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sábado, 23 de julho de 2022

Dizia la bem talhada, Pedro Anes Solaz (Pedr'Eanes Solaz)

http://images.moleiro.com/noback/big-590-900CA_006.1_XI.jpg

         

Dizia la ben talhada:

“Agor’ a viss’ eu penada

ond’ eu amor ei”

 

A ben talhada dizia:

“Penad’ a viss’ eu un dia

ond’ eu amor ei

 

Ca, se a viss’ eu penada,

non seria tan coitada

ond’ eu amor ei

 

Penada se a eu visse,

non á mal que eu sentisse

ond’ eu amor ei

 

Quen lh’ oje por mi dissesse

que non tardass’ e veesse

ond’ eu amor ei

 

Quen lh’ oje por mi rogasse

que non tardass’ e chegasse

ond’ eu amor ei”

 

Pedr'Eanes Solaz/ Pedro Anes Solaz

“Pedr’ Eanes Solaz –1” in 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition, Rip Cohen. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 285

 

 

MANUSCRITOS (PRESENÇA DA CANTIGA NOS CANCIONEIROS): BN 828, V 414

Dizia la bem talhada, BN_381_175_828


Dizia la bem talhada, V_140_066_0414


As estrofes V-VI aparecem em ordem inversa no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, sendo que Rip Cohen seguiu a lição do Cancioneiro da Biblioteca Vaticana.

 

 

NOTAS:

A interpretación desta cantiga admite dúas direccións conforme se considerar que a amiga fala de unha rival, ou, contrariamente, que a voz feminina se dirixe a outra amiga, isto é, que se trate dunha cantiga lésbica (véxase Callón Torres 2017: II, 31; 2018; 2020).

 

1-4

Ao longo do corpus nunca se rexistra ningunha forma de artigo arcaico (lo, la) en inicio de período e/ou de verso. É por isto que nesta cantiga se percibe con clareza o notorio contraste que marca o emprego da forma la do artigo, en contexto posvocálico, na primera cobra, e o uso da forma normal a no inicio da segunda, no verso reflexo (Dizia la ben-talhada vs. A ben-talhada dizia). A manutención de /l/ na forma do artigo indica a procura dunha retórica arcaizante na elaboración de cantigas de amigo (véxase Ferreiro 2008b, 2013), igual que acontece noutras cantigas (587, 609, 704, 735, 781, 864, 891, 892, 903, 969, 1130, 1166, 1167, 1169, 1201, 1206, 1281, 1294, 1297, 1299, 1304 e 1314) e do mesmo xeito que acontece coas correspondentes formas pronominais (véxase nota a 586.5).


"Penada se a eu visse", verso 7, BN

"Penada se a eu visse", verso 7, V


O incipit desta cantiga de Pedr’Eanes Solaz foi aproveitado por Afonso Sanchez noutra cantiga de amigo, cunha intertextualidade reforzada pola aparición da forma la do artigo (véxase 781.5).

 

2-5

Nestes dous versos, na dirección que marcou a edición de Machado, Cohen consolidou a segmentación do pronome feminino en Agor’a e Penad’a, respectivamente, fornecendo fluidez discursiva a un texto que ficaba deficiente na tradicional edición de Nunes (e de Reali e mais de Littera).

 

7-10

Nótese a emenda no pronome feminino que Nunes (nos dous versos), Reali (só no v. 10) e Littera realizaron, inxustificadamente, no texto, talvez para procurar unha presenza masculina que non existe na cantiga (se a eu visse penada, v. 7; Penada se a eu...).

 

13-18

A troca de lugar das estrofas V-VI en Littera carece, en aparencia, de xustificación.

 

Universo Cantigas. Edición crítica da poesia medieval galego-portuguesa, org. Manuel Ferreiro. A Coruña, Universidade da Coruña, https://www.universocantigas.gal/cantigas/dizia-la-ben-talhada [Consulta em: 2022-07-22].

 

PARÁFRASE(S):

vv. 3, 6, 9, 12, 15, 18:

Nas estrofes I e II a construção pode ser assim parafraseada: “Quem me dera vê-la sofrer por quem eu sinto amor.”

Na estrofe III: “Porque se eu a visse sofrer, eu não estaria tão infeliz por quem eu sinto amor...”.

Na estrofe IV: “Não há dor que eu sentisse por quem eu sinto amor...”.

