sobre o mundo, transportando o seu cardume de palavras sôfregas.
Mas não vamos ficar por aqui.


Crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 10 de junho de 1995.




QUESTÃO DE TACTO

1. Continuemos a ler “Do Mundo", de Herberto Helder (Assírio e Alvim).
No texto anterior, referia-me aos seres que se tornam opacos à força de se acumularem no centro de si mesmos. Falava de animais, falava de crianças. Na página 37, lê-se: "Porque a criança atravessa tudo e toca já no centro de si mesma." Tentemos compreender. Primeiro, a criança atravessa tudo. Gostaria de sublinhar que, em Herberto Helder, existe uma vacilação permanente entre o micro e o macro, o doméstico e o cósmico. Podemos caracterizá-la como uma incessante e brutal mudança de escala. Quando se diz que a criança "atravessa tudo", isso significa que a sua correria (no quarto, no pátio da escola) é ao mesmo tempo, e desde sempre, uma correria cósmica – algo que percorre o mundo, que o divide, o corta como um sabre, uma espécie de "laser" ruidoso e ladino. Porque "cada criança / arranca-se à criança lustral com as pratas eriçadas na cabeça, a química / floração trazida acesa". O mesmo se a gente falar no "quotidiano estelar das matérias". Ou ainda: “E quem tem tanta memória que a massa de átomos, / quando passe, / encrespe, acorde, alumie a última criança? / O mistério é só esse; primeiro são cor de pólen, transfundem-se depois em palavras siderais, botânicas." Ou por vezes encontramos o movimento inverso, do cósmico ao doméstico: "Uma volta atmosférica num astro uma / volta do astro no forno uma volta·do forno / em si mesmo."
A ideia de fechamento explica o uso inesperado de certos verbos: por exemplo, a imagem dos seres abotoados. Assim: "e o avesso e o direito, pulmões, estômago, sangue que o corpo todo abotoa". Mas não poderemos deixar de notar como estes botões, frequentes, têm também uma outra função. A imagem do corpo em Herberto Helder pertence à tradição esquizofrénica: por mais que se abotoe, é um corpo furado, e os furos são os próprios botões que o abotoam. Por outras palavras, o exterior e o interior, o direito e o avesso estão num processo de permanente reversibilidade. O corpo é apenas um lugar de passagem entre a sublevação dos órgãos e as grandes massas do mundo. Daí a proliferação de botões que são feridas, chagas, válvulas, buracos, queimaduras. Daí também que a poesia seja como uma ciência do corpo a corpo, do corpo contra o corpo, através de uma forma de ver que seja uma iluminação da matéria mais espessa, das trevas intestinais, das vísceras em brasa: na medida em que "o olhar é um pensamento", esta ciência, ciência última ou poesia mais alta, "é ver com o corpo o corpo iluminado". E então? "E então a luz une-se a toda a volta e cai no abismo dos espelhos."
Outro ponto importante, este, o do infinito das simetrias. Ou, se preferirem, o dos espelhos: o corpo a corpo é também um espelho diante de outro espelho, ilimitadamente outro. "Um espelho em frente de um espelho: imagem / que arranca da imagem, oh / maravilha do profundo de si, fonte fechada / na sua obra, luz que se faz / para se ver a luz."
2. Poderemos falar num "tema" deste livro? A expressão é arriscada. Alguém poderia supor que alguns dos tópicos que tenho vindo a inventariar (o desequilíbrio que precipita as palavras umas para dentro das outras, o devir-lugar de todas as coisas, a reversibilidade generalizada, a ascensionalidade eufórica, a queda implosiva, a circularidade emergente, a oscilação entre o cósmico e o doméstico, o corpo furado, o jogo itinerante dos espelhos, a simetria iluminada) seriam como que "processos". Não, se os entendermos como "técnicas do discurso poético". Sim, se tomarmos a palavra na aceção de Whitehead. Isto é, o único “tema" são os “processos".
Se lermos com alguma atenção, e um desmedido enleio, os poemas deste livro de Herberto Helder, verificamos que em todos eles existe um processo de transmissão de energia. Transmissão ou intensificação, mas a diferença é secundária. Transmite-se normalmente do mesmo ao outro. A intensificação é uma transmissão do mesmo ao mesmo, nada mais. Daí que cada poema agite uma interrogação: como passa a energia da mãe ao filho? como passa a energia do oleiro ao vaso? como passa a energia da dança ritual aos astros? como passa a energia do mestre ao discípulo? e do poeta ao poema? e da matéria ou ouro? e da palavra comum ao nome único e próprio? e do amante à amada? e da amada ao amante ("ensina-me o que não saberei nunca")?
A trama de leitura que nos favorece o acesso a cada poema tece-se em dois lances distintos: em primeiro lugar, precisamos de identificar o movimento dominante (por exemplo, no primeiro poema, a imagem do nascimento, a relação mãe-filho); em segundo lugar, verificarmos como este tema dominante está sobredeterminado por todos os outros. Mas existem ainda dois outros aspetos que merecem ser valorizados. Por um lado, todos os processos de transmissão de energia são dominados por dois paradigmas: o da criação poética (a mãe que dá à luz um filho é um modelo de arte poética), o da relação sexual (a distância que a energia percorre é sempre a da diferença entre os sexos: "o espaço entre os dois nomes: / eu e o mundo, mundo e poema, poema e nascimento. / Ou a morte, substantivo que raia"). Por outro lado, o ensinamento destes dois paradigmas mostra-nos que estamos perante polos com cargas diferentes: há sempre um polo positivo e um polo negativo, há sempre uma assimetria primordial.
Poderíamos dizer que o sexual visa a fusão (redução do outro ao mesmo: 1 + 1 = 1) e que o poético visa a disseminação (resistência do outro ao mesmo: 1+ 1 = infinito), mas seria uma simplificação abusiva. Nesta poesia, existe uma constante contaminação entre o poético e o sexual: a disseminação explode na fusão, a fusão implode na disseminação. "E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as noites / caem dentro dos dias – e eu estudo / astros desmoronados, mananciais, o segredo."
3. Como passa a energia? Repare-se que esta pergunta é apenas uma variação sobre a pergunta de que partimos: como falar de Herberto Helder?
Digamos que o que passa é muito pouco, ou nada: apenas a possibilidade de continuar a passar, e, por pouco que seja, passar cada vez mais: "a arte do ar queimado que passa pela boca". Podemos enumerar algumas modalidades da passagem. Por exemplo, a emanação: "como no corpo se forma o vestido". Por exemplo, a epidemia, os vírus, a expansão da lepra. Ou ainda: a devoração ("se se pudesse, se um inseto exímio pudesse, / com o seu nome de princípio, / entrar numa turquesa, monstruosa pela amplitude / da cor e do exemplo, / se até ao coração da pedra e dele mesmo / devorasse a matéria exaltada”).
Mas em todos estes processos há um que me apetece privilegiar. Nos cumes da altura em que o poema se arqueia existe um lugar que, muito banalmente (para quê sermos originais onde não há razão para isso?), é acima de tudo um lugar de harmonia: ouro, rosa. "É essa coisa que fazes / obscuramente – se um dia és lenha suada ardes / da tua própria resina se / torneias o vaso dás-lhe pela cinta quieta / uma pancada salgada um donaire / de onda, e tocas na curva da bilha: e ficas harmonioso –“.
O processo é – já o sentiram na pele – o de tocar. Aproximação com reserva, retraimento, um medo ainda maior, mas também acesso ao limiar do acesso, ao mais aceso do absoluto. O tocar declina-se em múltiplas formas de incitamento e recuo: no frémito, no arrepio, nos estremecimento, no corpo eriçado de prata e sal. Questão de tacto.

