Mostrar mensagens com a etiqueta Natália Correia. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Natália Correia. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Pelos campos primaveris (de Natália Correia) e Bailemos nós já todas tres, ai amigas (de Airas Nunes)


Pelos campos primaveris

Radiosos de aves e ervas

Os soldadinhos gentis

Por quem acendemos velas       

Trazem flores em vez de balas       

Para libertar as belas.

 

Ferocidade ou fuzil.

Não nos farão mais querelas

Que os soldadinhos de Abril

Com cravos domando feras       

Trazem flores em vez de balas       

Para libertar as belas.

 

Amigas, com estes junquilhos

Façamos frescas capelas.

É Abril. E os soldadinhos

Tomando o viço das relvas       

Trazem flores em vez de balas       

Para libertar as belas.

 

Por estes campos floridos

Sob os ramos das camélias

Bailemos para os soldadinhos

Que no mês das pastorelas       

Trazem flores em vez de balas       

Para libertar as belas.

 

Natália Correia, poema I de “Alegram-se as velhas amigas em novos cantares de amigo” (Inéditos poeteriores a 1990). In: O sol nas noites e o luar nos dias II, Lisboa, Círculo de Leitores, maio de 1993, p. 415.

 

 

O poema “Pelos campos primaveris” trata-se de uma imitação criativa, cujo hipotexto poderá ser a cantiga de amigo de Airas Nunes “Bailemos nós já todas três, ai amigas” que reproduzimos a seguir:

 

Bailemos nós já todas tres, ai amigas,

so aquestas avelaneiras frolidas,

e quem for velida como nós, velidas,

se amigo amar,

so aquestas avelaneiras frolidas

verrá bailar.

 

Bailemos nós já todas tres, ai irmanas,

so aqueste ramo destas avelanas,

e quem for louçana como nós, louçanas,

se amigo amar,

so aqueste ramo destas avelanas

verrá bailar.

 

Por Deus, ai amigas, mentr’al nom fazemos,

so aqueste ramo frolido bailemos,

e quem bem parecer como nós parecemos,

se amigo amar,

so aqueste ramo so’I que nós bailemos

verrá bailar.


Airas Nunes, clérigo (CV 462/ CBN 879)

A Lírica Galego-Portuguesa, edição de Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos, 2.ª ed., Lisboa, Comunicação, 1985, p. 311

 

Notas

aquestas (verso 2) – estas.

avelanas (verso 8) – avelãs.

avelaneiras (verso 2) – árvores cujo fruto é a avelã.

louçana (verso 9) – bonita.

mentr’al nom fazemos (verso 13) – enquanto não fazemos outra coisa.

so (verso 2) – sob.

so’l que (verso 17) – sob o qual.

velida (verso 3) – formosa.

verrá (verso 6) – virá.




 

Na cantiga de amigo medieval, a “bailada das avelaneiras” é uma reminiscência das danças rituais femininas debaixo das árvores de avelãs, onde se suponha que a deusa da fecundidade aí se escondia.

Assim, a dança frente os amigos é associada a um ritual de pujança, de alegria e de fecundidade, sendo, por isso, conotada com a sedução amorosa e com o próprio namoro.

Nos cantares de amigo é comum o elogio do amor e do corpo da própria figura feminina. A palavra “velida”, que significava “bonita”, é usada frequentemente, o que supõe um grau de confiança da protagonista no seu encanto físico (e no das amigas que a acompanham). Esse estado de espírito propaga-se à expressão do sentimento do amor.

 

A relação intertextual estabelecida no poema de Natália Correia processa-se quer ao nível da semelhança formal (através do uso das coplas e do refrão), quer ao nível da temática, nomeadamente o convite à dança e a referência à paixão amorosa/paixão pela liberdade. O jogo intertexual é particularmente visível também através da inserção de elementos pertencentes à lírica trovadoresca, nomeadamente a existência de um interlocutor (as amigas) e a referência ao amigo/soldadinho.

