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sábado, 1 de abril de 2023

Camões dirige-se aos seus contemporâneos, Jorge de Sena

Camões, ao longo da sua obra, vai tendo vários interlocutores. No século XX, Jorge de Sena escreveu o seguinte poema em que o locutor é Camões e os interlocutores são os seus contemporâneos.

 


CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

  





5




10




15




20




25

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

Assis, 11/6/1961

Jorge de Sena, Antologia Poética, edição de Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa, Guimarães, 2010, p. 127.

 

1. Explicite duas das acusações que o sujeito poético faz aos seus contemporâneos, de acordo com o conteúdo dos versos de 1 a 11.

2. «Não importa nada: que o castigo / será terrível» (versos 12 e 13).

Explique o modo como o sujeito poético prevê a concretização do castigo.

3. Selecione a opção de resposta adequada para completar a afirmação abaixo apresentada.

Ao longo do poema, o sujeito poético exprime, entre outros, um sentimento de ____ que é evidenciado por artifícios como ____.

(A) autocomiseração … a repetição de vocábulos com sentido antitético

(B) autocomiseração … o recurso a enumerações

(C) revolta … o recurso a enumerações

(D) revolta … a repetição de vocábulos com sentido antitético

 

Explicitação de cenários de resposta:

1. Devem ser abordados dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.

O sujeito poético acusa os seus contemporâneos:

de praticarem plágio, por se apropriarem de ideias, temas, motivos, palavras, imagens, metáforas e símbolos utilizados na sua poesia;

de lhe negarem a primazia e a ousadia, nomeadamente na inovação linguística (causadora de sofrimento), no «entendimento dos outros» e na «coragem de combater»;

de o votarem ao desprezo, na medida em que não o citam, rejeitam a sua poesia e aclamam outros.

2. Devem ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:

o sujeito poético permanecerá na memória de todos, tal como a sua obra, enquanto os seus contemporâneos serão esquecidos (até pelos familiares mais próximos);

o sujeito poético não só recuperará a autoria da totalidade da obra roubada, mas também prevê que lhe venha a ser atribuída a autoria do «pouco e miserável» (v. 20) produzido pelos seus contemporâneos;

o sujeito poético será homenageado após a sua morte num túmulo onde repousarão os restos mortais de outrem.

3. Chave: (C)

 

Fonte: Exame Final Nacional de Português n.º 639 – Ensino Secundário, 12.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho). República Portuguesa – Educação / IAVE– Instituto de Avaliação Educativa, I.P., 2021, Época Especial

 

 


CARREIRO, José. “Camões dirige-se aos seus contemporâneos, Jorge de Sena”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento de si, 01-04-2023. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/camoes-dirige-se-aos-seus.html


 

domingo, 24 de julho de 2022

pratica-te como contínua abertura, Herberto Helder


pratica-te como contínua abertura,

o mais atento que custe,

com uma volta sobre ti mesma até eu aparecer no outro lado do rosto,

quando te olhas,

espera que desapareça o ruído em cada palavra,

e agora só a ela se ouça,

e então aumenta tanto quanto possas se escutas

que me aproximo,

a género de abrasadura mulheril,

a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo,

edoi lelia doura,

que o mênstruo coza e a seda escume,

à luz que nasce da roupa,

e os substantivos perfeitos respirem uns dos outros na têmpera

e frescor da língua indestrutível,

e então estendo por ti acima o melhor do meu braço,

se é que posso fulgurar,

e enquanto crio, cria-me, e cria-te como começo de mim mesmo,

isto: que unas o avulso,

se te puderes mover como o ar que respiro, ó

irrepetível, inenarrável, inerente

 

HELDER, Herberto. “A faca não corta o fogo”.

In: Ofício Cantante – poesia completa.

Lisboa: Assírio & Alvim, 2009. p. 537.

 

 

 

TEXTOS DE APOIO

TEXTO 1

 

O verso “edoi lelia doura” serve de título à Antologia das Vozes Comunicantes da Moderna Poesia Portuguesa organizada por Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim,1985).