Nas estrofes V-VI: “Queria que alguém dissesse àquele por quem sinto amor que ele (por quem sinto amor) não se atrasasse mas chegasse…” – e aqui ond’ eu amor ei funciona como oração relativa dependente de lh’ e, juntamente com o seu antecedente omitido, constitui o sujeito gramatical de veesse, chegasse e non tardasse (e pode suplementarmente significar “ao lugar de onde”; cf. CSM 26.93-94 que fosse tornar / a alma onde a trouxeron).

 

“Pedr’ Eanes Solaz –1” in 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition, Rip Cohen. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 285

 

(I) Dicía a amiga fermosa: «Oxalá agora a vise penada alí onde teño amor!».
(II) A amiga fermosa dicía: «Oxalá penada a vise eu un día alí onde teño amor, (III) pois, se a vise penada, non sufría tanto alí onde teño amor!».
(IV) Se a eu vise penada, non sentiría ningún mal, alí onde teño amor!».
(V) Quen hoxe por min lle dixese que non tardase e que viñese alí onde teño amor!».
(VI) Quen hoxe por min lle rogase que non tardase e que chegase alí onde teño amor!».

 

Universo Cantigas. Edición crítica da poesia medieval galego-portuguesa, org. Manuel Ferreiro. A Coruña, Universidade da Coruña, https://www.universocantigas.gal/cantigas/dizia-la-ben-talhada [Consulta em: 2022-07-22].

 

A cantiga comeza cunha enunciación sen identificar (quizais o quen dos vv. 13 e 16?), que é testemuña do que ouviu dicirlle á ben-talhada, á bela, a quen se lle transfire a voz a continuación. A muller expresa o seu desexo de ver penada unha outra figura feminina, no lugar onde ela ten agora amor. No segundo par de cobras, a ben-talhada sinala que se vise que esa figura feminina está triste, ela non estaría tan mal. Xa nas derradeiras estrofas, desexa que alguén lle dixese (suponse que á figura feminina até aí referida) que fose ao seu encontro. O refrán marca o amor topograficamente: o desexo é ver a tristura e o reencontro nun espazo concreto. Transmítesenos ademais o movemento desde o despeito até o desexo da reconciliación, mais sempre a dependencia afectiva.

 

Unha cantiga lésbica amatoria no trobadorismo galego-portugués”, Carlos Callón. SCRIPTA, Revista internacional de literatura i cultura medieval i moderna, núm. 15 / juny 2020 / pp. 1 – 15 ISSN: 2340-4841· doi:10.7203/SCRIPTA.15.17551



   Poderá também gostar de:

 

  


 


CARREIRO, José. “Dizia la bem talhada, Pedro Anes Solaz (Pedr'Eanes Solaz)”. Portugal, Folha de Poesia, 23-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/dizia-la-bem-talhada-pedro-anes.html



sexta-feira, 22 de julho de 2022

Eu velida nom dormia, Pedro Anes Solaz (Pedr’Eanes Solaz)

 



            Eu velida1 nom dormia

                   lelia doura2

            e meu amigo venia

                   edoi3 lelia doura.

           

5          Nom dormia e cuidava

                   lelia doura

            e meu amigo chegava

                   edoi lelia doura.

           

            O meu amigo venia

10               lelia doura

            e d'amor tam bem dizia

                   edoi lelia doura.

           

            O meu amigo chegava

                   lelia doura

15        e d'amor tam bem cantava

                   edoi lelia doura.

           

            Muito desejei, amigo,

                   lelia doura

            que vos tevesse comigo

20              edoi lelia doura.

           

            Muito desejei, amado,

                   lelia doura

            que vos tevess'a meu lado

                   edoi lelia doura.

           

25        Leli, leli, par Deus, leli4

                   lelia doura

            bem sei eu que[m] nom diz leli

                   edoi lelia doura.

           

            Bem sei eu que[m] nom diz leli

30              lelia doura

            demo x'é5 quem nom diz leli

                   edoi lelia doura.