  

Questionário sobre a cantiga trovadoresca “Bailemos nós já todas tres, ai amigas”, de Airas Nunes

Apresente, de forma bem estruturada, as suas respostas aos itens que se seguem.

1. Explicite o sentido do convite que a donzela dirige às amigas.

2. Identifique os traços caracterizadores das donzelas, fundamentando a resposta com citações do texto.

3. Refira dois dos valores expressivos do paralelismo presente na primeira e na segunda estrofes (versos de 1 a 3 e de 7 a 9).

4. Classifique esta cantiga quanto ao género e ao subgénero a que pertence, justificando a resposta.

 

***

Explicitação de cenários de resposta:

1. A donzela convida as «amigas» (v. 1) para irem dançar («Bailemos nós já» – vv. 1 e 7; «bailemos» – v. 14) sob as avelaneiras e assim celebrarem o amor pelos seus apaixonados («se amigo amar» – vv. 4, 10 e 16; «verrá bailar» – vv. 6, 12 e 18), divertindo-se a bailar.

2. As donzelas são caracterizadas por:

− serem belas («velidas», «louçanas», «bem parecer como nós parecemos» – vv. 3, 9 e 15);

− estarem apaixonadas («se amigo amar» – vv. 4,10 e 16);

− serem alegres, desejosas de bailar, festejando os seus amores («Bailemos»; «bailemos» – vv. 1, 7, 14 e 17; «verrá bailar» – vv. 6, 12 e 18);

− serem muito amigas, como se fossem irmãs (vv. 1, 7 e 13).

3. O recurso ao paralelismo presente nos dois conjuntos de versos (de 1 a 3 e de 7 a 9) tem, entre outros, os seguintes valores expressivos:

− salientar o objetivo do convite, evidente na repetição de «Bailemos nós já todas tres» (v. 1 e v. 7);

− sublinhar a relação de proximidade afetiva entre as donzelas pela substituição da palavra «amigas» (v. 1) por «irmanas» (v. 7);

− colocar em evidência a consciência, por parte da jovem, de que ela e as suas «amigas» (v. 1) são belas, através da sinonímia entre «velidas» (v. 3) e «louçanas» (v. 9);

− exprimir a passagem de uma visão geral do espaço (campo com avelaneiras onde as donzelas bailarão) para uma visão circunscrita (a árvore e o ramo sob o qual decorrerá a dança), através da substituição da expressão «avelaneiras frolidas» (v. 2) por «aqueste ramo destas avelanas» (v. 8);

− contribuir para a cadência melódica da cantiga.

4. Esta composição pertence ao género das cantigas de amigo, pois a voz do sujeito poético é feminina (apesar de a autoria ser masculina), a de uma jovem que designa como «amigo» (v. 4) tanto o seu apaixonado como o das «amigas» (v. 1). Quanto ao subgénero, é uma bailia, uma vez que se trata de uma cantiga que versa a dança: a donzela refere-se ao baile onde ela e as amigas dançarão para festejar o amor pelos apaixonados.

(Fonte: Exame Final Nacional de Literatura Portuguesa n.º 734. 11.º Ano de Escolaridade (Decreto-Lei n.º 139/2012, de 5 de julho; Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho). Portugal, Instituto de Avaliação Educativa, I.P. (IAVE), 2015, 1.ª fase)

 

Texto de apoio 1

 

É primavera. Tempo das flores, do triunfo ao menos momentâneo da cosmovisão poética. Tempo de liberdade, destacada no movimento de retorno das aves. Não são mais os “soldados”, são os “soldadinhos gentis”, mais afetuosos e aparentemente inofensivos. Por eles, as amigas tinham acendido “velas”, intentando iluminá-los espiritualmente, convertê-los ao bom caminho: o da união amorosa. O rito feminino demonstra sua eficácia, pois os soldados agora “trazem flores em vez de balas”, vindo libertar as suas amigas da saudade, aflição e decepção amorosas. Há um verso em que o uso proposital do ponto final merece ser salientado, já que indica o cessar dos conflitos: “Ferocidade ou fuzil.” Não há, portanto, mais espaço para a ira, para as armas, dado que estas servem à guerra e não ao amor.