Edoi lelia doura” é um conhecido refrão da cantiga trovadoresca galego-portuguesa “Eu velida nom dormia”, de Pedro Anes Solaz/Pedr'Eanes Solaz, que teve diferentes interpretações ao longo do tempo:

«Por exemplo, Braga (1878: CII) afirmaba con certa contundencia que se trataba dunha onomatopea galega, mais desde a década de 60 do século XX concluíuse que estaba en árabe, embora as traducións sobre o que o texto árabe (se callar, cun fragmento en romandalusí?) diría foron mudando co tempo. Para Brian Dutton (1964: 1-9) e Olga Novo (2013: 82 e 86) sería sobre a noite que dura e se fai longa, unha idea que ten ligazóns directas con outras composicións dos nosos códices, como as lindísimas «Sen meu amigo manh’eu senlheira» (B 1165 / V 771) e «Aquestas noitas tan longas, que Deus fez en grave dia» (B 1176, V 782), ambas de Juião Bolseiro.

Por outra banda, para Rip Cohen e Federico Corriente o refrán significiaría «it’s my turn» (Cohen & Corriente, 2002: 27), ‘é a miña vez’.»

 

Carlos Callón. SCRIPTA, Revista internacional de literatura i cultura medieval i moderna, núm. 15 / juny 2020 / pp. 1 – 15 ISSN: 2340-4841· doi:10.7203/SCRIPTA.15.17551

 

 



TEXTO 2

 

O verso “edoi lelia doura” aparece no meio do poema, cortando a sequência de imagens sobre o ato de criação. Inscreve, no meio de um diálogo entre um "eu", poeta e criatura textual, e um "tu", musa e texto, uma dupla referência: por um lado, evoca Pedro Eanes Solaz que abre a antologia de "vozes comunicantes". Por outro lado, evocando esta antologia, dialoga não só com o trovador, como também com toda a história da poesia lírica portuguesa, “cálculo lírico”; e claro, H. Helder alude ao seu próprio trabalho de poeta, à sua própria antologia de poesia portuguesa. A citação permite imaginar que o interlocutor do poeta seria uma espécie de arqui-antologia, a própria obra sobre a qual o poeta concentra sua atenção, "o melhor do [seu] braço". A obra é praticada como uma “abertura contínua”, um corpo que “cresce” até um certo tamanho que é medido pelo “desaparecimento” do ruído das palavras, deixando apenas o som da própria palavra.

O trabalho de abertura, que é o de criação, é também um trabalho circular, “uma volta sobre ti mesma”. O fruto desse trabalho é o "rosto" do eu; então, o próprio "eu" torna-se a obra. Apontamos a estreita relação entre o eu e o texto, especialmente em “A Faca Não Corta o Fogo”. Percebemos que, mais do que uma coincidência de corpos, é uma coincidência entre seu sopro vital e o texto. O pneuma é referido três vezes no poema: as batalhas de "ar e fogo", a respiração dos substantivos e o ar que o poeta respira. Note que o sopro vital é, portanto, o sopro do trabalho, o sopro do texto e o sopro do criador. Trata-se de respirar, às vezes ofegante, às vezes exalação longa, como mostra a oscilação entre versos curtos e versos mais longos. Na penúltima linha antes do final, o poeta enfatiza que a tarefa do interlocutor é reunir o que está separado; em outras palavras, é tarefa da antologia.

 

Daniel Rodrigues. Les démonstrations du corps. L’œuvre poétique de Herberto Helder. Littératures. Université de la Sorbonne nouvelle - Paris III, 2012, pp. 208-210.

 

TEXTO 3

 

O primeiro verso revela-nos uma aspiração, um pedido do sujeito poético: “pratica-te como contínua abertura,”. A quem ele solicita a prática da “contínua abertura”? Temos que ele se refira à arte poética, à poesia. O sujeito almeja a constituição de poemas abertos, ou seja, que aludam a uma totalidade, a um inacabamento que sugira o infinito, o absoluto em poesia. […]

Os versos “com uma volta sobre ti mesma até eu aparecer no outro lado do rosto,/ quando te olhas,” corroboram o exercício da arte poética como uma atividade centrada em si mesma. A expressão “com uma volta sobre ti mesma” enfatiza a metapoesia, sugestionada no emprego do termo circular “volta”, ou seja, daquilo que gira em torno de si mesmo. Na sequência, o sujeito poético indica um trabalho em conjunto entre ele e a obra em processo, pois solicita que ela dê uma volta sobre si mesma até que ele apareça no outro lado “do rosto” ou “do poema” cuja fisionomia já supostamente se entrevê. A questão da metapoesia retorna novamente, pois o verso quarto insiste nela: “quando te olhas”, quando a poesia volta-se sobre si mesma.