Questão de tacto”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 17 de junho de 1995, p. 12.




“Como falar de Herberto Helder? – Crónica de Eduardo Prado Coelho” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 25-09-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/09/como-falar-de-herberto-helder.html



sexta-feira, 19 de julho de 2019

Herberto Helder – por sobre as águas

Herberto Helder em Vale de Figueira, Santarém, anos 1960 (José Carlos Lucas/Casa Museu Frederico de Freitas)

Herberto Helder como nunca viu (ou ouviu)

A mais completa exposição sobre o autor madeirense faz casa no Funchal até meio de Setembro. Oportunidade para (re)visitar Herberto Helder: a obra e a vida.
Márcio Berenguer PÚBLICO, 18 de Julho de 2019, 12:13

Herberto Helder – por sobre as águas. A exposição biobibliográfica sobre o poeta madeirense, que abre as portas esta quinta-feira no Funchal, reúne todas as primeiras edições do conjunto de cerca de quatro dezenas de títulos em poesia e em prosa da obra de Herberto, publicadas entre 1958 e 2018.
A mostra, que estará patente até 18 de Setembro na Casa Museu Frederico de Freitas, revela também fotografias inéditas de Herberto Helder (1930-2015), e correspondência particular entre o poeta e alguns nomes maiores da cultura nacional como Sophia de Mello BreynerEduardo Prado Coelho ou Eduardo Lourenço.
Pela primeira vez, destaca ao PÚBLICO Diana Pimentel, curadora da exposição, estará acessível o conjunto das cinco entrevistas dadas entre 1959 e 1968 e uma auto-entrevista feita em 1987. “Revelam, de certa forma, como Herberto Helder foi lido e interpelado à época, dando a possibilidade aos seus leitores de poderem — pela sua própria voz — compreender a lucidez, o desassombro e a ironia que Herberto Helder sempre teve no contexto da poesia portuguesa contemporânea.”



Ao longo da exposição sobre a vida e obra do autor de Os Passos em Volta ou Photomaton & Vox, são documentadas factos “pouco conhecidos do público em geral”, como a apreensão, em 1968, do livro Apresentação do rosto.



Autobiografia do autor, que é de índole esquerdista, escrita em linguagem surreal e hermética que como obra literária não mereceria qualquer reparo se não apresentasse passagens de grandes obscenidades (…) Nestas condições entendo que é de propor a proibição de Circular no País para este livro”, lê-se num relatório da PIDE em Junho de 1968, que integra o acervo da exposição.



Em Herberto Helder – por sobre as águas é “visível e legível” a forma “activa e dedicada” com que colaborou com inúmeras edições de antologias, cadernos e revistas literárias entre os anos 50 e 70 do século passado no Funchal, em Lisboa, em Coimbra e em Paris. “É a travessia, também por sobre as águas, da sua poesia pelas artes plásticas (pintura, escultura, fotografia) ou pelo cinema, num diálogo tão antigo quanto actual”, assinala Diana Pimentel, coordenadora do Núcleo de Estudos Herberto Helder, da Universidade da Madeira, explicando que os visitantes podem aceder a materiais multimédia: registos áudio de poemas lidos pelo próprio, documentários, reportagens e adaptações digitais do trabalho do autor.
A exposição, a mais completa sobre o autor, que cultivou “a ética de um rigoroso silêncio” sobre o ofício de escrever, é promovida pela Secretaria Regional do Turismo e Cultura, integrada nas comemorações dos 600 anos do descobrimento da Madeira e do Porto Santo, e constituiu uma oportunidade de contactar com o projecto artístico inédito de Filipa Cruz (Até Os Tempos Não Mais Serem Interditos), que procura pensar a poesia de Herberto Helder enquanto comentário à materialidade e à imaterialidade.

“O propósito maior desta exposição talvez seja o de acompanhar os leitores (iniciais ou experientes) da prosa e da poesia de Herberto Helder pelas inúmeras águas por e sobre as quais a sua obra se abre, continuamente, e se expande — e expandirá”, resume Diana Pimentel, admitindo o espanto contínuo ao montar a exposição. Mesmo que já estudando a sua obra há algum tempo, ainda me continua a surpreender a intensidade e a potência do seu trabalho de escrita, o extremo rigor do seu ofício poético (e editorial) e o modo como a obra de Herberto Helder, em interacção com os seus contemporâneos e com gerações anteriores e posteriores à sua, se não acomodou — nem está, ainda, acomodada — a um tempo.”

Herberto Helder e o pintor Carlos Fernandes.
Corimba - Luanda, 1971 (Fotografia de Júlio de Saint-Maurice)
Herberto Helder em Vale de Figueira, Santarém, anos 1960
(José Carlos Lucas)
Herberto Helder, 1948
Herberto Helder, 1941


sexta-feira, 1 de abril de 2016

Herberto Helder póstumo



oh que beleza sem gramática, que ferocíssimo esplendor:
rosa encarnada pelo ar acima
que é funda curva absurda,
rosa ascendida acesa desde a terra desmanchada,
escrita sobre o papel estrito
— e que o papel arda
que a extrema flor do cacto suba entre folhas espessas e coroas de espinhos,
mas que seja enfim mais peremptória ainda
a rosa irreversível


Herberto Helder, Letra Aberta


*

Não tenho nenhuma lei nem regra
para desordenar um poema escrito
não tenho mais que o desejo de tocar-te
ó coisa inúmera que entretanto
além de tocar
conto e reconto
continuadamente
fome de dizer como nunca foi
acontecido
fora do seu desejo mesmo tu
ó tão funda tão fundada
substância do mundo:
pleno cheio
serias sobretudo
como um voo ou como um ovo


Herberto Helder, Letra Aberta


*

a morte é mesmo estranha:
morre-se todos os dias
e enquanto se morre pede-se uma esmola para matar a fome de outra vida,
e dão-nos pelo amor de Deus uma pequena moeda de nenhum país,
e não há ranhura onde a moeda entre, nem a ranhura de uma velha caixa de música, e no entanto estremeço
e falta-me o ar, sim sim
arrebatavam-me as músicas de J.S. Bach
no silêncio das naves através da catedral inteira,
vozes e vozes dos rapazes castrados
e de repente um baixo monstruoso,
e isto se Deus existisse mesmo, punhal fundo no músculo coração,
e depois quente chôro pela cara abaixo
- oh porque me abandonaste?
mas na verdade ninguém me abandonara


Herberto Helder, Letra Aberta. Porto, Porto Editora, 201


*




fico tão feliz quando vejo como os golfinhos são inteligentes
tão subtis no súbito entendimento das intenções segundas que temos em relação a eles
se lhes dessem a ler bons poemas maior proveito teriam aqueles que os escrevem
do que têem com A ou B
eu cá por mim estou certo que nenhum golfinho diria
a propósito da morte de Deus e da glória do poema onde morre
as palavras turvas que me transmitiram algumas bocas maometanas
uma dessas bocas foi a mesma que disse viva o profeta!
quando decretaram a morte de Salman Rushdie
por causa dos Poemas Satânicos
parecia Lisboa nas trevas católicas
mas não ele felizmente não estava à mão de matar
até aproveitou a confusão e mudou de mulher
e na Dinamarca para aquecer um pouco
a malta gozava fazendo caricaturas sacrílegas dos ayatolas
mais um pouco e salvava-se o mundo
Herberto Helder, Poemas Canhotos