Estes “soldadinhos de Abril” trazem a beleza das flores em suas mãos. Domam o sentimento da ira (“feras”) com o sentimento do belo (“cravos”). Obviamente que o poema se refere a um evento de suma importância na trajetória histórica de Portugal: a Revolução dos Cravos. Em abril de 1974, cai o regime de exceção que patrocinou a censura e as guerras coloniais. É a vitória da liberdade acompanhada do êxtase proporcionado pelo encontro pacífico entre os cidadãos depois de exaurido o Estado Novo.

As amigas montam um cenário bucólico, pois desejam comemorar a acertada escolha de seus amores: “Amigas, com estes junquilhos/ Façamos frescas capelas”; “Sob os ramos das camélias/ Bailemos para os soldadinhos”. As “capelas” sugerem a sacralização do corpo, do desejo, porque os locais que abrigarão os corpos dos amantes são equiparados a um recinto sagrado. O desejo de encontro entre os amantes nas cantigas tem por vezes como ingrediente erógeno a dança feita sob as árvores, tais como as avelaneiras, as milgranadas* (romãzeiras) e outras:

II

Sob a milgranada, amigas, bailemos

As três danças concêntricas do Amor.

Na árvore a Deusa seus floridos ramos

Estende-nos no auge do seu esplendor.

[...]

Entre as nuvens douradas pulcra e santa,

Inebriando de amor nossos amigos,

Surja a Divina que no ardor da dança

Acende as chamas que queimam os vestidos.

 

Notemos que o “Amor” grafado com maiúscula dignifica o amor vivido no plano da imanência, do terreno. Lembremo-nos de que os “soldadinhos” da cantiga anterior estavam “tomando o viço das relvas”, revelando, portanto, uma experiência de comunhão com a natureza. É o homem reintegrando-se ao mundo, partilhando do “viço”, do vigor da vegetação. Por isso, a experiência erótico-amorosa desponta justamente em um cenário natural: tem-se início com a dança das amigas o processo de êxtase dos sentidos com a unidade (dos corpos) que, metalinguisticamente, pode ser estendida ao do poeta com o exercício de sua arte poética.

Intenta-se com a dança ritualística inebriar os amigos de amor, seduzi-los, erotizá-los. Ademais, evoca-se a divindade (a “Divina”) para que ela acenda as chamas que queimem as vestimentas das amigas, desnudando-as aos amigos e, consequentemente, convidando-os ao gozo do ato sexual.

 

__________________

Nota:

* Os versos do poema “Sob a milgranada, amigas, bailemos/ As três danças concêntricas do Amor” estabelecem uma evidente relação intertextual com a cantiga de amigo (bailada) “Bailemos nós já todas tres, ai amigas”, do clérigo Airas Nunes. Nesta cantiga galego-portuguesa, a dança se efetiva sob as avelaneiras. Não por acaso, encontra-se coligida no livro Cantares dos trovadores galego-portugueses. Tem-se a milgranada como símbolo de fertilidade.

 

Os cantares de amigo de Natália Correia: das queixas contra o Estado Novo ao êxtase do encontro com a Revolução dos Cravos”, Tatiana Picosque. In: Convergência Lusíada, v. 25 n. 31, 2014. Dossiê: Poesia Portuguesa dos Anos 40 à Contemporaneidade.

 

 

Texto de apoio 2


Natália Correia, por exemplo, escreveu entre o final da década de 1980 e início de 90, pouco antes dela nos deixar, suas cantigas de amigo. Duas temporalidades chocam-se ambigua­mente: 1. a contemporânea, que nos anos finais do século XX, à beira do 3º milênio, apresenta uma poesia revestida pelas cantigas folclóricas peninsulares do século XII; 2. o século XII que é revisitado e reatualizado, transposto de um contexto medieval e teocêntrico para o desenlace frenético de uma modernidade descentrada. Natália Correia – na condição de poeta, e não en­saísta, como trataremos também – renova as cantigas no momento em que subverte o gênero autoral: trata-se de uma mulher dando voz a outra.