Pedro Anes Solaz / Pedr’Eanes Solaz

(trovador ou jogral medieval)

 

AUTOR:

Trovador ativo em meados do século XIII, muito provavelmente natural da região de Pontevedra, Galiza, onde, em Meis, se situava o mosteiro de Nogueira, referido numa das suas composições1. No verdade, o seu apelido, ao contrário do que pensava D. Carolina Michaëlis (que o explicava como alcunha e supunha Pedro Anes jogral)2, deverá ter origem num topónimo atestado na Galiza, indicando a sua eventual pertença a uma família da pequena nobreza da região, estatuto social talvez mais conforme com a colocação das suas composições nos cancioneiros (numa zona de autores nobres). De resto, Ron Fernández3 localizou um indivíduo com o mesmo apelido, um João Solaz, na documentação de Lugo (atestado em 1304). À exceção destes dados indiretos, não possuímos, no entanto, qualquer outro dado que nos permita traçar a biografia mínima do trovador.

 

Referências

1 Oliveira, António Resende de (2001), O trovador galego-português e o seu mundo, Lisboa, Editorial Notícias, p. 200.

2 Vasconcelos, Carolina Michaëlis de (1990), Cancioneiro da Ajuda, vol. II, Lisboa, Imprensa nacional - Casa da Moeda (reimpressão da edição de Halle, 1904), p. 450.

3 Ron Fernández, Xavier (2005), “Carolina Michaelis e os trobadores representados no Cancioneiro da Ajuda”, in Carolina Michaelis e o Cancioneira da Ajuda hoxe, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia.
     
 Aceder à página Web

 

Fonte: Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 2022-07-22] Disponível em: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/autor.asp?pv=sim&cdaut=118>.

 

 

PRESENÇA DA CANTIGA NOS CANCIONEIROS: CBN 829, CV 415

 

Cancioneiro da Biblioteca Nacional – manuscrito B 829

Cancioneiro da Vaticana – manuscrito V 415


 

LÉXICO:

1. velida - bela, formosa.

 

2. Na interpretação recente de Rip Cohen e Federico Corriente ("Lelia Doura revisited", in La Corónica: a Journal of Medieval Hispanic Languages, Literatures and Cultures, 2002, vol. 31, n.º 1.), a expressão árabe significará "é a minha vez" ("a noite roda" ou "é longa" eram anteriores propostas de tradução).

Nota de Rip Cohen em 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 288: «vv. 2, 4, etc.: lelia doura pode ser lido como líya ddáwra “a mim a vez (= é a minha vez)” em árabe andaluz. líya, um alomorfe de li ‘a mim,’ ‘para mim’, é foneticamente /leia/, e lelia pode ser ou um erro por leiia ou, mais plausivelmente, uma transcrição de líya (cinco vezes em Martin Giinzo devemos pronunciar Cecilia como /sesia/ em rima, sendo todas as rimas perfeitas). Ed oi é romance ibérico arcaico < et hodie com vocalização do -t- intervocálico no interior da expressão. Assim ed oi / MUDANÇA DE CÓDIGO / líya ddáwra = “E hoje / MUDANÇA DE CÓDIGO / é a minha vez” – um verso bilingue, como ocorre em tantas kharajat

 

3. "e hoje", ainda segundo Cohen e Corriente, que entendem o termo não como árabe, mas como uma expressão em antiga língua romance, proveniente do Latim "et hodie" – já na anterior interpretação de Brian Dutton("Lelia doura, edoy lelia doura, na arabic refrain in a thirteenth-century galician poem?", in Bulletin of Hispanic Studies, 1964, XLI), tratar-se-ia de um termo árabe, cujo sentido seria "esmoreço".

 

4. Nota de Rip Cohen em 500 Cantigas d’Amigo: Edição Crítica / Critical Edition. Porto: Campo das Letras, 2003, p. 288: «vv. 25, 27, 29, 31: leli pode ser lido em árabe andaluz como layli, o substantivo layl ‘noite’ com sufixo pronominal da primeira pessoa (cf. Dutton 1964, mas o nome é colectivo, não o nomen unitatis, que seria laylati). ya layli é uma expressão comum que significa qualquer coisa como “que noite eu tive”. O primeiro elemento pode ser omitido por razões métricas ou para exprimir emoção intensa.»