Supõe-se que o sujeito poético passa a narrar o processo criativo, e então ele continua: “espera que desapareça o ruído em cada palavra,/ e agora só a ela se ouça,/ e então aumenta tanto quanto possas se escutas/ que me aproximo/ a gênero de abrasadura mulheril,/ a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo,”. O sujeito se dirige à obra em processo, equiparando-a a uma mulher, a saber: “uma volta sobre ti mesma”, “a gênero de abrasadura mulheril”, são expressões que a enquadram no âmbito do feminino. Quando se pede para que espere o desaparecimento do “ruído em cada palavra”, enfatiza-se o processo de depuração da palavra poética. A purificação da palavra atinge o seu ápice no momento em que “só a ela se ouça”, e como o processo criativo envolve o trabalho concomitante do sujeito e da obra, tem-se a reversibilidade do ato de um no outro, de modo que existe uma co-participação fundamental entre os dois e da qual dependerá o futuro poema: “e então aumenta tanto [a voz da obra] quanto possas se escutas/ que me aproximo [o sujeito poético]”.

De que modo deve efetivar-se o entrelaçamento entre obra e autor para que se obtenha o poema? Os versos “a gênero de abrasadura mulheril/ a cálculo lírico infundido nas lides de ar e fogo” nos respondem. Primeiramente, com a força do erotismo feminino, visto que se fala em “abrasadura mulheril” – o processo criativo do poema equipara-se ao erotismo-sexual, já que poeta e palavras se aproximam e se entrelaçam, de modo análogo aos corpos dos amantes. Em seguida, encontramos a expressão “cálculo lírico” que, por sua vez, corrobora o sentido do segundo verso “o mais atento que custe”. O termo “cálculo” refere-se ao trabalho “matemático” executado pelo poeta no que diz respeito ao processo compositivo do poema, destacando a importância do papel da dimensão reflexiva. Por fim, este “cálculo lírico” é “infundido”, ou seja, inspirado, o que também aponta para a importância do papel do dom na confeção do texto. Ambos, dom e trabalho atuam de maneira igualmente relevante “nas lides [lutas, combates com as palavras] de ar e fogo”, isto é, no processo poético.

O verso “edoi lelia doura” faz referência a um livro de Herberto Helder, publicado em 1985 e de mesmo nome. Na verdade, a expressão “edoi lelia doura” é encontrada numa cantiga de amigo do século XIII e de autoria do jogral Pedro Eanes Solaz. O poema herbertiano retoma esta cantiga e a coloca como uma espécie de epígrafe ao seu livro de antologia de vozes comunicantes da poesia portuguesa. A expressão “edoi lelia doura” por muito tempo foi compreendida como um refrão onomatopaico, apresentando-se como uma cadeia sonora ou rítmica sem um significado específico. Na década de 60, estudiosos passaram a sugerir que o refrão desta cantiga de amigo se trata, na realidade, de um refrão em língua árabe e que se traduz por “e a noite roda” ou “a noite é longa”. No poema herbertiano, a expressão “edoi lelia doura” alude, portanto, ao encontro do sujeito poético com a faceta noturna do processo criativo e que antecede ao dia: o poema.