Essa particularidade em Natália parece corroborar seu discurso sobre as cantigas medie­vais na introdução que ela assina para o volume que organizou em 1978 Cantares dos trovado­res galego-portugueses. Para ela, não só a atualidade da lírica trovadoresca estaria em dar voz à mulher, como também, e mais além disso, estaria na adoração feminina, como ocorre nas can­tigas de amor. Mais revolucionário, portanto, seria colocar a mulher no centro de um discurso dirigido a ela, num lugar de louvor que só caberia a Deus, à época: a originalidade da temática trovadoresca e o porquê da sua deflagração revolu­cionária, no seio de uma sociedade teocrática que devia sentir-se prejudicada por um ideal que carnavaliza a fervorosa religiosidade medieval para um ver­dadeiro culto prestado à mulher. (CORREIA, 1978, p. 15)

Para Natália, a verdadeira atualidade e revolução encontram-se nas cantigas de amor, com a adoração da mulher, característica do amor cortês. Numa sociedade teocrática, em que a reli­gião não dava espaço para as aspirações do indivíduo, a conceção de amor provençal tinha um valor duplamente moderno: 1. no que toca à colocação da mulher numa situação privilegiada e superior, como ser dotado de virtudes e, nesse sentido, melhor do que os homens; 2. na expressão do “eu apaixonado”, individualizando o sentimento amoroso e ascendendo a subjetividade do indivíduo:

O amor trovadoresco não exprime um ajustamento da realidade e do conceito do amor e do amar, mas é um conceito que quer operar sobre a realidade, trans­formá-la, ou seja, converter a situação passiva da mulher em princípio ativo, a mulher que inspira o amor que integra a personalidade do homem, a fim de que este reconquiste a sua natureza una, perdida na pluralidade que o escraviza (...) a valorização do princípio feminino, a exaltação do amor como portador do valor da unificação que liberta, é uma arma de combate contra a autoridade que oprime o livre exercício do indivíduo. (CORREIA, 1978, p. 27)

Natália entende as cantigas trovadorescas, antes, como discursos subversivos, sobretudo porque retiram a mulher de sua passividade, concebendo-a como agente do destino do indiví­duo, desorganizando um mundo “patriarcalmente organizado” (CORREIA, 1978, p. 28), como ela afirma. Para Natália, nenhuma tese acerca das cantigas medievais dirige-se ao núcleo do amor trovadoresco, que caracterizado pelo intensificado individualismo, prenunciaria os ideais de liberdade da Renascença, opondo-se a uma cultura ortodoxa.

Natália concebe o amor trovadoresco como lugar da gênese da ideologia amorosa do ocidente. Não exclui as cantigas de amigo de sua tese, mas será nas de amor e na origem provençal que se dará a vassalagem amorosa em sua mais alta expressão.

Segundo a poetisa, o amor cortês seria uma espécie de síntese encontrada pelo homem pré-renascentista “para se furtar a um poder desfigurante da sua individualidade” (CORREIA, 1978, p. 25). E seria no século XII, com o chamado humanismo carolíngio, que se iniciaria a absorção de uma mentalidade renovadora, que irá impulsionar a liberdade individual de forma lenta e paulatina.

O amor cortês, revelando a superioridade da mulher através de sua adoração, e colocando -a no centro das aspirações individuais, pode ser entendido, segundo Natália, como uma forma de “combate contra a autoridade que oprime o livre exercício da individualidade.” (CORREIA, 1978, p. 27) A vassalagem amorosa seria, portanto, expressão libertária do individualismo, anunciando os preceitos do Renascimento e características do sujeito moderno, que se afirmará no século XIX, com a ascensão da burguesia.

