Camões,
ao longo da sua obra, vai tendo vários interlocutores. No século XX, Jorge de
Sena escreveu o seguinte poema em que o locutor é Camões e os interlocutores
são os seus contemporâneos.
CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS
5
10
15
20
25
Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
Assis, 11/6/1961
Jorge
de Sena, Antologia Poética,
edição de Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa, Guimarães, 2010, p. 127.
1. Explicite duas
das acusações que o sujeito poético faz aos seus contemporâneos, de acordo com
o conteúdo dos versos de 1 a 11.
2. «Não importa
nada: que o castigo / será terrível» (versos 12 e 13).
Explique o modo como
o sujeito poético prevê a concretização do castigo.
3. Selecione a
opção de resposta adequada para completar a afirmação abaixo apresentada.
Ao longo do poema, o sujeito poético exprime,
entre outros, um sentimento de ____ que é evidenciado por artifícios como ____.
(A)autocomiseração … a
repetição de vocábulos com sentido antitético
(B)autocomiseração … o
recurso a enumerações
(C)revolta … o recurso a
enumerações
(D)revolta … a repetição de vocábulos com sentido
antitético
1.
Devem
ser abordados dois dos tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes.
O sujeito poético acusa os seus
contemporâneos:
‒ de
praticarem plágio, por se apropriarem de ideias, temas, motivos, palavras,
imagens, metáforas e símbolos utilizados na sua poesia;
‒ de lhe
negarem a primazia e a ousadia, nomeadamente na inovação linguística (causadora
de sofrimento), no «entendimento dos outros» e na «coragem de combater»;
‒ de o
votarem ao desprezo, na medida em que não o citam, rejeitam a sua poesia e aclamam
outros.
2.
Devem
ser abordados os tópicos seguintes, ou outros igualmente relevantes:
‒ o
sujeito poético permanecerá na memória de todos, tal como a sua obra, enquanto
os seus contemporâneos serão esquecidos (até pelos familiares mais próximos);
‒ o
sujeito poético não só recuperará a autoria da totalidade da obra roubada, mas
também prevê que lhe venha a ser atribuída a autoria do «pouco e miserável» (v.
20) produzido pelos seus contemporâneos;
‒ o
sujeito poético será homenageado após a sua morte num túmulo onde repousarão os
restos mortais de outrem.
CARREIRO, José. “Camões dirige-se aos seus contemporâneos,
Jorge de Sena”. Portugal, Folha de Poesia: artes, ideias e o sentimento
de si, 01-04-2023.
Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2023/04/camoes-dirige-se-aos-seus.html
com uma volta sobre ti mesma até eu
aparecer no outro lado do rosto,
quando te olhas,
espera que desapareça o ruído em cada
palavra,
e agora só a ela se ouça,
e então aumenta tanto quanto possas se
escutas
que me aproximo,
a género de abrasadura mulheril,
a cálculo lírico infundido nas lides de
ar e fogo,
edoi lelia doura,
que o mênstruo coza e a seda escume,
à luz que nasce da roupa,
e os substantivos perfeitos respirem
uns dos outros na têmpera
e frescor da língua indestrutível,
e então estendo por ti acima o melhor
do meu braço,
se é que posso fulgurar,
e enquanto crio, cria-me, e cria-te
como começo de mim mesmo,
isto: que unas o avulso,
se te puderes mover como o ar que
respiro, ó
irrepetível, inenarrável, inerente
HELDER,
Herberto. “A faca não corta o fogo”.
In:
Ofício Cantante – poesia completa.
Lisboa:
Assírio & Alvim, 2009. p. 537.
TEXTOS DE APOIO
TEXTO 1
O verso “edoi lelia doura” serve de
título à Antologia das Vozes Comunicantes da Moderna Poesia Portuguesa
organizada por Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim,1985).