Logo a seguir, deparamo-nos com o verso “que o mênstruo coza e a seda escume”, o que novamente transpõe a obra em processo para o âmbito do feminino, em razão do aparecimento do termo “mênstruo”. A mulher que menstrua é potencialmente fértil e o desejo ou ordem para “que o mênstruo coza” denota igualmente o desejo de que a obra em processo resulte no poema. Que o “mênstruo” ou o “sangue da fertilidade” “coza”, isto é, que prepare o poema, que o possibilite. O verso continua e pede-se para que a “seda escume”, que a tessitura do poema aconteça. Continuando a leitura do poema, encontramos “à luz que nasce da roupa”. A palavra “luz” indica o aparecimento do poema, indica o momento em que a mescla de dom e trabalho ou de sujeito e obra é bem-sucedida. No caso, o surgimento do poema encontra-se ainda na esfera do desejo. Na obra herbertiana, o termo “roupa” apresenta-se muito recorrente e tem a ver com poema, na medida em que este é costurado ou tecido como a roupa. O texto poético é um artefacto humano, seda tecida pelas mãos do poeta.

O desejo de que a “luz” nasça da roupa continua a ser narrado, a ser detalhado. Para isso, é preciso que “os substantivos perfeitos respirem uns dos outros na têmpera”, quer dizer, que os “substantivos perfeitos” - a palavra poética, os nomes – entrelacem-se, “respirem” uns nos outros do modo mais exato, vital. Que as palavras entrem em pleno acordo, que as conexões entre elas sejam as mais eficazes possíveis. Como o poema é um animal, um corpo, um ser vivente, natural que as palavras “respirem” umas nas outras. Para tal intento, o poeta deve conferir o “tratamento térmico” adequado para que o poema surja. Se lembrarmos de que a figura do poeta pode ser, entre tantas, a do forjador de metais, temos que ele trabalha o metal, principalmente o aço, conferindo-lhe a consistência desejada por meio da operação de “têmpera”. Torna então o metal mais consistente, submetendo-o a um banho que consiste num choque térmico. Sob este aspecto, o poeta realiza a operação de “têmpera” sobre as palavras, tornando-as mais consistentes ou “substantivos perfeitos”, resultando desta operação “o frescor da língua indestrutível”, tal como o aço.

Narrando ainda a experiência poética, o sujeito poético enuncia “e então estendo por ti acima o melhor do meu braço,/ se é que posso fulgurar,”. Disto, depreende-se que o sujeito faz o melhor que pode para que surja o poema, pois estende o melhor do seu “braço” para a obra em processo, se bem que ele não possui a certeza de que o seu esforço será suficiente para a consecução do poema e, por isso, o verso “se é que posso fulgurar”. Não sabe se a luz, se o brilho, se a fulguração advirá do processo criativo.

Aventando a hipótese do resultado frutífero, o sujeito poético continua e finaliza a sua narração sobre a experiência poética: “e enquanto crio, cria-me, e cria-te como o começo de mim mesmo,/ isto: que unas o avulso,/ se te puderes mover como o ar que respiro, ó/ irrepetível, inenarrável, inerente”.

Trata-se de uma parte crucial do poema, pois aqui os versos evidenciam a reversibilidade entre as categorias de sujeito e objeto. Ambos, sujeito e obra ocupam os dois polos da clássica dicotomia a ponto de não mais podermos distingui-los. […]

Portanto, o papel do trabalho poético consiste em “soldar” esta experiência vivenciada de modo mais integral e repentino pela consciência, soldando os fragmentos que se apresentaram por conta desta experiência sensível: “isto, que unas o avulso,”. Nos poemas herbertianos, constantemente a afirmação da busca da unidade entre as coisas fundamenta o canto poético. O poeta deve unir o avulso, soldar os fragmentos a fim de compor o poema, empregando a linguagem analógica. Quando Herberto Helder publica o seu prefácio para o livro de António José Forte, temos que ele tece um comentário que vale para a sua própria poética:

 

Como muita poesia surrealista ou afim, a de Forte molda-se num corpus de fragmentos soldados por pontos magnéticos de analogia imagística ou verbal, por enlaces rítmicos: uma colagem orgânica de fragmentos. O continuum, sempre perfeito, denota a ágil intuição dos recursos de escrita, uma oficina atenta. (HELDER, Herberto. “Nota inútil”. In: FORTE, António José. Uma faca nos dentes. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2003. p. 14.)