O ideal de amor cortês na lírica portuguesa é, portanto, herança do trovadorismo penin­sular, de influência provençal, e irá permanecer na literatura até os tempos atuais. E se é correto afirmar que essa poesia corresponde à resistência do indivíduo à reificação, com a ascensão franca do individualismo, em correspondência com a ascensão do capitalismo, espera-se que ainda hoje haja a recuperação da lírica trovadoresca, e seu ideal de amor. Essa hipótese pode ser confirmada ao percorrermos a literatura do período clássico, passando pela modernidade e chegando à contemporaneidade.

 

* * *

 

Sua ideia de que o amor trovadoresco antecipa as aspirações do indivíduo moderno, como resistência à sociedade teocrática medieval, que tolhia a subjetividade, exprime uma aguçada perceção por parte dela da atualidade e importância que a lírica provençal legou para literatura ocidental.

Consciente disso, Natália não poderia se furtar à tarefa de também contribuir com a me­mória cultural da lírica trovadoresca. Dedicou-se a escrever as cantigas e em algumas delas imprimiu todo espírito revolucionário que ela própria encarregou-se de analisar na natureza do amor trovadoresco. É o caso, por exemplo, da cantiga de amigo composta como alegoria da Revolução dos Cravos: “Pelos campos primaveris”.

Se para Natália o cerne do amor trovadoresco está em seu caráter revolucionário, ela não poderia deixar de atualizá-lo para seu contexto, de quase cinquenta anos que o país esteve sob o regime ditatorial do Estado Novo. O poema integra um conjunto de cantigas de amigo compostas por Natália, por isso a estrutura retoma o refrão, característico do gênero. Claramente, os primeiros versos da cantiga irão aludir à primavera, estação do ano que remontará aos ritos primaveris primitivos dos quais as cantigas de amigo teriam se originado. Ao mesmo tempo, a primavera simboliza o período do ano em que se desenrolou o 25 de abril de 1974.

Os capitães de abril, como ficaram conhecidos os militares da Revolução, são representados como os soldadinhos para os quais as amigas irão prestar homenagem. São aqueles que libertarão as belas, nome indeterminado, mas que aponta para a existência de uma subjetividade feminina ligada à beleza, que até então estaria aprisionada. Libertar a beleza feminina se dará, por sua vez, não através das balas, da belicosidade, própria do universo masculino, mas através das flores que, simbolizando os cravos de abril colocados nos fuzis dos militares responsáveis pela revolução, também indicam a delicadeza do universo feminino.

Segundo Natália, em sua introdução de Cantares dos trovadores galego-portugueses, o mundo representado pelas cantigas medievais, sobretudo as de amigo, representa “um mundo que desconhece a autoridade paterna. Nem uma só vez a sombra do pai vem perturbar este uni­verso estritamente feminino que apenas se excita com as proibições e concessões da mãe, único juiz das ações da filha enamorada.” (CORREIA, 1978, p. 44). O poema irá, portanto, represen­tar essa hipótese, quando o universo feminino é colocado no centro do poder revolucionário. E se nas cantigas de amor a amada será motivo de adoração do homem e cerne do afloramento do indivíduo, nas cantigas de amigo a figura da mulher será a determinante para o desabrochar da subjetividade feminina.

Seja em sua escolha de atualização das cantigas de amigo, seja em sua conceção sobre as cantigas de amor, Natália parece entender esta herança medieval como lugar revolucionário por excelência.

 

Josyane Malta Nascimento, “Ressonâncias do trovadorismo na lírica portuguesa: Camões, João de Deus e Natália Correia”. In: Diadorim: revista de estudos linguísticos e literários (Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, vol. 21, n. 1, p. 90-100, jan.-jun. 2019

 

Poderá também gostar de:

 

 

 

  • Cantigas medievais galego-portuguesas – projeto Litteraa presente base de dados disponibiliza, aos investigadores e ao público em geral, a totalidade das cantigas medievais presentes nos cancioneiros galego-portugueses, as respetivas imagens dos manuscritos e ainda a música (quer a medieval, quer as versões ou composições originais contemporâneas que tomam como ponto de partida os textos das cantigas medievais)

 

 




CARREIRO, José. “Pelos campos primaveris (de Natália Correia) e Bailemos nós já todas tres, ai amigas (de Airas Nunes)”. Portugal, Folha de Poesia, 06-10-2021. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2021/10/pelos-campos-primaveris-natalia-correia.html



sábado, 16 de março de 2019

Cosmicidade e comicidade em Natália Correia, por José Emílio-Nelson


Tertúlia em casa de Natália Correia.