*

de tal maneira no tempo se é que se enganam de tal maneira
sempre se enganam em qualquer coisa enganam-se
no tempo que pouco têm para morrer —
de tal maneira se enganam nas palavras que se enganam
na cabeça que têm
que a têm pouca —
e por isso quando metem os dedos na matéria
vê-se que a matéria não estava madura ainda —
que pressa é essa? é a de já lhes fugir janeiro e estarem ainda
em setembro ou outubro —
de que lhes valem as flores da época se trocam
rosas por margaridas silvestres?
de tal maneira os aromas nas narinas dos búfalos
e as borboletas de prata pousam
apenas em nomes vagos não em corolas ferozes
nas primaveras com grandes espaços entre palavras —
mas que procuram eles? nomes?
apenas nomes entre tantos desastres?
eu não sei, eu tremo de dor apenas
perante os nomes não vistos e aspirados tanto que apeteça
morrer por um nome ou dois ou três
juntos, exactos, repetidos,
como exactamente em pleno transe louco
entre as flores dos nomes como:
dicionário folha atrás de folha,
e mesmo assim é como uma espécie de medo,
com um tremor no fundo da nossa idade
que vamos ver onde estão as pessoas que fugiram
da nossa vida, e quando foi que lhes tocámos,
ou na camisa ou no cabelo ou ao acaso nos dedos,
e que nomes eram os nomes deles entre
todos os nomes da terra,
e quando foi: se foi na descoberta
ou nos fins dos meses ou
a meio de uma tarefa leve como pentear-se,
ou ressuscitar em plena luz pela
primeira vez
ou pela última vez, logo antes de sair das trevas
para as grandes danças entre o ar e a água,
sai agora: e corta o cordão,
e entre sangue, olhos fechados, abre a boca toda,
e respira muito quase até cair bêbedo ou louco
pela voz: o nome e sobretudo nome a nome
cada coisa em torno até que o alcance
a ciência dos nomes todos,
coisa a coisa da terra afinal tão pequena
que mesmo ele a domina,
no domínio dos nomes,
e então suspende tudo com medo que ali acabe com um só nome
o múltiplo mundo matricial,
o mundo das mães loucas


Herberto Helder, Poemas Canhotos, Porto, Porto Editora, 2015





CRÍTICA

Os poemas descontínuos



O livro póstumo de Herberto Helder coloca questões que a sua poesia nunca tinha colocado, ao avançar por caminhos do exercício em tom menor





Há momentos neste livro que nos fazem aceder a um reconhecível Herberto Helder, mas também se põem aqui questões (como a da destreza e do seu contrário) inéditas na sua poesia

O livro é breve — 16 poemas, dois dos quais são dísticos — e o título serve de advertência: o leitor, ainda antes de começar a ler, deverá saber que o autor considerou estes poemas não destros, canhestros, desajeitados, e entende que isso terá de ser um pressuposto da sua leitura. É certo que uma tal classificação não evita uma ambiguidade fundamental, à semelhança do que acontece nos pedidos de indulgência dirigidos ao auditório, na retórica clássica : mesmo canhotos, o autor quis que eles fossem publicados e até considerou que o livro estava pronto (esta é, pelo menos, a versão oficial da editora e não há nenhuma razão para suspeitarmos dela). Mas a nomeação destes poemas como “canhotos” obriga-nos a um esforçado exercício de sintonização. Na verdade, a questão da destreza e do seu contrário, remetendo para a dimensão técnico-formal, nunca tinha sido uma questão que a poesia de Herberto Helder nos tivesse obrigado a considerar. Mais do que isso: a palavra poética herbertiana aproximou-se muitas vezes daquela condição de “contra-palavra” de que Celan fala no Meridiano, uma palavra que não se inclina perante “os cavalos de parada” e está para além de todas as maquinações da poesia bem-comportada. Herberto Helder não é um poeta estranho à problemática do métier por ser um intuitivo, como são aqueles que parecem confiar numa espécie de avatar moderno da musa (aproveitando o facto de a noção de métier, em poesia, ter sofrido um grande descrédito), mas porque se elevou a um absolutismo poético. 
Ora, alguns dos poemas deste livro oferecem-se como exercícios onde a questão da mestria se iria sempre colocar mesmo que não fosse explicitada, num gesto auto-reflexivo, no interior do próprio poema, como é o caso daquele que abre o livro, um poema em redondilha maior. Começa assim: “coisa amada nas montanhas/ amador ao rés das águas/ por mais que subam as águas/ e arrebatem as montanhas/ e as engulam inteiras/ haverá coroas de pedras/ sustentadas pela espuma”. E, mais à frente, alude-se à regra formal do poema: “coisa amada nas montanhas/ amador ao rés das águas/ a redondilha maior/ é menor que a sua história/ mas maior que tudo isso/ é a dor que o amor transporta”. Há aqui uma óbvia dimensão lúdica, um jogo desencantado e nada jubilante, mas que não deixa por isso de ser um jogo. E no último poema essa característica é ainda mais notória, já que se trata de um poema cheio de rimas em “ão” (muitas delas, internas), que é a mais desqualificada das rimas, na poesia em língua portuguesa, porque é de uma grande facilidade. A isso alude o fim do poema, apontando o dedo a si mesmo: “estes poemas que avançam/ no meio da escuridão/ até não serem mais nada/ que lápis papel e mão/ e esta tremenda atenção/ este nada/ uma cegueira que apaga/ a luz por trás de outra mão/ tudo o que acende e me apaga/ alumiação de mais nada/ que a mão parada/ alumiação então/ de que esta mão me conduz/ por descaminhos de luz/ ao centro da escuridão/ que é fácil a rima em ão/ difícil é ver se a luz/ rima ou não rima com a mão”. Quem imaginaria, há alguns anos (até, pelo menos, A Faca não Corta o Fogo, de 2008) que o último poema de Herberto Helder, deixado à posteridade, seria um poema “canhoto” com rima em “ão”? 









Como se perceberá, este livro não é apenas estranho à ideia de “poema contínuo” (como o anterior, A Morte sem Mestre, de 2014, já o era, de outra maneira), é também a afirmação de uma descontinuidade em relação à obra que Herberto Helder foi construindo como uma súmula. É como se o poeta quisesse agora mostrar-se na imperfeição, destituído de toda a apoteose. Assim começa um outro poema deste livro: “em boa verdade houve tempo em que tive uma ou duas artes poéticas,/ agora não tenho nada:/ sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica e traço meia dúzia de linhas:/ às vezes apenas duas ou três linhas;/ outras, vinte ou trinta:/ houve momentos em que fui apanhado neste jogo e cheguei/ a encher umas quantas páginas do caderno/ aconteceu também por vezes que o papel pareceu estremecer,/ mas o mundo, não: nunca senti que o mundo estremecesse/ sob as minhas palavras escritas”. É esta condição de poeta diminuído, canhoto, que já não consegue fazer estremecer o mundo, que se diz nestes poemas. A tragédia, agora, é a pura ausência de trágico, a do poeta que só já pode entregar-se ao jogo da poesia, não como aquela “ocupação mais inocente de todas”, como reclamava Hölderlin numa carta à mãe, mas como a ocupação mais paradoxal de todas: aquela que permite evocar antigas grandezas através de exercícios “canhotos”. É certo que há momentos neste livro que nos fazem aceder a um reconhecível Herberto Helder. Mas, no essencial, ele situa-se noutro espaço diferente, diferente até de A Morte Sem Mestre, na medida em que uma atitude reactiva estendeu-se agora a outros domínios. Este livro reclama do leitor que ele esteja sintonizado num tom mais baixo do que aquele a que Herberto Helder nos habituou. 
https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/os-poemas-descontinuos-1696289

*

Herberto Helder: um poema é um poema?