“Edoi lelia doura” é
um conhecido refrão da cantiga trovadoresca galego-portuguesa “Eu velida nom dormia”, de Pedro Anes Solaz/Pedr'Eanes Solaz,
que teve diferentes interpretações ao longo do tempo:
«Por
exemplo, Braga (1878: CII) afirmaba con certa contundencia que se trataba dunha
onomatopea galega,mais desde a década de 60 do século XX concluíuse
que estaba en árabe, embora as traducións sobre o que o texto árabe (se callar,
cun fragmento en romandalusí?) diría foron mudando co tempo. Para Brian Dutton
(1964: 1-9) e Olga Novo (2013: 82 e 86) sería sobre a noite que dura e se fai
longa, unha idea que ten ligazóns directas con outras composicións dos nosos
códices, como as lindísimas «Sen meu amigo manh’eu senlheira» (B 1165 / V 771)
e «Aquestas noitas tan longas, que Deus fez en grave dia» (B 1176, V 782),
ambas de Juião Bolseiro.
Por outra
banda, para Rip Cohen e Federico Corriente o refrán significiaría «it’s my
turn» (Cohen & Corriente, 2002: 27), ‘é a miña vez’.»
Carlos Callón. SCRIPTA,
Revista internacional de literatura i cultura medieval i moderna, núm. 15 /
juny 2020 / pp. 1 – 15 ISSN: 2340-4841· doi:10.7203/SCRIPTA.15.17551
TEXTO 2
O verso
“edoi lelia doura” aparece no meio do poema, cortando a sequência de imagens
sobre o ato de criação. Inscreve, no meio de um diálogo entre um
"eu", poeta e criatura textual, e um "tu", musa e texto,
uma dupla referência: por um lado, evoca Pedro Eanes Solaz que abre a antologia
de "vozes comunicantes". Por outro lado, evocando esta antologia, dialoga
não só com o trovador, como também com toda a história da poesia lírica
portuguesa, “cálculo lírico”; e claro, H. Helder alude ao seu próprio trabalho
de poeta, à sua própria antologia de poesia portuguesa. A citação permite
imaginar que o interlocutor do poeta seria uma espécie de arqui-antologia, a
própria obra sobre a qual o poeta concentra sua atenção, "o melhor do
[seu] braço". A obra é praticada como uma “abertura contínua”, um corpo
que “cresce” até um certo tamanho que é medido pelo “desaparecimento” do ruído
das palavras, deixando apenas o som da própria palavra.
O
trabalho de abertura, que é o de criação, é também um trabalho circular, “uma
volta sobre ti mesma”. O fruto desse trabalho é o "rosto" do eu;
então, o próprio "eu" torna-se a obra. Apontamos a estreita relação
entre o eu e o texto, especialmente em “A Faca Não Corta o Fogo”. Percebemos
que, mais do que uma coincidência de corpos, é uma coincidência entre seu sopro
vital e o texto. O pneuma
é referido três vezes no poema: as batalhas de "ar e fogo", a
respiração dos substantivos e o ar que o poeta respira. Note que o sopro vital
é, portanto, o sopro do trabalho, o sopro do texto e o sopro do criador.
Trata-se de respirar, às vezes ofegante, às vezes exalação longa, como mostra a
oscilação entre versos curtos e versos mais longos. Na penúltima linha antes do
final, o poeta enfatiza que a tarefa do interlocutor é reunir o que está
separado; em outras palavras, é tarefa da antologia.
O primeiro verso revela-nos uma
aspiração, um pedido do sujeito poético: “pratica-te como contínua abertura,”.