 

5. Equivalente ao atual "diabos levem".

 

NOTA GERAL:

Durante muito tempo esta notável cantiga de amigo de Pedro Anes Solaz não encontrou uma explicação cabal, dada a estranheza do seu duplo refrão, que era entendido como puramente onomatopaico (ou seja, como um mero conjunto de sons exclamativos). A sugestão de Brian Dutton (19641) e Firmino Crespo (19672), de que se trataria, na verdade, de um refrão em língua árabe, significando "e a noite roda" ou "a noite é longa" (o que se enquadraria bastante bem na voz da donzela que não consegue dormir), veio trazer mais alguma luz à composição. Já mais recentemente, Rip Choen e Federico Corriente3 interpretaram de forma diferente os versos do refrão, propondo a tradução "é a minha vez" (v. 2), "e hoje é a minha vez" (v. 4) e ainda, quanto a leli (v. 25), a exclamação "A minha noite!".
Por explicar fica esta utilização da língua árabe no refrão, caso único em toda a poesia galego-portuguesa. Este facto, juntamente com as alterações algo bruscas no paralelismo (nas estrofes 5 e 6, e nas estrofes finais), alterações que parecem introduzir inesperados desvios de sentido na voz da donzela, continuam a dificultar uma interpretação cabal da cantiga. Lamento? Canto de júbilo? Original sátira indireta? (nesta última interpretação, o trovador poderia aludir aqui aos amores proibidos entre uma donzela e um muçulmano, talvez um músico, dentre os que sabemos terem estado ao serviço dos soberanos peninsulares). Seja como for, sublinhe-se o facto de estarmos perante uma cantiga de amigo que, sem nada perder do seu notável lirismo, é, na sua originalidade, de difícil classificação.

Referências

1 Dutton, Brian (1964), "Lelia doura, edoy lelia doura, na arabic refrain in a thirteenth-century galician poem?", in Bulletin of Hispanic Studies, XLI.

2 Crespo, Firmino (1967), "Lelia Doura ou o estranho refrão de uma cantiga trovadoresca", in Colóquio, 42, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
     
 Aceder à página Web

3 Cohen, Rip e Corriente, Federico (2002), "Lelia Doura revisited", in La Corónica: a Journal of Medieval Hispanic Languages, Literatures and Cultures, vol. 31, nº 1.
     
 Aceder à página Web

 

 

VERSÕES MUSICAIS:

 

Originais: Desconhecidas

 

Contrafactum:

Eu velida no dormia 

Versão de José Augusto Alegria

 

Composição/Recriação moderna:

Cantar d’amigo (Cantares: op. 28, nº 4-2)      

Versão de Cláudio Carneyro

 

Lelia Doura      

Versões de Amancio Prada

 

Eu belida non durmia       

Versão de X. Paz Antón, Uxía

 

Lelia doura      

Versão de José Mário Branco

  

Fonte: Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 2022-07-22] Disponível em: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?ling=por&cdcant=838>.

 



 

   Poderá também gostar de:

 

Edição crítica da cantiga medieval “Eu velida nom dormia”, disponível em https://www.universocantigas.gal/cantigas/eu-velida-non-dormia, Coruña, Facultade de Filoloxía, © 2022

 

“Pedro Eanes Solaz”, verbete de http://xacopedia.com/Pedro_Eanes_Solaz. Copyright 2015 © Bolanda.

 

 

Poesia trovadoresca galego-portuguesasíntese didática

 

Sedução e drama nos cantares de amigo.

 

INTERTEXTUALIDADE:

 

  • O verso “edoi lelia doura” serve de título à Antologia das Vozes Comunicantes da Moderna Poesia Portuguesa organizada por Herberto Helder (Lisboa: Assírio & Alvim,1985).

 


CARREIRO, José. “Eu velida nom dormia, Pedro Anes Solaz (Pedr'Eanes Solaz)”. Portugal, Folha de Poesia, 22-07-2022. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/07/eu-velida-nom-dormia-pedro-anes-solaz.html


quinta-feira, 16 de junho de 2022

Levad', amigo, que dormides as manhanas frias (Ergue-te, amigo que dormes nas manhãs frias!)

 
         
 

Levad', amigo, que dormides as manhanas frias
tôdalas aves do mundo d'amor dizia[m]:
       leda m'and'eu.

Levad', amigo que dormide'las frias manhanas
tôdalas aves do mundo d'amor cantavam:
       leda m'and'eu.

Tôdalas aves do mundo d'amor diziam,
do meu amor e do voss[o] em ment'haviam:
       leda m'and'eu.

Tôdalas aves do mundo d'amor cantavam,
do meu amor e do voss[o] i enmentavam:
       leda m'and'eu.