Poemas Canhotos de Herberto Helder são poemas sobre o que é um livro de poemas; e são ainda um exercício sobre aquilo que não sabemos se tem autor. Uma recensão de Djaimilia Pereira de Almeida.
    É possível extrair de Poemas Canhotos um “ensino” (34) sobre o que pode ser um poema e sobre a sua aparição a quem o escreve ou o lê — e, central ao esboço de qualquer princípio de autoria, uma indagação sobre o que julgamos saber acerca dos poetas que lemos. Tal “ensino” não chega a constituir uma arte poética, nem respeita à maneira de Herberto, mas ao que significa existir enquanto autor ao longo de uma vida, vocação perante a qual um livro póstumo poderia parecer apenas a coda possível.
O poema final diz-nos que o que se escreve pode apenas aparentar a dignidade de uma autoria: “estes poemas que chegam / do meio da escuridão / de que ficamos incertos / se têem autor ou não / poemas às vezes perto / da nossa própria razão / que nos podem fazer ver / o dentro da nossa morte / as forças fora de nós / e a matéria da voz” (42). Será que isto é mesmo um poema? Será que é um poema meu? — são as perguntas centrais de Poemas Canhotos. Talvez estes “poemas que avançam”, de que não fica mais que “lápis papel e mão / e esta tremenda atenção / este nada” (43), mereçam uma “faminta ciência da paciência” (21). Apesar da incerteza quanto à autoria de poemas assinados por si, é em relação a esta reserva de paciência que se pode localizar a qualidade deste livro quando contrastada com o Herberto Helder de livros anteriores. Tal estranheza parece ser, no entanto, a que estes poemas lhe suscitaram, antes de ser a que suscitam aos seus leitores.
Podemos abandonar os nossos hábitos quotidianos, despedir-nos dos que partiram, não podendo porém impedir-nos dos nossos humores para com os trabalhos  que a despedida de tudo nos merece (abandonar até aquilo que sai da mão, mas não a mão, o rosto que barbear, o próprio corpo morrendo noutro), pois não está em aberto rejeitarmos o que não passa no teste de saber quanto do que escrevemos nos pertence, muito menos rejeitar o trabalho que nos coube, e ao qual as nossas interjeições pouco acrescentam: “que interessa fazer a barba se é tudo para cremar, / desde as unhas dos pés aos espelhos soberanos —” (16), lê-se em versos sobre o conflito entre os actos e os humores da despedida.
Perceber a cada poema se o que se escreve é um poema nosso, se é um poema de todo, é aquilo de que não existe fuga possível, como não existe modo de escapar de, tão à beira do fim, fantasiar sobre deixar de escrever, como no jovial devaneio sobre deixar de escrever do poema da página 20 (“escrever, / deixar de escrever, / escrever ou não escrever não é acabar assim tão depressa quanto se pensava”). À beira do fim, apenas se parece saber quão à beira da renúncia sempre se esteve. Estes são, nesta medida, poemas sobre o que é um livro de poemas; e são ainda um exercício sobre aquilo que não sabemos se tem autor.
É por esta razão que o último poema de Poemas Canhotos ([estes poemas que chegam]) — e, não exagerando, o próprio livro — ganha em ser lido como um poema sobre o que temos diante de nós ao abrirmos um livro, o que nos deixa em suspenso quanto a sabermos se o que nos é dado a ler em Poemas Canhotos foi ou não tomado à “escuridão”. Poderíamos, mudando Gertrude Stein (“a rose is a rose is a rose et coetera”, 21), arriscar que ‘um poema não é um poema não é um poema’ — nem sequer, sem explicações adicionais, um poema da autoria de quem o redige. Muito menos certo é então que Poemas Canhotos, ou qualquer outro livro de poemas, pertença seja a quem for.
É, no entanto, ainda a um nome civil que parecemos poder imputar algumas paixões e humores de Poemas Canhotos: o “amador ao rés das águas” (7); o que desistiu de artes poéticas (“em boa verdade houve tempo em que tive / uma ou duas artes poéticas, / agora não tenho nada: / sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica / e traço meia dúzia de linhas”, 18); o de “adjectivos longínquos, / tudo tão prodigioso que se não entende nada” (21) — tudo isto nos lembra o que julgávamos saber sobre Herberto Helder; o mesmo que presumimos ter conhecido Ramos Rosa, cuja morte é evocada na página 39: “e então morreu todo / fundo e completo de uma só vez” (39); o que se exaspera com versos de outros (“esfolo-te vivo, vadio, se me trazes outra vez versos desses”, 13) — o que julgamos ter lido ao longo de décadas.
A publicação destes últimos poemas sob o nome de Herberto Helder não coincide com a resolução da ambivalência entre a voz incerta e o relativo consenso quanto a esse nome, muito menos com a confirmação, por parte de quem o assina, de que o que gerou lhe pertence. Talvez até um último livro se possa publicar mantendo esta dúvida em aberto. Mas então quanto do que se publica em Poemas Canhotos são poemas, e porque não?, poemas de Herberto? Este livro póstumo aclara a forma como ler seja que livro for pode não ser uma via evidente de resposta a esta pergunta, por mais que teimemos em procurar os seus autores no que publicam, e nos seus últimos livros para lá de em todos os outros, cotejá-los com o seu passado, com um hábito que apenas a nós nos pertence.
Esperarmos que Poemas Canhotos seja o último livro do poeta conhecido por Herberto Helder é talvez uma limitação nossa. Por outras palavras, esperamos (possivelmente em vão) que o que lemos seja o que lhe pareceu pertencer-lhe. Tal não passa porém de um modo de desejarmos que nos pertença o que dele tenha restado, que Herberto Helder nos pertença. O que nos traz de volta às perplexidades suscitadas por este livro: como saber, diante de Poemas Canhotos, ou de qualquer livro de Herberto (ou de qualquer outro poeta), que estamos realmente perante poemas? Como se sabe, antes de sabermos o que significa um poema ser de alguém, se esses poemas são de alguém?
Djaimilia Pereira de Almeida (Luanda, 1982) estudou Teoria da Literatura na Universidade de Lisboa. Fundou e dirige a revista on-line “Forma de Vida”.
 http://observador.pt/2015/05/29/herberto-helder-um-poema-e-um-poema/





A moeda inútil
Um ano após a morte de Herberto Helder, o novo livro póstumo reacende a discussão sobre o "tom menor" do seu estilo tardio