A quem ele solicita a prática da “contínua abertura”? Temos que ele se refira à
arte poética, à poesia. O sujeito almeja a constituição de poemas abertos, ou
seja, que aludam a uma totalidade, a um inacabamento que sugira o infinito, o
absoluto em poesia. […]
Os versos “com uma volta sobre ti mesma
até eu aparecer no outro lado do rosto,/ quando te olhas,” corroboram o
exercício da arte poética como uma atividade centrada em si mesma. A expressão
“com uma volta sobre ti mesma” enfatiza a metapoesia, sugestionada no emprego
do termo circular “volta”, ou seja, daquilo que gira em torno de si mesmo. Na
sequência, o sujeito poético indica um trabalho em conjunto entre ele e a obra
em processo, pois solicita que ela dê uma volta sobre si mesma até que ele
apareça no outro lado “do rosto” ou “do poema” cuja fisionomia já supostamente
se entrevê. A questão da metapoesia retorna novamente, pois o verso quarto
insiste nela: “quando te olhas”, quando a poesia volta-se sobre si
mesma.
Supõe-se que o sujeito poético passa a
narrar o processo criativo, e então ele continua: “espera que desapareça o
ruído em cada palavra,/ e agora só a ela se ouça,/ e então aumenta tanto quanto
possas se escutas/ que me aproximo/ a gênero de abrasadura mulheril,/ a cálculo
lírico infundido nas lides de ar e fogo,”. O sujeito se dirige à obra em processo,
equiparando-a a uma mulher, a saber: “uma volta sobre ti mesma”, “a gênero
de abrasadura mulheril”, são expressões que a enquadram no âmbito do feminino.
Quando se pede para que espere o desaparecimento do “ruído em cada palavra”,
enfatiza-se o processo de depuração da palavra poética. A purificação da palavra
atinge o seu ápice no momento em que “só a ela se ouça”, e como o processo criativo
envolve o trabalho concomitante do sujeito e da obra, tem-se a reversibilidade do
ato de um no outro, de modo que existe uma co-participação fundamental entre os
dois e da qual dependerá o futuro poema: “e então aumenta tanto [a voz da obra]
quanto possas se escutas/ que me aproximo [o sujeito poético]”.
De que modo deve efetivar-se o
entrelaçamento entre obra e autor para que se obtenha o poema? Os versos “a
gênero de abrasadura mulheril/ a cálculo lírico infundido nas lides de ar e
fogo” nos respondem. Primeiramente, com a força do erotismo feminino, visto que
se fala em “abrasadura mulheril” – o processo criativo do poema equipara-se ao
erotismo-sexual, já que poeta e palavras se aproximam e se entrelaçam, de modo
análogo aos corpos dos amantes. Em seguida, encontramos a expressão “cálculo
lírico” que, por sua vez, corrobora o sentido do segundo verso “o mais atento
que custe”. O termo “cálculo” refere-se ao trabalho “matemático” executado pelo
poeta no que diz respeito ao processo compositivo do poema, destacando a importância
do papel da dimensão reflexiva. Por fim, este “cálculo lírico” é “infundido”,
ou seja, inspirado, o que também aponta para a importância do papel do dom na
confeção do texto. Ambos, dom e trabalho atuam de maneira igualmente relevante
“nas lides [lutas, combates com as palavras] de ar e fogo”, isto é, no processo
poético.
O verso “edoi lelia doura” faz
referência a um livro de Herberto Helder, publicado em 1985 e de mesmo nome. Na
verdade, a expressão “edoi lelia doura” é encontrada numa cantiga de amigo do
século XIII e de autoria do jogral Pedro Eanes Solaz. O poema herbertiano
retoma esta cantiga e a coloca como uma espécie de epígrafe ao seu livro de
antologia de vozes comunicantes da poesia portuguesa. A expressão “edoi lelia
doura” por muito tempo foi compreendida como um refrão onomatopaico,
apresentando-se como uma cadeia sonora ou rítmica sem um significado específico.
Na década de 60, estudiosos passaram a sugerir que o refrão desta cantiga de amigo
se trata, na realidade, de um refrão em língua árabe e que se traduz por “e a
noite roda” ou “a noite é longa”. No poema herbertiano, a expressão “edoi lelia
doura” alude, portanto, ao encontro do sujeito poético com a faceta noturna do
processo criativo e que antecede ao dia: o poema.