Do meu amor e do voss[o] em ment'haviam
vós lhi tolhestes os ramos em que siíam:
       leda m'and'eu.

Do meu amor e do voss[o] i enmentavam
vós lhi tolhestes os ramos em que pousavam:
       leda m'and'eu.

Vós lhi tolhestes os ramos em que siíam
e lhis secastes as fontes em que beviam;
       leda m'and'eu.

Vós lhi tolhestes os ramos em que pousavam
e lhis secastes as fontes u se banhavam;
       leda m'and'eu.

 

Nuno Fernandes Torneol

 NOTAS:

Levad’ (verso 1) – levantai-vos.

manhanas (verso 1) – manhãs.

tôdalas (verso 2) – todas as.

leda (verso 3) – alegre.

em ment’haviam (verso 8) – tinham no pensamento.

i enmentavam (verso 11) – nele (no canto), falavam do meu amor e do vosso.

tolhestes (verso 14) – tirastes.

siíam (verso 14) – estavam pousadas.

u (verso 23) – onde.


Autor: Nuno Fernandes Torneol -trovador do século XIII. Pensa-se que tenha estado vinculado às cortes de Fernando III e Afonso X, pois numa cantiga de escárnio é referido que era um cavaleiro ao serviço de um rico-homem de Castela. São conhecidos vinte e dois poemas da sua autoria: treze cantigas de amor, oito cantigas de amigo e uma de escárnio e de maldizer.

 

Presença da cantiga nos cancioneiros: CV 242, CBN 641

 

Descrição:

Género: Cantiga de Amigo
Subgénero: Alba
Refrão e Paralelística

Cobras alternadas

 

Nota geral:


Esta magnífica alba de Nuno Fernandes Torneol é certamente uma das mais conhecidas e antologiadas cantigas de amigo de toda a lírica galego-portuguesa, e com inteira justiça. Como acontece com todas as cantigas que jogam com a dimensão simbólica, nomeadamente dos elementos naturais a que fazem apelo (no caso, aves, ramos, fontes), esta é uma composição de sentido aberto, suscetível de diversas interpretações (que não deixaram de ser feitas, ao longo da sua história crítica).


Em sentido estrito, o seu resumo não é difícil: a moça acorda de manhã o seu amigo, que dorme ainda (pede-lhe para se levantar), enquanto recorda como todas as aves do mundo cantavam de amor, sentindo-se ela imensamente alegre. Era o amor entre os dois o que as aves comentavam no seu canto. Mas o amigo cortou os ramos em que elas pousavam e secou as fontes onde bebiam.


Se a cantiga nada mais nos diz, duas linhas de leitura parecem, desde logo, evidentes: a primeira, a identificação que se pode estabelecer entre as aves que cantam e a moça (que canta), e que é potenciada pela ambiguidade do sujeito do refrão (as aves cantavam a alegria da moça, ou a alegria da moça é um eco do canto de amor das aves); a segunda linha de leitura também parece evidente: em algum momento o amigo perturbou o curso natural do amor, ou seja, a moça alude, nas quatro estrofes finais (como quatro são as estrofes iniciais), a uma rutura amorosa.


Um primeiro elemento menos evidente é o facto de o refrão, cujo tempo é o presente do indicativo, se manter (como lhe compete) inalterado ao longo de toda a cantiga. Esta reafirmação de uma alegria presente, mesmo nas estrofes finais, disfóricas, da cantiga, tem sido interpretada duas formas distintas:


1) o presente da moça é o de um alegre despertar, depois de uma noite de amor que se sucedeu a uma rutura, já ultrapassada (recordando esse tempo melancólico, a moça volta agora a estar alegre);


2) o presente da moça é o tempo da rutura definitiva, após uma noite que apenas a confirmou - neste caso, o presente do refrão nas estrofes finais da cantiga sublinharia, dramaticamente, um tempo feliz recordado na primeira parte e que não voltará mais (como alguém que insensatamente quer continuar a acreditar naquilo que sente terminado).