Os últimos livros de Herberto Helder suscitaram uma atenção e uma controvérsia inusitadas, tendo em conta a "obscuridade" biográfica e textual que o poeta sempre prezou. A uma visibilidade quase inédita, com as fotografias e o disco e o fac-símile dos manuscritos, somou-se a troca de chancela e a política de edições únicas que fez de "Servidões" (2013) um objecto cobiçado. Mas esse título, tal como "A Morte sem Mestre" (2014) e o póstumo "Poemas Canhotos" (2015), marcou sobretudo uma mudança significativa no discurso do poeta, que se tornou mais referencial, mais coloquial, claramente "testamentário". Herberto morreu fez agora um ano, e "Letra Aberta" manterá acesa a discussão sobre esse estilo tardio, matéria que, diga-se, interessa bastante mais do que as circunstâncias editoriais e mediáticas. O novo volume reúne 33 poemas inéditos, escolhidos por Olga Lima, viúva do poeta. Ou seja, não se trata de uma sequência estruturada, mas de uma antologia de textos do espólio. E o que se pode dizer é que encontramos um Herberto no mesmo "tom menor" das últimas colectâneas. "Tom menor" não supõe a menoridade dos poemas, mas um registo mais imediato e desabrido, distante do fôlego lírico- hermético que nos fascinava e assustava.
Quando, num destes poemas, Herberto sugere que "razões nenhumas" é preferível a "uma Fac-simile da versão manuscrita de um poema do Livro póstumo de Herberto Helder grande razão surrealista", define uma poesia em chave irónica, sem aura, por vezes zangada, o tal estilo da última fase que se sucedeu a décadas de poesia órfica, mágica, romântico-experimental. A "grande razão" alude igualmente a um poema de Cesariny, e a uma suspeita de grandeza que todo o surrealismo tinha, grandeza que se vê aqui substituída por uns quantos "poemas bárbaros". É uma lucidez disfórica, própria da velhice, talvez. Porque este é um punhado de poemas finais, "uns poemas que pràqui tenho", diz o poeta, como se fossem coisa pouca, embora também não caia no excesso de modéstia: ''Acho que apesar de tudo escrevi um poema aceitável", "umas poucas linhas como estela e como exemplo". Herberto não atira à água os seus livros, como o Próspero de ''A Tempestade", mas não é órfico nem experimental como outrora. É o que é, e os outros que se danem: "Bom é ser odiado simetricamente por gregos e troianos."
"Letra Aberta" reconhece-se como um texto herbertiano, com as imagens fortes e os superlativos e os acentos circunflexos enfáticos, o eros frenético e as cidades europeias, as glosas camonianas e uma "rosa irreversível" vinda de outros tempos; mas o Herberto final, ântumo e póstumo, deve ser lido à luz do aviso "vou ali e já não venho", para citar um verso significativo no seu prosaísmo de despedida. Apontar cedências ou facilidades é um processo de intenções, mas a morte é uma certeza com consequências: "a morte é mesmo estranha:/ morre-se todos os dias/ e enquanto se morre pede-se uma esmola para matar a fome de outra vida,/ e dão-nos pelo amor de Deus uma pequena moeda de nenhum país,/ e não há ranhura onde a moeda entre (...)." Esta moeda inútil é uma decepção, sem dúvida, mas não uma abdicação, antes uma raiva renovada, um último protesto. Herberto escreve: acham-me "muito muito velho", pensam que sou "inofensivo", que estou "fora de combate", que sou "doce, sweet, frágil, etéreo, gasoso": "e é esse exactamente o erro deles/ - duro duro duro".

Pedro Mexia, Expresso-Revista, 2016-03-23










Herberto Helder: um poeta que só guardava o essencial

O arquivo de Herberto Helder foi integralmente digitalizado e vai poder ser consultado na Faculdade de Letras do Porto, que espera poder vir a acolher também a biblioteca do poeta.

Herberto Helder não era de guardar rascunhos ou de manter arquivos de correspondência, mas deixou, ainda assim, entre outros papéis, vários cadernos com inéditos, um livro de poemas em prosa que nunca foi publicado e uma antologia de quadras populares.

Todo este acervo acabou agora de ser digitalizado por iniciativa do ensaísta Arnaldo Saraiva, que conseguiu o apoio da Gulbenkian para custear a digitalização e intermediou o depósito deste arquivo digital na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), da qual é hoje professor jubilado e emérito.
Saraiva espera ainda que a própria biblioteca de Herberto Helder possa vir a ser depositada na FLUP, que recuperou recentemente um seu antigo edifício na Rua do Campo Alegre para acolher duas importantes bibliotecas, a do historiador da literatura e linguista Óscar Lopes (1917-2013) e a do escritor Vasco Graça Moura (1942-2014). Já no próximo dia 1 de Abril, a FLUP e a família de Graça Moura assinarão, numa cerimónia pública, o contrato de depósito do arquivo e das dezenas de milhares de livros da biblioteca do escritor.
Amigo de Herberto Helder e da sua viúva, Olga Lima, Arnaldo Saraiva diz que o seu primeiro objectivo foi garantir que ficava salvaguardada uma versão digital de todos os papéis do poeta tal como este os deixou. “Podia haver um acidente, podiam desaparecer coisas, ou serem mudadas de sítio, como aconteceu com o espólio de Fernando Pessoa”, diz o ensaísta. 
O presidente da Fundação Gulbenkian, Artur Santos Silva, “mostrou-se logo disponível”, conta Arnaldo Saraiva, para apoiar este projecto, que incluiu também a digitalização das muitas correcções e apontamentos que Herberto Helder deixou nos exemplares que guardava dos seus próprios livros. 
Tal como Pessoa, Herberto também tinha uma arca, em sentido literal, onde ia guardando o que queria conservar, mas não deixou 27 mil documentos, como o poeta dos heterónimos, nem incontáveis versões dos mesmos textos. “Ele não guardava muita coisa: recebia muitas cartas entusiásticas desde que publicou O Amor em Visita [em 1958], mas não conservou quase nada, explica Saraiva, que crê que o poeta terá mesmo destruído “alguma correspondência importante com grandes poetas estrangeiros”.
E se não seguiu o exemplo do seu amigo Carlos de Oliveira, o outro grande reescritor da poesia portuguesa da segunda metade do século XX, que deixou instruções explícitas para que nada fosse publicado postumamente, Herberto Helder também não parece ter querido legar à posteridade o acesso aos meandros da sua oficina poética. “Com a excepção destes últimos livros, costumava destruir as versões anteriores do que publicava, e o que conservava nos seus caderninhos eram coisas que tencionava eventualmente refazer ou usar mais tarde, e não registos de uma determinada fase de escrita”, defende Arnaldo Saraiva.
O ensaísta não pode precisar o número exacto de documentos digitalizados, mas pensa que o arquivo agora depositado na FLUP constará de “duas mil e tal imagens”, incluindo reproduções de fotografias e alguns artigos de jornais que Herberto recortou, e que nem sempre dizem respeito à sua obra.
Duro duro duro
Mas se o arquivo é pequeno, basta ler o livro que a Porto Editora lançou esta quarta-feira para assinalar o primeiro aniversário da morte do poeta, Letra Aberta, reunião de um conjunto de inéditos que Olga Lima seleccionou a partir dos cadernos de Herberto Helder, para não restarem dúvidas da sua importância. Se Poemas Canhotos, que o poeta teria deixado pronto a publicar, e que foi lançado logo após a sua morte, incluía alguns poemas fulgurantes, dificilmente este Letra Aberta poderá ser considerado inferior, quer na qualidade dos seus melhores poemas, quer mesmo enquanto conjunto.
“A sequência funciona, tem uma coesão surpreendente, e há neste livro pontos muito altos, poemas muito fortes”, diz o poeta Gastão Cruz, admirando a capacidade que Herberto Helder teve até ao fim de renovar a sua poesia. 
Também a ensaísta Rosa Maria Martelo, de quem a editora Documenta publicará em Abril Os Nomes da Obra — Herberto Helder ou O Poema Contínuo, também acha que “este é, sem dúvida, mais um livro notável, uma excelente selecção de poemas”, na qual “reconhecemos os temas de Herberto Helder, a energia fulgurante a que nos habituou e também aquela frontalidade que, devido ao envelhecimento e à proximidade da morte, exigia agora uma coragem rara”.
E sabendo que Herberto “foi sempre um reescritor” e que “pensou a sua poesia como um livro único, um poema contínuo que se ia ampliando e cortando, deslocando e refazendo”, Martelo confessa que até “receava os efeitos da publicação” deste volume de inéditos. “Mas a qualidade dos poemas é inquestionável, bem como a sua força e, talvez acima de tudo isto, a sua verdade”, argumenta. 
Não parecem também restar dúvidas de que a generalidade dos poemas escolhidos por Olga Lima, se não todos, são bastante recentes. Em alguns pressentem-se reacções ao que se escreveu nos jornais a propósito de A Morte Sem Mestre em 2014: “eu cá acho que sim,/ acho que apesar de tudo escrevi um poema aceitável,/ um poema que amadurou em mim ao longo de oitenta anos (…) ah, aceitem lá a pequenez geral da minha vida/ e do meu nome obscuro,/ e o quão honesto sou odiando tudo isso”.
E no poema que fecha o volume, refere expressamente os seus 84 anos: “(…) a verdade é que eu estou melhor agora/ com 84 anos:/ primeiro, como me acham muito velho, pensam que sou inofensivo, e não me chateiam,/ segundo, deduzido do anterior, não posso ser um rival perigoso,/ terceiro, estou à partida fora de combate,/ quarto, já não fodo,/ quinto, em linha recta, nem é preciso perder tempo comigo, sou doce, sweet, frágil, etéreo, gasoso/ e é esse exactamente o erro deles/ - duro duro duro/ quanto mais velho mais duro é o corno — disse o papa Malaquias e que por isso foi morto (…)”.
O volume reproduz alguns dos manuscritos a partir dos quais os poemas foram fixados, que permitem ver que a caligrafia de Herberto Helder é geralmente muito legível. A organizadora, que indica no livro as poucas situações em que o poeta não chegou a decidir-se entre duas palavras, só assinala um caso de “leitura problemática”.
O que parece é ter havido uma falha de transcrição no primeiro verso do poema cujo manuscrito aqui transcrevemos. As palavras “esta noite” passaram correctamente para o início, de acordo com o sinal usado por Herberto, mas este não abrange a sequência “diz o jornal”, que deveria ter permanecido no final do verso.
Um livro inédito
Arnaldo Saraiva diz que há outros poemas inéditos em condições de serem publicados além dos que foram agora reunidos em Letra Aberta, e encontrou ainda no espólio “um livro de prosa poética” inédito. Constava há muito que Herberto Helder tinha um livro que nunca quisera publicar, mas que teria chegado a mostrar a um par de amigos, e o aparecimento deste original parece confirmar que a dita obra de facto existia e que o poeta, se nunca a editou, também não a destruiu. “Tem muitas rasuras e intromissões depois da primeira escrita, e vê-se que há ali trabalho de várias fases”, diz Arnaldo Saraiva. “É um livro que tem de ser editado, mas é preciso que isso seja feito com critério, porque há ali saltos, intromissões e uma ou outra coisa que o Herberto deixou indecidida, e que não podemos decidir por ele”. 
Descontado este achado, Saraiva não encontrou no espólio “surpresas de maior”, mas refere ainda uma antologia de quadras populares que o poeta deixou organizada. “Na última conversa que tivemos, falou-me desse romanceiro”, conta o ensaísta, que dado o seu reconhecido interesse pelo campo das literaturas orais e populares, deverá assumir ele próprio a edição deste trabalho. “Só será publicado quando tudo aquilo estiver bem estudado, até porque é preciso ver se ele não inventou algumas das quadras”.
Ainda não há data para a disponibilização do arquivo agora digitalizado, mas Saraiva espera que possa ser consultado em breve. Mais complexo é o que fazer deste material. “Há poemas inéditos que têm de ser publicados com rigor, é preciso ponderar uma possível edição crítica, e novas edições de qualquer livro terão de passar por este material”, diz Saraiva.
O facto de Herberto Helder ter desmantelado vários dos seus livros, distribuindo parte deles por outros títulos, como aconteceu comApresentação do Rosto (1968), Vocação Animal (1971) ou Cobra (1977), mas também suprimindo definitivamente vários poemas de edição para edição do seu “poema contínuo”, e reescrevendo outros, torna a tarefa dos futuros responsáveis por uma qualquer edição crítica — para a qual, além do mais, parece não existir muito material — particularmente espinhosa.
E parece evidente que as futuras edições de Herberto não poderão deixar de ter em conta a sua condição de reescritor forte, ou seja, alguém para quem a obra é, em cada momento, um todo orgânico. Rosa Maria Martelo lembra um texto publicado na revista brasileira Cult, no qual “Herberto Helder fala do modo como os poemas a mais, mesmo quando suprimidos, e ele suprimiu, reviu ou deslocou muitos, ‘projectam a sua mácula nos poemas legítimos’”.  
Mesmo sem conhecer os manuscritos agora digitalizados, Martelo acha que “seria desejável manter a autonomia do que o poeta concebeu como ‘poema contínuo’, dado que o pensou como um texto único, um livro de livros”. E a ensaísta questiona-se se “haveria da parte de Herberto Helder a percepção de que os poemas de A Morte Sem Mestre, e por extensão, os que depois foram publicados em Poemas Canhotos, funcionavam como uma espécie de post-scriptum”.
Enquanto não houver respostas para esta e outras perguntas — e talvez o arquivo forneça pistas para se chegar a algumas —, seria talvez prudente assumir a edição dos seus Poemas Completos, que o poeta ainda viu sair em 2015, como último estado desse seu “poema contínuo”, tornado definitivo pela sua morte, e publicar tudo o resto, por muito bom que seja (e frequentemente é), com um estatuto diferenciado. 