Logo a seguir, deparamo-nos com o verso
“que o mênstruo coza e a seda escume”, o que novamente transpõe a obra em
processo para o âmbito do feminino, em razão do aparecimento do termo
“mênstruo”. A mulher que menstrua é potencialmente fértil e o desejo ou ordem
para “que o mênstruo coza” denota igualmente o desejo de que a obra em processo
resulte no poema. Que o “mênstruo” ou o “sangue da fertilidade” “coza”, isto é,
que prepare o poema, que o possibilite. O verso continua e pede-se para que a
“seda escume”, que a tessitura do poema aconteça. Continuando a leitura do
poema, encontramos “à luz que nasce da roupa”. A palavra “luz” indica o
aparecimento do poema, indica o momento em que a mescla de dom e trabalho ou de
sujeito e obra é bem-sucedida. No caso, o surgimento do poema encontra-se ainda
na esfera do desejo. Na obra herbertiana, o termo “roupa” apresenta-se muito
recorrente e tem a ver com poema, na medida em que este é costurado ou tecido
como a roupa. O texto poético é um artefacto humano, seda tecida pelas mãos do poeta.
O desejo de que a “luz” nasça da roupa
continua a ser narrado, a ser detalhado. Para isso, é preciso que “os
substantivos perfeitos respirem uns dos outros na têmpera”, quer dizer, que os
“substantivos perfeitos” - a palavra poética, os nomes – entrelacem-se, “respirem”
uns nos outros do modo mais exato, vital. Que as palavras entrem em pleno
acordo, que as conexões entre elas sejam as mais eficazes possíveis. Como o poema
é um animal, um corpo, um ser vivente, natural que as palavras “respirem” umas nas
outras. Para tal intento, o poeta deve conferir o “tratamento térmico” adequado
para que o poema surja. Se lembrarmos de que a figura do poeta pode ser, entre
tantas, a do forjador de metais, temos que ele trabalha o metal, principalmente
o aço, conferindo-lhe a consistência desejada por meio da operação de
“têmpera”. Torna então o metal mais consistente, submetendo-o a um banho que
consiste num choque térmico. Sob este aspecto, o poeta realiza a operação de
“têmpera” sobre as palavras, tornando-as mais consistentes ou “substantivos
perfeitos”, resultando desta operação “o frescor da língua indestrutível”, tal
como o aço.
Narrando ainda a experiência poética, o
sujeito poético enuncia “e então estendo por ti acima o melhor do meu braço,/
se é que posso fulgurar,”. Disto, depreende-se que o sujeito faz o melhor que
pode para que surja o poema, pois estende o melhor do seu “braço” para a obra
em processo, se bem que ele não possui a certeza de que o seu esforço será
suficiente para a consecução do poema e, por isso, o verso “se é que posso
fulgurar”. Não sabe se a luz, se o brilho, se a fulguração advirá do processo criativo.
Aventando a hipótese do resultado
frutífero, o sujeito poético continua e finaliza a sua narração sobre a
experiência poética: “e enquanto crio, cria-me, e cria-te como o começo de mim
mesmo,/ isto: que unas o avulso,/ se te puderes mover como o ar que respiro, ó/
irrepetível, inenarrável, inerente”.
Trata-se de uma parte crucial do poema,
pois aqui os versos evidenciam a reversibilidade entre as categorias de sujeito
e objeto. Ambos, sujeito e obra ocupam os dois polos da clássica dicotomia a
ponto de não mais podermos distingui-los. […]
Portanto, o papel do trabalho poético
consiste em “soldar” esta experiência vivenciada de modo mais integral e
repentino pela consciência, soldando os fragmentos que se apresentaram por
conta desta experiência sensível: “isto, que unas o avulso,”. Nos poemas
herbertianos, constantemente a afirmação da busca da unidade entre as coisas
fundamenta o canto poético. O poeta deve unir o avulso, soldar os fragmentos a fim
de compor o poema, empregando a linguagem analógica. Quando Herberto Helder publica
o seu prefácio para o livro de António José Forte, temos que ele tece um comentário
que vale para a sua própria poética:
Como muita
poesia surrealista ou afim, a de Forte molda-se num corpus de fragmentos
soldados por pontos magnéticos de analogia imagística ou verbal, por enlaces
rítmicos: uma colagem orgânica de fragmentos. O continuum, sempre perfeito,
denota a ágil intuição dos recursos de escrita, uma oficina atenta. (HELDER,
Herberto. “Nota inútil”. In: FORTE, António José. Uma faca nos dentes.
Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 2003. p. 14.)
Portanto, a finalidade é conectar,
soldar o avulso, confecionando a “colagem orgânica de fragmentos”, ou melhor, o
poema. Eis a linguagem analógica, a que procura entrever semelhanças entre os
heterogêneos. Tudo o que se encontra comumente fragmentado ou separado pode
servir de matéria para o espaço do poema, desvelando as relações secretas entre
as coisas:
(...) o
sentido não-intelectual, supra-racional, corporal, do poder da imaginação
poética para animar o universo e identificar tudo com tudo. A cultura moderna
tornou-se incapaz de tal ênfase, pois trata-se de uma cultura alimentada pelo
racionalismo, a investigação e o utilitarismo. Se se pedir à cultura moderna
para considerar o espírito enfático da magia, a identificação do nosso corpo
com a matéria e as formas, toda a modernidade desaba (...). É forçoso ir longe,
aos recônditos do tempo, ir beber nas noites ocultas. Parece que a física,
agora, começa a trabalhar no sentido da pergunta poética: as coisas têm entre
si relações de mistério, não relações de causa e efeito. Abre-se caminho
através da obscuridade, inquirindo, seguindo adiante. (HELDER,
Helder. “Herberto Helder: entrevista”. In: Inimigo Rumor, n.º 11. 2.º
semestre de 2001, p. 193)
O excerto herbertiano supracitado
corrobora a relevância da linguagem analógica para a poesia: “identificar tudo
com tudo”. Dele, depreende-se que a cultura moderna valoriza demasiadamente uma
racionalidade estrita, uma razão do tipo obtusa. Sendo assim, a linguagem
analógica bebe de outras fontes que não o racionalismo e o utilitarismo, bebe
“nas noites ocultas”, na imaginação produtora. Contrapõe-se assim a cultura
moderna fundada na razão e a poesia.
Aliás, a palavra “noite” e suas
correlatas têm uma função pontual na obra herbertiana: apontar para o contato
do sujeito poético com o campo pré-reflexivo. É sabido que Novalis engendrou
uma poética noturna, sendo a obra Hinos à noite sobejamente conhecida.
Entre outras razões, o espaço da “noite” é valorizado na poética novalisiana,
dado que a “noite” simboliza esse caos fecundante em que as coisas se unem e se
apresentam sem distinção por conta da escuridão, enquanto que o “dia” tem a conotação
da racionalidade que separa e que distingue tudo em razão de sua luminosidade
apolínea.
Para a obra de Herberto Helder, tanto o
“dia” quanto a “noite” têm conotações positivas e constituem etapas
imprescindíveis do processo criativo, pois enquanto a “noite” aponta para o
caos fecundante do campo pré-reflexivo, tem-se que o “dia” ou qualquer outra
forma de luminosidade apontam para a possibilidade do surgimento do poema,
indicando que o vínculo entre dom e trabalho ao menos parece bem-sucedido. E esta
conotação positiva a respeito do “dia” se deve muito ao diálogo da poética herbertiana
para com o cinema e a fotografia, tecnologias em que a luz possui um papel técnico
fundamental na composição da imagem. Como veremos no capítulo II, esta faceta
noturna do processo criativo e que se converte no dia tem também a sua relação com
a obra do poeta Hölderlin.