De resto, e sem com isto tomarmos partido por qualquer uma das duas interpretações (tarefa que deixamos ao leitor), dois aspetos, de certa forma, complementares, merecem ainda ser sublinhados. Um deles é a referência às "manhãs frias" (o presente explícito da moça e do amigo), referência pouco habitual neste tipo de cantigas de amigo, onde o cenário é geralmente mais idílico e primaveril. De resto, estas "manhãs frias", juntamente com o fim do canto das aves, as árvores despidas de ramos e as fontes secas, desenham-nos um cenário de final do verão ou de inícios de outono, simbolicamente muito paralelo ao tempo melancólico de uma rutura (passada ou presente).


Seja qual for, enfim, a interpretação que dermos à cantiga, a arte de Nuno Fernandes Torneol é plenamente confirmada por esta notável capacidade de aliar o mais elementar ao mais complexo, ou de condensar, através das formas mais simples e tradicionais, níveis sucessivos de leitura.

 

Versões musicais (seguir as hiperligações abaixo)

Originais

Desconhecidas

Contrafactum

Levad' , amigo, que durmides as manhanas frías      

Versão de Paulina Ceremużyńska

Composição/Recriação moderna

Leda m’and’eu (versão para canto e piano) 

Versões de Frederico de Freitas

Levado amigo      

Versão de Pedro Barroso



Alegre eu ando 

Versão de Fontes Rocha, Natália Correia

Leda me ande eu! 

Versão de Tomás Borba

Leda m'and'eu      

Versão de José Mário Branco

 

Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 2022-06-16] Disponível em: <https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=662&pv=sim>.

 

Questionário sobre a leitura da cantiga trovadoresca galego-portuguesa “Levad’, amigo, que dormides as manhanas frias”.

 

1. Interprete o apelo feito pela donzela ao «amigo», nas duas primeiras estrofes.

 

2. Identifique duas partes distintas na estrutura temática do poema, justificando a sua resposta.

 

3. Analise o valor simbólico de dois dos elementos da natureza evocados pela donzela.

 

4. Explicite dois aspetos que ilustrem a estrutura paralelística presente nesta cantiga.

 

 

CENÁRIO DE RESPOSTAS:

 

1. Nas duas primeiras estrofes, com o seu apelo, a donzela:

  • expressa a vontade de acordar o «amigo»;

 

  • identifica o interlocutor (através da apóstrofe), evidenciando a relação amorosa entre ambos;

 

  • interpela o «amigo», avisando-o da aproximação do dia (na tradição da alba).

 

2. Na estrutura temática do poema, podem identificar-se duas partes distintas:

  • nas primeiras quatro estrofes, é sobretudo evocada a felicidade associada ao sentimento amoroso recíproco;

 

  • nas quatro últimas estrofes, predomina a expressão do sofrimento da donzela pelo fim do idílio.

 

3. Aos elementos da natureza evocados pela donzela pode ser atribuído o seguinte valor simbólico:

  • as aves refletem o sentimento do sujeito lírico, fazendo eco da sua alegria;

 

  • os ramos quebrados pelo amigo sugerem a alteração do estado de tranquilidade e de felicidade amorosa;

 

  • as fontes, após terem secado, simbolizam o termo de um ciclo de renovação natural (associado à tristeza e ao desconsolo).

 

4. Os aspetos que ilustram a estrutura paralelística presente na cantiga são os seguintes:

  • o paralelismo formal, seguindo um esquema fixo (leixa-pren) de retoma de versos anteriores em início de estrofe (por exemplo, a repetição do segundo verso do primeiro dístico no primeiro verso do terceiro dístico);

 

  • o paralelismo semântico, verificável na repetição da mesma ideia, de um dístico para outro, com variações lexicais que assentam frequentemente numa relação de sinonímia («dizia[m]» / «cantavam»; «siían» / «pousavam»).

 

Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa | Prova 734 | 2.ª Fase | Ensino Secundário | 2022 |11.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho | Decreto-Lei n.º 27-B/2022, de 23 de março)

Prova: https://iave.pt/wp-content/uploads/2022/07/EX-LitP734-F2-2022_net.pdf

Critérios de correção: https://iave.pt/wp-content/uploads/2022/07/EX-LitP734-F2-2022-CC-VT_net.pdf

 

Antonio García Patiño, Cantigas de Amigo, XIV – Levad’, amigo, que dormides as manhanas frias, 1999.
© Moleiro.com 



Lê agora a versão de Natália Correia desta cantiga de amigo da autoria de Nuno Fernandes Torneol, enquanto ouves a sua gravação áudio.