 https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/herberto-helder-um-poeta-que-so-guardava-o-essencial-1727150?page=-1


Inéditos de Herberto Hélder lançados no Dia da Poesia 






CRÍTICA

A acção do poema

Mais um livro póstumo, onde a voz mais elevada da poesia de Herberto Helder se pode apreender nalguns poemas, os suficientes para justificar esta edição.





Letra Aberta reúne trinta e três poemas inéditos de Herberto Helder, escolhidos por Olga Lima DR

Depois de Poemas Canhotos, eis o segundo livro póstumo de Herberto Helder. Chama-se Letra Aberta e reúne trinta e três poemas inéditos, escolhidos por Olga Lima. A inauguração do espólio do poeta já sem a sua tutela (o livro anterior tinha sido deixado pronto para publicação) foi mais rápida do que era previsível, mas é gratificante: há neste livro um punhado de poemas que ascendem aos cimos da melhor obra herbertiana. E na comparação com o livro anterior, este tem muito a ganhar. Na recepção crítica da poesia de Herberto Helder, esta ideia de que nem tudo se equivale e de que também há momentos fracos é recente, foi suscitada pelos últimos livros, e é a resposta que obteve a um novo desafio (implicando não apenas decisões editoriais, mas também representações e imagens públicas) que o próprio poeta decidiu fazer, por insondáveis determinações, que revogaram severas determinações que se tinham colado à sua imagem como uma segunda natureza. Ecos deste embate, temo-los ainda nalguns poemas deste livro, aqueles que provavelmente serão por estes dias mais citados, mas que estão longe de ser o que de melhor nele podemos ler.