 

Portanto, a finalidade é conectar, soldar o avulso, confecionando a “colagem orgânica de fragmentos”, ou melhor, o poema. Eis a linguagem analógica, a que procura entrever semelhanças entre os heterogêneos. Tudo o que se encontra comumente fragmentado ou separado pode servir de matéria para o espaço do poema, desvelando as relações secretas entre as coisas:

 

(...) o sentido não-intelectual, supra-racional, corporal, do poder da imaginação poética para animar o universo e identificar tudo com tudo. A cultura moderna tornou-se incapaz de tal ênfase, pois trata-se de uma cultura alimentada pelo racionalismo, a investigação e o utilitarismo. Se se pedir à cultura moderna para considerar o espírito enfático da magia, a identificação do nosso corpo com a matéria e as formas, toda a modernidade desaba (...). É forçoso ir longe, aos recônditos do tempo, ir beber nas noites ocultas. Parece que a física, agora, começa a trabalhar no sentido da pergunta poética: as coisas têm entre si relações de mistério, não relações de causa e efeito. Abre-se caminho através da obscuridade, inquirindo, seguindo adiante. (HELDER, Helder. “Herberto Helder: entrevista”. In: Inimigo Rumor, n.º 11. 2.º semestre de 2001, p. 193)

 

O excerto herbertiano supracitado corrobora a relevância da linguagem analógica para a poesia: “identificar tudo com tudo”. Dele, depreende-se que a cultura moderna valoriza demasiadamente uma racionalidade estrita, uma razão do tipo obtusa. Sendo assim, a linguagem analógica bebe de outras fontes que não o racionalismo e o utilitarismo, bebe “nas noites ocultas”, na imaginação produtora. Contrapõe-se assim a cultura moderna fundada na razão e a poesia.

Aliás, a palavra “noite” e suas correlatas têm uma função pontual na obra herbertiana: apontar para o contato do sujeito poético com o campo pré-reflexivo. É sabido que Novalis engendrou uma poética noturna, sendo a obra Hinos à noite sobejamente conhecida. Entre outras razões, o espaço da “noite” é valorizado na poética novalisiana, dado que a “noite” simboliza esse caos fecundante em que as coisas se unem e se apresentam sem distinção por conta da escuridão, enquanto que o “dia” tem a conotação da racionalidade que separa e que distingue tudo em razão de sua luminosidade apolínea.

Para a obra de Herberto Helder, tanto o “dia” quanto a “noite” têm conotações positivas e constituem etapas imprescindíveis do processo criativo, pois enquanto a “noite” aponta para o caos fecundante do campo pré-reflexivo, tem-se que o “dia” ou qualquer outra forma de luminosidade apontam para a possibilidade do surgimento do poema, indicando que o vínculo entre dom e trabalho ao menos parece bem-sucedido. E esta conotação positiva a respeito do “dia” se deve muito ao diálogo da poética herbertiana para com o cinema e a fotografia, tecnologias em que a luz possui um papel técnico fundamental na composição da imagem. Como veremos no capítulo II, esta faceta noturna do processo criativo e que se converte no dia tem também a sua relação com a obra do poeta Hölderlin.

No intuito de finalizar a análise do poema, vimos que o verso “isto: que unas o avulso” suscitou-nos uma grande discussão de cunho teórico para que entendêssemos que a linguagem analógica rege a construção dos poemas herbertianos, deixando-os propositadamente e necessariamente obscuros.

O poema termina com os versos “se te puderes mover como o ar que respiro, ó/irrepetível, inenarrável, inerente”. Caso sujeito poético e obra em processo entrem em concordância, caso estejam na mesma sintonia, tem-se o “irrepetível, inenarrável, inerente”: o poema.

 

Árvore do ouro, árvore da carne: problematização da unidade na obra de Herberto Helder. Análise de poemas d'A faca não corta o fogo, Tatiana Aparecida Picosque. São Paulo: FFLCH/SBD, 2012, pp. 106-117.