Ergue-te, amigo que dormes nas manhãs frias!
Todas as aves do mundo, de amor, diziam:
       alegre eu ando.

Ergue-te, amigo que dormes nas manhãs claras!
Todas as aves do mundo, de amor, cantavam:
       alegre eu ando.

Todas as aves do mundo, de amor, diziam;
do meu amor e do teu se lembrariam:
       alegre eu ando.

Todas as aves do mundo, de amor, cantavam;
do meu amor e do teu se recordavam:
       alegre eu ando.

 

Do meu amor e do teu se lembrariam;
tu lhes tolheste os ramos em que eu as via:
       alegre eu ando.

Do meu amor e do teu se recordavam;
tu lhes tolheste os ramos em que pousavam:
       alegre eu ando.

Tu lhes tolheste os ramos em que eu as via;
e lhes secaste as fontes em que bebiam:
       alegre eu ando.

Tu lhes tolheste os ramos em que pousavam;
e lhes secaste as fontes que as refrescavam:
       alegre eu ando

 

Nuno Fernandes Torneol, Cantares dos trovadores galego-portugueses, seleção, introdução, notas e adaptação de Natália Correia, Lisboa, Editorial Estampa, 1978, pp. 219-221

 

 

Questionário:

 

1. Indica a quem se dirige o sujeito poético nas primeiras quatro estrofes, bem como as razões por que o faz.

 

2. Identifica os recursos expressivos comuns aos versos 7 e 10: «Todas as aves do mundo, de amor, diziam», «Todas as aves do mundo, de amor, cantavam».

 

3. Caracteriza psicologicamente o sujeito poético, nas primeiras quatro estrofes, e relaciona o seu estado de espírito com os elementos da natureza.

 

4. Interpreta as metáforas dos versos 19 e 20 («Tu lhes tolheste os ramos em que eu as via; / e lhes secaste as fontes em que bebiam»), justificando que tipo de situação amorosa é sugerida pelas ações do amigo.

 

5. Tem em atenção o refrão «alegre eu ando», especialmente a sua presença nas últimas quatro estrofes.

5.1 Escolhe a opção correta. Sendo a relação entre os amantes agora de natureza diferente da inicial, estas palavras da amiga apresentam um sentido

a. hiperbólico.   b. metafórico.   c. irónico.   d. eufemístico.

 

5.2 Justifica.

 

6. Associa cada tempo verbal a uma estação do ano:

   a) pretérito imperfeito: «as aves […] cantavam»;

   b) pretérito perfeito: «Tu lhes tolheste os ramos […] e lhes secaste as fontes»;

   c) presente do indicativo: «Ergue-te, amigo que dormes nas manhãs frias!».

 

7.  Refere o tema do poema.

 

8. Identifica as afirmações verdadeiras (V) e as falsas (F). Corrige as falsas.

a)     Neste poema, o poeta dirige-se ao amigo.

b)     «Manhãs frias» é o elemento negativo no cenário que funciona como presságio, pois conota um amor infeliz.

c)      Este poema estrutura-se em duas partes, porque aborda primeiro o fim do amor e depois a alegria desse amor.

d)     As aves eram cúmplices e inconfidentes daquele amor.

e)     Eram as aves que faziam ecoar o amor entre a menina e o seu amigo.

f)       Os sons nasais transmitem um tom pesaroso.

g)     O sujeito poético desculpabiliza o amigo.

h)     A cantiga está construída com base em estruturas repetitivas, versos, palavras, refrão.

i)       Os versos apresentam-se em estruturas paralelas, como, por exemplo os vv. 1 e 4 ou vv. 17 e 22.

j)       Na poesia lírica em geral as repetições não são uma técnica muito frequente.

k)     Esta cantiga apresenta exemplos de versos cujo sentido é idêntico a outros anteriores, como sucede, por exemplo, com os vv. 11 (semelhante ao 8.º) e 5 (semelhante ao 2.º).

l)       Há uma variação mínima entre as várias estrofes devido ao paralelismo e ao refrão sempre presente.

 

 

Correção:

 

1. O sujeito poético, uma rapariga, dirige-se a um «tu», o seu amigo, num primeiro momento para lhe pedir que acorde e se levante.