Herberto Helder é muito melhor no exercício de terror que praticou contra tudo (a língua, a pátria, a família, Deus, a beleza, etc.) do que no exercício de tiro ao alvo, mesmo quando o alvo é ele próprio e as suas circunstâncias biográficas (por exemplo, a atitude perante o envelhecimento e a morte próxima). No entanto, o abandono moderado de uma elevada entoação órfica seguiu também outras vias pelas quais o poeta chegou a poemas de um enorme fulgor. Há neste livro algumas amostras, vejamos esta: “escrevi umas poucas linhas como estela e como exemplo,/ mas faltava algures uma linha de silêncio que as ligasse todas,/ e então abri a mão inteira e sobre a mão abri a boca,/ e depois fechei os olhos a toda a volta,/ e depois a terra estremeceu,/ e depois eu estremeci no meio dela, mudo e cego e surdo e imóvel:/ mas soube que não tinha criado os elementos do mundo”. O poema a que pertencem estes versos é uma pequena pérola de auto-reflexão poética. A palavra “mundo” (fundamental, no vocabulário herbertiano) e as duas formas do verbo “estremecer” oferecem matéria de natureza poetológica para uma leitura da sua obra poética. Talvez o “estremecimento”, nas suas imensas ocorrências, seja uma maneira de dizer que o poema é uma acção e essa acção é uma agitação da linguagem. O poema é o lugar da maior agitação e é o que mantém aberto, na sua articulação, o sonho de uma língua que retém e desacelera. Abrir a linguagem, obter a “letra aberta”, é de facto uma acção que não consiste em dobrar a linguagem em direcção a um fim. E é aí que, em cada nome se dá um estremecimento. O poema vem do canto e guarda a memória de ter sido cantado. E quanto ao “mundo”, que reaparece com alguma frequência neste livro, aí entramos numa zona de onde se avista o fundamental da poesia de Herberto Helder. Há uma questão do “mundo” na poesia moderna (sobre a qual, aliás, há importantes estudos), que pode ser inaugurada com uma frase que podemos ler no Hyperion, de Hölderlin. É quando Diotima diz: “Tu queres um mundo. É por isso que tens tudo e não tens nada”. Mas para tratarmos a questão do mundo em Herberto Helder também não podemos ignorar que a sua poesia reivindica uma dimensão arcaica que a faz atravessar o tempo desde a origem. Tal como não podemos esquecer um conceito de Rilke, o “espaço interior do mundo”: em termos muito sumários, trata-se de um mundo interiorizado e um Eu exteriorizado, onde se abolem as fronteiras entre o dentro e o fora.
Nota: no frontispício do livro, podemos ler: “poemas inéditos escolhidos por Olga Lima”. Mas o livro não resultou apenas de um acto de escolha dos poemas. Quem fez a transcrição? De quem são as quatro notas que aparecem no final? E, mais importante ainda: de quem é a decisão de chamar a este livro Letra Aberta (nome retirado de um poema)? Tudo indica que é um título editorial, mas o livro faz passá-lo por título autoral. 
  https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/a-accao-do-poema-1727487





Herberto Helder. Pode o poeta perder a aura?


Joana Emídio Marques, Observador, 2016-04-10

Depois de anos refugiado numa obscuridade sem concessões, surgiram edições sucessivas e atenção mediática. Mas o que ficará da poesia de Herberto Helder?




Durante décadas a publicação de um livro de Herberto Helder era um acontecimento. Cada livro mexia com a tectónica da poesia portuguesa que se escrevia em redor. Obrigava a que todos e cada um se reposicionassem. Mesmo os que o odiavam. Ou sobretudo esses. Uns escreviam contra ele, outros escreviam como ele, outros escreviam o oposto a ele. Mas ninguém lhe ficava imune.
Os livros surgiam de vez em quando, sem data pré-estabelecida. Os poemas eram escritos e reescritos e carburavam esse tempo lento. Eram o poema contínuo. Um trabalho incessante sobre cada palavra e as suas respetivas ressonâncias, sobre cada imagem evocada fizeram da sua uma linguagem poética única na história da poesia portuguesa. Há lugares que só ele tocou, porque, entre outras coisas, escrevia contra a linguagem do poder. Escrevia contra a linguagem banalizada por um mundo ao sabor das modas e onde tudo passa sem deixar rasto. O poema contínuo era também um tempo contínuo. Um tempo que não coincide com esta modernidade onde tudo explode, se dissolve numa rapidez estonteante.
Mas a aura de Herberto Helder foi mais construída pela sua recusa de participar no circo mediático da literatura do que pela grandiosidade da sua poesia, que afinal poucos liam. O poeta que teimosamente desprezava o mundo das aparências construía, paradoxalmente, a aparência de um mito. Livros de edições únicas (por vezes corrigidos à mão pelo próprio autor), que faziam as delícias dos alfarrabistas, mas que eram sobretudo manifestação do constante desassossego e insatisfação que ele sentia em relação às coisas que escrevia.

O livro, agora lançado pela Porto Editora, contém 33 poemas inéditos. Preço:16.60 euros
A total recusa de falar aos media, a rejeição de quaisquer prémios e honrarias valeram-lhe uma corte de admiradores. Herberto era aquele que recusava majestaticamente aquilo que todos parecem querer: fama, mundanidade, dinheiro.
Esta postura que era, para Helder Macedo, escritor e amigo de longa data do poeta, “um misto de arrogância e integridade”, terminou em 2013, com a publicação de Servidões. O “fenómeno Herberto” explodiu.
Já com a Porto Editora a trabalhar a marca Assírio & Alvim, o livro esgota as tiragens, os media percebem o elan e os críticos apressam-se. E eis Herberto chegado às redes sociais, estrela pop de um mundo que ele nem sequer conhecia. A partir daqui saiu um livro por ano: A Morte sem MestrePoemas Canhotos e agora Letra Aberta. O primeiro terminado e publicado ainda em vida, o segundo estava pronto para ser publicado quando o autor morreu em março de 2015. Este agora é uma recolha feita nos cadernos de Herberto pela sua viúva, Olga Lima.
No meio deste frenesi, a grande questão que o novo livro nos deixa, e porque ele nos devolve a grandiosidade da poesia de Herberto, é: uma vez rasgada a aura de mistério do poeta como sobreviverá a sua poesia?
Os estudiosos da obra herbertiana desmultiplicam-se em análises, congressos, sonham com edições de aparato crítico. As redes sociais replicam a capa e alguns poemas. Os livros são celebrados, agraciados e rapidamente esquecidos. Há notícias de que o espólio vai ser digitalizado pela Universidade do Porto, que o professor Arnaldo Saraiva vai trabalhar quadras populares deixadas pelo autor e fala-se mesmo numa arca, apelando ao mito pessoano.
No meio deste frenesi, a grande questão que o novo livro nos deixa, e porque ele nos devolve a grandiosidade da poesia de Herberto, é: uma vez rasgada a aura de mistério do poeta como sobreviverá a sua poesia?

Servidões, livro de 2013 esgotou em poucas semanas. Como era desejo do autor o livro não foi reeditado.

O mito do poeta obscuro

“Qual poeta obscuro! O Herberto nunca quis ser obscuro, pelo contrário, nunca quis ser obscurecido pela mediocridade circundante”, afirma Helder Macedo, em conversa com o Observador. Já Gastão Cruz, outro poeta amigo de longa data de Herberto, afirma: “Essa coisa do obscuro é uma invenção da Maria Estela Guedes [uma das primeiras estudiosas da obra de HH].” Isto antes de desligar o telefone com a declaração “não falo com jornais de direita”.
Outro dos autores com quem o Observador falou foi Diogo Vaz Pinto, jovem poeta, editor, e crítico dos jornais i e Sol que, em 2014, assinou uma critica duríssima sobre o livro A Morte sem Mestre. Ao que Herberto, no seu habitual estilo combativo, resolveu contra-atacar num poema que surge no seu livro seguinte Poemas Canhotos (já publicado postumamente):
(…)um jovem ávido cheio de cotovelosno meio da multidão(…)oh dêem qualquer coisa ao rapaz frenético:um relâmpago fotográfico em cheio no rosto,um calmante,um sôco,um bombom recheado de maria gloriazinha,vai ser difícil vai ser difícil o rapaz não tem escrúpulos,tem uma fome que vem das primeiras letras,o rapaz é órfão de toda a gente,ele quer à força entrar no filme:logo a primeira imagem em plano glorioso,mas calma aí, isso não é assim tão raromas não vêem vocês aí aquele rosto famintonão vêem os olhos assassinos?ele era capaz de matar para ter uma chamada ao palco,ora ora o mundo está cheio disso:rapazes que nunca foram amados quando crianças com ranho no nariz e lágrimas nos olhos ardentes (…)
Mas também este crítico literário insiste na necessidade de se “abandonar esta mitificação da pessoa e da obra de Herberto, porque isto apenas acrescenta um ruído fútil, cansativo”.
Pelo contrário, diz, “é preciso deixar a poesia que ele criou respirar, repousar, pois será ela que abrirá caminhos para si própria, para se fazer sobreviver. A poesia dele ajuda-nos a pensar o futuro da poesia em geral e o futuro da sua poesia em particular. Porque questiona, como poucas, este tempo que vivemos, esta angústia e esta permanente sensação de estarmos a viver um tempo terminal. As suas perplexidades amplificam as nossas. O vazio que ela teme e confronta é o nosso vazio. Ao fazer ressoar os milénios passados como, eventualmente, os futuros ela está a dizer-nos que há outro tempo, outra forma de viver o tempo, que não tem que ceder a esta voragem, esta leviandade que a tudo e todos arrasta. Ou seja Herberto pôs-se à margem mas apenas para ver melhor, para não se deixar arrastar, compreender melhor este mundo e nunca deixou de sofrer com isso.”