  


CARREIRO, José. “pratica-te como contínua abertura, Herberto Helder”. Portugal, Folha de Poesia, 24-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/pratica-te-como-continua-abertura.html



quinta-feira, 23 de junho de 2022

PETRARCA: Se amor não é, qual é meu sentimento? CAMÕES: Amor é um fogo que arde sem se ver


 


Grande parte da obra do poeta italiano Francesco Petrarca (1304-1374) é dedicada a Laura, uma jovem casada por quem se apaixonou e amou à distância.

 

Soneto 132

 

Se amor não é, qual é meu sentimento?

mas se é amor, por Deus, que cousa e qual?

se boa, que é do efeito ásp’ro e mortal?

se é má, o que é que adoça tal tormento?

 

Se ardo a bom grado1, onde é pranto e lamento?

e se a mau grado2, o lamentar que val’?

Ó viva morte, ó deleitoso3 mal,

tanto em mim podes sem consentimento?

 

E em sem razão me queixo, se o tolero.

E em tão contrários ventos, frágil barca

me leva em alto mar e sem governo,

 

tão cheia de erros, de saber tão parca4,

que eu mesmo nem sequer sei o que quero,

e a tremer no estio5, ardo de inverno.

 

As Rimas de Petrarca, trad. Vasco Graça Moura, Lisboa, Bertrand, 2003, p. 397

 

NOTAS: 1 Bom grado: por vontade. 2 Mau grado: contra vontade. 3 Deleitoso: aprazível. 4 Parca: escassa, modesta, pouco abundante. 5 Estio: verão.

 






1. Associa cada afirmação (coluna B) a uma passagem do poema que a exemplifique (coluna A).

COLUNA A

a)     «Se amor não é, qual é meu sentimento?» (v. 1)

b)     Versos 2 a 6.

c)      «tanto em mim podes sem consentimento?/ E em sem razão me queixo, se o tolero.» (vv. 8-9)

d)     «E em tão contrários ventos, frágil barca / me leva em alto mar e sem governo,/ tão cheia de erros, de saber tão parca». (vv. 10-12)

e) «que eu mesmo nem sequer sei o que quero, / e a tremer no estio, ardo de inverno.». /vv. 13-14)

 

COLUNA B

  1. O sujeito poético não consegue controlar racionalmente os efeitos do amor.
  2. O sujeito poético não sabe se quer sentir-se assim perdido, limitando-se a reconhecer a contradição dos seus sentimentos, que lhe provocam frio no verão e calor no inverno.
  3. O sujeito poético mostra-se perplexo perante os sentimentos contraditórios, bons e maus, provocados pelo amor.
  4. Incapaz de perceber o que sente, o sujeito poético vê-se como uma embarcação desgovernada, que se arrisca por perigosos mares.
  5. O sujeito poético tem dificuldades em definir aquilo que sente como sendo amor. 

 


2. A poesia de Petrarca influenciou muitos poetas europeus, incluindo Camões. Procede a uma leitura comparativa entre o soneto de Petrarca «Se amor não é, qual é meu sentimento?» e o soneto de Camões «Amor é um fogo que arde sem se ver» (analisado aqui).

 

Amor é um fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente;

é dor que desatina sem doer.

 

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar-se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

 

É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter, com quem nos mata, lealdade.

 

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo amor?

 


Amor é  fogo que arde sem se ver (Luís Represas & João Gil


2.1. Classifica como verdadeiras (V) ou falsas (F) as afirmações. Corrige as falsas.

a)     O amor é um sentimento complexo, segundo Camões, mas fácil de entender, segundo Petrarca.

 

b)     Ambos os sonetos apresentam uma reflexão sobre o amor e evidenciam o seu caráter contraditório.

 

c)      Existe uma relação de intertextualidade entre os dois textos, pois ambos abordam o tema do amor, a dificuldade dos poetas em caracterizarem devidamente este sentimento e os efeitos contraditórios que ele tem em quem ama.

 

d)     O soneto de Petrarca inicia-se com interrogações sobre o amor, tal como o de Camões.

 

e)     Enquanto no soneto de Camões o sujeito poético procura definir o amor, no de Petrarca faz uma reflexão sobre o seu próprio sentimento, mediante a utilização de perguntas retóricas. 