No intuito de finalizar a análise do poema,
vimos que o verso “isto: que unas o avulso” suscitou-nos uma grande discussão
de cunho teórico para que entendêssemos que a linguagem analógica rege a
construção dos poemas herbertianos, deixando-os propositadamente e
necessariamente obscuros.
O poema termina com os versos “se te
puderes mover como o ar que respiro, ó/irrepetível, inenarrável, inerente”.
Caso sujeito poético e obra em processo entrem em concordância, caso estejam na
mesma sintonia, tem-se o “irrepetível, inenarrável, inerente”: o poema.
Grande
parte da obra do poeta italiano Francesco Petrarca (1304-1374) é dedicada a
Laura, uma jovem casada por quem se apaixonou e amou à distância.
Soneto 132
Se amor não é, qual é meu sentimento?
mas se é amor, por Deus, que cousa e qual?
se boa, que é do efeito ásp’ro e mortal?
se é má, o que é que adoça tal tormento?
Se ardo a bom grado1, onde é pranto e lamento?
e se a mau grado2, o lamentar que val’?
Ó viva morte, ó deleitoso3 mal,
tanto em mim podes sem consentimento?
E em sem razão me queixo, se o tolero.
E em tão contrários ventos, frágil barca
me leva em alto mar e sem governo,
tão cheia de erros, de saber tão parca4,
que eu mesmo nem sequer sei o que quero,
e a tremer no estio5, ardo de inverno.
As Rimas
de Petrarca, trad. Vasco Graça Moura, Lisboa, Bertrand, 2003,
p. 397
NOTAS:
1 Bom
grado: por vontade. 2 Mau
grado: contra vontade. 3
Deleitoso: aprazível. 4 Parca:
escassa, modesta, pouco abundante. 5 Estio: verão.
1. Associa
cada afirmação (coluna B) a uma passagem do poema que a exemplifique (coluna
A).
COLUNA A
a)«Se
amor não é, qual é meu sentimento?» (v. 1)
b)Versos
2 a 6.
c)«tanto
em mim podes sem consentimento?/ E em sem razão me queixo, se o tolero.» (vv.
8-9)
d)«E
em tão contrários ventos, frágil barca / me leva em alto mar e sem governo,/
tão cheia de erros, de saber tão parca». (vv. 10-12)
e) «que eu mesmo nem sequer sei o
que quero, / e a tremer no estio, ardo de inverno.». /vv. 13-14)
COLUNA B
O sujeito poético não consegue controlar racionalmente os
efeitos do amor.
O sujeito poético não sabe se quer sentir-se assim perdido,
limitando-se a reconhecer a contradição dos seus sentimentos, que lhe provocam
frio no verão e calor no inverno.
O sujeito poético mostra-se perplexo perante os sentimentos
contraditórios, bons e maus, provocados pelo amor.
Incapaz de perceber o que sente, o sujeito poético vê-se como
uma embarcação desgovernada, que se arrisca por perigosos mares.
O sujeito poético tem dificuldades em definir aquilo que sente
como sendo amor.
2. A poesia de Petrarca influenciou
muitos poetas europeus, incluindo Camões. Procede a uma leitura comparativa entre
o soneto de Petrarca «Se amor não é, qual é meu sentimento?» e o soneto de
Camões «Amor é um fogo que arde sem se ver» (analisado aqui).
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente;
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter, com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo amor?
Amor é fogo que arde sem se ver (Luís Represas & João Gil
2.1. Classifica como verdadeiras
(V) ou falsas (F) as afirmações. Corrige as falsas.
a)O amor é um sentimento complexo, segundo Camões,
mas fácil de entender, segundo Petrarca.
b)Ambos os sonetos apresentam uma reflexão sobre o
amor e evidenciam o seu caráter contraditório.
c)Existe uma relação de intertextualidade entre os
dois textos, pois ambos abordam o tema do amor, a dificuldade dos poetas em
caracterizarem devidamente este sentimento e os efeitos contraditórios que ele
tem em quem ama.