‘Letra Aberta’: um regresso depois da despedida

“um nome que me digas ou não me digas duas vezesem dois abismos de sono, esse nomefaz-se carne no mais âmago de mim mesmo,esse nome trabalha-me,é igual ao segredo:pãoeu cômo-o no mais escuro do mundo,cortado a água e mais nada,quase como quando se morre mais devagar,se é noite que entra:pão profundo mastigadoacaso na maior parte das noites seguidas umas à outras”
(pag.39)
Tanto Helder Macedo como Diogo Vaz Pinto (dois poetas de gerações muito diferentes, um tem 80 anos e o outro 30) concordam que nos últimos livros o poeta estava a despedir-se. Ele sentia que já se perdia nesse tempo que foi o núcleo da sua poesia. Dai a reatividade e maior fisicalidade dos seus últimos poemas. Na opinião de Helder Macedo “os últimos livros do Herberto representaram, simultaneamente, uma recuperação de atitudes (iconoclásticas, desmistificadoras, irónicas em relação a si próprio) da sua juventude e uma tentativa de encontrar uma nova voz poética em que as veiculasse, não como início mas como fim de vida. Foram por isso livros de grande coragem, em que o Herberto (um dos poetas mais imitados no nosso repetitivo panorama literário) se não imitava a si próprio.”
“Ele impõe uma resistência ao processo de canonização e a espetacularização que haveria sempre de convertê-lo num ícone”, afirma Vaz Pinto. “Neste novo livro temos a possibilidade de espreitar sobre o ombro, temos vislumbres de um irrefreado ofício em busca do ponto último, em que de tão perfeitamente maduro o sabor de um verso não mais se esquece. É, ao mesmo tempo, uma espécie de post-scriptum, esse gesto tão humano de olhar para trás e questionar-se sobre se a grandeza do esforço em que empregou a vida toda poderá sobreviver a um tempo em que nada sobrevive, um tempo de obliteração. Sabemos que estes poemas eram apenas a crisálida do que viria a ser se o poeta continuasse vivo e a trabalhá-los continuamente como era seu hábito, obrigando-os a um período de estágio na gaveta para que se gastasse o fôlego a tudo o que fosse contingente. Talvez este livro demorasse muitos anos a vir a público, e depois poderia ser chamado de volta à liça, reescrito, porque Herberto não abandonava os versos a um destino público. Ele vigiava-os, escrutinava-se. Em muitos sentidos foi dos poetas que mais se empenhou em condicionar a forma como era lido. E nesse sentido estes são poemas imperfeitos, mas que nos permitem perceber a forma como ele se embrenhava, pairando em círculos elevados, até fixar um sentido especialmente acutilante, fixá-lo nas inúmeras vertentes da linguagem, das imagens ao som e aos ritmos”, continua o poeta e crítico.
"Os seus leitores que haviam ficado perplexos (ou mesmo dececionados, como alguns ficaram) com este livro vão ficar mais sossegados. Reconhecerão aqui o poeta que amavam e não queriam que mudasse." 
Helder Macedo
“Quanto à publicação destes poemas, acho que é um ato de partilha por parte da Olga Lima, que foi a constante e discreta companheira do Herberto durante longos anos até ao fim da vida dele. E que discreta continuou a ser, no modo como os recuperou e organizou. Que eu saiba, o Herberto nunca disse que não queria que estes poemas (ou outros textos que a Olga me disse que deixou inéditos) fossem publicados. Simplesmente deixou-os ficar entre os seus papéis, até ver. É bom que agora se vejam”, completa Helder Macedo
Neste livro, constituído por poemas que Herberto ainda não teria considerado prontos para publicação, diz ainda Helder Macedo “reencontramos, paradoxalmente (ou não), o poeta anterior a esses últimos livros. Os seus leitores que haviam ficado perplexos (ou mesmo dececionados, como alguns ficaram) com este livro vão ficar mais sossegados. Reconhecerão aqui o poeta que amavam e não queriam que mudasse. Em vez da sobre-humana voz bárdica dos seus grandes poemas, temos aqui a voz precariamente humana de quem os havia escrito. É, nos seus próprios termos, um belo livro. E, no contexto da obra do Herberto, um testemunho literário importante. De algum modo, ainda bem que o Herberto não os trabalhou mais, transformando-os no que, em termos de “oficina” literária, poderiam ter sido. No contexto da restante obra poética do Herberto e como expressão de quem o Herberto se havia tornado com a proximidade da morte, não são por isso menos belos nem menos verdadeiros.”

Depois de décadas sem se deixar fotografar, Herberto surge nas fotos de Alfredo Cunha, poucas semanas antes da sua morte.
“Alguns destes poemas lembram-nos o melhor de Herberto. Lembram-nos que como ele continuou até ao fim a tentar abrir novos caminhos para a poesia. Lembram-nos como ele consegue usar o mais amplo espetro da língua para continuar a realizar inversões bruscas na paisagem, ser ainda mais claro do que os que se limitam ao método da redução e simplificação banal das coisas, denunciando muito claramente o ambiente geral de indigência em que mergulhou o país. Apesar de imperfeitos estes poemas tremem de desgosto, cada palavra busca uma refulgência própria e é a expressão de um desencanto irado que choca com o desencanto cabisbaixo que se tornou um ânimo geral”, afirma Diogo Vaz Pinto.

Herberto Helder ou o poema contínuo

Se a aura de Herberto Helder sobreviverá ou não à máquina mercantil, isso não vai mudar a natureza da sua obra. Talvez só depois de rasgada esta aura artificial, mais alimentada pelos comportamentos sociais do poeta do que pela sua poesia, se possa enfim vislumbrar melhor a amplitude do que nos deixou Herberto.

Os poemas de HH foram, ao longo dos anos, sendo reunidos em várias súmulas. Estas edições tiveram vários títulos diferentes mas, como sugere o poeta Manuel Gusmão, o melhor será este que deve ser lido assim:”Herberto Helder ou o poema continuo”

O trabalho de reescrita continua dos poemas, que o faziam recusar fazer mais do que uma edição de cada livro, demonstra como ele compreendeu bem a essência disruptiva e ambígua da modernidade, e como soube integrar isso no seu trabalho e na sua lírica. O seu profundo desassossego, a sua compreensão de que o mundo não é feito de uma geometria racional mas por pequenas e grandes catástrofes, fez com que o poeta construísse uma obra que replica essas metamorfoses contínuas. Letra Aberta parece ser assim um testemunho poético, onde ele nos mostra, precisamente, que cada palavra está aberta ao devir e que, portanto, a sua poesia poderá ser lida, compreendida e amada em qualquer tempo que vier.
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