Na abordagem elementar da poesia de Natália Correia, como a que me proponho apresentar, saliento dois pontos cardeais que me nortearam nessa tarefa insensata: a COSMICIDADE e COMICIDADE [descomedimentohybris].
Numa dialéctica (aparentemente antitética), a analogia entre COSMICIDADE e COMICIDADE, se afirma como característica fundadora da sua poética, com nuanças surrealistas, atenuações do Barroco, como dinâmica discursiva, magia sempre presente na sua escrita plurissignificativa: na obra poética, na obra teatral, romanesca e ensaística.
COSMICIDADE
Na INTRODUÇÃO à edição da POESIA COMPLETA de Natália Correia,[edição póstuma preparada pela autora que a intitulou de O SOL NAS NOITES E O LUAR NOS DIAS, datada de 1999], Natália Correia alude à COSMICIDADE e a define como sendo ‘o postulado de uma conexão cósmica da poesia com uma linguagem englobante da música e das matemáticas em que está estruturado o Universo’. (Deduzo que se refira à ‘harmonia das esferas’crença pitagórica que relacionava o Universo com a harmonia e a divina proporção musical que o sustenta).
Nos seus poemas crísticos, o imaginário ascende ’ao miradouro do Espírito‘para enxergar ‘sob forma mesmo estruturalmente dramática, ode, sátira ou humor que, como poesia, surge onde não há solução’.
Natália Correia ‘debate-se com a má eternidade e com a má infinitude’(diria Maurice Blanchot): a poesia surge ‘onde não há solução’Onde não há soluçãopermanecerá, assim interpreto, é a palavra indizível, inacessível, palavra esotérica, sob a forma teosófica, como interrogação ao insondável, religiosidade simbolista por empréstimo como
EQUÍVOCO CÓSMICO [INÉDITOS 1955/57]
Se meu germe, por equívoco, Teu gesto
Neste planeta funesto semeou,
Criar foi inventar-me o resto.
Perdoo-te a mentira que aqui sou
Pela verdade que lhe empresto.
Perspectiva-se neste poema, tanto quanto creio, o fingimento (na acepção pessoana) que se esclarece pelo que se lê no trecho inicial de EXÓRDIO [O ARMISTÍCIO (1985)]:
‘Não jurarei que qualquer deus exista. Só sei que é grosseiro viver sem deuses. Porque mais importante que os deuses existirem é acreditarmos neles. E mesmo que, existindo, nos ignorem, não sejamos nós a ignorar a sua autoridade primitiva que, nutrindo de segredos divinos as florestas, os rios e os ventos, faz correr o sangue em nossas veias. Usando este saber, menos dano nos farão os salteadores do verdor da natureza. Supersticiosos como todos os malfeitores, colhimento lhes será o terror sagrado de depredarem flores, árvores e fontes em que os deuses são tão reais quanto elas são. Baste-vos esta ciência: onde vos retiver a beleza de um lugar, há um deus que vos indica o caminho e Espírito.’
Em VOU DAS ANTÍTESES PARA O ABSOLUTO, [INÉDITOS 1947/55] busca o rumo constante da interrogação que a reflexão permite:
Não expulsarei os deuses e os demónios
Que discutem a posse da minha alma.
Esse conflito, esse entrelaçamento do anticlericalismo e da interrogação do Absoluto, de se lhe abeirar rejeitando-o, de o afastar pretendendo alcançá-lo, numa contradição assumida (ora com fingimento, ora com magia ‘dum ritmo exterior’), numa subversão que atravessa toda a obra da escritora, que se sintetiza no neologismo unamuniano, como se lhe referem em Espanha: MATRIA (conceito formulado anteriormente a Unamuno, mencionado pelo padre António Vieira, e revisitado por autores contemporâneos, como o expressa Luís Adriano Carlos no ensaio A MÁTRIA E O MAL EM NATÁLIA CORREIA).