d)O soneto de Petrarca inicia-se com interrogações
sobre o amor, tal como o de Camões.
e)Enquanto no soneto de Camões o sujeito poético procura
definir o amor, no de Petrarca faz uma reflexão sobre
o seu próprio sentimento, mediante a utilização de perguntas retóricas.
f)O
sentido do verbo «desatina» no verso 4 do soneto de Camões é oposto ao significado
da expressão «sem razão» que ocorre no v. 9 do soneto de Petrarca.
g)No poema de Camões, a reflexão sobre o amor é
feita de forma intensa, mas distanciada. O sujeito poético usa sempre a 3.ª
pessoa do singular, procurando encontrar uma definição assente nas respetivas
contradições.
h)Realçando essas essas mesmas contradições e a
dificuldade em definir o amor, o sujeito poético do soneto de Petrarca usa a 1.ª
pessoa, refere-se, por isso, à sua experiência pessoal e aos efeitos que esse
sentimento tem em si próprio.
i)No seu soneto, o poeta italiano mostra de que modo o
amor se manifesta em si próprio, generaliza, enquanto Luís de Camões reflete
sobre os efeitos do sentimento nas pessoas, em geral.
3. Associa
cada soneto a uma das seguintes citações, justificando.
a) «O amor não
é só um estado absoluto. Porque se o fosse tantos de nós não o perseguíamos
como se fosse atingível.» (Luís Osório, Amor, Alfragide, Oficina do
Livro, 2016)
b) «Só há um
tipo de amor que dura, o não correspondido.» (Woody Allen)
Chave
de correção:
1. a-5; b-3; c-1; d-4; e-2.
2. a) F - O amor é um sentimento complexo,
segundo Camões e Petrarca.
b) V
c) V
d) F - O soneto de Petrarca inicia-se com
interrogações sobre o amor, mas no de Camões a interrogação é apresentada na
conclusão.
e) V
f) F - Há uma coincidência entre o significado do verbo
«desatina» (v. 4, soneto de Camões) e a expressão «sem razão» (v. 9, soneto de
Petrarca).
g) V
h) V
i) F - No seu soneto, o poeta italiano mostra
de que modo o amor se manifesta em si próprio, particulariza, enquanto Luís
de Camões reflete sobre os efeitos do sentimento nas pessoas, em geral.
3. Sugestões
de interpretação das frases citadas:
a)
«O amor não é só um estado absoluto» - portanto, não é simples.
«Porque
se o fosse tantos de nós não o perseguíamos como se fosse atingível.» -isto é,
a verdade é que ele não é simples, não é um estado absoluto, é algo que se vai
conquistando e, por isso, é que vamos tendo esta convicção de que o podemos
atingir, porque vamos por fases: temos estádios de paixão, de amor, e vamos
atingindo essas fases gradualmente. É, portanto, um sentimento complexo. É isso
que Camões nos diz no soneto «Amor é um fogo que arde sem se ver»…
b)
O único amor que perdura é aquele que não é correspondido, porque é aquele que
continuamos a perseguir e que não conseguimos atingir, portanto, prolonga-se. E
foi exatamente isto que viveu Petrarca com a sua amada Laura. Então, como pôde suportar
o peso de um amor impossível? Através da arte, é a resposta.
«Se amor não é, qual é meu sentimento?» in P8, Lisboa, Ana Santiago e Sofia Paixão. Lisboa, Texto Editores, 2014 (2.ª
ed.).
«Se amor não é, qual é meu sentimento?» in Conto Contigo 8,
Conceição Monteiro Neto... [et al.]; rev. cient. e pedag. Sónia Valente
Rodrigues. - [1ª ed., 1ª reimp.]. – Porto, Areal, 2013.
CARREIRO, José. “PETRARCA:
Se amor não é, qual é meu sentimento? CAMÕES: Amor é um fogo que arde
sem se ver”. Portugal, Folha de Poesia, 23-06-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/06/petrarca-se-amor-nao-e-qual-e-meu.html