 

f)       O sentido do verbo «desatina» no verso 4 do soneto de Camões é oposto ao significado da expressão «sem razão» que ocorre no v. 9 do soneto de Petrarca.

 

g)     No poema de Camões, a reflexão sobre o amor é feita de forma intensa, mas distanciada. O sujeito poético usa sempre a 3.ª pessoa do singular, procurando encontrar uma definição assente nas respetivas contradições. 

 

h)     Realçando essas essas mesmas contradições e a dificuldade em definir o amor, o sujeito poético do soneto de Petrarca usa a 1.ª pessoa, refere-se, por isso, à sua experiência pessoal e aos efeitos que esse sentimento tem em si próprio.

 

i)       No seu soneto, o poeta italiano mostra de que modo o amor se manifesta em si próprio, generaliza, enquanto Luís de Camões reflete sobre os efeitos do sentimento nas pessoas, em geral.

 

 

3. Associa cada soneto a uma das seguintes citações, justificando.

a) «O amor não é só um estado absoluto. Porque se o fosse tantos de nós não o perseguíamos como se fosse atingível.» (Luís Osório, Amor, Alfragide, Oficina do Livro, 2016)

b) «Só há um tipo de amor que dura, o não correspondido.» (Woody Allen)

 

 

Chave de correção:

1. a-5; b-3; c-1; d-4; e-2.

 

2. a) F - O amor é um sentimento complexo, segundo Camões e Petrarca.

b) V

c) V

d) F - O soneto de Petrarca inicia-se com interrogações sobre o amor, mas no de Camões a interrogação é apresentada na conclusão.

e) V

f) F - Há uma coincidência entre o significado do verbo «desatina» (v. 4, soneto de Camões) e a expressão «sem razão» (v. 9, soneto de Petrarca).

g) V

h) V

i) F - No seu soneto, o poeta italiano mostra de que modo o amor se manifesta em si próprio, particulariza, enquanto Luís de Camões reflete sobre os efeitos do sentimento nas pessoas, em geral.

 

3. Sugestões de interpretação das frases citadas:

a) «O amor não é só um estado absoluto» - portanto, não é simples.

«Porque se o fosse tantos de nós não o perseguíamos como se fosse atingível.» -isto é, a verdade é que ele não é simples, não é um estado absoluto, é algo que se vai conquistando e, por isso, é que vamos tendo esta convicção de que o podemos atingir, porque vamos por fases: temos estádios de paixão, de amor, e vamos atingindo essas fases gradualmente. É, portanto, um sentimento complexo. É isso que Camões nos diz no soneto «Amor é um fogo que arde sem se ver»…

 

b) O único amor que perdura é aquele que não é correspondido, porque é aquele que continuamos a perseguir e que não conseguimos atingir, portanto, prolonga-se. E foi exatamente isto que viveu Petrarca com a sua amada Laura. Então, como pôde suportar o peso de um amor impossível? Através da arte, é a resposta.

 

 

Bibliografia:

«Amor é fogo», linhas de leitura sobre o poema «Amor é um fogo que arde sem se ver», de Luís de Camões, por José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2016-07-22 <https://folhadepoesia.blogspot.com/2016/07/amor-e-fogo.html>

 

«Se amor não é, qual é meu sentimento?» in P8, Lisboa, Ana Santiago e Sofia Paixão. Lisboa, Texto Editores, 2014 (2.ª ed.).


«Se amor não é, qual é meu sentimento?» in Conto Contigo 8, Conceição Monteiro Neto... [et al.]; rev. cient. e pedag. Sónia Valente Rodrigues. - [1ª ed., 1ª reimp.]. – Porto, Areal, 2013.

 

Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 52 de Português - 7.º e 8.º anos, sobre "Amor é fogo que arde sem se ver", de Luís de Camões, e "Se amor não é, qual é o meu sentimento?", de Petrarca, disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7828/e545683/portugues-7-e-8-anos, 2021-05-21:





CARREIRO, José. “PETRARCA: Se amor não é, qual é meu sentimento? CAMÕES: Amor é um fogo que arde sem se ver”. Portugal, Folha de Poesia, 23-06-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/06/petrarca-se-amor-nao-e-qual-e-meu.html