O pendor metafórico da sua poesia permite irrupções de imagens que configuram uma irracionalidade da busca da razão, uma constante escondida adesão à dúvida e ao ímpeto para elaborar uma verdade que deuses e demónios disputam ou discutem, uma afirmação da sexualidade numa ânsia que se proclama noutro poema de EXÓRDIO:
‘Sejamos tranquilamente amantes das coisa divinas, sem o que a vida é o heroísmo reles de um aborrecimento.’, ou mais expressivamente, se lê num verso dos SONETOS ROMÂNTICOS: ‘Creio na carne que enfeitiça o além’.
O Absoluto, ‘cosmicidade do idioma poético’, manifesta-se como ‘a liberdade cósmica’, que é sublinhada amplamente na tão imensa música, música como acesso revelador da palavra em falta, a que Natália Correia alude, no contexto em que, como escreve, ‘nada é isolável’.Define, em ‘O POEMA’ a inventividade da poesia como ‘Pura intenção/ de cantar o que não conhece.’.
Lê-se num soneto do ciclo: ROGANDO À MUSA QUE TORNE CLARO O CORAÇÃO OBSCURO [SONETOS ROMÂNTICOS (1990)], algum tormento de interrogação do estético por detrás da simbolização da infinidade divina:
De um emboscado deus os sons que escreves
Vêm secretamente do infinito.
É para escrever que as tuas mãos são leves,
Submissas asas de um misterioso espírito.
Alheia te é a música que atreves;
Teu é o fado, o precipício, o rito
Da dor que faz passar entre horas breves
Té mister, poeta grácil de olhos tristes.
Desafias os astros? Não te gabes.
És sábio de saber que nada sabes.
Estás a mais no mundo e não existes.
COMICIDADE
Revela-se, em Natália Correia, um misticismo secularizado que lhe advém da independência com que ‘sem intento malévolo contra instituições democráticas’, combate ‘o desvario de extremismo’, ‘o imediatismo revolucionário’, e não se ilude com as soluções políticas adoptadas, revelando uma consciência céptica quanto ao pós-25 de Abril, embora positivamente interventora no campo político, deputada da Direita, empreendendo, na atitude, algo que ironicamente parece ser a palavra da auto-convicção de uma autoridade moral pública superior. Hoje se justifica (ou se lê) a EPÍSTOLA AOS IAMITAS (1976), pela realização poética alcançada. Poesia sem constrangimentos limitadores do seu assombro, da metáfora transgressora e exultante numa comicidade que é ‘um poema para ensinar risadas de camélias aos animais do medo’. [COMUNICAÇÃO1959]. É surpreendente a sua poesia pela articulação do imaginário poético dos ‘versos parodísticos’ com a intervenção política datada, sem nada perder nessa atitude extraverbal. Hoje justifica ler-se também as suas crónicas, como contextualização das poesias políticas. No fundo, trata-se de uma coerência entre a afirmação de uma poderosa presença do ‘Deus Riso’ e o seu aperfeiçoado labor metafórico: simultaneamente ética (hesito em classificá-la de ética idealizada) e incontestada ambição estética.
O riso de Natália Correia cumpre ‘a função útil do riso’, a significação social como defende Bergson [, na sua obra O RISO: ENSAIO SOBRE A SIGNIFICAÇÃO DA COMICIDADE] para quem o riso é ‘inteligência pura’.
Atenda-se que em A DEMIURGIA DO RISO, Natália Correia escreve como epígrafe:
E cada vez que celebrei o
Deus Riso floresceu em mim
Um novo invento.
O riso de Natália Correia ‘é o seu reino inesgotável’, como fonte de invenção, dado que há uma prioridade de ordem histórica no humor ‘jocoso de travessuras’ como no hilariantemente cómico, riso de zombaria quando se refere a episódios parlamentares, que reune no poemário CANTIGAS DE RISADILHA (entre 1979 e 1991.