 

2. Personificação, hipérbole...

 

3. O sujeito poético vive momentos de felicidade, como o refrão comprova.

Existe uma identificação entre o sujeito poético e a natureza: à sua alegria corresponde a alegria do cantar das «aves»; ele projeta o seu estado de alma na natureza circundante.

 

4. A donzela diz que ele destruiu aquilo que no cenário contribuía para a amenidade do encontro. A fuga das aves, o corte dos ramos e a secagem das fontes simbolizam o fim do amor. Tudo se modifica pela ausência do amigo e o espaço fica vazio sem a presença das aves tal como o espaço do seu coração está vazio sem a presença do amor.

 

5.1. c. irónico.

 

5.2. Trata-se de uma afirmação irónica, pois o enunciador afirma uma coisa, mas tem outra em mente. Assim, até ao meio da cantiga o refrão seria cantado e tocado euforicamente, a partir daí sê-lo-ia ironicamente, já que a alegria da donzela não existia.

Podemos afirmar que o verso do refrão indica que o sujeito poético não consegue aceitar o fim do seu amor, porque mesmo quando as aves já não podem cantar o amor, a rapariga continua a afirmar a sua felicidade. A ênfase posta na alegria por parte da donzela poderá sugerir que esta ainda não perdeu totalmente a esperança de reverter a situação e de regressar à alegria e felicidade experimentadas no passado.

 O refrão poderia ter uma outra interpretação, sugerindo o alívio da donzela por ter mandado embora o amigo, uma vez que este a desiludiu.


6. a) Primavera; b) outono; c) inverno.

 

7. O tema do poema é o fim do amor.

 

8. a) F (Neste poema, o sujeito poético, uma menina, dirige-se ao amigo).

b) V.

c) F (Este poema estrutura-se em duas partes, porque aborda primeiro a alegria do amor e depois o fim desse amor).

d) F (As aves eram cúmplices e confidentes daquele amor).

e) V.

f) V.

g) F (O sujeito poético culpabiliza o amigo / a rapariga acusa o amigo de ter destruído o amor, pois este impediu que as aves continuassem a cantá-lo).

h) V.

i) V.

j) F (Em poesia lírica as técnicas repetitivas são fundamentais).

k) V.

l) V.

 

Bibliografia consultada:

Entre Palavras 8, António Vilas-Boas e Manuel Vieira. Lisboa, Sebenta, 2014 (2.ª ed.).

P8, Lisboa, Ana Santiago e Sofia Paixão. Lisboa, Texto Editores, 2014 (2.ª ed.).

Ser em português 10Português A, coord. Artur Veríssimo. Porto, Areal Editores, 2003 (2.ª ed.).

 

"Girl with pigeons", Morris Hirshfield (1872-1946)


 

     Ligações externas | Poderá também gostar de:

 

Edição crítica da cantiga medieval «Levad’, amigo, que dormides as manhanas frias», disponível em https://www.universocantigas.gal/cantigas/levad-amigo-que-dormides-as-manhanas-frias?cambiarIdioma=es&verso=13, Coruña, Facultade de Filoloxía, © 2022

 

Análise da cantiga de amigo «Levad', amigo que dormides as manhanas frias», disponível em https://portugues-fcr.blogspot.com/2018/10/levad-amigo-que-dormides-as-manhanas.html, 2018-10-16

 

«Levad’, amigo, que dormides as manhanas frias: Una lectura de la Cantiga de Torneol», Toribio Fuente Cornejo. In: Archivum n.º 44-45, https://reunido.uniovi.es/index.php/RFF/article/view/479

 

Projeto #ESTUDOEMCASA, aula 44 de Português - 7.º e 8.º anos, sobre a cantiga de amigo «Ergue-te, amigo que dormes as manhãs frias!», disponível em https://www.rtp.pt/play/estudoemcasa/p7828/e539127/portugues-7-e-8-anos, 2021-04-23


“Poesia trovadoresca galego-portuguesa”, José Carreiro. In: Folha de Poesia, 2018-05-18. Síntese didática disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2018/05/poesia-trovadoresca-galego-portuguesa.html

 

Sedução e drama nos cantares de amigo.



CARREIRO, José. “Levad', amigo, que dormides as manhanas frias (Ergue-te, amigo que dormes nas manhãs frias!)”. Portugal, Folha de Poesia, 16-06-2022 (última atualização: 2022-07-26). Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2022/06/levad-amigo-que-dormides-as-manhanas.html