Cito: ’O acto sexual é para fazer filhos’disse ele [Refere-se ao deputado João Morgado, e à sua posição conservadora, no debate sobre a legalização do aborto.]
‘Já que o coitodiz Morgado
Tem como fim cristalino,
Preciso e imaculado
Fazer menina ou menino;
E cada vez que o varão
Sexual petisco manduca,
Temos na procriação
Prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
Lógica é a conclusão
De que o viril instrumento
Só usou
parca razão!
Uma vez. E se a função
Faz o órgão
diz o ditado
Consumada essa excepção
Ficou capado o Morgado.’
A poesia satírica da cidadã Natália Correia contempla corrosivamente, com directas e facilmente decifráveis referências, com a comicidade e o riso(Vladimir Propp), o contexto sócio-histórico.
Natália Correia imprimiu no jornal da campanha eleitoral autárquica por Lisboa em que concorreu Marcelo Rebelo de Sousa o CANCIONEIRO JOGO-MARCELINO [1989] [,de que cito, aleatoriamente, o soneto]:
MARCELO É BOM BAILARINO
É entrar, venham ver a maravilha
Das variedades na feira marcelina!
E entre atracções à escolha a que mais brilha
É de Marcelo a fúria bailarina.
Do tango ao rock do chá-chá-chá ao samba,
Dançando a valsa como quem flores pisa,
Baila Marcelo até na corda bamba
E os alunos de Apolo inferioriza.
Topa, enfim, de cavaco o maçarico
No 
dernier cri da dança uma golpada:
Rebolar-se no novo sassarico
Para no partido acabar tudo à lambada.
No conjunto da sua obra, o humor, uma outra forma de sátira, é a homofonia ’Humor=Amor’ na desconcertante sexualidade da poesia de Natália Correia, e nessa direcção, será possível concluir, numa síntese que a própria autora escreveu:‘Disparei contra a univisualidade do mostrengo das coacções fascio-puritano-pirosas’.
Em conclusão, que não conclui nada: a poesia vária de Natália Correia mostra que a Cosmicidade, ‘o sopro da Alma Universal’ contém a inversão metafórica (Gérard Genette) da Comicidade.
Mesmo na interrogação e afinidade ao Absoluto [velhos Tratados Espirituais e Filosóficos, matemática e música] há um momento do tempo que decorre no tempo (1), em sentido figurado, que é considerado, aquele que revela como fundamento vinculado do processo criativo da COSMICIDADE que, sublinho, não se separa da COMICIDADE.
Disso nos apercebemos ao ler a primeira estrofe de JESUS NUM BAR:
Já rio e raio foste
E o vício do vinagre
Te afeiçoou aos bares
Onde homem te fizeste
Com a ruga celeste
de chegares sempre tarde.
Na obra literária de Natália Correia, a Cosmicidade (o que se recentra na intuição do Absoluto), entrecruza-se com a Comicidade das coisas deste mundo.
José Emílio-Nelson*, Revista Caliban, 16-03-2019
______________________
(1) Segundo Søren Kierkegaard, ‘ a música tem em si’ ‘um momento de tempo, mas não decorre no tempo, a não ser em sentido figurado’
(*) José Emílio-Nelson, poeta, crítico e editor, é o pseudónimo literário de José Emílio de Oliveira Marmelo e Silva, nascido em Espinho, em 17 de Maio de 1948. Iniciou a sua obra em 1979, com o livro Polifonia, e poesia recolhida em 2004, no volume A Alegria do Mal, prefaciado por Luís Adriano Carlos. (https://www.wook.pt/autor/jose-emilio-nelson/15654)






Cosmicidade e comicidade em Natália Correia, por José Emílio-Nelson” in Folha de Poesia, José Carreiro. Portugal, 16-03-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/03/cosmicidade-e-comicidade-em-natalia.html